quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Recesso

O blog está de férias e volta entre fevereiro e março de 2018. Enquanto isso, confira o que já foi postado.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Adulto Criança


Afroamericano, Jean-Michel Basquiat marcou a Arte do fim do Século XX, sendo aclamado principalmente em Nova York, cidade que respira Arte. Foi namorado da posptar Madonna, e formaram um belo casal interracial de artistas, pois ambos eram pop. Com um charmoso e conveniente sobrenome que remete à França, Basquiat chegou a pintar um quadro para a capa do disco de remixes de Like a Prayer da cantora. Em sua simplicidade, Basquiat tinha um traço cândido e quase infantil, revelando a pura inocência que guia qualquer artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, Box. Agressividade de um boxeador, o qual ergue as mãos como se estivesse sendo abordado por um bandido armado, do modo como Basquiat tomou o Mundo de assalto, sendo um assaltante do Bem. Acima da cabeça, vemos algo como uma coroa de espinhos, na dor extrema da crucificação de Jesus, torturando, na dor existencial que acomete a todos, como rosas com espinhos. A coroa tem duas bolinhas vermelhas, remetendo a um headphone, como se Basquiat pintasse ao som de algo que apreciava, buscando inspiração musical para pintar, pois nada mais natural do que um artista gostar de outra Arte, de qualquer outra Arte, como me disse uma amiga artista, para a qual tudo a interessa, revelando-se ela uma cabeça grandiosa, sem mesquinharias. As luvas de Box erguem-se ameaçadoras, prometendo bater em alguém que chegue perto demais, num aviso: respeite a linha divisória entre você e eu. O boxeador é corpulento e forte, é claro, amedrontando e aterrorizando o oponente, reinado na arena de competição, como um verdadeiro gladiador. As obras de Basquiat não costumam ser minimalistas, e vemos um complexo conjunto de traços, formando camadas de detalhes infindáveis, como num muro extremamente pichado e vandalizado, nas cicatrizes inevitáveis da existência as quais contam uma história, um trajeto, uma proveniência, na acumulação existencial de experiências e aprendizado – Basquiat cresceu por meio da própria arte. A boca do boxeador parece estar aprisionada por uma focinheira de um cão agressivo, como um pitbull, ou como a claustrofóbica máscara que aprisionou o psicopata Hannibal Lecter no clássico O Silêncio dos Inocentes. Aqui, o boxeador está contido como nos instantes que antecedem uma briga de galos, pronto para ser libertado e extravasar toda a sua agressividade implacável, como um Mike Tyson arrancando com os dentes a orelha do oponente – o ser humano é tosco, e Basquiat explora isso com o próprio traço “tosco”. Apesar das cores coadjuvantes, o predomínio no quadro é entre o fundo branco e o corpo negro do boxeador, como na cor da pele de Basquiat, como David Bowie caracterizado como boxeador na capa do álbum Let’s Dance, ou uma Madonna boxeadora na capa de Hard Candy – não só o Mercado Fonográfico, mas o mundo da Arte é agressivo para qualquer um que queira prosperar, numa esfera competitiva, e Basquiat sabia disso. Os músculos do boxeador impõem-se, assustando quem quiser enfrentá-lo. Para Basquiat, não havia linhas divisórias muito claras, obtendo um efeito “míope”, desfocado, incerto, gerando uma estranheza que ganhou o gosto do espectador. Sobre a cabeça do boxeador, uma trilha que aprece um trilho de trem fazendo uma curva fechada, como na “Curva da Morte” da rodovia São Vendelino, onde certa vez quase sofri um acidente. Os olhos do boxeador são “vazados”, vazios, brancos, como na cegueira de animais que vivem nas profundezas oceânicas, ocultos ao Mundo, nunca sendo reconhecidos, condenados a uma vida de obscuridade, a qual é o temor de qualquer artista: não ser reconhecido nem valorizado, na luta pela afirmação profissional. O boxeador parece erguer os braços como se comemorasse uma sofrida vitória, triunfando sobre um oponente, este abatido, derrotado e esquecido. O boxeador é tosco, parecendo um primata pré-histórico. Como o ser humano é tosco, como dizia o mestre Tatata Pimentel, chamado os grossos de “macacos”. Eterno mestre Tatata!


