Colaborou para esta postagem
o historiador portoalegrense Arnoldo Walter Doberstein, membro do Instituto Cultural Emilio Sessa, o ICES, instituição que visa divulgar o trabalho deste
pintor italiano que construiu obra na Itália e no Brasil, como na Catedral de
Pelotas, RS. Doberstein é esposo de minha tia e madrinha, que também é membro
do ICES, sendo este também formado por outras pessoas que compartilham a paixão
pela Pesquisa e pela Arte. Arnoldo foi meu professor na cadeira de Realidade
Brasileira na PUCRS, e ele fazia uma explanação ideológica ao redor do
Estatuário Público de Porto Alegre, como na Praça da Matriz e no Paço Municipal.
O casal já viajou para a Itália para fazer pesquisa sobre o artista. O projeto
do ICES é lançar uma trilogia em livros sobre Sessa, tendo já lançado dois
volumes. Doberstein mandou-me imagens de trabalhos de Sessa as quais aquele
achou pertinentes. E eu ainda adicionei um autorretrato de Sessa, disponível no
site do instituto. Sessa foi amigo próximo do célebre pintor Aldo Locatelli, pois
os dois foram colegas em uma respeitada escola de Arte na Itália. Sessa tem
descendentes no Brasil e na Itália. As análises semióticas a seguir são
inteiramente minhas.
Acima, Anjos. Esses anjos são cercados de detalhes decorativos, uma
especialidade de Sessa, e esses “enfeites” são muito presentes na obra de vida
do pintor. Há um diferencial grande entre Sessa e Locatelli na questão das
nuvens: Aldo tem nuvens mais vaporosas e arredondadas, enquanto Emilio tem
nuvens mais “horizontalizadas”, não tão redondas. Aqui, as vestes dos anjos são
extremamente finas e elegantes, e podemos ver cada detalhe do tecido ondulante.
Seus pés nas nuvens são a simplicidade, o prazer reconfortante, no prazer de um
artista que se sente à vontade para produzir. É a deliciosa simplicidade de se
caminhar na orla, sentindo a areia nos pés e também a água fria que lava esses
pés. Na questão do “vão-se os anéis; ficam os dedos”, aqui “vão-se os sapatos;
ficam os pés”, no costume funerário de são se colocar sapatos ao sepultar a
pessoa falecida, na questão da pessoa morta “voltar ao lar”, num lugar onde
sente-se em casa, numa limpeza impecável, sem deixar marcas de sujeira nas
solas dos pés, no apelo purificador da água benta, no ritual de entrada no
templo: é um lugar sagrado, portanto, purifique-se antes de entrar, na questão
budista na qual o banho é mais do que um ato de limpeza corporal, mas também um
ato de purificação espiritual, ritualística, no sentido de que a vida em
sociedade está repleta de rituais. Como eu já disse numa mensagem natalina, os
anjos são os espíritos felizes, e suas asas simbolizam a liberdade e o livre
arbítrio – o espírito vai para onde quiser ir, no paradigma democrático de
liberdade. As aureolas emolduram as cabeças dos anjos, trazendo o
esclarecimento e a resolução de problemas, de um nó. É o apelo iluminista em
nome do conhecimento. Os anos têm semblante tranquilo, na tranquilidade de quem
faz o Bem, sem qualquer peso na consciência. A leveza dos anjos é fluidia e
sensual, no prazer de se entrar na água e banhar-se. É o bem-estar de estar
confortável dentro da própria pele, na autoaceitação – não existe felicidade
aos que não gostam de si mesmos. As vestes dos anjos têm cores discretas e
sofisticadas, brandas, que tremulam como majestosas bandeiras ao vento. Os
dedos dos anjos são delgados, representando a fineza, o bom-trato, na elevação
moral dos espíritos depurados e evoluídos. Sessa quer que vejamos o Bem. Aqui,
podemos sentir um fino perfume.
