Texano nascido em 1925, Robert Rauschenberg,
no início dos anos 1940, estuda Farmácia na Universidade do Texas e presta
serviço militar na Marinha dos EUA. Só depois disso é que Robert, no fim desta
década, passa a estudar Arte e decorar vitrines, no namoro da Pop Art com o Marketing.
Em 1948, estuda Arte em Paris e conhece a futura esposa. Em 1949, muda-se para
Nova York, a meca americana artística, estudando Arte até 1952 e decorando
vitrines pela cidade. Em 1951, sua primeira mostra individual na Big Apple,
tendo, no ano seguinte, viajado para a Europa – em 1953, faz mostras na Itália.
Nessa década, trabalha em ateliers próprios. Em 1958, recebe encomenda para
ilustrar A Divina Comédia, de Dante
Alighieri. Em 1959, participação nas bienais de São Paulo e Paris. Em 1960, conhece
o monstro sagrado artístico Marcel Duchamp. Em 1962, recebe um prêmio por obras
litográficas. No mesmo ano, tem retrospectivas em Paris e Nova York e, em 1964,
retrospectiva em Londres, fazendo também mostra na Alemanha. Em 1967, recebe o
grau de doutor honoris causa da Grinnel
College, de Iowa, juntamente a Martin Luther King. Em 1968, Robert é contratado
pela NASA para ilustrações artísticas. Em 1970, funda uma instituição para
artistas desvalidos e pouco visados. Em 1974, exposição em Jerusalém. De 1976 a 1978, várias
retrospectivas pelos EUA. Em 1980, várias
retrospectivas na Alemanha. Em 1989, sua obra é exposta em Moscou. Em 1990,
surge a Robert Rauschenberg Foundation. Entre 1984 e 1991, Rauschenberg viaja
por vários lugares do mundo. Durante a carreira, Robert também fez cenários
para espetáculos. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do
livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.
Acima, Black Market, ou seja, Mercado
Negro, de 1961. A
seta dizendo One Way, ou seja, Via Única, é o princípio fálico de
direção, de racionalidade. A placa de carro de cabeça para baixo é a
identificação, como um carro com o objetivo de ir e vir em liberdade. A pequena
foto do Capitólio de Washington é o poder que emana da capital. Os americanos
levam muito a sério os princípios de liberdade, mas, inevitavelmente, são
prisioneiros do poder que emana dos próprios americanos – todo poder emana do
povo e, em nome deste, deve ser exercido. Os elementos em verde e vermelho dão
vida a uma peça tão cinzenta e melancólica. A rebelde seta extrapola e foge do
quadro, ironicamente soando como “sela”, a qual o cavaleiro monta e domina o
cavalo. E por que “mercado negro”? É a mazela do Capitalismo, o qual gera um
submundo obcecado em obter dinheiro, como no tráfico de drogas. A ponta da seta
está ligada a uma caixa preta, a qual tem o dizer open, ou seja, abra. O
fio é a conexão entre mundo e submundo, numa relação de continuidade e, ainda
assim, segregação. A tomada branca quer neutralizar o negror da ilegalidade, e
nada está conectado à mesma tomada. É a desconexão entre pobreza e riqueza. A
abertura é a facilidade capitalista para com quem tem dinheiro, e o azar para
com quem não tem. Numa cidade como Nova York, tudo é dinheiro, e o artista
sente isso, essa crueldade mercadológica, na qual um mendigo, que é um filho de
Deus, é desprezado. A caixa negra está usada, vencida, precária e, ainda
assim, operante. As duas tomadas são os seios do corpo feminino, que seduzem a
seta racional. A seta é o senso de praticidade do americano, um povo atento a
facilidades e à abreviação de percalços. Há quatro retângulos cinzentos, e um
deles tem o número 2. Os retângulos são os módulos construtivos de concreto,
pesados, materiais, com os quais a América se ergueu em suas grandes cidades,
florestas de cimento e asfalto, como no World Trade Center sendo destruído. O
número 2 é a dualidade existencial: sou infeliz sem dinheiro; sou infeliz com
dinheiro. Acima da seta, um bloco preto, em harmonia com a caixa negra embaixo da
tela. E o Capitólio reina absoluto em sua agressividade da seta, decidindo o
destino de seus cidadãos. Se o presidente manda, temos que obedecer, pois fomos
nós quem o elegeu. Em outros pontos de Mercado
Negro, há números soltos, classificando, organizando, e a placa de carro é
a identidade, como um judeu reduzido a um número em um campo de concentração.
