quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

De Modelo a Mestre




O francês Jean-Baptiste Greuze viveu durante o século XVIII e começou como modelo vivo de uma academia artística, logo tendo o rapaz chamando a atenção pelo talento de pintor em tela. Greuze começou a ter fama como exímio pintor e ganhar um bom dinheiro. Ele está exposto no Museu do Louvre e foi entusiasta do Iluminismo. Greuze, após a Revolução Francesa, morreu em dificuldades e pobre em 1805. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, Princesa Varvara Nikolaevna Gagarina, óleo sobre tela de 80 x 63,5 cm. Ano de 1780-82. A princesa é delicada e desprovida de agressividade, na brandura angelical e virginal, como uma noiva – a estrela da noite. Greuze tem um traço extremamente suave e sutil. A pele alva é quase da mesma cor do vestido. É uma noiva pronta para ser devidamente desposada. Varvara não tem o controle da sua própria vida, e sua passividade é sedutora, excitando um homem a dar a ela toda a proteção da qual a princesa necessita. Seus cabelos crespos e escuros caem sobre os ombros. Os babados do vestido estão de acordo com a moda da época, e esses detalhes de vestimenta exercem fascínio, pois guarda os segredos e mistérios da feminilidade. Um macio e delicado laço azulado está perdido sobre um de seus braços, e tem um significado: a princesa é um presente recém-aberto, e o marido tem a missão de deflorá-la e resguardá-la, assim como os pais da moça a preservaram virgem até o casamento, pois, numa sociedade machista, o casamento é a coisa mais importante na vida de uma mulher, ao contrário do marido, cuja vida é centrada no trabalho e na vida pública, enquanto que, para a mulher, tudo o que resta é engomar os colarinhos do marido, sempre vivendo à sombra de um homem, seja seu pai, seja seu marido, seja o Papa. O sorriso de Varvara é extremamente sutil, a um passo de lábios sérios, e a moça jamais mostrará os dentes, pois mostrá-los seria uma indiscrição – a sociedade patriarcal tolhe a sexualidade e a liberdade da mulher, como, em uma entrevista, a cantora Cher afirmou que homens são um luxo como sobremesa: é ótimo tê-los, mas não morre-se por não tê-los(, e isto é independência). Há pouco tempo vi na rua uma menininha brincando com um boneco de bebê: o indivíduo já chega ao mundo com este inundando qualquer indivíduo de preconceitos. A passividade da princesa é a promessa de um mundo melhor, onde não há a necessidade de agressividade, mas é apenas uma promessa, pois, no mundo, no planeta Terra, na dimensão material, agressividade é necessária, sendo que, do homem, é cobrado o desenvolvimento da agressividade, enquanto que, da mulher, não é cobrado o mesmo, e uma mulher só desenvolverá agressividade se o quiser, quando que, como me disse uma grande amiga minha psicóloga, toda e qualquer pessoa tem que desenvolver agressividade, pois Yin e Yang, feminino e masculino, são de mesma importância. Aqui, neste quadro de Greuze, o elemento agressivo e arredio está representado na face feia e animalesca do pequeno cachorro. O cão é o guardião da donzela virginal, e rosna arredio para com qualquer homem que chegue perto da princesa. É o arquétipo do conto A Bela e a Fera, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, na dança de sedução entre arames farpados ao redor de algo que deve ser resguardado, de modo que todos precisamos ser, ao mesmo tempo, Lobo e Chapeuzinho. A princesa brinca com o cão com uma guirlanda de flores de um discreto azul marinho, no sentido de que a discrição é sexy e pertinente. Varvara é discreta, e a serenidade de seus olhos traz calma e ponderação, numa sabedoria adulta em um corpo que mal acabou de crescer. O cachorro morde agressivamente a guirlanda, mostrando ter poder de fogo, ameaçando estraçalhar qualquer um que ousar chegar mais perto da sensualmente indefesa princesinha, como vi certa vez na TV a imagem de um casal japonês: ele, antipático e sisudo; ela, uma gueixa simpática e receptiva. Uma discreta faixa rosa envolve a cintura da princesa, na metáfora do róseo interior uterino, um recinto sacro e intocado, como no ventre da Imaculada Conceição. Em harmonia cromática com a faixa no quadro, duas rosas absolutamente afloradas, mostrando que a princesa já menstruou pela primeira vez, mostrando-se fértil e adequada para ser deflorada por um marido que faça jus ao enlace com uma descendente de monarca. Varvara está pronta para o “mercado”. Suas bochechas guardam um róseo muito suave, quase imperceptível. Seu delicado pescoço traz o perfume de frescor floral, numa moça muito bem criada e tolhida pelo rei, no sentido de que uma dama tem que ter um papel passivo, inspirando os homens a tratá-la como uma dama, pois, quando uma mulher impõe ser tratada como dama, deixa de ser dama: eu não inventei essas regras; o mundo é assim mesmo, machista. As rosas repousam sobre um móvel firme, na firmeza necessária ao homem que quiser ser o marido da princesa. Ao fundo, um céu noturno de uma noite amena e suavemente perfumada, como num sensual baile em uma noite fresca, com o frescor de Varvara. Mas não chegue muito perto, ou o cachorro morderá você. Varvara tem que ser apreciada à distância, de forma respeitosa.


