quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cândido, um Brasileiro (Parte 2)




Falo pela segunda vez sobre o pintor brasileiro Cândido Portinari. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Catequese, 1941. A tentativa da Religião em ordenar o Mundo e fabricar cidadãos com apuro moral, num grande desafio. Este padre já é idoso, tendo que ficar sentado. Os traços de seu rosto são mais definidos do que os traços dos rostos da meninada. Os meninos são todos indistintos, como anônimos tijolos em uma parede. Seria uma crítica de Portinari ou apenas uma opinião inocente? Cada menino está recém começando a vida, e ouvimos o ditado “Cresça e apareça”. Podemos ouvir a voz do padre no silêncio dos alunos que prestam atenção. É a questão do “rebanho”, na empreitada civilizatória do Vaticano, que vê no Brasil um terreno propício para espalhar a Palavra de Deus. Todos os meninos vestem indistintas roupas brancas, ao contrário do sacerdote, que está em um traje marrom escuro, discreto, profundo. Ao lado do padre, um grande vaso vermelho, na cor de Cristo sendo crucificado, no sangue do Salvador escorrendo dolorosamente pela cruz, chegando até o chão, nas mãos de Maria. Bem ao fundo no quadro, uma modesta construção de madeira, ou seja, a Escola, na missão de padres e freiras em anexar Cultura Erudita ao cidadão, civilizando este. A escolinha tem uma discreta cruz no topo do telhado, avisando que se trata de uma instituição onde os valores católicos são transmitidos. Enquanto o padre é grisalho, mostrando assim experiência de vida, os meninos são todos de cabelo negro, mostrando vidas que recém estão começando. A Escola é mais do que um lugar para crianças não ficarem o tempo todo em casa; a Escola é o baluarte da construção de uma nação, e isso não é diferente com o Brasil – é a missão do Vaticano. Enquanto o padre fala, os meninos estão em absoluto silêncio, demonstrando respeito. Na Escola, a indisciplina é punida severamente, punindo o indivíduo que não levar a vida a sério. O vaso vermelho é o vinho tomado na Missa, sempre remetendo à Última Ceia. O vaso é o receptáculo feminino, numa religião que eleva a mulher que gerou o Salvador em meio ao mistério da Imaculada Conceição – o sexo é um problema para a Igreja e não é um problema para a Psicologia. Poucos destes meninos carregam pinceladas vermelhas, da cor do vaso, no interior de um ovo de Páscoa, no mistério da vida, da vida que se gera de modo intocado – somos todos frutos de uma Imaculada Conceição, só que a nível espiritual. Tanto o padre quanto os meninos estão com os pés descalços, mostrando simplicidade e humildade, características essenciais para quem quer ganhar respeito. As freiras educam as meninas e os padres educam os meninos, na eterna ritualização humana em torno de gênero, no ritual matrimonial unindo masculino e feminino, resultando, desta junção, Tao, o caminho uno. Entre todos os meninos, há um mais baixinho do que os demais, como no pequeno Davi, que vence um gigante aparentemente invencível, como a Invencível Armada Espanhola sendo vencida por uma então humilde Inglaterra. O vaso guarda o mistério da Vida, no interior uterino, como no interior lindo de um figo cortado ao meio. E, ao lado desta escolinha no quadro, uma cerca que representa o discernimento, dividindo duas forças opostas que não são inimigas – bem pelo contrário, são amigas; grandes amigas.


Acima, Dom Quixote e Sancho Pança saindo para as suas aventuras, 1956. O Sol protagoniza glorioso aqui, espalhando uma luz dourada pelo quadro, emoldurando a empreitada de Quixote e seu companheiro. A lança fálica de Quixote é tão extensa que escapa ao quadro, num cavaleiro protegido por uma armadura impenetrável, do modo como a Psicologia diz que saber dizer “não” é como vestir uma armadura. Esta armadura reluz lustrosa e altiva, e Quixote monta um inquieto e majestoso cavalo branco, enquanto Pança parece montar um jumento: seria o jumento a “burrice” em Quixote ser tão alucinado e louco? Enquanto o ossudo Quixote é magérrimo e delgado, Pança é bem obeso, como na comédia hollywoodiana de “O Gordo e o Magro”. Quixote é o líder protagonista, sendo seguido por Pança, que se mostra mais discreto, sempre à sombra de seu senhor. Os pés de Quixote são pontiagudos tais quais agulhas, numa passada agressiva, de um homem louco que vê gigantes ao invés de moinhos de vento. Por todo o fundo do quadro, linhas amarelas ondulantes, mostrando o movimento dos ares e da luz solar, dando mais movimento à cena, como num intenso dia de Sol de Verão, do modo como Quixote tem obstinado esclarecimento de que não é louco. A armadura de Quixote é um exoesqueleto de formiga, rechaçando as armas do inimigo. A cena tem movimento, quase como Cinema, e podemos ouvir os passos dos animais troteando, no barulho de ferraduras se impactando com o chão. Pança parece usar um chapéu, enquanto a cabeça deste Quixote é estranhíssima, e fica difícil ver ali um rosto humano. Quixote e a lança formam um ser só, e a arma é uma extensão do corpo do cavaleiro, do modo como o pincel e Portinari formaram um só ser; do modo como o piano se tornou parte de Tom Jobim. Abaixo no quadro, a bela assinatura do artista, tranquilo. As patas dos animais são elegantes e nobres, num Portinari amante da Fauna e da Flora. E a dupla, como diz o título, sai para uma aventura, buscando propósito e motivação na Vida, do modo como Portinari encontrou-se na Arte.