Acima, Cabeças Empoeiradas. Há uma dupla de figuras humanas, mais parecendo ídolos de pedra da Ilha da Páscoa ou divindades incas, gravadas toscamente em relevo na pedra. Ambos erguem as mãos e abanam, como se quisessem fazer amizade com o espectador, estabelecendo um vínculo. O homem da direita sorri numa boca que parece ter sido desenhada por uma criança, como quase tudo em Basquiat. O fundo é negro, como numa noite encoberta, na dificuldade enorme de se prever o Futuro, pois nada acontece exatamente do modo como prevíamos, nas surpresas as quais a Vida nos reserva. Quanto ao homem da esquerda, não sabemos se este sorri. Ambos têm olhos grandes e arregalados, como esculturas sumérias, representando homens que olham incessantemente ao Céu, talvez esperando por uma revelação de ídolos extraterrestres, como na denominação de Cidade dos Deuses para a misteriosa cidade arqueológica de Teotihuacán. Os homens aqui têm cabelo arrepiado, eriçado como espinhos, e um respeita o espaço do outro. Entre eles há uma divisória esbranquiçada, como uma parede ou um muro, separando vizinhos, cada um em seu lote, em seu reino, em seu domínio, como dois grandes reis conversando, cada um feliz com o próprio reino, nunca querendo invadir o reino vizinho, na busca pela Paz, simbolizada pela cor branca. Basquiat brinca com a tinta escorrendo, nunca querendo perfeccionismo, como se soubesse que a intenção da vida NÃO é ser perfeita, mas cheia de percalços, os quais devem ser driblados com elegância olímpica e coragem. Apesar do enclausurante fundo preto, vemos aqui uma festa de cores, na candura de uma colorida caixa de balas ou bombons. Os homens parecem estar divertindo-se num baile de Carnaval, jogando muita serpentina pelo salão alegre. É um momento de brinde e euforia, numa festa onde a Harmonia reina, esquecendo-se aqui as diferenças entre os reinos da Terra – é o poder pacificador das festas, num ato de saúde coletiva. Os traços rabiscados aqui remetem a vasos sanguíneos, unindo os seres humanos sob o mesmo sangue, sob o mesmo tronco genealógico primordial, pois, se somos irmãos, por que há guerras? A Arte é o oposto da Guerra, pois nesta não há beleza, nem harmonia, nem bondade. Na face do homem da esquerda, vemos várias “formigas” negras caminhando em conjunto, talvez construindo um formigueiro, um lar onde possam trabalhar e, depois, repousar, num incessante labor. As formigas prometem entrar em reprodução e tomar conta do quadro e de tudo mais, como nas legiões de fãs angariadas por Basquiat, o qual caiu nas graças de quem ama Arte, no privilégio de ser devidamente reconhecido. O homem da direita está com ambas a mãos para cima, abanando a um amigo, num momento festivo eufórico, talvez bradando a passagem de uma escola de Samba, como no púbis da foliã fotografada ao lado do então presidente Itamar Franco, numa notícia que ganhou o Mundo – no Carnaval, tudo pode acontecer. O homem da direita tem o corpo avermelhado, no sangue de folião que pulsa no Carnaval. Já, o da esquerda tem o rosto alaranjado, como uma laranja ou uma bergamota, na acidez criativa de um artista que possui dentro de si uma saudável e necessária pitada de agressividade. Vemos um Basquiat incerto, como na cativante insegurança existencial do personagem Charlie Brown, o qual, no Natal, diz não se sentir tão animado para decorar árvores e dar presentes, sentindo-se humildemente como uma tesoura cega. E os olhos dos homens são esferas gravitando ao redor do mesmo sol, na dança incessante do Universo, regido pelo ritmo sensual gravitacional, como na dança entre as estações do ano. Os homens estão felizes, num artista feliz em ser quem é, no conforto existencial, o qual, porém, sempre trará uma pitada de dor – mas é só uma pitadinha.


Acima, Africanos Hollywoodianos. Basquiat fazendo menção à sua própria cor, anos antes de Obama ser presidente. Três faces humanas aparecem – a mais da direita repousa a mão sobre o queixo, como se estivesse pensando, filosofando, num artista sempre buscando possibilidades. Esta é uma obra-redação, pois há inscrições variadas pelo quadro, cuja cor predominante é o amarelo, a cor do Sol, do ouro, na ambição de vencer e ganhar o ouro olímpico. O quadro parece ser uma parede na rua, uma parede que já sofreu inúmeras violações e degradações, exibindo cicatrizes de vandalismo, uma praga de qualquer grande cidade ocidental. É o ouro do Oscar, a estatueta cobiçada, a qual só pertence a poucos privilegiados, na exclusão dos concorrentes que só foram indicados. Vemos duas pegadas azuis – uma maior e outra menor, como alguém com um defeito físico, com pés de tamanhos diferentes, nas dificuldades de quem não nasce normal, de quem não é previsível. É um “defeito” que acaba tornando-se um diferencial, uma vantagem, e o artista consegue vislumbrar o próprio lugar no Mundo, encontrando-se consigo mesmo, encontrando-se sempre dentro de si mesmo, nunca fora. É a pessoa que se nega a projetar-se em outrem, sabendo enxergar a si mesmo, sem projeções. O artista tem um caso de amor com a própria arte, amando esta, respirando esta, fazendo desta um propósito de vida, um norte existencial – quem não tem norte, sofre. Na parte inferior vemos um lindo azul caribenho, num mar delicioso, como um confortável útero. É como se Basquiat estivesse de férias, só que trabalhando, encontrando prazer em produzir. Também na parte inferior vemos um desenho de coroa, num Basquiat rei, dono absoluto de seu próprio reino, reinando livre pela Arte, alcançando reconhecimento. A parede é como as paredes de um surrado banheiro público masculino, com inscrições agressivas e chulas, numa sociedade que cobra implacavelmente dos homens o desenvolvimento da agressividade. Vemos seis estrelas azuis, só que há a inscrição Sete estrelas. O que será que aconteceu com a sétima estrela? Teria sido surrupiada? Não sabemos. E Basquiat tem que se contentar com apenas seis estrelas, no sentido de que, na Vida, não se pode ter tudo, precisando haver contentamento, pois já ouvi dizer: “A maior riqueza é se contentar com pouco”, como diz Tao: “Se o que você tem você acha que não é o suficiente, então você nunca vai ter o suficiente”. Este quadro realmente não busca por beleza, e Basquiat era assim, “feio”, cheio de atitude e estilo desbravador, como Freud para a Psicanálise. Realmente, aqui a beleza é ignorada, e a agressividade aparece exatamente para proteger o que é belo, feminino e frágil. As três faces são as Três Marias no céu, brilhando no enigma da existência: o que será o universo? E Hollywood aparece aqui como a terra do sucesso e da frustração, pois o Mundo do Cinema é repleto de sonhos que acabaram naufragando. É claro que Basquiat era um sonhador. Mas, ao mesmo tempo, ele percebia a necessidade de “feiura”, de atitude, como disse-me um psiquiatra: “Vivemos num mundo competitivo, e a agressividade é necessária”. Então surge a necessidade de diferenciação, e cada artista tem que buscar o seu próprio estilo, deixando uma marca inconfundível e indelével, como num lindo poema de minha falecida avó Nelly Veronese Mascia, que dizia que as estrelas coruscando no céu são os poetas mortos comunicando-se por Código Morse. A questão da violência vem aqui com a inscrição Gangsterism, mencionando as gangues de criminosos, poluindo o corpo social, na questão preconceituosa de ligar a cor negra ao conceito de bandido, como o músico negro Lenny Kravitz já foi confundido com um bandido.