Acima, Ovos Quebrados, óleo sobre tela de 73 x 94 cm. Ano de 1756. Este quadro tem um estilo quase barroco, com um considerável contraste entre claro e escuro: as pessoas banhadas por luz e o fundo mergulhado em obscuridade. É uma casa simples e pobre de plebeus, e não um palácio dourado de privilégios monárquicos, talvez prevendo o modo como o próprio Greuze morreria – pobre. A moça está prostrada, deprimida, triste com a vida. Talvez a jovem esteja triste porque um homem, pelo o qual era apaixonada, e ele a rejeitou. A moça está sem forças, e deixou cair uma cesta cheia de ovos, tendo dois ficando quebrados. A senhora idosa, talvez a mãe da moça, está furiosa com a atitude desleixada da jovem, pois, num contexto pobre, alguns ovos desperdiçados são uma perda grande. A idosa está apontando para os ovos e falando sobre o desperdício, e talvez grande parte de sua fúria resida no fato de que a moça pouco parece se importar com o ocorrido. Um homem jovem, talvez o irmão da moça, impede que a idosa puna a moça com severidade, e com um dos braços barra a atitude da idosa, a qual contém a mão do rapaz, não aceitando ser tolhida no ato de repreender a moça deprimida. Para a idosa, os ovos são mais importantes, enquanto que, para o rapaz, está claro que a moça quebrou os ovos sem perniciosidade. Num recolhido cantinho à direita, um menininho observa toda a cena, nunca tendo um papel importante na história, sendo apenas testemunha ocular do ocorrido. O menininho mal olha para a cena, e está ouvindo cada berro furioso da idosa; a criança aqui, sente que algo de muito sério está acontecendo, e o infante nega-se a participar, tomado de medo e receio, pois é ainda jovem demais para entender o mundo dos adultos. O menino está com medo de se envolver e entrar na mira da fúria da idosa. A criança começa a perceber que os ovos são importantes e têm valor, numa França que iniciou a Revolução Francesa por causa do preço do pão. A moça está alheia à cena toda, mergulhada em seus próprios lamúrios espirituais, sequer ouvindo os gritos da idosa. Atrás da cena, uma mesa desarrumada, num tosco móvel plebeu, aconchegante em sua simplicidade rústica, rústico como os modos agressivos da idosa. O rapaz é o autocontrole, o juízo que contém a fúria impensada. Já, a idosa é o puro e nu pecado capital da Ira. O rapaz pergunta à idosa se vale a pena imbuir-se de tanta raiva, pois, como diz Tao, a Paz é melhor do que a Raiva. A idosa é o modo como o plebeu pobre via o Mundo, numa França de abismos sociais cada vez mais gritantes, como no Brasil Contemporâneo. A fúria da idosa é a fúria crescente de um povo farto dos alienados luxos aristocráticos, pois um rei deposto é um rei que se afastou do próprio povo, como nos Romanov, da Rússia. E o menininho é uma nova era nascendo, na aurora da Idade Contemporânea, no imbatível paradigma da Democracia, a qual é tida como a forma mais respeitável de governo. Greuze tem um trabalho majestoso com a textura de tecidos e efeitos de sombra, numa maestria fotográfica. A moça prostrada é bela em sua tristeza, mortificando-se em relação às ilusões mundanas, colocando os pés no chão, não mais acreditando em Papai Noel. Os ovos quebrados são um coração despedaçado e ferido, como expectativas e ilusões estraçalhadas pela dureza do Mundo, pois, na Vida, deve-se evitar ao máximo a construção de expectativas, pois a expectativa precede a decepção. Há toda uma escuridão que se apodera de parte do quadro, na imprevisibilidade da existência: nada acontece exatamente como prevíamos. E o menininho está aprendendo a dar valor às coisas.


