quarta-feira, 31 de agosto de 2016

De Robert a Julia Roberts


            Texano nascido em 1925, Robert Rauschenberg, no início dos anos 1940, estuda Farmácia na Universidade do Texas e presta serviço militar na Marinha dos EUA. Só depois disso é que Robert, no fim desta década, passa a estudar Arte e decorar vitrines, no namoro da Pop Art com o Marketing. Em 1948, estuda Arte em Paris e conhece a futura esposa. Em 1949, muda-se para Nova York, a meca americana artística, estudando Arte até 1952 e decorando vitrines pela cidade. Em 1951, sua primeira mostra individual na Big Apple, tendo, no ano seguinte, viajado para a Europa – em 1953, faz mostras na Itália. Nessa década, trabalha em ateliers próprios. Em 1958, recebe encomenda para ilustrar A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Em 1959, participação nas bienais de São Paulo e Paris. Em 1960, conhece o monstro sagrado artístico Marcel Duchamp. Em 1962, recebe um prêmio por obras litográficas. No mesmo ano, tem retrospectivas em Paris e Nova York e, em 1964, retrospectiva em Londres, fazendo também mostra na Alemanha. Em 1967, recebe o grau de doutor honoris causa da Grinnel College, de Iowa, juntamente a Martin Luther King. Em 1968, Robert é contratado pela NASA para ilustrações artísticas. Em 1970, funda uma instituição para artistas desvalidos e pouco visados. Em 1974, exposição em Jerusalém. De 1976 a 1978, várias retrospectivas pelos EUA.  Em 1980, várias retrospectivas na Alemanha. Em 1989, sua obra é exposta em Moscou. Em 1990, surge a Robert Rauschenberg Foundation. Entre 1984 e 1991, Rauschenberg viaja por vários lugares do mundo. Durante a carreira, Robert também fez cenários para espetáculos. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, Black Market, ou seja, Mercado Negro, de 1961. A seta dizendo One Way, ou seja, Via Única, é o princípio fálico de direção, de racionalidade. A placa de carro de cabeça para baixo é a identificação, como um carro com o objetivo de ir e vir em liberdade. A pequena foto do Capitólio de Washington é o poder que emana da capital. Os americanos levam muito a sério os princípios de liberdade, mas, inevitavelmente, são prisioneiros do poder que emana dos próprios americanos – todo poder emana do povo e, em nome deste, deve ser exercido. Os elementos em verde e vermelho dão vida a uma peça tão cinzenta e melancólica. A rebelde seta extrapola e foge do quadro, ironicamente soando como “sela”, a qual o cavaleiro monta e domina o cavalo. E por que “mercado negro”? É a mazela do Capitalismo, o qual gera um submundo obcecado em obter dinheiro, como no tráfico de drogas. A ponta da seta está ligada a uma caixa preta, a qual tem o dizer open, ou seja, abra. O fio é a conexão entre mundo e submundo, numa relação de continuidade e, ainda assim, segregação. A tomada branca quer neutralizar o negror da ilegalidade, e nada está conectado à mesma tomada. É a desconexão entre pobreza e riqueza. A abertura é a facilidade capitalista para com quem tem dinheiro, e o azar para com quem não tem. Numa cidade como Nova York, tudo é dinheiro, e o artista sente isso, essa crueldade mercadológica, na qual um mendigo, que é um filho de Deus, é desprezado. A caixa negra está usada, vencida, precária e, ainda assim, operante. As duas tomadas são os seios do corpo feminino, que seduzem a seta racional. A seta é o senso de praticidade do americano, um povo atento a facilidades e à abreviação de percalços. Há quatro retângulos cinzentos, e um deles tem o número 2. Os retângulos são os módulos construtivos de concreto, pesados, materiais, com os quais a América se ergueu em suas grandes cidades, florestas de cimento e asfalto, como no World Trade Center sendo destruído. O número 2 é a dualidade existencial: sou infeliz sem dinheiro; sou infeliz com dinheiro. Acima da seta, um bloco preto, em harmonia com a caixa negra embaixo da tela. E o Capitólio reina absoluto em sua agressividade da seta, decidindo o destino de seus cidadãos. Se o presidente manda, temos que obedecer, pois fomos nós quem o elegeu. Em outros pontos de Mercado Negro, há números soltos, classificando, organizando, e a placa de carro é a identidade, como um judeu reduzido a um número em um campo de concentração. São as contradições da América. Esta peça de Rauschenberg não segue muito o preceito multicromático da Pop Art, mas, em nome desta, traz o aspecto de comunicação de massa, em meio a um complexo industrial federal. Mercado Negro tem pinceladas errantes, afoitas, borrando e escorrendo pela tela. A seta mandatária dita as regras, negando a dualidade entre Capitalismo e Comunismo – há só um modo de governo legítimo. A seta é um ditador lunático e narcisista, um homem que se acha simplesmente sobre-humano, tal qual um líder terrível de um estado-claustro. Acima da placa de carro, uma pequena tarja em vermelho, o sangue da América, as guerras sanguinolentas. A tarja é um sinal de perigo e advertência: não chegue muito perto desta lâmina de bisturi. Na tela há também partes claras, na esperança da bonança após a tempestade da guerra. Placa de trânsito, a seta organiza e rege, e qualquer são cidadão obedecerá. Os buracos de pregos na seta são as mãos e pés de Jesus Cristo, num sacrifício enorme em meio à dor mais extrema. O americano está complemente acostumado à realidade capitalista, na qual o indivíduo pertence a si mesmo e não a um estado. Mas mesmo assim, o Capitólio é um lembrete: você faz parte de um sistema, de uma família, logo, comporte-se. A seta extrapola agressivamente o quadro, e tem a ambição de se libertar, de fugir para um mundo melhor. E a seta está ligada ao crime, contraditoriamente. A vontade que se tem é a de cortar o fio com uma tesoura e libertar a tela da caixa negra. Robert nos excita e nos convida a participar da situação artística – sentimo-nos tentados a fazer Arte, e recebemos prazerosamente a direção da seta. É como um raio de Sol, brilhando em toda a sua majestade. As letras AU na placa são o pico áureo do Capitalismo, desenvolvido após a Revolução Francesa. Ao lado esquerdo da seta, um círculo que parece um olho de camaleão, observado e cena e escondendo-se, preservando-se com discrição, desaparecendo. Ao lado dele, retângulos que parecem cartões de crédito, símbolos da dureza capitalista na qual só é cidadão quem tem um número de cartão, quem tem meios financeiros. O camaleão não quer fazer parte disso tudo, e ignora os cartões; o réptil é estranho mas, inevitavelmente, acaba fazendo parte do conjunto, incluído na dança mercadológica do consumo. Na extrema esquerda da tela, uma pequena seta, quase imperceptível frente à grande e dominante seta, formando um subconjunto e dando hierárquica continuidade às ordens expedidas pelo Capitólio. Rauschenberg fala-nos de poder, influência e plenitude. A grande seta é invariável, nunca podendo ser derrotada. É a ordem do senso comum americano. A Via Única é Tao, o Deus único, o único caminho, pois, como é dito nas notas de dólares, In God We Trust, ou seja, Em Deus Nós Confiamos. E a caixa negra pode ainda ser aberta pelo espectador, convidando-o a interagir e desbravar a mente do artista.