Acima, Cena Rural I. A frondosa árvore impõe-se no quadro, como se
quisesse superar a casa atrás. A casa é simples, sem luxos de palacete, e
parece ser um lugar tranquilo para se viver – é a paz rural, um sentimento que
inunda Sessa e inspira este. Há verde por todos os lados, numa Elis Regina
cantando: “Eu quero uma casa no campo onde eu possa compor”. E a felicidade
está em se curtir os aspectos simples da vida. A chaminé é um aviso: nesta casa
há aconchego, num Sessa confortável no próprio processo de criação, de
concepção. A janela à esquerda sugere que no interior da casa haja uma vista
inspiradora, mergulhada na quietude – Sessa ama a vida rural e retirada. A colina
bem ao fundo impõe-se geologicamente, como ao fundo da Monalisa de Leonardo. As
árvores e o verde abrigam a casa como um útero abriga um bebê. Os ramos das
árvores são as ramificações genealógicas, na ironia de que um dos membros do
ICES é filho de Sessa. A força da Natureza acontece de forma plácida e
silenciosa, e, para quem mora na barulhenta cidade, a quietude rural é uma
delícia. As incertas pinceladas de Sessa tomam forma e mostram com clareza os
elementos. À frente da casa há uma estradinha de chão batido, conduzindo a
outros recantos da propriedade, numa Chapeuzinho Vermelho rumando, tentada a
cortar a floresta por um traiçoeiro atalho, como diz Tao: “O Grande Caminho é
fácil, mas as pessoas estão, o tempo todo, seduzidas por atalhos”. A estradinha
é um veio de água ao fundo de um vale, atraindo tudo em meio à força da
gravidade, colocando-se sempre em último lugar, assim como deve ser o bom
líder, como Neo em Matrix, salvando o
Mundo. Ao lado da frondosa árvore vemos uma arvorezinha menor, mais modesta e coadjuvante,
almejando um dia ser como a árvore ao seu lado, no ritmo de vida natural:
nascer e crescer, em ciclo. A
casinha é um lugar pacato e discreto, sem megalomanias ou pretensões, como numa
Elizabeth II fotografada colhendo flores em seu jardim, como diz Tao: “Não
interfira na vida pacata do cidadão”.
Acima, Cena Rural II. A porteira está aberta, recebendo visitantes de
braços abertos, como Sessa sendo recebido na cena, participando da ação. A
porta aberta é o lar, sempre acolhendo generosamente. As duas mulheres têm
vestidos quase até os pés, e ambas usam chapéus para proteger-se do Sol. O
caminho é de terra e pedras, duro e infértil, num caminho que vai em direção a
um vale sedutor e amplo. As formações montanhosas ao fundo mostram a imponência
da Natureza, e o céu limpo e azul é impecável, céu de brigadeiro, num dia limpo
e radiante, enchendo o mundo de luz e energia. A parte do quadro à direita é
meio sombria, misteriosa, e não podemos ver direito o que há ali. É um
misterioso vale, íngreme demais para ser aproveitado para criar gado ou plantar,
como acontece em muitos pontos da Serra Gaúcha. As mulheres parecem estar
conversando, e podemos ouvir sua discreta conversa. Suas vozes invadem a
quietude rural ao redor. As pedras são a dureza da vida, seja urbana ou rural, no
sentido de que a vida é feita de escolhas, e cada um deve escolher o lugar onde
viver, aceitando o prós e os contras naturais de qualquer lugar. O céu límpido
toma quase metade do quadro, num Sessa seduzido pelo espaço aberto do azulanil.
As montanhas formam um formato de receptáculo, no princípio de feminilidade, de
receptação, como Dan Brown mostra em O Código da Vinci no quadro de A Última Ceia. É o Santo Graal,
preenchido pelo vinho, pelo sangue real e azul de Cristo, e é o vazio do copo
que faz este ser útil: é o mistério do vazio, da vaga, do receptáculo feminino
uterino, fazendo oposto com o formato agressivo e viril da pirâmide, sendo esta
abrasiva, preenchendo com prazer o feminino. As linhas aqui conduzem quase ao
centro do quadro, num ponto central gravitacional, como um buraco negro, arrastando
tudo e todos consigo, e nem a luz pode escapar desta força da Natureza. Aqui,
temos uma perspectiva de Sessa, numa estrada que, quanto mais longe vai, menor
vai ficando, minguando até desaparecer. É como um ralo de pia, que suga toda a
água, impondo-se como força de sucção. A porteira aqui é simples, e serve de
aviso: você está entrando em uma propriedade privada, portanto, saiba que aqui
não é a casa da mãe Joana. Do mesmo modo como foi aberta, será fechada. Os
picos montanhosos são abrasivos como óleo quente, contrastando com as frágeis
mulheres quase ao centro do quadro. As duas são como sentinelas, que controlam
a entrada e saída da propriedade. E também dão as boasvindas aos visitantes.
Olhando de cabeça para baixo, o vazio do céu torna-se uma pirâmide pontiaguda
como uma agulha, querendo invadir o restante da cena, agredindo. O céu parece
um lago espelhado, plácido na inabalável quietude de suas águas espelhadas. E
ninguém pode abalar a paz de Sessa. Parece que esta porteira está recebendo
Sessa de braços abertos. Lar.
Acima, Cena Rural III. Uma senhora caminha solitariamente sob o Sol, e sua
sombra projeta-se ao chão. Ela está um tanto cabisbaixa, pensativa. Podemos
vê-la, de fato, caminhando, e em seus ombros parece haver um xale. A paisagem é
uma vila, com várias casas modestas, feitas de tijolos. A vila é engolida pelas
montanhas ao fundo, e ela repousa ao pé do vale. Os telhados protegem as casas,
e em todo o quadro só podemos ver dois vegetais – um é uma pequena árvore; o
outro, um arbusto, como uma mãe cuidando do filho. Entre as duas plantas há uma
pitoresca janelinha aberta, ventilando a casa, proporcionando uma boa vista em
meio à paisagem plácida desta vila. Ao lado da mulher vemos uma mureta sinuosa,
sensual como o galgar de uma serpente, num símbolo de fertilidade e feminilidade.
