Falo pela segunda vez sobre
o pintor brasileiro Cândido Portinari. Os textos e análises semióticas a seguir
são inteiramente meus.
Acima, Catequese, 1941.
A tentativa da Religião em ordenar o Mundo e fabricar
cidadãos com apuro moral, num grande desafio. Este padre já é idoso, tendo que
ficar sentado. Os traços de seu rosto são mais definidos do que os traços dos
rostos da meninada. Os meninos são todos indistintos, como anônimos tijolos em
uma parede. Seria uma crítica de Portinari ou apenas uma opinião inocente? Cada
menino está recém começando a vida, e ouvimos o ditado “Cresça e apareça”.
Podemos ouvir a voz do padre no silêncio dos alunos que prestam atenção. É a
questão do “rebanho”, na empreitada civilizatória do Vaticano, que vê no Brasil
um terreno propício para espalhar a Palavra de Deus. Todos os meninos vestem
indistintas roupas brancas, ao contrário do sacerdote, que está em um traje
marrom escuro, discreto, profundo. Ao lado do padre, um grande vaso vermelho, na
cor de Cristo sendo crucificado, no sangue do Salvador escorrendo dolorosamente
pela cruz, chegando até o chão, nas mãos de Maria. Bem ao fundo no quadro, uma
modesta construção de madeira, ou seja, a Escola, na missão de padres e freiras
em anexar Cultura
Erudita ao cidadão, civilizando este. A escolinha tem uma
discreta cruz no topo do telhado, avisando que se trata de uma instituição onde
os valores católicos são transmitidos. Enquanto o padre é grisalho, mostrando
assim experiência de vida, os meninos são todos de cabelo negro, mostrando
vidas que recém estão começando. A Escola é mais do que um lugar para crianças
não ficarem o tempo todo em casa; a Escola é o baluarte da construção de uma
nação, e isso não é diferente com o Brasil – é a missão do Vaticano. Enquanto o
padre fala, os meninos estão em absoluto silêncio, demonstrando respeito. Na
Escola, a indisciplina é punida severamente, punindo o indivíduo que não levar
a vida a sério. O vaso vermelho é o vinho tomado na Missa, sempre remetendo à
Última Ceia. O vaso é o receptáculo feminino, numa religião que eleva a mulher
que gerou o Salvador em meio ao mistério da Imaculada Conceição – o sexo é um
problema para a Igreja e não é um problema para a Psicologia. Poucos destes
meninos carregam pinceladas vermelhas, da cor do vaso, no interior de um ovo de
Páscoa, no mistério da vida, da vida que se gera de modo intocado – somos todos
frutos de uma Imaculada Conceição, só que a nível espiritual. Tanto o padre
quanto os meninos estão com os pés descalços, mostrando simplicidade e
humildade, características essenciais para quem quer ganhar respeito. As
freiras educam as meninas e os padres educam os meninos, na eterna ritualização
humana em torno de gênero, no ritual matrimonial unindo masculino e feminino, resultando,
desta junção, Tao, o caminho uno. Entre todos os meninos, há um mais baixinho
do que os demais, como no pequeno Davi, que vence um gigante aparentemente
invencível, como a Invencível Armada Espanhola sendo vencida por uma então
humilde Inglaterra. O vaso guarda o mistério da Vida, no interior uterino, como
no interior lindo de um figo cortado ao meio. E, ao lado desta escolinha no
quadro, uma cerca que representa o discernimento, dividindo duas forças opostas
que não são inimigas – bem pelo contrário, são amigas; grandes amigas.
Acima, Dom Quixote e Sancho Pança saindo para as suas aventuras, 1956. O
Sol protagoniza glorioso aqui, espalhando uma luz dourada pelo quadro,
emoldurando a empreitada de Quixote e seu companheiro. A lança fálica de Quixote
é tão extensa que escapa ao quadro, num cavaleiro protegido por uma armadura
impenetrável, do modo como a Psicologia diz que saber dizer “não” é como vestir
uma armadura. Esta armadura reluz lustrosa e altiva, e Quixote monta um
inquieto e majestoso cavalo branco, enquanto Pança parece montar um jumento:
seria o jumento a “burrice” em Quixote ser tão alucinado e louco? Enquanto o
ossudo Quixote é magérrimo e delgado, Pança é bem obeso, como na comédia
hollywoodiana de “O Gordo e o Magro”. Quixote é o líder protagonista, sendo
seguido por Pança, que se mostra mais discreto, sempre à sombra de seu senhor.