            Acima, Canyon, ou seja, Cânion, de 1959. Abaixo, amarrados na tela, penduricalhos que parecem um par de testículos, símbolos da coragem e da masculinidade. A ave voa solta e livre em sua coragem e em sua independência, do mesmo modo como o cidadão americano é independente; do mesmo modo como os EUA desvincularam-se da Inglaterra, com um oceano separando as duas nações, os dois testículos. No canto direito superior, a inscrição net, ou seja, rede, antecipando o dia em que a Terra seria toda conectada pela internet. A ave voa pelo cânion no vazio deste, na solidão. O quadro é predominantemente sombrio, pesado, com os testículos pendendo. O povo americano celebra sua própria coragem no Quatro de Julho. Aqui, repete-se a tendência de JR com pinceladas apressadas e tinta escorrendo. Um pequeno retrato fotográfico de uma criança, talvez do próprio artista quando bebê, num registro de candura e nostalgia – o cidadão americano nasce livre assim que deixa o útero da mãe. Robert faz um jogo de montagem com material impresso e pinceladas, antecipando a paixão da Pop Art por aspectos industriais de cultura de massa, como jornal impresso, embalagens de produtos, celebridades etc. No canto esquerdo, uma pincelada de azul bebê, na promessa de um céu azul e livre sobre o povo americano, quem sabe na promessa de um final para a Guerra Fria. Rauschenberg gosta de ser americano e cultua seu próprio povo. A ave está na parte inferior do quadro como se sustentasse tudo e todos em suas costas, como um presidente ocupado em governar e organizar um país. No lado direito, há um subquadro que parece mostrar estrelas no firmamento ou galáxias, num artista que contempla o mundo e o universo em busca de inspiração. E, no negror do céu da noite, Robert quer ver clareza, em oposição ao negror da caixa misteriosa de Mercado Negro. Em Cânion, tons em bege imitam a cor da pele humana em sua nudez, conferindo naturalidade ao conjunto, bege como os testículos balançando. Teriam estes sido castrados e desprovido o artista da coragem deste? Os testículos estão por um fio, e, mais uma vez, JR convida-nos a interferir na cena, talvez excitando-nos a cortar o fio e castrar a ave da liberdade, assim como os sistemas ditatoriais castram o seu próprio cidadão, escravizando-o e reduzindo-o a um anônimo tijolo na parede estatal, a uma pilha de bateria. O Comunismo cai de podre, assim como os testículos são esse sistema político, o qual está por um frágil fio. O momento da verdade é inevitável, e Robert diz-nos que é só questão de tempo até o fio ceder – a verdade vem à tona. Seria a ave negra o agouro funesto de aniquilação, o qual aniquilará o Comunismo? Sob a asa direita da ave, um subquadro em branco, na esperança de paz para o mundo, paz esta sob tantas ameaças. É uma Julia Roberts; uma queridinha da América; uma estrela que traz direção e unidade a um povo; uma megacelebridade de carisma cultuado – tudo o que a Pop Art ama, na popularidade de ícones de mercado, significando gordas bilheterias. Tudo está à venda. Como dizem os americanos, Time is Money, ou seja, Tempo é Dinheiro. A ave “salta” do quadro, num registro 3D.

            Acima, Odalisca, de 1955-58. Tudo repousa sobre um fofo travesseiro branco, o conforto, os doces sonhos de uma noite bem dormida, a comodidade. O travesseiro é o pecado capital da preguiça, na necessidade do Homem de descansar, de morrer e voltar à Fonte, à Nossa Senhora, ao Nosso Lar metafísico. A galinha está no topo da cadeia alimentar, branca como o pombo da paz e como o travesseiro, que é o destino de todos nós, pois, na vida, nada mais natural do que a morte. A galinha bota seus ovos e dá continuidade à vida. A alva mulher nua é o princípio feminino e o furioso lobo, mais embaixo, é a masculinidade bruta, selvagem, que caça a mulher branca. O lobo está prestes a abocanhar a galinha, garantindo seu jantar – são as leis da natureza que nos cerca. Mais uma vez, Rauschenberg brinda-nos com fotocolagens e pinceladas apressadas, como uma mesa muito velha, marcada pelos sinais de tempo e de uso. A caixa de vidro ao redor da obra é a contradição de mercado: você vê tudo com absoluta nitidez, mas não pode tocar, ou seja, ter joias é considerado bom, mas estas acabam por aprisionar o próprio dono, e, como diz o Taoísmo, se você não comprar tesouros, as pessoas não vão querer roubá-los de você, no sentido de que uma vida simples é uma vida boa. A cabeça avermelhada da galinha é o sangue da menstruação, conectado aos ciclos lunares, agrilhoando as mulheres na condição de fertilidade, de úteros reprodutores. Uma pincelada em verde lembra uma pichação vândala, violando a cidadania e transformando o vândalo em um lobo selvagem, solitário e faminto, à margem da vida em sociedade. E o travesseiro suporta isso tudo com bravura, amenizando a dureza da vida e servindo de consolo à mulher nua, a qual está muito à vontade em sua nudez inocente, do mesmo modo como veio ao mundo. As pinceladas em vermelho na parte inferior do quadro é o sangue das guerras, sendo que um soldado, na missão de matar os próprios irmãos, vira um animal assassino, como o lobo, o qual está à espreita, aprontando uma safadeza. As penas da galinha enchem o travesseiro, e a mulher é sustentada como uma deusa. A cor amarela, clamando por ouro e riqueza, quer permanecer no conjunto, predominando neste, num conjunto bem colorido e alegre. Há gritos histéricos da mulher na dor das cólicas menstruais, como uma diva cantando.