Acima, Aégina Visitada por Júpiter, óleo sobre tela de 147 x 195,5 cm. Ano de 1767-69. Toda a beleza da nudez. Aqui, há algo erotizado, pois Aégina está sendo descoberta contra a própria vontade. Seus olhos estão arregalados, e um pequeno pedaço de alvo lençol tapa-lhe minimamente o sexo, num certo recato de Greuze. Seu corpo monumental e seu lençol branco são a sedutora virgindade, como uma mata virgem, a qual jamais foi desbravada antes, no prazer da violação, do “estupro”. O epicentro do quadro é o corpo da estrela, e o resto, ao redor, está em segundo plano, num tom mais escuro – é como se houvesse um holofote sobre a modelo nua, numa ironia, pois Greuze já havia se desnudado para posar para pintores – mas o recato permanece no sexo de Aégina. A furiosa ave demoníaca é feia e agressiva, e quer desvelar a mulher opulenta, arrancando-lhe o lençol. Uma fumaça negra tenta tomar conta do quadro, querendo ofuscar a luz, como chamas de um incêndio, no calor do sexo, na sexualidade desta cena: algo sendo desbravado. Os seios de Aégina são perfeitos, dando inveja a muitas mulheres siliconadas. Ao lado, a aia, uma mulher mais velha e absolutamente recatada e vestida. A aia não tem muito poder sobre a cena, e não consegue evitar o inevitável estupro. A aia quer consolar a mulher nua. O princípio feminino está representado pelo espelho, repousado em um criadomudo – ironicamente, temos na cena uma criada. Na cena, vemos a destreza de Greuze em reproduzir tecidos. Junto ao espelho, um colar de pérolas, como as pérolas que caem das generosas mãos de Iemanjá, sempre abençoando seus filhos com os frutos do Mar. Aégina é uma Vênus anunciando um novo dia, e seu corpo parece ter perfume de talco, de um perfume fino, limpo. O corpo da mulher está impecavelmente depilado, numa mulher bem-tratada, bem-cuidada, cercadas de luxos e criados – uma aristocrata. Podemos ouvir os murmúrios de Aégina, relutante em se mostrar completamente, havendo exatamente aí o erotismo: o que não é mostrado dá margem à imaginação. É uma nudez que não entrega o jogo completamente, sempre provocando e causando o sentimento de “quero mais”. A ave furiosa grita agressiva, aterrorizando a virgindade branca de uma noiva entrando na igreja, num noivo pronto para deflorá-la em uma noite de cópula, sendo esta socialmente aprovada. Greuze revela uma suavidade impressionante, e o corpo nu parece etéreo. As cortinas negras abraçam a cena, como nas cortinas de um espetáculo teatral, na magia da cortina sendo aberta, e deflorada pelos olhos do público. É o “showbusiness”, o negócio de mostrar, e Aégina faz isso – mostrar-se. É dificílimo de se entender os manifestos de pessoas que são contra a nudez na Arte. Quando algo é feito com bom gosto, garbo e elegância, toda nudez é bem-vinda. Aégina é um delicioso chocolate branco, perfumado com baunilha. As mãos envelhecidas da aia mostram a passagem do tempo, e é só questão de tempo para a viçosa Aégina envelhecer. O recato das vestes da aia mostra o recato de um artista que não vê a nudez de forma maliciosa. A luminosidade sobre o corpo faz parecer que este própria emana luz, como numa Lua Cheia. Aégina parece não entender direito que ela própria é tão bela, e não entende a fúria da ave animalesca. Este é o charme de Aégina – não saber o quanto ela mesma seduz. É uma inocência e uma pureza. Ao pé do quadro, entalhes ornamentais na cama mostram ser a casa de uma aristocrata, num lar cheio de obras de arte e objetos bonitos. Os entalhes neoclássicos revelam uma fluidez gráfica, como no mar que sustenta a Vênus de Botticelli, a qual também está recatada e envergonhada, procurando cobrir seu próprio corpo nu. Aqui, as nuvens negras cheiram a enxofre diabólico, como na bruxa má de O Mágico de Oz. É o encontro da malícia com a pureza – seria a Monarquia o Mal e a Democracia o Bem? Aqui, a pureza vence por meio da luz e do esclarecimento, num Greuze iluminista, interessado na evolução psíquica do Ser Humano, no apuro moral emoldurado pelo Espiritismo. A negra ave é patética em sua avidez; é inumana. Aégina traz a polidez do Ser Humano civilizado, num pensamento racional e lógico que derruba a Monarquia e abre as portas para uma era que perdura até os nossos dias.