Acima, Futebol, 1935. Portinari traz uma paixão nacional – o Futebol. Meninos pobres jogam em um rústico chão terroso, e não em um gramado apropriado, provavelmente com uma bola de pano. Vemos a mistura racial brasileira, pois há meninos brancos e negros. Uma cabra e um jegue dividem a cena, alheios ao jogo que ocorre. Seria esta uma doce lembrança de infância de Portinari? Um poste de luz tem claro formato de cruz, como se estivesse abençoando a diversão dos meninos, num Portinari religioso, apesar de nunca ter se tornado pintor de Arte Sacra. Os meninos pobres sequer têm dinheiro para jogar com chuteiras, e ralam os pés no chão duro, assim como é dura a vida nas camadas sociais miseráveis, numa denúncia social do pintor, denunciando a Pobreza do Brasil. Bem ao fundo, uma escolinha com a bandeira nacional hasteada, num Portinari patriota, confiante no fato de que o Brasil é o país do Futuro. A aula acabou (ou está em intervalo), e os meninos aproveitam o período de folga. Este chão é bem avermelhado, como se estivessem sangrando os pés descalços miseráveis dos meninos, como se estivesse escorrendo sangue da “cruz” ao fundo. Também ao fundo, um pequeno cemitério da vila, um receptáculo que espera por todos nós, no inevitável Desencarne. Mas este cemitério não é sombrio ou agourento, e integra-se normalmente na cena, na Morte sendo vista como algo natural e normal. Quase ao lado do cemitério vemos uma vaca, que é o princípio materno provedor de leite, ou seja, a Mãe desses meninos todos, provavelmente a mulher que teceu a bola de pano. Na cena, vemos três tocos de árvores cortadas, e isso é a Mortificação, na necessidade do espírito de se desapegar de ilusões e viver uma vida simples, sem vaidades faraônicas. As árvores ceifadas são a inevitabilidade do Progresso, tendo a Natureza que dar lugar à Civilização, num Portinari progressista, honrando os dizeres da Bandeira Nacional. Ao fundo da cena, vemos ainda árvores frondosas, e vemos também plantações de alguma cultura, na fecundidade da Terra Brasileira. Também ao fundo, vemos mais tocos cortados, servindo como delimitações, cercas, num Portinari se delimitando a retratar uma cena determinada. O céu da cena é claro e azul, belo, num dia de Sol sobre o território nacional, como no azul da Bandeira. É um retrato doce de um Brasil como uma nação prestes a ingressar na II Guerra Mundial, tirando a vida e a diversão destes inocentes meninos, transformando estes em soldados que vão ao encontro da Morte, pois, como eu já disse, lá está o cemitério.