Os pés de Quixote são pontiagudos tais quais agulhas, numa passada agressiva,
de um homem louco que vê gigantes ao invés de moinhos de vento. Por todo o fundo
do quadro, linhas amarelas ondulantes, mostrando o movimento dos ares e da luz
solar, dando mais movimento à cena, como num intenso dia de Sol de Verão, do
modo como Quixote tem obstinado esclarecimento de que não é louco. A armadura
de Quixote é um exoesqueleto de formiga, rechaçando as armas do inimigo. A cena
tem movimento, quase como Cinema, e podemos ouvir os passos dos animais
troteando, no barulho de ferraduras se impactando com o chão. Pança parece usar
um chapéu, enquanto a cabeça deste Quixote é estranhíssima, e fica difícil ver
ali um rosto humano. Quixote e a lança formam um ser só, e a arma é uma
extensão do corpo do cavaleiro, do modo como o pincel e Portinari formaram um
só ser; do modo como o piano se tornou parte de Tom Jobim. Abaixo no quadro, a
bela assinatura do artista, tranquilo. As patas dos animais são elegantes e
nobres, num Portinari amante da Fauna e da Flora. E a dupla, como diz o título,
sai para uma aventura, buscando propósito e motivação na Vida, do modo como
Portinari encontrou-se na Arte.
Acima, Futebol, 1935. Portinari traz uma paixão nacional – o Futebol. Meninos
pobres jogam em um rústico chão terroso, e não em um gramado apropriado,
provavelmente com uma bola de pano. Vemos a mistura racial brasileira, pois há
meninos brancos e negros. Uma cabra e um jegue dividem a cena, alheios ao jogo
que ocorre. Seria esta uma doce lembrança de infância de Portinari? Um poste de
luz tem claro formato de cruz, como se estivesse abençoando a diversão dos
meninos, num Portinari religioso, apesar de nunca ter se tornado pintor de Arte
Sacra. Os meninos pobres sequer têm dinheiro para jogar com chuteiras, e ralam
os pés no chão duro, assim como é dura a vida nas camadas sociais miseráveis,
numa denúncia social do pintor, denunciando a Pobreza do Brasil. Bem ao fundo,
uma escolinha com a bandeira nacional hasteada, num Portinari patriota,
confiante no fato de que o Brasil é o país do Futuro. A aula acabou (ou está em
intervalo), e os meninos aproveitam o período de folga. Este chão é bem
avermelhado, como se estivessem sangrando os pés descalços miseráveis dos
meninos, como se estivesse escorrendo sangue da “cruz” ao fundo. Também ao
fundo, um pequeno cemitério da vila, um receptáculo que espera por todos nós,
no inevitável Desencarne. Mas este cemitério não é sombrio ou agourento, e
integra-se normalmente na cena, na Morte sendo vista como algo natural e
normal. Quase ao lado do cemitério vemos uma vaca, que é o princípio materno
provedor de leite, ou seja, a Mãe desses meninos todos, provavelmente a mulher
que teceu a bola de pano. Na cena, vemos três tocos de árvores cortadas, e isso
é a Mortificação, na necessidade do espírito de se desapegar de ilusões e viver
uma vida simples, sem vaidades faraônicas. As árvores ceifadas são a inevitabilidade
do Progresso, tendo a Natureza que dar lugar à Civilização, num Portinari progressista,
honrando os dizeres da Bandeira Nacional. Ao fundo da cena, vemos ainda árvores
frondosas, e vemos também plantações de alguma cultura, na fecundidade da Terra
Brasileira. Também ao fundo, vemos mais tocos cortados, servindo como
delimitações, cercas, num Portinari se delimitando a retratar uma cena
determinada. O céu da cena é claro e azul, belo, num dia de Sol sobre o território
nacional, como no azul da Bandeira. É um retrato doce de um Brasil como uma
nação prestes a ingressar na II Guerra Mundial, tirando a vida e a diversão
destes inocentes meninos, transformando estes em soldados que vão ao encontro
da Morte, pois, como eu já disse, lá está o cemitério.
Acima, Índia e Mulata, 1934. Mais uma vez, a peculiar Miscigenação Brasileira,
diferente dos EUA, nos quais, em geral, negro casa com negro e branco casa com
branco. Novamente vemos uma árvore ceifada, morta, sacrificada. A índia, de
vestido rosa, repousa a mão sobre o ombro da mulata, como uma irmã consolando
outra irmã, como comadres, na junção brasileira de sangue de raças e etnias
diversas. Seriam elas quem cortou a árvore? Troncos cortados repousam ao chão,
numa cor metálica, como algum produto industrial, em um Brasil tão vasto
ecologicamente. Há um vínculo sanguíneo entre as mulheres aqui, e parece sangue
escorrendo um fio vermelho ao fundo na colina, uma estradinha que “escorre” do
topo e vai de encontro ao chão, como o princípio passivo sedutor de Tao, como
na Lei da Gravidade, onde tudo se rende à força dos lugares mais inferiores. A
colina ao fundo está completamente aproveitada em Agricultura, e o vale ao chão
também é fértil e produtivo. Um caudaloso rio banha a cena, no curso natural da
Vida. Uma pedra saliente revela-se sobre a água, num Portinari que se sobressai
como mestre pintor. É como uma pontinha de iceberg, revelando, abaixo do nível
d’água, toda uma base sedimentar, trazendo firmeza e certeza. O Céu ao fundo é
majestoso, com nuvens pomposas, na promessa do Reino dos Céus feita por Jesus
Cristo. As mulheres aqui estão cansadas e desanimadas, talvez depois de um dia
de labor tão ardente. A mão da índia aprece estar calejada, marcada pelo labor
ardido, suado e esforçado, num Portinari incansável e produtivo, concentrado. O
chão aos pés das mulheres é bem escuro, imprevisível e misterioso, guardando
segredos, no sentido de que a Divina Providência nunca revela algo que até o
momento não pode ser revelado. A mulata tem pés grandes e descomunais, no termo
“pés no chão”, ou seja, realista, forte, embasada, enraizada, ao contrário da
árvore cortada, que foi assassinada. A pele das mulheres entra em harmonia
cromática com o chão, num Portinari atento à magia das cores. A casinha ao topo
da colina é o Lar, como numa favela, colocando os pobres em regiões do Rio de
Janeiro, regiões estas desvalorizadas imobiliariamente. Vemos aqui o Brasil do
Trabalho, da Produtividade, com terras cultivadas laboriosamente. E as nuvens
ao fundo são os sonhos de um artista, sempre em busca da autoexpressão. O rio
segue pacato em seu curso, e podemos ouvir o delicioso som das águas correndo,
convidando-nos a relaxar depois de um dia tão duro.