            Acima, Hedge, ou seja, Sebe, de 1964, num óleo e serigrafia sobre tela. O azul do céu de brigadeiro está limitado, enfraquecido. Um avião de guerra cruza os céus, e na parte superior do quadro vemos um velocímetro (ou algo parecido). O branco predomina no quadro. As linhas, formas e cores mesclam-se umas com as outras, e o avião negro é o protagonista da história. Os artistas são muito sensíveis em relação ao sangue das guerras, representado na parte superior esquerda; os artistas repudiam a violência de quaisquer conflitos. Podemos quase ouvir o barulho das turbinas do avião, e tudo no quadro é incerto, com borrões sugestivos nos quais nada pode ser nitidamente visto ou classificado, e cada espectador é livre para ver o que quiser ver. É o poder da sugestão de Rauschenberg. Formas arredondadas em amarelo-caramelo desfilam pelo quadro, trazendo movimento e sinuosidade feminina, como a mulher nua de Odalisca. Formas que parecem nuvens brancas são o sonho do artista com um mundo melhor, com paz. E o velocímetro registra os comandos frios de uma luta violenta – não há beleza na guerra. O avião é negro porque traz as notícias funestas da guerra, com mortos e feridos, na eterna busca do ser humano por dinheiro e poder. E o artista vê-se numa contradição cômica – ele quer ser vendido mas, ao mesmo tempo, não.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Guns and Rosenquist



            Pacifista, James Albert Rosenquist é preso por algum tempo nos EUA por ter se declarado publicamente contra a Guerra do Vietnã – foi acusado de simpatizar com o Comunismo. James nasce americano em 1933 em Dakota do Norte. Em 1948 começa a estudar Arte, migrando para os estudos de Pintura. Em 1954, começa com pinturas para espaços publicitários. Viagem a Cuba. Interesse por impressionistas. Em 1955, ganha uma bolsa de estudos de Arte em Nova York. Em 1957, aluga um atelier e faz desenhos publicitários. No fim da década, é empregado como pintor chefe de uma grande empresa de design, mas abandona este trabalho em 1960. Casa-se com uma desenhista têxtil. Passa a decorar vitrines. Em 1962, sua primeira mostra individual. No ano seguinte, recebe uma grande encomenda. Em 1965, começa a trabalhar com litografia e produz F-111, um painel de 26 metros de comprimento, obra que viaja o mundo sendo exposta solenemente. Em 1966, JR participa de uma retrospectiva no MoMA. Os anos 1970 são marcados por muita atividade do artista. Nos anos 1980, James recebe várias retrospectivas e, no fim da década, recebe distinção de uma importante instituição americana de Arte. Em 2002, grande retrospectiva de James no Museu Guggenheim de Nova York. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, F-111, de 1965, considerada a obra mais importante de James. Riqueza em cores, típica da Pop Art. Turbinas de um potente avião. Um grande pneu de ônibus. Uma menininha feliz em um secador de cabelos de salão de beleza. Uma bomba atômica estourando em todo o seu terror, atrás de um guarda-chuva. Semelhante à bomba, ar explodindo dentro d’água. Macarrão ao molho vermelho, como na obra I Love You My Ford, analisada nesta mesma crônica. O painel é um manifesto contra as guerras. As cores buscam maquiar, evitar o terrorismo, por exemplo. A bomba estourando é um lembrete desse posicionamento político de Rosenquist. A menininha é a promessa de um futuro mais colorido e menos dolorido. O texto USA Air Force aparece para citar a nação do artista, o qual não gosta de conflitos, usando a arte como catarse, como vômito purificador. O painel, no geral, tem muito movimento. O maquinário pesado não consegue vencer o aspecto orgânico, que é o macarrão. O guarda-chuva quer proteger o mundo das guerras, por isso, aquele está à frente da explosão. A explosão é como um popstar sendo revelado ao mundo, como um Michael Jackson implacável. A inocente menininha olha para o maquinário e não faz ideia das vidas que ele ceifará na guerra. O pneu esmagador passa por cima de tudo e todos, ignorando a vida, deixando cicatrizes pelo caminho. No geral, o avião ocupa todo o quadro, mas não é absoluto, impondo-se de forma discreta, de ponta a ponta, sendo um princípio fálico de verdade e liberdade americano. O céu azul limpa o conjunto, como num belo dia; como no sorriso da menininha. O avião está aterrisando majestosamente, anunciando vitoriosamente as vidas que ceifou. F-111 é muito estimulante aos olhos. No centro do quadro, uma lâmpada, iluminando as ideias de uma América anticomunista. As cores rejeitam completamente os tons cinzentos da Cortina de Ferro, e tanto a extremidade esquerda quanto a direita têm partes em cinza, dando tristeza aos pontos de chegada e de saída do avião. Rosenquist gosta do apelo político. A menininha é a frágil feminilidade em meio aos horrores bélicos. A impressão que se tem no quadro geral é a de que o avião está em pleno voo, e podemos quase ouvir o barulho de seus motores. Bem ao centro do quadro, uma estrela militar, na fixação da Pop Art pelas estrelas midiáticas. A menininha é uma estrela; o avião, também. Abaixo do pneu, um delicioso bolo com uma doce cobertura, e o bolo está decorado com bandeirolas, as quais são as referências militares de alvos de bombardeio. O bolo é o lado doce da vida, lado este muito distante das guerras. Rosenquist nos mostra que a paz é maior do que a raiva, como as cores são maiores do que a morte. No mais, o painel parece ser uma propaganda comunista, só que colorida. Uma saudável loucura de James Albert.