Acima, Ironia do Policial Negro. Mais uma vez, entra em cena a questão racial. O policial usa uma elegante cartola, como um Sir Winston Churchill. Aqui, vemos a inscrição Negro que, em inglês, é um termo pejorativo e preconceituoso, ofensivo, num Basquiat enfrentando de frente a questão racial na América. O policial é de um discreto azul marinho, na discrição do policial, este zelando pela Lei e pela Ordem, como nas inscrições positivistas na Bandeira Nacional Brasileira. O rosto do policial é cadavérico, remetendo a uma caveira, como um deus de vodu, remetendo à Cultura Negra, como a inquietante Seção Africana do museu Met. O fundo é branco, clamando por harmonia, querendo colocar um fim no Racismo, o qual não tem finalidade, não tem virtude. É divertido observar o traço infantil de Basquiat, parecendo um desenho de uma criança na Pré-Escola. Basquiat quer Paz, inspirando-se na pureza infantil. O policial tem algo que parece ser um distintivo dourado, impondo autoridade, no poder de prender pessoas por desacato, como na personagem Phoebe de Friends, ao encontrar um distintivo perdido na rua e começar a fica embevecida com o poder representado pelo distintivo, do modo como o Anel de Tolkien corrompe almas honestas, destruindo o caráter de homens honestos e íntegros – Tolkien tem uma visão sombria sobre a Humanidade. A caveira mostra a finitude, o fim da encarnação, na danação da carne, na lei de que o que nasce, morre. Como tudo em Basquiat, vemos muitos traços afoitos e incertos, como uma criança explorando possibilidades de Arte e Criação, num Basquiat “grávido”, cheio de filhotes para colocar no Mundo, numa mente rica e inquieta, sempre criando, como se diz que Tao está sempre criando. O policial tem mãos que parecem ser garras de Wolverine, na agressividade necessária para que o Crime seja combatido e a Sociedade seja protegida, como na Liga da Justiça.


Acima, Sem Título. Vemos uma grande caveira pensativa, com cabelos ralos que parecem ser espinhos, como os raios de Sol, que não podem ser vistos diretamente, podendo causar cegueira. É um cabelo de militar do sexo masculino, sem chance alguma para beleza, como nas policiais femininas, obrigadas a usar um espartano coque. É a disciplina. A caveira está cabisbaixa, olhando para o chão, meio desanimada, deprimida, solitária. Sua boca não sorri, e usa dentes que parecem ser de ouro, ou dentes amarelados pelo tempo, como o papel envelhece e fica amarelo, na inevitável passagem do Tempo, o qual, apesar de extenso, passa rápido. O cérebro aqui divide-se em vários setores e gavetas, numa organização psíquica, com cada coisa guardada devidamente no seu lugar, numa vida organizada e estruturada. Os olhos estão mortificados, desprovidos de ilusão, não mais idealizando a Vida e o Mundo. No fundo temos um predomínio de rosa e azul, como num doce céu crepuscular, enchendo os olhos de cor. Há formas aqui que parecem ser cicatrizes, sucedendo cortes suturados, como na roupa de Mulhergato de Michelle Pfeiffer, como um Frankenstein, com partes de cadáveres unidas e trazidas à Vida. É um quadro rico em cores, como muito em Basquiat. As já mencionadas “cicatrizes” podem também ser interpretadas como os rabiscos de presidiários, contando os dias para sair da prisão, do modo como o Espiritismo diz: “O espírito gosta de estar encarnado? Pergunte a um prisioneiro se ele gosta da prisão”. Quanto a isso, esta doutrina é muito clara e enfática. Vemos na caveira algumas linhas vermelhas, como na Linha Vermelha do Rio de Janeiro, representando o sangue derramado pela Guerra do Tráfico. Aqui, estas artérias fazem o transporte de oxigênio e nutrientes essenciais, provendo o corpo social, numa Nova York tão sedenta por Arte e novidades, num vislumbre de oportunidade de Negócios, de Mercado. É uma cabeça pensativa. Os rabiscos parecem ser de uma criança que sequer foi alfabetizada. O cérebro toma ponto central no quadro, no modo como a Mente rege o Corpo. Os cabelos são uma grama sendo cultivada, impecavelmente aparada, talvez tolhendo pensamentos mais afoitos e imprudentes. Siso.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Frida Calejada