Os outros habitantes da vila estão cuidando de seus negócios, e a cena remete
às pacatas e pequenas cidades gaúchas, às vezes perturbadas por roubos a
agências bancárias, na sede do ser humano por dinheiro e poder. Esta vila não é
ambiciosa, e a vida nela não se apega ao ouro. As montanhas parecem ser móveis,
numa massa dinâmica, na fluidez de ondas do mar. Aqui, tudo flui; tudo é
processo. A aconchegante vila nos recebe, inspirando paz. É a paz do processo
de criação de Sessa, sempre paciente, construindo sua obra tijolo por tijolo,
como nas casas desta vila. A Dimensão Metafísica é repleta de paz. Em algumas
casas, vemos roupas e tapetes estendidos ao Sol, aproveitando o dia seco para
colocar a casa em ordem.
Nesta vila há labor, no atelier do artista. Apesar de só
aparecer uma pessoa na cena, sabemos que há mais habitantes aqui. A simples via
não é pavimentada, como em muitos lugares do Interior. A vila é aconchegante,
causando acolhimento. E a janelinha citada anteriormente segue formidável,
atraente, plena em seu vazio, esvaziando-se para que haja ventilação e para que
as pessoas possam apreciar a vista. Como diz Tao, o vazio é o que dá utilidade
a algo, como um vaso de plantas ou um prato de comida. Este caminho da vila
está em perspectiva, como se Sessa possuísse uma máquina fotográfica
grandeangular, num artista com olho fotográfico. Há uma pequena hierarquia
entre as casas, e a mais alta ergue-se altiva. Podemos também ver na cena
algumas chaminés, mostrando que, em dias frios e úmidos, os interiores das
casas são deliciosos e acolhedores, no prazer de morar com conforto e
simplicidade. Antiga, a vila mantém-se praticamente igual ao que foi há
séculos, num apelo por tradição. Aqui, a paz nos convida para entrar na cena, e
temos vontade de ficar ali. Podemos ouvir cantos dos pássaros nesta tarde, e um
sutil farfalhar das folhas da árvore à brisa suave. E a janelinha segue
formidável, abrindo espaço na parede de tijolos, como o centro de uma galáxia.
Acima, Autorretrato. Aqui, Sessa olha para um ponto misterioso, com um
olhar incerto, de quem não sabe o que vai encontrar a seguir, na dúvida
existencial do “Para onde vou?”. Seus olhos azulados entram em harmonia
cromática com a camisa, a gravata e o casaco, em tons muito discretos de azul
marinho e azul cinzento – o artista arrumou-se para este autorretrato, com uma
barba feita impecavelmente, como se estivesse se arrumando para um evento muito
elegante, ou simplesmente para ir a um café. Seu rosto é delgado e elegante, e
sua orelha está um tanto “fora de foco”, discreta, coadjuvante. Seu tom de pele
tem a técnica de Sessa, o qual conseguiu reproduzir o tom certo para a cútis.
Seu nariz é um tanto proeminente, com um certo charme, como no charme de um
nariz muito maior – o de Barbra Streisand. Sua boca é discreta, e não tem
amargura. Temos aqui um Sessa jovem, sem sinais de grisalhos no cabelo, sequer
com um fio branco. O cabelo, de um crespo rebelde, está controlado, penteado e
domado, num Sessa em controle de sua própria vida. Suas sobrancelhas não são
delgadas, e têm um aspecto natural, longe das sobrancelhas delineadas de um
certo jogador de futebol. O fundo do quadro é negro, entrando em contraste com
o rosto alvo. A luminosidade batiza um lado do rosto, e o outro lado está mais
sombrio, como as duas faces da Lua, combinando clareza com mistério, num
artista que, apesar de ter a obra exposta, mantém um certo mistério, uma
indecifrabilidade. Aqui, vemos um Sessa sério, sem qualquer insinuação de
sorriso nos lábios, na seriedade existencial de que só é reconhecido quem é
digno de tal reconhecimento. Apesar de estar olhando para o lado, o olho mais
iluminado parece olhar diretamente para o espectador, como uma piscina redonda.
Os cabelos ondulados são ondas oceânicas, revoltosas, naturais, sempre ondulando,
na inesgotabilidade da Natureza. Seu queixo tem uma sutil divisão, no antes e
depois do reconhecimento. Vemos um homem belo e solitário, de olhar atento, em
cabelos de um dourado profundo, discreto.
Muito bom, Gonçalo. Temos que ver um jeito de multiplicar o quanto der estas tuas excelentes e inspiradas leituras semióticas dos trabalhos do Sessa. Daí pergunto: me autorizar a "fatiar" o texto em 4 partes para publicá-las, uma a uma, no meu face?
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