            Acima, Untitled (Joan Crawford Says...), ou seja, Sem Título (Joan Crawford Diz...) de 1964, ano em que o Brasil mergulha no governo militar. Toda a frivolidade do mundo publicitário e do american way, na premeditada ausência de título e de sentido. Joan é a dona de casa perfeita. Sua pele é imaculada, sem poros e sem qualquer sinal de idade ou de expressão. Seus dentes são dignos de comercial de creme dental. Seu cabelo não tem um só fio desalinhado e, é claro, não tem um só grisalho. Em torno de seu pescoço, uma joia. Joan parece estar ouvindo o “plim” do forno, o qual avisa que o peru está assado e pronto. As alças de seu vestido combinam com o batom e o quadro ao lado, o qual cita palavras da estrela de cinema. Reza a lenda que Joan Crawford e a inesquecível Bette Davis não gostavam uma da outra. Bette achava-a brega, superficial, simplória. Já, Joan teria feito uma campanha em Hollywood para evitar que Bette ganhasse um Oscar, fazendo com que o troféu fosse para a concorrente Anne Bancroft. Bette representa a inteligência, a sofisticação, a sagacidade, ganhando títulos como “perigosa”, “a malvada” ou “pérfida”. Bette fazia vilões como ninguém, desconstruindo o psicopata. E é claro que Joan Crawford não chegava aos pés da rival. Inclusive há a canção Bette Davis Eyes, ou seja, Olhos de Bette Davis, música na qual a diva é exaltada. No óleo sobre tela de James Rosenquist, Joan não está olhando para o espectador; não está olhando para lugar algum. Está sem rumo, sem objetivo, acorrentada à função machista de Rainha do Lar. Podemos sentir seu perfume de rosas, Chanel, inebriante. Ela é encantadora. Chique, mas sem terríveis facetas. Ela está num pedestal espinhoso, doloroso. Sua fronte está iluminada, ressaltando-lhe as sobrancelhas, os cílios e o delineador, todos pretos. Joan está impessoal. Está apática para com os problemas do mundo. Tudo o que ela quer é ter uma imagem de perfeição, exemplarmente servindo o peru à mesa, como uma gueixa doce e submissa. Seu colar é como uma forca, condenando-a a viver e morrer desempenhando um papel eternamente coadjuvante, à sombra de um homem, como Grace Kelly, que abandonou a carreira. Joan faz de tudo para encantar o seu homem, interpretando uma fada, uma idealizada e indefectível Glenda de O Mágico de Oz. Seu cabelo cor de cobre está discreto. Ela é uma Nefertiti, ausente de si mesma. Seus olhos são dois belos seios afiados e voluptuosos; sua boca, a vagina, o centro da vida da galáxia. Suas sobrancelhas delineadas entram em harmonia curvilínea com os traços do nariz, o qual é pequeno e belo. É claro que Joan está maravilhosa, mas tudo gira em torno da obrigação do publicitário: vender, obsessão exposta pela Pop Art. A superficialidade de Joan entra em completa harmonia com a ambição mercadológica, com a cultura de massa e com as indústrias afins. Joan está ali para vender perus, batons, laquês, joias, rímeis etc., o que for. Seu pescoço é pétreo, escondido em um ponto de sombra. Indestrutível, Joan brilha como a Marilyn Monroe de Andy Warhol, no eterno vínculo da Pop Art com o mundo idealizado do consumo de celebridades. A Pop Art traz esse mundo à tona e faz-nos refletir sobre o que adquirimos em um supermercado. Joan está à venda, em plena disposição em uma gôndola de mercado. Joan está ali como moeda de troca e, se você tiver dinheiro, fará parte desse maravilhoso mundo de faz de conta. Atrás de Joan, uma casa impecavelmente arrumada, podendo vender aspiradores de pó, flores decorativas, cortinas etc. O mundinho de Joan é perfeito e, portanto, uma falácia. Seu sorriso nada quer dizer. Ela desempenha um papel, apenas isso. É uma atriz. Não podemos vê-la dormindo com o cabelo todo desarrumado; não podemos vê-la escovando os dentes, tomando banho ou sentada no troninho do banheiro; não podemos vê-la sem maquiagem, vestindo uma camiseta de ficar em casa. Não. Só podemos ver o que não a faz humana. Joan está sendo usada para interpelar as donas de casa da América, inspirando-as a ser como a estrela. Então um sabão em pó é comprado como se fosse mágico, e como se a figura da dona de casa perfeita não fosse de mentirinha. Quem é você, além de dona de casa? Você pode ser maravilhosa como Joan – é só comprar os produtos que ela está anunciando. Se você não os comprar, ficará de fora desta festa apolínea. Joan está recebendo os seus convidados, fazendo com que estes sintam-se como reis. Rosenquist traz a estética do mundo publicitário para a Arte, pois o artista, em geral, não se realiza no ramo publicitário, logo, vemos James fazendo do limão uma limonada. A Pop Art mescla-se com o consumismo, amando-o e odiando-o. Joan busca ser extremamente glamourosa, desprezada por uma Bette Davis inteligente que não dá a mínima para os apelos da sociedade de consumo. Para Bette, o buraco é mais embaixo; para Bette, é absolutamente insuportável desempenhar um papel superficial. Joan está mentindo com todo o seu peso estelar; é uma boneca; é sobre-humana; é uma Barbie à venda em uma loja. Joan é rica, bela e feliz; é a promessa de uma sensação melhor; e é também a promessa de gordas vendas. Joan quer encantar, enfeitiçar, nunca conseguindo convencer a si mesma da própria mentira. Joan quer causar comoção e ver legiões de meninas adquirindo bonecas em lojas de brinquedos. Joan quer dinheiro, e esforça-se ao máximo para convencer de que é digna desse mesmo dinheiro. Ela está alheia à dor. É um impessoal pedaço de plástico. Não sabemos se a amamos ou a odiamos. Simplesmente não podemos passar indiferentes a ela. Essa é a função da Arte.