Há tempos eu entrei em um museu e uma das funcionárias estava trajada tal e qual Frida Kahlo, com penteado floral e buço, numa declaração de amor à pintora mexicana. Frida adorava autorretratos, colocando-se em sua própria obra, como uma popstar. Em um dado momento, Kahlo sofreu um grave acidente automobilístico e passou por excruciante dor, catarseando isso em suas pinturas. Frida tem um pé no Surrealismo, sendo enigmática. Seu traço é “cru”, “selvagem”, longe das sutis pinceladas dos mestres renascentistas. Há alguns anos foi lançada uma cinebiografia estrelada por Salma Hayek no papel da artista, numa metalinguagem: artista falando de artista. Berrante em sua arte e discreta pessoalmente, Frida cultivava um buço e uma “monocelha”, os quais eram vinculados ao conceito de “mulher fina e de família”, como no costume inglês de proibir que mulheres da Aristocracia pintem o próprio cabelo: castração que proíbe a mulher de ser mulher, como na polêmica burca. A única extravagância pessoal à qual Frida reservava-se eram seus penteados floridos e extravagantes, como em Carmen Miranda, simbolizando a fertilidade de uma mente criadora. Esse estilo fridano deixou Frida muito confortável dentro de si mesma, tendo sido reconhecida ainda em vida, ao contrário de artistas como Van Gogh, só reconhecido postumamente. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, As Duas Fridas. Essas “gêmeas” têm laços de sangue, unidas pelo mesmo útero, no sentido de que todos viemos do mesmo útero, no conceito de Igualdade da Revolução Francesa, no paradigma democrático contemporâneo. Frida pinta a si mesma sempre olhando para o espectador, conversando com este, indagando-o. O espectador sente-se parte do quadro, entrando neste. Recatadas, sequer podemos ver os pés dessas Fridas. Os corações pulsam como o Sagrado Coração de Maria, e os vasos sanguíneos unem as irmãs, numa comunhão da hóstia na missa católica. Elas estão de mãos dadas, unidas por laços de afeto e proximidade, intimidade. A de branco está mais recatada do que a outra ao lado, nos dois lados da artista: sacro e profano. Sequer vemos o pescoço da Frida de branco, no machismo da Sociedade Patriarcal, na qual uma mulher tem que estar sempre submetida a um homem: seu pai, ou seu marido, ou seu patrão ou o Papa. Seus cabelos são negros como a asa da graúna, sem um fiozinho branco, no vigor da juventude. O penteado é atrevido e exótico, algo como uma Carmen Miranda. É uma família unida pelo sangue. Na mão da Frida branca há uma tesoura, a qual acaba de cortar um vaso, provocando sangramento, dor, perda. Rompimento. É a Razão atropelando a Emoção, no sentido de que a frieza racional tem que ser ouvida e considerada, pois o coração, sozinho, não consegue guiar a vida de uma pessoa. Elas estão sentadas, repousando, numa artista inquieta, a qual não descansava nem se acomodava. As mãos dadas são a união fraternal, o amor incondicional que rege todas as dimensões do Universo. A pele das Fridas é bronzeada, sem palidez nem apatia. Como toda mulher na Sociedade Patriarcal, Frida era reprimida, encontrando na Arte uma válvula de escape, fazendo da dor um poema. No plano de fundo, um céu nebuloso e duvidoso, fechado, antipático, no mistério cinzento da encarnação: o que são o Céu e o Inferno? Por que nada é só preto e nada é só branco? É um céu carregado, preparando uma tormenta, um abalo sísmico, do modo como Frida abalou as estruturas da Arte, mostrando como uma mulher não está abaixo de um homem. O banco no qual sentam é o repouso do lar, de casa, sempre acolhendo os pés cansados que enfrentam o Mundo lá fora. As Fridas têm bochechas coradas e lábios de rubi, numa mulher que, no fundo, queria se libertar do Machismo e se maquiar para ficar bem bonita. O céu nebuloso tem cheiro de chuva, e podemos ouvir trovoadas, como o acidente automobilístico de Frida assinalou uma grande tempestade de dor.


Acima, O Marxismo Dará Saúde aos Doentes. Temos uma Frida simpatizante do Marxismo? Talvez. Para Marx, a Religião era uma piada. Teria Frida aversão às religiões? Talvez, pois ela não colocava muitos signos religiosos em sua obra. Vemos aqui um par de muletas, provavelmente no momento pós-acidente automobilístico, e eu já passei por isso, usar muletas: elas são como uma prisão. No lado direito vemos um cogumelo, como numa explosão de bomba atômica, no poder da Arte em “detonar” as mentes das pessoas, causando comoção, catarse. Acima, uma pomba branca, numa Frida clamando por Paz, por entendimento entre as nações do Mundo. Talvez de modo inconsciente, Frida quis representar o Espírito Santo, o qual combate o ceticismo antirreligioso marxista, representando Marx ao lado, com seus longos cabelos e longa barba. Deste Marx, sai um forte pulso de uma mão corpulenta, forte, que esgana um homem de cartola com corpo de ave: seria Winston Churchill, representante do Capitalismo Ocidental, derrotado pelo Comunismo? Estaria Frida torcendo para o Comunismo triunfar no Mundo? Abaixo do pombo branco, a esfera terrestre, palco da competição em Capitalismo e Comunismo, na Guerra Fria. O continente asiático está claramente mostrado, e um tom discreto de azul retratada o Oceano, na discrição da própria Frida, a qual tinha uma face política e ativista, socialista, a qual não impediu que fosse reconhecida nos EUA, o nervo capitalista mundial. Aqui, abraçam Frida duas gigantescas mãos, como as mãos de Deus, do Infinito, abençoando a artista, protegendo-a. Na palma de uma das mãos vemos um olho, como o Ser Supremo, que tudo vê: Onisciência. Também abaixo do pombo vemos uma esfera menor, talvez a Lua, guiando os ritmos terrestres, no mistério feminino das fases lunares menstruais, nos inevitáveis sangramento e cólica, testando a coragem das mulheres. Frida aqui segura um livro de capa vermelha, talvez um livro do próprio Marx, como um cidadão brasileiro que, na época da Ditadura Militar, sequer podia andar nas ruas portando qualquer livro de capa vermelha. Aqui, vemos uma Frida seminua, provocante, longe dos holofotes preconceituosos patriarcais. Frida usa um corpete desconfortável da cor da pele, como num espartilho que reprime a mulher. As grandes mãos patriarcais parecem impor esse tipo de tortura, vestindo Frida. Ainda assim, é um traje ousado, como no célebre corpete de seios cônicos que Jean-Paul Gaultier desenhou para Madonna no início dos anos 90. As brancas unhas destas grandes mãos são cuidadosamente cuidadas, recatadas, caprichadas, numa Frida que caprichava na hora de produzir, esforçando-se.