Acima, Flautista, 1934. Numa metalinguagem – artista falando de artista,
de modo como um artista não só faz Arte como também aprecia a Arte de outrem,
numa simbiose, numa cadeia de artista inspirando artista, num furacão
inspiracional. O músico aqui é negro, e toca despretensiosamente, sem se
preocupar com a vida; sem pedir qualquer dinheiro por tocar o instrumento. A
flauta sob a regência do negro é a riqueza da Música Popular Brasileira, da
cultura popular do Brasil, nas raízes africanas do samba e de tantos outros
gêneros cariocas, como o funk, que veio dos morros e estabeleceu-se. Esta vila
é um lugar simples e acolhedor, sem luxos nem pretensões elitistas ou
aristocráticas. É um lugar simples, um lar que acolhe, que reconforta com suas
formas simples e limpas, elegantes, do modo como a vida simples é mais leve de
se levar. Seus sapatos brancos são elegantes, limpos, galantes, e suas vestes
são também simples, sem pretensões de brasões principescos. A pequena e singela
flor é a vida, delicada, pequena, cercada por folhas que simbolizam toda a
riqueza da Flora Brasileira. A flor faz metáfora com a mulher formosa ao fundo,
na beleza da Mulher Brasileira. Esta mulher está com uma elegante saia, e o
chão terroso do morro é a fertilidade da mente de Portinari, um apaixonado pelo
Brasil, encontrando neste inspiração infindável, numa verdadeira declaração de
amor ao Brasil, tornando-se um embaixador da nação. Os sapatos do homem estão
impecavelmente limpos, sem parecer que caminham por um chão terroso,
não pavimentado. As casas deste morro são toda similares, no charme das favelas
cariocas, incrustadas nos morros, tendo uma vista incomparável à Natureza do
Rio de Janeiro, no encanto do personagem Zé Carioca, de Disney, numa identidade
brasileira, única. A mulher está encantada com o flautista, e sorri suavemente.
O flautista a seduz, e o quadro todo é sedutor também. Ao fundo, o Céu, o Mar e
os Morros do Rio, num lugar que, neste quadro, é tão desprovido de problemas
como narcotráfico e violência urbana. Portinari, assim como Tom Jobim, acredita
num Brasil melhor, mais nobre, mais elegante. O músico cruza elegantemente as
pernas, demonstrando polidez e classe, como se fosse um autêntico herdeiro de
príncipes africanos. Nesta vila, portas e janelas se abrem para o Mundo, dando
respiro, ventilação, circulação de ideias e pensamentos, do modo como um
artista tem que se sentir livre para criar. Então, podemos claramente ouvir a
música, a melodia, na riqueza da MPB, num Brasil respeitado ao redor do Mundo.
O flautista não usa meias, pois está no calor tropical carioca. A florzinha é
uma nesga de esperança, sonhando com um Brasil menos pobre, e a flor é a
promessa de que, um dia, todo aquele chão terroso estará coberto de flores, num
Brasil rico e próspero, sem tanta miséria. Temos a simplicidade de um Portinari
cansado dos excessos da Elite Brasileira. Portinari mergulha em uma nova Arte,
inovadora, implacável, inevitável. São os ventos de novos tempos. O flautista é
o próprio Portinari, fazendo Arte despreocupadamente, nunca almejando glórias
nababescas e, por isso mesmo, tornando-se grande. A Vida é de quem não tem
expectativas. Enquanto redijo este texto, eu como castanhas de caju, que
simbolizam a riqueza gastronômica brasileira e, assim, simbolizam o Brasil em
si, promissor. O flautista é Jobim encantado com a Garota de Ipanema.