            Acima, President Elect, ou seja, Presidente Eleito, de 1960-61. JFK foi uma figura pop, presidente de enorme carisma. Seu assassinato foi uma comoção na América. Na obra de Rosenquist, a face do presidente em um sorriso arrebatador, um líder amado pelos americanos, com uma esposa para lá de célebre e respeitada – Jackie. Neste óleo sobre placa, uma roda de carro, talvez o carro no qual o presidente perdeu a vida em público – sangrento espetáculo midiático, formidável para a Pop Art. O carro está sobre um tapete vermelho, o qual pode significar duas coisas: 1) O status de celebridade e de vip que do qual o político gozava; 2) O sangue dele ao ser alvejado por um assassino louco. O amarelo pastel confere delicadeza ao quadro, a qual também ocorre por meio dos dedos femininos que emergem da face de Keneddy, talvez as mãos da primeira dama, ou da mãe do presidente – Freud explica. É difícil dizer o que esses dedos seguram; parecem segurar pedaços de carpete cinza, como as cores cinzentas do luto da América. Os tons de azul do quadro são do Sonho Americano, sendo este erguido como propaganda do governo Kennedy – a América adorou este. Os dentes do presidente são perfeitos, inspirando as crianças da América a ter saúde e escovar os dentes direitinho. O sorriso de JFK traz um homem maduro e, ainda, jovem. Abaixo do queixo dele, vemos uma continuidade do chão vermelho e, ao lado do paletó azul; vemos que os Kennedy são o sangue azul da América, a qual “comprou” o clã. E por que os dedos femininos são cinzentos? Trazem a crua realidade em preto-e-branco. Os pedaços de carpete são macios ao toque, trazendo todo o charme macio, sedoso e aristocrático dos Kennedy, charme muito bem incorporado por Jackie, como uma Mortícia Addams iluminada. Na aspereza do mundo e do assassinato de JFK, a primeira dama emergiu publicamente e foi a maior viúva de todos os tempos, com seus óculos escuros que falam sobre a finitude do Homem. O negror da roda do carro traz a morte, o luto. O brilho prateado da roda é uma lua que traduz a feminilidade do mito Jackie. O presidente está impecavelmente barbeado, e seus sinais de expressão faciais exprimem experiência, sabedoria. Os dedos femininos traduzem como o charme viril de Kennedy encantava as mulheres – certa vez, quando Jackie foi sozinha à Índia fazer uma visita oficial, o presidente reuniu amigos e fez uma festinha na Casa Branca cheia de meninas bonitas. Até hoje os Kennedy são associados a sedução e poder, numa família muito famosa e visada – e não foi um espetáculo midiático sexual o caso entre Bill Clinton e Monica Lewinsky? Rosenquist traz-nos um pouco de estranheza. O sorriso do líder é ensolarado, como um rei Sol. Seu carisma irradia sobre o povo americano, na promessa de uma América melhor. O carro passa rápido como o tempo, e hoje os EUA cultivam os seus próprios mitos. Entre os dedos femininos, há uma faixa multicolorida de arco íris, partindo do vermelho para o amarelo, o verde e o azul, traduzindo a alegria colorida do carisma de JFK, nas cores após uma tempestade, após uma negra tormenta, trazendo esperança ao povo. O brilho multicolorido traz a transparência cristalina da personalidade do presidente, no qual o povo confiava, elegendo-o em um sistema no auge de um paradigma – o sistema democrático.

            Acima, I Love You My Ford, ou seja, Amo-te Meu Ford, de 1961, como uma pessoa pode amar objetos de consumo – nada mais capitalista. Neste óleo sobre tela, há três partes. Na parte um, a frente de um Ford em preto-e-branco chegando à cena, impondo-se, trazendo paixão ao artista. O brasão ao centro é como uma bússola, abrindo-se agressivamente nas quatro direções. É o Norte, a referência, a base de comparação. Seu brilho metálico revela-se limpo, potente, masculino. Na parte dois, uma mulher de feições delicadas adormece, protegida e seduzida pelo carro. Na parte três, um delicioso macarrão ao molho de tomate, cujas latas estão à venda no mercado, do mesmo modo como o carro foi comprado. Estaria a mulher morta, como uma Evita embalsamada? O macarrão parece minhocas contorcendo-se. Seu vermelho é o sangue, o líquido da vida. O macarrão é o único registro colorido do quadro. Por que a mulher não tem cor? Os tons de cinza representam a infelicidade ou a sofisticação? A mulher dorme depois de comer o macarrão, digerindo-o sensualmente em seu corpo entorpecido. A mulher repousa nos confortáveis bancos do carro. O macarrão é o alimento assim como a gasolina alimenta o veículo – a glorificação mercantilista do petróleo. O Ford tenta dominar a cena, mas o macarrão não o deixa fazê-lo. Aproximar cor de fotos em preto-e-branco ajuda a “vender” o registro cromático cinzento. E por que a mulher está ensanduichada entre o carro e o macarrão? Estaria ela reprimida, dividida entre o prazer do macarrão e a racionalidade do carro? Os lábios da mulher são perfeitos, harmoniosos, assim como as linhas de design do carro. O carro chega, e sua presença é impossível de ser ignorada. Ele domina a cena como um rei. O macarrão representa o inconsciente, o prazer, o humano. O macarrão está sendo lentamente assimilado, como a “preguiçosa” Bossa Nova. O “amigo” carro é amado pelo consumidor. A mulher, em sua sedução, também é objeto de desejo, só que sexual. O macarrão é a gastronomia italiana, com um bom prato de espaguete e um vinho acompanhando, nos pequenos prazeres da vida. A mulher está inconsciente. O carro é a figura paterna, o dinheiro, a responsabilidade de levar os filhos ao colégio todas as manhãs. O interior do carro é o reinado do homem, um reino onde este homem governa plenamente, como Kennedy. O macarrão é a comidinha feita pela mãe. A mulher repousando faz o intermédio entre os dois quadros, unindo-os e separando-os, em contradição dialética. O vermelho do molho é o sangue derramado nas guerras, do modo como Rosenquist odiava-as.