São as contradições da América. Esta peça de Rauschenberg não segue muito o
preceito multicromático da Pop Art, mas, em nome desta, traz o aspecto de
comunicação de massa, em meio a um complexo industrial federal. Mercado Negro tem pinceladas errantes,
afoitas, borrando e escorrendo pela tela. A seta mandatária dita as regras,
negando a dualidade entre Capitalismo e Comunismo – há só um modo de governo
legítimo. A seta é um ditador lunático e narcisista, um homem que se acha simplesmente
sobre-humano, tal qual um líder terrível de um estado-claustro. Acima da placa
de carro, uma pequena tarja em vermelho, o sangue da América, as guerras
sanguinolentas. A tarja é um sinal de perigo e advertência: não chegue muito
perto desta lâmina de bisturi. Na tela há também partes claras, na esperança da
bonança após a tempestade da guerra. Placa de trânsito, a seta organiza e rege,
e qualquer são cidadão obedecerá. Os buracos de pregos na seta são as mãos e
pés de Jesus Cristo, num sacrifício enorme em meio à dor mais extrema. O
americano está complemente acostumado à realidade capitalista, na qual o
indivíduo pertence a si mesmo e não a um estado. Mas mesmo assim, o Capitólio é
um lembrete: você faz parte de um sistema, de uma família, logo, comporte-se. A
seta extrapola agressivamente o quadro, e tem a ambição de se libertar, de
fugir para um mundo melhor. E a seta está ligada ao crime, contraditoriamente.
A vontade que se tem é a de cortar o fio com uma tesoura e libertar a tela da caixa negra. Robert nos excita e nos convida a participar da situação
artística – sentimo-nos tentados a fazer Arte, e recebemos prazerosamente a
direção da seta. É como um raio de Sol, brilhando em toda a sua majestade. As
letras AU na placa são o pico áureo
do Capitalismo, desenvolvido após a Revolução Francesa. Ao lado esquerdo da
seta, um círculo que parece um olho de camaleão, observado e cena e escondendo-se,
preservando-se com discrição, desaparecendo. Ao lado dele, retângulos que parecem
cartões de crédito, símbolos da dureza capitalista na qual só é cidadão quem
tem um número de cartão, quem tem meios financeiros. O camaleão não quer fazer
parte disso tudo, e ignora os cartões; o réptil é estranho mas, inevitavelmente,
acaba fazendo parte do conjunto, incluído na dança mercadológica do consumo. Na
extrema esquerda da tela, uma pequena seta, quase imperceptível frente à grande
e dominante seta, formando um subconjunto e dando hierárquica continuidade às
ordens expedidas pelo Capitólio. Rauschenberg fala-nos de poder, influência e plenitude.
A grande seta é invariável, nunca podendo ser derrotada. É a ordem do senso
comum americano. A Via Única é Tao, o
Deus único, o único caminho, pois, como é dito nas notas de dólares, In God We Trust, ou seja, Em Deus Nós Confiamos. E a caixa negra
pode ainda ser aberta pelo espectador, convidando-o a interagir e desbravar a
mente do artista.
Acima, Canyon, ou seja, Cânion,
de 1959. Abaixo, amarrados na tela, penduricalhos que parecem um par de
testículos, símbolos da coragem e da masculinidade. A ave voa solta e livre em
sua coragem e em sua independência, do mesmo modo como o cidadão americano é
independente; do mesmo modo como os EUA desvincularam-se da Inglaterra, com um
oceano separando as duas nações, os dois testículos. No canto direito superior,
a inscrição net, ou seja, rede, antecipando o dia em que a Terra
seria toda conectada pela internet. A ave voa pelo cânion no vazio deste, na
solidão. O quadro é predominantemente sombrio, pesado, com os testículos pendendo.
O povo americano celebra sua própria coragem no Quatro de Julho. Aqui,
repete-se a tendência de JR com pinceladas apressadas e tinta escorrendo. Um
pequeno retrato fotográfico de uma criança, talvez do próprio artista quando
bebê, num registro de candura e nostalgia – o cidadão americano nasce livre
assim que deixa o útero da mãe. Robert faz um jogo de montagem com material
impresso e pinceladas, antecipando a paixão da Pop Art por aspectos industriais
de cultura de massa, como jornal impresso, embalagens de produtos, celebridades
etc. No canto esquerdo, uma pincelada de azul bebê, na promessa de um céu azul
e livre sobre o povo americano, quem sabe na promessa de um final para a Guerra
Fria. Rauschenberg gosta de ser americano e cultua seu próprio povo. A ave está
na parte inferior do quadro como se sustentasse tudo e todos em suas costas,
como um presidente ocupado em governar e organizar um país. No lado direito, há
um subquadro que parece mostrar estrelas no firmamento ou galáxias, num artista
que contempla o mundo e o universo em busca de inspiração. E, no negror do céu
da noite, Robert quer ver clareza, em oposição ao negror da caixa misteriosa
de Mercado Negro. Em Cânion, tons em
bege imitam a cor da pele humana em sua nudez, conferindo naturalidade ao
conjunto, bege como os testículos balançando. Teriam estes sido castrados e
desprovido o artista da coragem deste? Os testículos estão por um fio, e, mais
uma vez, JR convida-nos a interferir na cena, talvez excitando-nos a cortar o
fio e castrar a ave da liberdade, assim como os sistemas ditatoriais castram o
seu próprio cidadão, escravizando-o e reduzindo-o a um anônimo tijolo na parede
estatal, a uma pilha de bateria. O Comunismo cai de podre, assim como os testículos
são esse sistema político, o qual está por um frágil fio. O momento da verdade
é inevitável, e Robert diz-nos que é só questão de tempo até o fio ceder – a
verdade vem à tona. Seria a ave negra o agouro funesto de aniquilação, o qual
aniquilará o Comunismo? Sob a asa direita da ave, um subquadro em branco, na
esperança de paz para o mundo, paz esta sob tantas ameaças. É uma Julia Roberts;
uma queridinha da América; uma estrela que traz direção e unidade a um povo;
uma megacelebridade de carisma cultuado – tudo o que a Pop Art ama, na
popularidade de ícones de mercado, significando gordas bilheterias. Tudo está
à venda. Como dizem os americanos, Time is
Money, ou seja, Tempo é Dinheiro.