Acima, O Veado Ferido. Críticas alvejando alguém. Desconforto de ser criticado. Dor de um grave acidente de carro, com as ferragens perfurando o corpo do motorista. Fratura exposta. Um santo católico em martírio. Um guerreiro ferido no combate. A expressão do rosto de Frida é plácida e tranquila, aguentando estoicamente a dor, nunca sofrendo por essa dor. Frida opta por não deixar a dor tomar o controle do cenário. Vemos aqui um bosque de árvores sem vida, desoladas, e o veado está perdido, sem referência, tornando-se vítima de caçadores impiedosos. Mas é a luta pela vida, e os caçadores e suas respectivas famílias têm fome. É a Lei da Natureza: a Cadeia Alimentar. Ao fundo vemos um rio ou um mar, de um azul caribenho, maravilhoso. O mar está tranquilo e sem ondas, numa artista que produzia com exemplares calma e ponderação, deliciando-se no processo criativo, numa formiguinha construindo pacientemente o formigueiro, visto que certa vez perguntei a uma grande artista qual era o segredo da “coisa”, e esta artista disse-me: “Paciência”, pois nunca ouvimos que Roma não foi construída em um dia só? Acima do Mar vemos ramificações vegetais, como veias num corpo, como um raio de tempestade, trazendo a força terrível e implacável da Vida. Ao chão, vemos um ramo cortado de árvore, com muitas folhas, no sacrifício da Vida, no inevitável sacrifício. Aqui a Vida está ceifada, morrendo, assim como o inocente veado sofre com a dureza do Mundo. As flechadas sangram, como no vinho da Última Ceia, como em culturas primitivas, nas quais seres humanos e animais eram sacrificados em nome das divindades pagãs. Cada flechada é uma crítica amarga, mas que acaba fazendo o Bem, como um remédio de gosto ruim. Cinzento e duvidoso, o veado está prestes a tombar, desequilibrando-se sobre suas finas e frágeis pernas, as quais, apesar de ágeis, não conseguiram fugir do caçador. O Pensamento Racional acaba impondo-se, e as críticas fálicas acabam por se revelar doces – é só uma questão de tempo. Parece que um caçador tirou uma fotografia do veado, e a luz agressiva do flash revela a verdade nua e crua. Os chifres na cabeça de Frida são exuberantes e elegantes, e talvez serão serrados como um troféu de caça. Restando ainda poucas forças, o veado tenta fugir, mas seu destino já está selado.


Acima, Sem Esperança. Da boca de Frida sai uma catarse tsunâmica, num vômito que expulsa aquilo que não estava fazendo bem a Frida, como num filme onde o Bem triunfa ao final. Nesta lama catártica vemos peixes, uma agourenta caveira, um terneiro, pedaços de carne vermelha, linguiças e uma ave. É como numa mesa de refeição, e as carnes estão sendo preparadas. A caveira é a finitude da vida, na inevitável Morte, e cada pessoa tem que fazer algo de positivo durante os anos que essa mesma pessoa tem pela frente. Frida está doente e abatida, e seu cabelo está solto, revolto, sem a usual aprumação capilar que vemos em Frida em outros quadros. Ela repousa ao relento, desolada, e um deserto pedregoso estende-se ao fundo, num sentimento inevitável de solidão, sendo que cada pessoa tem que ter alguns momentos de solitude, na solidão essencial para o processo de criação. Seus lençóis e travesseiros são brancos e limpos, aconchegantes. A estampa do lençol traz esferas, talvez planetas, numa Frida que olha para o céu noturno e pergunta-se sobre os segredos do Universo, na sensibilidade do questionamento filosófico, da curiosidade. Vemos um firmamento cinzento acima do deserto de pedras, e brilham juntos o Sol e a Lua, convivendo pacificamente, nunca um ofuscando o outro, como num casamento feliz e harmonioso. A cabeceira da cama traz dois mastros fálicos, assim como as flechas que abatem o veado analisado nesta mesma postagem de blog. Os paus são duas sentinelas impiedosas, como os extremos lunar e solar, no mistério rítmico universal – o que faz o Universo funcionar? Aqui, Frida chora de dor, e o vômito catártico dói para ser expelido. Como é terapêutica a Arte! Frida coloca para fora o que a assombrava interiormente. Acima da cama, vemos uma estrutura de madeira que acolhe os elementos da catarse, e tudo derrete como os célebres relógios de Salvador Dalí. O Surrealismo é altamente psicológico, e o artista ilumina o escuro, o inconsciente. De outro modo, em outra interpretação, essa massa catártica parece estar sendo sugada e engolida por Frida, como alimento espiritual. As lágrimas são gotas de chuva, nos fenômenos da Natureza, e as gotas de dor servem para lavar e purificar, assinalando um ponto de renovação, pois, já ouvi de uma psicoterapeuta, as crises são positivas. Aqui, há paradoxo: a cama e o travesseiro são altamente confortáveis e aconchegantes, mas, mesmo assim, há desconforto, pois nunca ouvimos dizer que ser mãe é padecer no paraíso? Frida é mãe de sua própria arte, sentindo as dores do parto e ficando orgulhosa de sua própria prole. O deserto solitário é o retiro, o recato, numa mulher que viveu todo o machismo da cultura mexicana e latinoamericana. A Arte é uma válvula de escape, curando. Arte é Saúde. E o desespero do quadro traz esperança.