            Acima, a litografia Horse Blinders, ou seja, Antolhos, de 1963. Há duas partes: uma alegre, colorida e festiva; a outra, cinzenta, triste, monótona, monocromática, sisuda e mortificada. Na parte colorida, um pincel cujas cerdas têm todas as cores do arco-íris. Ao fundo, cores semelhantes à da bandeira nacional francesa, no desejo por liberdade de pensamento, liberdade esta tolhida quando James foi preso. Saindo das cerdas do pincel, arame farpado, na dor das guerras, no sangue humano derramado em conflitos. Rosenquist quis fazer um contraste violento mas, no frigir dos ovos, ambas as partes falam de tristeza e de dor. A colorida alegria não neutraliza o luto cinzento, e o arame farpado, como uma coroa de Cristo, encarrega-se de avisar que o ser humano está o tempo todo em conflitos, seja consigo mesmo, seja em relação a outrem. James, assim como Tolkien, não tem ilusões em relação ao ser humano. A parte cinzenta avisa-nos do arame farpado, muro dolorido que separa as nações entre capitalistas e comunistas. É o Muro de Berlim, segregando irmãos. As cores tentam neutralizar a dor, mas não conseguem – só conseguem ser a promessa de um (longínquo) mundo melhor. As cores não conseguem quebrar o dia melancólico, brumoso, misterioso, depressivo. A cor vermelha é certamente o sangue bélico, desperdiçado nos conflitos. A América queria ver-se bem longe do Comunismo. Tanto o lado esquerdo quanto o direito trazem mazelas: estamos mal no Capitalismo; estamos mal no Comunismo. A guerra é impiedosa, e não poupa pessoa alguma. E por que “antolho”? Porque o cavalo que o veste fica com a visão prejudicada, subtraída, restrita, limitada. O ser humano, normalmente fútil e alienado dos problemas do mundo, gira em torno de seu próprio egoísta umbigo. O pincel é como um espanador, cuja função é purificar. Talvez um dia a visão se expanda e as cores vençam o cinzento dia. James traz-nos esperança.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Os Tons de Tom Wesselmann



             Nascido em 1931 em Cincinnati, EUA, não foi imediatamente que Tom Wesselmann encontrou-se na vida, pois, antes de fazer Arte, cursou Psicologia na Universidade de Cincinnati, e essa faculdade influenciou-o em sua obra posteriormente. Em meados dos anos 1950, ao se formar no referido curso, Tom ingressa no curso de Arte da mesma instituição e, na segunda metade da década, começa a estudar Arte e Arquitetura em Nova York, numa época em que o artista flertava com o movimento expressionista abstrato. Em 1961, sua primeira exposição na Big Apple e, no ano seguinte, participa de uma mostra coletiva no MoMA. Em 1963, mostra na cidade de Houston. Em 1965, mostra no Whitney Museum de Nova York, instituição especializada em Arte Americana. Em 1967, participação na Bienal de São Paulo, Brasil. Em 1974, participação em mostra sobre Pop Art, no Whitney. Em 1976, mostra em Sidney, Austrália, fazendo muitas outras mostras na mesma década e na anterior. Em 1980, obra de retrospectiva de seu próprio trabalho, na qual Tom usou um pseudônimo. Em 1994, organizaram para Tom uma grande retrospectiva de sua obra. Tom falece em 2004, em Nova York. Tido como artista provocador, Wesselmann namora com a estética publicitária e o desbravamento do corpo nu feminino. Com o conhecimento em Psicologia, Tom estabeleceu uma relação de naturalidade com a nudez e com a sexualidade, algo difícil em um país de raízes puritanas como os EUA. E o artista também embarcou na tendência multicolorida da Pop Art. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, Great American Nude n. 54, ou seja, Grande Nu Americano n. 54, de 1967, tela com diversas técnicas e diversos objetos e sonorização, numa criativa mistura de tela com instalação. Uma mulher nua deita-se em uma pose quase ginecológica. As cores em vermelho, com a calefação, aquecem a cena, quente como a sensualidade tórrida da mulher. O amarelo da tela entra em harmonia com o amarelo da árvore através da janela. Flores pintadas e reais simbolizam a feminilidade. As cortinas rubras são a vagina e, de dentro do útero materno, tem-se a vista para o exterior, o ar livre, o princípio viril de liberdade. A mulher espreguiça-se lânguida, e o interior de seu corpo é aquecido como as cores quentes da cena. Uma cadeira de costas para o público parece contemplar por si só, distraída com a vista, parecendo não se dar conta da mulher nua. A mulher tem cor de pele parda, mestiça, até negra, e os bicos de seus seios são “afiados”, desafiadores, disponíveis ao toque, movimentando-se enquanto a modelo espreguiça-se, esta acordando ou pegando num sono de apelo sedutor, sonolento. A mulher não parece ser vulgar, apesar da pose. Ela lida muito bem com seu próprio corpo, e Wesselmann pinta uma pose de naturalidade, sem malícia mas, ainda assim, provocadora, podendo ser alvo de moralistas, tão abundantes na América. A Arte prova ser independente, gravitando acima de julgamentos medíocres. No rosto da mulher, um pequeno traço pode ser o contorno do queixo ou lábios sorrindo, exalando o simples prazer de deitar-se e relaxar o corpo. Pequenos elementos em azul têm a missão de fazer contraste com o registro quente cromático, realçando este, contraditoriamente. Na mesinha atrás da cadeira, um prato com legumes, na sensualidade de se digerir uma boa refeição. Ao lado, dois doces de