A ave “salta” do quadro, num registro 3D.
Acima, Odalisca, de 1955-58. Tudo repousa sobre um fofo travesseiro
branco, o conforto, os doces sonhos de uma noite bem dormida, a comodidade. O
travesseiro é o pecado capital da preguiça, na necessidade do Homem de
descansar, de morrer e voltar à Fonte, à Nossa Senhora, ao Nosso Lar metafísico.
A galinha está no topo da cadeia alimentar, branca como o pombo da paz e como o
travesseiro, que é o destino de todos nós, pois, na vida, nada mais natural do
que a morte. A galinha bota seus ovos e dá continuidade à vida. A alva mulher
nua é o princípio feminino e o furioso lobo, mais embaixo, é a masculinidade
bruta, selvagem, que caça a mulher branca. O lobo está prestes a abocanhar a
galinha, garantindo seu jantar – são as leis da natureza que nos cerca. Mais
uma vez, Rauschenberg brinda-nos com fotocolagens e pinceladas apressadas, como
uma mesa muito velha, marcada pelos sinais de tempo e de uso. A caixa de vidro
ao redor da obra é a contradição de mercado: você vê tudo com absoluta nitidez,
mas não pode tocar, ou seja, ter joias é considerado bom, mas estas acabam por
aprisionar o próprio dono, e, como diz o Taoísmo, se você não comprar tesouros,
as pessoas não vão querer roubá-los de você, no sentido de que uma vida simples
é uma vida boa. A cabeça avermelhada da galinha é o sangue da menstruação,
conectado aos ciclos lunares, agrilhoando as mulheres na condição de
fertilidade, de úteros reprodutores. Uma pincelada em verde lembra uma pichação
vândala, violando a cidadania e transformando o vândalo em um lobo selvagem,
solitário e faminto, à margem da vida em sociedade. E o
travesseiro suporta isso tudo com bravura, amenizando a dureza da vida e
servindo de consolo à mulher nua, a qual está muito à vontade em sua nudez
inocente, do mesmo modo como veio ao mundo. As pinceladas em vermelho na parte
inferior do quadro é o sangue das guerras, sendo que um soldado, na missão de
matar os próprios irmãos, vira um animal assassino, como o lobo, o qual está à
espreita, aprontando uma safadeza. As penas da galinha enchem o travesseiro, e
a mulher é sustentada como uma deusa. A cor amarela, clamando por ouro e
riqueza, quer permanecer no conjunto, predominando neste, num conjunto bem
colorido e alegre. Há gritos histéricos da mulher na dor das cólicas
menstruais, como uma diva cantando.
Acima, Hedge, ou seja, Sebe, de
1964, num óleo e serigrafia sobre tela. O azul do céu de brigadeiro está
limitado, enfraquecido. Um avião de guerra cruza os céus, e na parte superior
do quadro vemos um velocímetro (ou algo parecido). O branco predomina no
quadro. As linhas, formas e cores mesclam-se umas com as outras, e o avião
negro é o protagonista da história. Os artistas são muito sensíveis em relação
ao sangue das guerras, representado na parte superior esquerda; os artistas
repudiam a violência de quaisquer conflitos. Podemos quase ouvir o barulho das
turbinas do avião, e tudo no quadro é incerto, com borrões sugestivos nos quais
nada pode ser nitidamente visto ou classificado, e cada espectador é livre para
ver o que quiser ver. É o poder da sugestão de Rauschenberg. Formas
arredondadas em amarelo-caramelo desfilam pelo quadro, trazendo movimento e
sinuosidade feminina, como a mulher nua de Odalisca.
Formas que parecem nuvens brancas são o sonho do artista com um mundo melhor,
com paz. E o velocímetro registra os comandos frios de uma luta violenta – não
há beleza na guerra. O avião é negro porque traz as notícias funestas da
guerra, com mortos e feridos, na eterna busca do ser humano por dinheiro e
poder. E o artista vê-se numa contradição cômica – ele quer ser vendido mas, ao
mesmo tempo, não.
Referência
bibliográfica:
OSTERWOLD,
Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007