Acima, O Abraço Amoroso do Universo, da Terra, México, Eu Mesma, Diego e o Senhor Xolotl. Frida adora Astronomia, retratando o Sol e a Lua no firmamento. Aqui, temos um Sol imperfeito, revelando-se um revolto poço de fogo furioso. Como Yin e Yang, há uma divisão de contraste no quadro, e uma mão albina e outra negra abraçam o quadro inteiro, tendo abaixo de si ramificações de nervos, ou plantas, ou raios de trovão, como uma planta desenraizada, esperando para ser replantada e cuidada, do modo como Frida cuidava com muito amor a própria obra. No plano geral ao fundo, uma face de uma mulher, que é Tao, resultado da junção dos opostos. Nuvens negras e alvas trazem o contraste de forma ampla e clara, numa Frida encontrando-se dentro de si mesma. Ao fundo de Frida, a Mãe Terra, o solo primordial terroso, e uma gota de leite sai do seio da Mãe Provedora, talvez a mãe de Frida, nos mistérios da Criação – o ser humano jamais conseguirá ser Deus. Aqui, uma Frida de cabelos negros soltos, e em seus braços um bebê gigante, como numa Pietà, e o bebê tem um terceiro olho enorme, no poder da clarividência, enxergando-se a si mesmo no espelho existencial. O bebê repousa sobre a saia de Frida, a qual tem tom terroso, com cheiro de campo, de ar livre, de concepção – a Vida brota, sempre. Ao pé da saia, um pequeno, adorável e inofensivo animal repousa em sono, acolhido pela paz do útero, da Vida Metafísica, na qual a Paz reina absoluta. Pelo quadro em geral vemos muitas plantas, no fascínio de Frida sobre a Vida que brota da misteriosa Terra. Vemos alguns cactos, agressivos em sua espinhosidade, mas suculentos por dentro, na recompensa do esforço, como Frida empenhou-se em sua própria obra. Aqui, temos metalinguagem: a Grande Mãe, abraçando uma Mãe Menor, a qual abraça outra ainda menor, a qual abraça o bebê, que abraça a si mesmo, como num plano multidimensional, numa hierarquia, como no quadro de Da Vinci linkado aqui. Há várias plantas espinhosas no quadro, representando a dor e, também, a agressividade, o Yang. É a Coroa de Cristo, num homem que, em vida, frustrou-se enormemente, prostrado na Cruz, só sendo reconhecido tempos depois. O bebê segura um coração em chamas, como o Coração de Cristo, e a chama arde intensamente, na vontade de Frida de produzir e se destacar, como na Natureza existe a luta pela Vida. Perguntaram a Dercy Gonçalves o que é a Vida, e Dercy respondeu: “A Vida é luta”.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Sessa Sensacional




Colaborou para esta postagem o historiador portoalegrense Arnoldo Walter Doberstein, membro do Instituto Cultural Emilio Sessa, o ICES, instituição que visa divulgar o trabalho deste pintor italiano que construiu obra na Itália e no Brasil, como na Catedral de Pelotas, RS. Doberstein é esposo de minha tia e madrinha, que também é membro do ICES, sendo este também formado por outras pessoas que compartilham a paixão pela Pesquisa e pela Arte. Arnoldo foi meu professor na cadeira de Realidade Brasileira na PUCRS, e ele fazia uma explanação ideológica ao redor do Estatuário Público de Porto Alegre, como na Praça da Matriz e no Paço Municipal. O casal já viajou para a Itália para fazer pesquisa sobre o artista. O projeto do ICES é lançar uma trilogia em livros sobre Sessa, tendo já lançado dois volumes. Doberstein mandou-me imagens de trabalhos de Sessa as quais aquele achou pertinentes. E eu ainda adicionei um autorretrato de Sessa, disponível no site do instituto. Sessa foi amigo próximo do célebre pintor Aldo Locatelli, pois os dois foram colegas em uma respeitada escola de Arte na Itália. Sessa tem descendentes no Brasil e na Itália. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, Anjos. Esses anjos são cercados de detalhes decorativos, uma especialidade de Sessa, e esses “enfeites” são muito presentes na obra de vida do pintor. Há um diferencial grande entre Sessa e Locatelli na questão das nuvens: Aldo tem nuvens mais vaporosas e arredondadas, enquanto Emilio tem nuvens mais “horizontalizadas”, não tão redondas. Aqui, as vestes dos anjos são extremamente finas e elegantes, e podemos ver cada detalhe do tecido ondulante. Seus pés nas nuvens são a simplicidade, o prazer reconfortante, no prazer de um artista que se sente à vontade para produzir. É a deliciosa simplicidade de se caminhar na orla, sentindo a areia nos pés e também a água fria que lava esses pés. Na questão do “vão-se os anéis; ficam os dedos”, aqui “vão-se os sapatos; ficam os pés”, no costume funerário de são se colocar sapatos ao sepultar a pessoa falecida, na questão da pessoa morta “voltar ao lar”, num lugar onde sente-se em casa, numa limpeza impecável, sem deixar marcas de sujeira nas solas dos pés, no apelo purificador da água benta, no ritual de entrada no templo: é um lugar sagrado, portanto, purifique-se antes de entrar, na questão budista na qual o banho é mais do que um ato de limpeza corporal, mas também um ato de purificação espiritual, ritualística, no sentido de que a vida em sociedade está repleta de rituais. Como eu já disse numa mensagem natalina, os anjos são os espíritos felizes, e suas asas simbolizam a liberdade e o livre arbítrio – o espírito vai para onde quiser ir, no paradigma democrático de liberdade. As aureolas emolduram as cabeças dos anjos, trazendo o esclarecimento e a resolução de problemas, de um nó. É o apelo iluminista em nome do conhecimento. Os anos têm semblante tranquilo, na tranquilidade de quem faz o Bem, sem qualquer peso na consciência. A leveza dos anjos é fluidia e sensual, no prazer de se entrar na água e banhar-se. É o bem-estar de estar confortável dentro da própria pele, na autoaceitação – não existe felicidade aos que não gostam de si mesmos. As vestes dos anjos têm cores discretas e sofisticadas, brandas, que tremulam como majestosas bandeiras ao vento. Os dedos dos anjos são delgados, representando a fineza, o bom-trato, na elevação moral dos espíritos depurados e evoluídos. Sessa quer que vejamos o Bem. Aqui, podemos sentir um fino perfume.