morango com chantilly, imitando os seios da mulher, associando o prazer sexual ao gastronômico. Comer é um prazer. Descansar é um prazer. Um telefone branco de parede está em meio ao amarelo caloroso da parede. O telefone é um ligação com o mundo lá fora, mundo este esquecido e deletado, tal a paz de um sono bem dormido. Provavelmente, o elemento de sonorização da cena é o aparelho tocando, e a mulher está absolutamente alheia ao chamado do mundo lá fora. O telefone toca, toca e toca, e só recebe a indiferença da cena indoor. A mulher tem prazer em ignorar o telefone. A gostosa soneca é sedutora; a preguiça, também, num doce pecado capital. O carpete vermelho acolhe o espectador, e convida-o a pisar nele, descalço. Relaxe. A mulher é embasada por um cor-de-rosa pastel, dando continuidade à paleta de cores femininas. A mulher está dentro de si mesma, e nada vai removê-la dali. O telefone segue tocando, desprezado. O mundo lá fora chama, mas o mundo lá dentro ignora, tendo este suas próprias regras. A mulher tem especial prazer em ignorar a chamada – quanto mais ele toca, mais preguiça ela tem. Quase apenas pela pequena brecha das cortinas vaginais é que podemos vislumbrar um pouco do exterior. A mulher não vai sair dessa cama, móvel que é fonte dois prazeres – o sexo e o sono. Atrás da mulher, há uma brecha ainda menor na cortina vermelha, e um pouco da cena ensolarada pode ser visto. As cortinas são de Chapeuzinho Vermelho, e o Lobo Mau está à espreita lá fora, talvez telefonando para a mulher chapeuzinho. A cena é um claustro amenizado pela vista do mundo exterior. Parece que cada chamada do telefone dá prazer à mulher. Alguém quer desesperadamente falar com ela, mas ela quer ficar em paz. Ela dorme, e mal nota o apelo do mundo exterior. Ela parece estar prestes a cair da cama e acordar de seu soninho gostoso. Wesselmann tem um desprendimento europeu ao tratar da nudez com naturalidade. Ele não é pornográfico, mas erótico, e seu fascínio pelo corpo feminino é muito claro.

            Acima, Great American Nude n. 98, ou seja, Grande Nu Americano n. 98, também de 1967, com telas sobrepostas. Um cigarro aceso repousando em um cinzeiro e espalhando a fumaça cinzenta. Uma mulher loira de sensuais lábios sorridentes parece ter muito prazer no tabagismo, em uma época em que o cigarro não tinha as conotações não-saudáveis dos dias de hoje. Um bico de seio da mulher revela uma parte do corpo de grande apelo erótico. A mulher, da qual vemos apenas duas partes – seio e parte inferior do rosto -, parece estar em completo êxtase. Seus lábios são provocantemente vermelhos e lustrosos, como o bico do seio o é, e esses dois elementos apoderam-se do conjunto pictórico, apesar de estarem em meio a outros elementos. Uma caixa azul de lenços de papel tem uma função purificadora, lutando contra o erotismo, como o conflito prazer vs. culpa. O azul da caixa combina com o encosto de uma cadeira azul atrás da mulher. Frente a tudo, uma suculenta laranja, quente como um sol de verão. Diante de tudo, a laranja luta para se destacar, e sua forma redonda é como o seio da mulher loira. Embasando todos os elementos, uma discreta base cinzenta como a fumaça do cigarro. É impressionante como a boca feminina apodera-se do conjunto, como uma vagina avermelhada e convidativa, irresistível. Os dentes brancos da mulher são limpos como o lenço de papel. A mulher é limpa e, ao mesmo tempo, “suja” em seu apelo – é anjo e demônio; bipolar. A laranja e os cabelos loiros combinam entre si, e o conjunto fala de prazeres da vida. O bico do seio é perfeito, muito provocante. Mais uma vez, Wesselmann traz-nos uma mulher lânguida, desdobrando-se em um momento de orgasmo. A mulher ri de alguma piada, e está completamente à vontade, confortavelmente recostada na cadeira azul, que é o princípio masculino sisudo que respalda a modelo. O lenço de papel é o prazer de se manter limpo, como uma boa chuveirada. O lenço em si é como uma nuvem, leve, suave, e a caixa azul é o céu, em um dia bonito o qual dá muito prazer de se presenciar. O cinzeiro preto é a morte à espreita, talvez pelos riscos do cigarro à saúde. É a morte que, cedo ou tarde, vem a todos, portanto, a vida tem que ter prazeres. O sorriso da mulher parece desdenhar da morte, e lida naturalmente com ela. A saudável laranja está ali para mostrar que não se deve ter culpa em relação a prazeres, e que é saudável uma pitada de pecado. Relax and enjoy the moment, ou seja, relaxe e curta o momento. O lenço de papel tem como missão limpar a luxúria, mas esta nunca desaparece por completo. E o brilho da laranja revela um raio de Sol reconfortante, gostoso. A Pop Art revela-se em suas cores estimulantes, e trata da sedução dos anúncios publicitários, os quais vendem prazer. Os elementos nessa obra de Wesselmann são vitrines de objetos de desejo, e tudo está a venda: o batom na boca da mulher, produtos de higiene, alimentos, cigarro, seios siliconados. E o prazer sorridente da mulher aceita toda essa mercadologia insana, provocante e, como diz o marqueteiro americano Al Ries, responsável por despertar o desejo que o consumidor já tem dentro de si mesmo. A maior ambição de um publicitário é estimular o desejo em outrem. E o sorriso da mulher, como uma Monalisa pós-moderna, aceita todo esse apelo consumista. Ela delira de prazer. Wesselmann é um mistério.