Acima, Cena Rural I. A frondosa árvore impõe-se no quadro, como se quisesse superar a casa atrás. A casa é simples, sem luxos de palacete, e parece ser um lugar tranquilo para se viver – é a paz rural, um sentimento que inunda Sessa e inspira este. Há verde por todos os lados, numa Elis Regina cantando: “Eu quero uma casa no campo onde eu possa compor”. E a felicidade está em se curtir os aspectos simples da vida. A chaminé é um aviso: nesta casa há aconchego, num Sessa confortável no próprio processo de criação, de concepção. A janela à esquerda sugere que no interior da casa haja uma vista inspiradora, mergulhada na quietude – Sessa ama a vida rural e retirada. A colina bem ao fundo impõe-se geologicamente, como ao fundo da Monalisa de Leonardo. As árvores e o verde abrigam a casa como um útero abriga um bebê. Os ramos das árvores são as ramificações genealógicas, na ironia de que um dos membros do ICES é filho de Sessa. A força da Natureza acontece de forma plácida e silenciosa, e, para quem mora na barulhenta cidade, a quietude rural é uma delícia. As incertas pinceladas de Sessa tomam forma e mostram com clareza os elementos. À frente da casa há uma estradinha de chão batido, conduzindo a outros recantos da propriedade, numa Chapeuzinho Vermelho rumando, tentada a cortar a floresta por um traiçoeiro atalho, como diz Tao: “O Grande Caminho é fácil, mas as pessoas estão, o tempo todo, seduzidas por atalhos”. A estradinha é um veio de água ao fundo de um vale, atraindo tudo em meio à força da gravidade, colocando-se sempre em último lugar, assim como deve ser o bom líder, como Neo em Matrix, salvando o Mundo. Ao lado da frondosa árvore vemos uma arvorezinha menor, mais modesta e coadjuvante, almejando um dia ser como a árvore ao seu lado, no ritmo de vida natural: nascer e crescer, em ciclo. A casinha é um lugar pacato e discreto, sem megalomanias ou pretensões, como numa Elizabeth II fotografada colhendo flores em seu jardim, como diz Tao: “Não interfira na vida pacata do cidadão”.


Acima, Cena Rural II. A porteira está aberta, recebendo visitantes de braços abertos, como Sessa sendo recebido na cena, participando da ação. A porta aberta é o lar, sempre acolhendo generosamente. As duas mulheres têm vestidos quase até os pés, e ambas usam chapéus para proteger-se do Sol. O caminho é de terra e pedras, duro e infértil, num caminho que vai em direção a um vale sedutor e amplo. As formações montanhosas ao fundo mostram a imponência da Natureza, e o céu limpo e azul é impecável, céu de brigadeiro, num dia limpo e radiante, enchendo o mundo de luz e energia. A parte do quadro à direita é meio sombria, misteriosa, e não podemos ver direito o que há ali. É um misterioso vale, íngreme demais para ser aproveitado para criar gado ou plantar, como acontece em muitos pontos da Serra Gaúcha. As mulheres parecem estar conversando, e podemos ouvir sua discreta conversa. Suas vozes invadem a quietude rural ao redor. As pedras são a dureza da vida, seja urbana ou rural, no sentido de que a vida é feita de escolhas, e cada um deve escolher o lugar onde viver, aceitando o prós e os contras naturais de qualquer lugar. O céu límpido toma quase metade do quadro, num Sessa seduzido pelo espaço aberto do azulanil. As montanhas formam um formato de receptáculo, no princípio de feminilidade, de receptação, como Dan Brown mostra em O Código da Vinci no quadro de A Última Ceia. É o Santo Graal, preenchido pelo vinho, pelo sangue real e azul de Cristo, e é o vazio do copo que faz este ser útil: é o mistério do vazio, da vaga, do receptáculo feminino uterino, fazendo oposto com o formato agressivo e viril da pirâmide, sendo esta abrasiva, preenchendo com prazer o feminino. As linhas aqui conduzem quase ao centro do quadro, num ponto central gravitacional, como um buraco negro, arrastando tudo e todos consigo, e nem a luz pode escapar desta força da Natureza. Aqui, temos uma perspectiva de Sessa, numa estrada que, quanto mais longe vai, menor vai ficando, minguando até desaparecer. É como um ralo de pia, que suga toda a água, impondo-se como força de sucção. A porteira aqui é simples, e serve de aviso: você está entrando em uma propriedade privada, portanto, saiba que aqui não é a casa da mãe Joana. Do mesmo modo como foi aberta, será fechada. Os picos montanhosos são abrasivos como óleo quente, contrastando com as frágeis mulheres quase ao centro do quadro. As duas são como sentinelas, que controlam a entrada e saída da propriedade. E também dão as boasvindas aos visitantes. Olhando de cabeça para baixo, o vazio do céu torna-se uma pirâmide pontiaguda como uma agulha, querendo invadir o restante da cena, agredindo. O céu parece um lago espelhado, plácido na inabalável quietude de suas águas espelhadas. E ninguém pode abalar a paz de Sessa. Parece que esta porteira está recebendo Sessa de braços abertos. Lar.


Acima, Cena Rural III. Uma senhora caminha solitariamente sob o Sol, e sua sombra projeta-se ao chão. Ela está um tanto cabisbaixa, pensativa. Podemos vê-la, de fato, caminhando, e em seus ombros parece haver um xale. A paisagem é uma vila, com várias casas modestas, feitas de tijolos. A vila é engolida pelas montanhas ao fundo, e ela repousa ao pé do vale. Os telhados protegem as casas, e em todo o quadro só podemos ver dois vegetais – um é uma pequena árvore; o outro, um arbusto, como uma mãe cuidando do filho. Entre as duas plantas há uma pitoresca janelinha aberta, ventilando a casa, proporcionando uma boa vista em meio à paisagem plácida desta vila. Ao lado da mulher vemos uma mureta sinuosa, sensual como o galgar de uma serpente, num símbolo de fertilidade e feminilidade. Os outros habitantes da vila estão cuidando de seus negócios, e a cena remete às pacatas e pequenas cidades gaúchas, às vezes perturbadas por roubos a agências bancárias, na sede do ser humano por dinheiro e poder. Esta vila não é ambiciosa, e a vida nela não se apega ao ouro. As montanhas parecem ser móveis, numa massa dinâmica, na fluidez de ondas do mar. Aqui, tudo flui; tudo é processo. A aconchegante vila nos recebe, inspirando paz. É a paz do processo de criação de Sessa, sempre paciente, construindo sua obra tijolo por tijolo, como nas casas desta vila. A Dimensão Metafísica é repleta de paz. Em algumas casas, vemos roupas e tapetes estendidos ao Sol, aproveitando o dia seco para colocar a casa em ordem. Nesta vila há labor, no atelier do artista. Apesar de só aparecer uma pessoa na cena, sabemos que há mais habitantes aqui. A simples via não é pavimentada, como em muitos lugares do Interior. A vila é aconchegante, causando acolhimento. E a janelinha citada anteriormente segue formidável, atraente, plena em seu vazio, esvaziando-se para que haja ventilação e para que as pessoas possam apreciar a vista. Como diz Tao, o vazio é o que dá utilidade a algo, como um vaso de plantas ou um prato de comida. Este caminho da vila está em perspectiva, como se Sessa possuísse uma máquina fotográfica grandeangular, num artista com olho fotográfico. Há uma pequena hierarquia entre as casas, e a mais alta ergue-se altiva. Podemos também ver na cena algumas chaminés, mostrando que, em dias frios e úmidos, os interiores das casas são deliciosos e acolhedores, no prazer de morar com conforto e simplicidade. Antiga, a vila mantém-se praticamente igual ao que foi há séculos, num apelo por tradição. Aqui, a paz nos convida para entrar na cena, e temos vontade de ficar ali. Podemos ouvir cantos dos pássaros nesta tarde, e um sutil farfalhar das folhas da árvore à brisa suave. E a janelinha segue formidável, abrindo espaço na parede de tijolos, como o centro de uma galáxia.


Acima, Autorretrato. Aqui, Sessa olha para um ponto misterioso, com um olhar incerto, de quem não sabe o que vai encontrar a seguir, na dúvida existencial do “Para onde vou?”. Seus olhos azulados entram em harmonia cromática com a camisa, a gravata e o casaco, em tons muito discretos de azul marinho e azul cinzento – o artista arrumou-se para este autorretrato, com uma barba feita impecavelmente, como se estivesse se arrumando para um evento muito elegante, ou simplesmente para ir a um café. Seu rosto é delgado e elegante, e sua orelha está um tanto “fora de foco”, discreta, coadjuvante. Seu tom de pele tem a técnica de Sessa, o qual conseguiu reproduzir o tom certo para a cútis. Seu nariz é um tanto proeminente, com um certo charme, como no charme de um nariz muito maior – o de Barbra Streisand. Sua boca é discreta, e não tem amargura. Temos aqui um Sessa jovem, sem sinais de grisalhos no cabelo, sequer com um fio branco. O cabelo, de um crespo rebelde, está controlado, penteado e domado, num Sessa em controle de sua própria vida. Suas sobrancelhas não são delgadas, e têm um aspecto natural, longe das sobrancelhas delineadas de um certo jogador de futebol. O fundo do quadro é negro, entrando em contraste com o rosto alvo. A luminosidade batiza um lado do rosto, e o outro lado está mais sombrio, como as duas faces da Lua, combinando clareza com mistério, num artista que, apesar de ter a obra exposta, mantém um certo mistério, uma indecifrabilidade. Aqui, vemos um Sessa sério, sem qualquer insinuação de sorriso nos lábios, na seriedade existencial de que só é reconhecido quem é digno de tal reconhecimento. Apesar de estar olhando para o lado, o olho mais iluminado parece olhar diretamente para o espectador, como uma piscina redonda. Os cabelos ondulados são ondas oceânicas, revoltosas, naturais, sempre ondulando, na inesgotabilidade da Natureza. Seu queixo tem uma sutil divisão, no antes e depois do reconhecimento. Vemos um homem belo e solitário, de olhar atento, em cabelos de um dourado profundo, discreto.