            Acima, Bathtub 3, ou seja, Banheira 3, de 1963, com tela e objetos diversos compondo a cena. Mais uma vez, uma mulher completamente nua. Com a pele alva como neve, seca-se calmamente com uma toalha listrada, que patrioticamente lembra um pouco a bandeira nacional dos EUA, na beleza da mulher americana. Mais uma vez, a cor vermelha de Chapeuzinho, no apelo erótico pelo interior do corpo da mulher, rubro como uma decoração de bordel, ou a Casa da Luz Vermelha, prostíbulo da obra de Jorge Amado. A cortina revela uma Vênus de Botticelli emergindo das profundezas aquáticas do inconsciente humano. Aquecendo a cena, três elementos no mesmo tom de amarelo caramelo: cabelo, parede e toalha, a qual está dependurada, tendo sido esquecida e ignorada pela mulher. A vulva da mulher é escura, misteriosa, uma porta de entrada para o desconhecido. Os tons de azul fazem-se presentes: azul marinho nos azulejos, azul ciano na banheira e azul esverdeado na cesta de roupa suja. A cesta está fechada, alheia ao mundo, guardando coisas inimagináveis, como o segredo de uma mulher reservada e sedutora. Um pequeno interruptor de luz aparece discretamente, ao lado de uma mulher que tem o controle sobre si mesma: ela pode ligar ou desligar quando bem entender, com independência. As mulheres de Wesselmann são sexy mas não são submissas; não estão submetidas a qualquer misoginia; estão confortáveis em sua própria pele. A porta branca faz conjunto com a alva pele: como algo tão esclarecido pode ser tão indecifrável? O formato redondo da maçaneta combina com os bicos dos seios, que, por suas vezes, não estão tão em evidência como o bico de seio de Grande Nu Americano n. 98, analisada anteriormente nesta crônica. Os azulejos quadriculados conferem organização, e as listras curvilíneas da toalha simbolizam o caos, a paixão, o sofrimento, os sentimentos em geral. A mulher pega as linhas retas e subverte-as, tomando conta da cena que é Banheira 3. A perspectiva do interior do box de banho traz profundidade tridimensional, e a mulher ocupa o seu lugar no olho do furação, no centro das atenções. A função do azul marinho é contrastar com a pele branca. Ao lado da banheira, um tapete quase preto, recolhido em sua discrição. Ele aguarda pela mulher para acolher confortavelmente os pés dela; está ali à sua inteira disposição, um servo, um escravo da beleza feminina. E a porta, onde vai dar? É outro mistério. A porta é o acesso para o mundo lá fora, e tem a função de salvaguardar a mulher em seu recinto íntimo de higiene e beleza. A cortina está aberta porque a porta está fechada. A mulher sente-se segura e tranquila. O bastão metálico prateado que segura a cortina é o princípio fálico, nas linhas retas e práticas do pensamento racional. Mas o bastão está por demais afundado na bagunça sensual, e desaparece na cena, fazendo um papel mínimo, uma pontinha coadjuvante. O bastão está preso assim como a toalha amarela está em um gancho, o qual tem sua função definida: sustentar a mulher; girar em torno dela. Tudo o que existe de quadricular e retangular na cena – inclusive a estrutura de vime do cesto – combate a tortuosidade feminina, com o balançar dos quadris da mulher.

            Acima, Stillife n. 20, ou seja, Natureza Morta n. 20, de 1962, numa mistura de pintura com objetos, algo que Wesselmann gosta muito de fazer. A Pop Art aqui revela-se completamente nas embalagens de produtos à venda no mercado: Coca-Cola, pão, cerveja e produtos de limpeza. As bananas trazem uma discreta alusão a Carmen Miranda, um ícone pré Pop Art, mas que trazia muitas cores na era Technicolor, “vendendo” o Brasil e a tropicalidade. Mais uma vez, Tom lança mão da cor vermelha, no desejo constante de calor, tempero e estímulo visual – o vermelho nos torna mais agressivos e estimulados. No lado direito, metalinguagem, pois é artista falando de artista – há uma tela de Piet Mondrian, em suas ultracélebres linhas pretas retas formando quadrados e retângulos que abrigam cores primárias. A fria lâmpada branca ilumina a torneira: uma vez caída a água, esta desaparecerá, e mais água será necessária, assim como um produto que é comprado – tudo perece, e o consumo constante prevalece sempre. É a frieza capitalista. A portinhola revela produtos guardados, os quais são dignos de respeito, pois servem para algo; têm propósito. O quadro de Mondrian está ali como qualquer outro produto, sempre à venda. Na Pop Art, tudo está a venda em uma prateleira de supermercado. O pote vazio na prateleira é o sentimento de vazio do consumismo: quanto mais tenho, menos feliz sou; menos é mais; como diz o Taoismo, fraco é forte, forte é fraco. O que é melhor: uma casa abarrotada de coisas ou uma casa limpa? O vazio material combate o materialismo. Há paz no vazio. Não compre jóias, pois, se você o fizer, fará com que queiram roubá-las de você. O pão é o alimento do espírito, sendo este cansado de tanto consumo. O vermelho de Mondrian encontra-se com o vermelho de Wesselmann, estabelecendo harmonia cromática entre os dois artistas. E as maçãs são como a laranja viçosa em Grande Nu Americano n. 98, tudo a venda em uma quitanda. As torneiras são como os seios das mulheres de Wesselmann, e a torneira é o aparelho urinário, por onde flui a urina. As bananas, junto às cervejas, são o princípio fálico, como na dança pagodeira erotizada da garrafa. A Coca-Cola consolida a marca Pop Art, e está geladinha e deliciosa, irresistível em seu apelo mercadológico, assim como são irresistíveis as mulheres de Wesselmann. A sociedade de consumo funciona perante à irresistência do consumidor, e a sedução feminina é forte, ou seja, fraca.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007