Acima, Índia e Mulata, 1934. Mais uma vez, a peculiar Miscigenação Brasileira, diferente dos EUA, nos quais, em geral, negro casa com negro e branco casa com branco. Novamente vemos uma árvore ceifada, morta, sacrificada. A índia, de vestido rosa, repousa a mão sobre o ombro da mulata, como uma irmã consolando outra irmã, como comadres, na junção brasileira de sangue de raças e etnias diversas. Seriam elas quem cortou a árvore? Troncos cortados repousam ao chão, numa cor metálica, como algum produto industrial, em um Brasil tão vasto ecologicamente. Há um vínculo sanguíneo entre as mulheres aqui, e parece sangue escorrendo um fio vermelho ao fundo na colina, uma estradinha que “escorre” do topo e vai de encontro ao chão, como o princípio passivo sedutor de Tao, como na Lei da Gravidade, onde tudo se rende à força dos lugares mais inferiores. A colina ao fundo está completamente aproveitada em Agricultura, e o vale ao chão também é fértil e produtivo. Um caudaloso rio banha a cena, no curso natural da Vida. Uma pedra saliente revela-se sobre a água, num Portinari que se sobressai como mestre pintor. É como uma pontinha de iceberg, revelando, abaixo do nível d’água, toda uma base sedimentar, trazendo firmeza e certeza. O Céu ao fundo é majestoso, com nuvens pomposas, na promessa do Reino dos Céus feita por Jesus Cristo. As mulheres aqui estão cansadas e desanimadas, talvez depois de um dia de labor tão ardente. A mão da índia aprece estar calejada, marcada pelo labor ardido, suado e esforçado, num Portinari incansável e produtivo, concentrado. O chão aos pés das mulheres é bem escuro, imprevisível e misterioso, guardando segredos, no sentido de que a Divina Providência nunca revela algo que até o momento não pode ser revelado. A mulata tem pés grandes e descomunais, no termo “pés no chão”, ou seja, realista, forte, embasada, enraizada, ao contrário da árvore cortada, que foi assassinada. A pele das mulheres entra em harmonia cromática com o chão, num Portinari atento à magia das cores. A casinha ao topo da colina é o Lar, como numa favela, colocando os pobres em regiões do Rio de Janeiro, regiões estas desvalorizadas imobiliariamente. Vemos aqui o Brasil do Trabalho, da Produtividade, com terras cultivadas laboriosamente. E as nuvens ao fundo são os sonhos de um artista, sempre em busca da autoexpressão. O rio segue pacato em seu curso, e podemos ouvir o delicioso som das águas correndo, convidando-nos a relaxar depois de um dia tão duro.


Acima, Flautista, 1934. Numa metalinguagem – artista falando de artista, de modo como um artista não só faz Arte como também aprecia a Arte de outrem, numa simbiose, numa cadeia de artista inspirando artista, num furacão inspiracional. O músico aqui é negro, e toca despretensiosamente, sem se preocupar com a vida; sem pedir qualquer dinheiro por tocar o instrumento. A flauta sob a regência do negro é a riqueza da Música Popular Brasileira, da cultura popular do Brasil, nas raízes africanas do samba e de tantos outros gêneros cariocas, como o funk, que veio dos morros e estabeleceu-se. Esta vila é um lugar simples e acolhedor, sem luxos nem pretensões elitistas ou aristocráticas. É um lugar simples, um lar que acolhe, que reconforta com suas formas simples e limpas, elegantes, do modo como a vida simples é mais leve de se levar. Seus sapatos brancos são elegantes, limpos, galantes, e suas vestes são também simples, sem pretensões de brasões principescos. A pequena e singela flor é a vida, delicada, pequena, cercada por folhas que simbolizam toda a riqueza da Flora Brasileira. A flor faz metáfora com a mulher formosa ao fundo, na beleza da Mulher Brasileira. Esta mulher está com uma elegante saia, e o chão terroso do morro é a fertilidade da mente de Portinari, um apaixonado pelo Brasil, encontrando neste inspiração infindável, numa verdadeira declaração de amor ao Brasil, tornando-se um embaixador da nação. Os sapatos do homem estão impecavelmente limpos, sem parecer que caminham por um chão terroso, não pavimentado. As casas deste morro são toda similares, no charme das favelas cariocas, incrustadas nos morros, tendo uma vista incomparável à Natureza do Rio de Janeiro, no encanto do personagem Zé Carioca, de Disney, numa identidade brasileira, única. A mulher está encantada com o flautista, e sorri suavemente. O flautista a seduz, e o quadro todo é sedutor também. Ao fundo, o Céu, o Mar e os Morros do Rio, num lugar que, neste quadro, é tão desprovido de problemas como narcotráfico e violência urbana. Portinari, assim como Tom Jobim, acredita num Brasil melhor, mais nobre, mais elegante. O músico cruza elegantemente as pernas, demonstrando polidez e classe, como se fosse um autêntico herdeiro de príncipes africanos. Nesta vila, portas e janelas se abrem para o Mundo, dando respiro, ventilação, circulação de ideias e pensamentos, do modo como um artista tem que se sentir livre para criar. Então, podemos claramente ouvir a música, a melodia, na riqueza da MPB, num Brasil respeitado ao redor do Mundo. O flautista não usa meias, pois está no calor tropical carioca. A florzinha é uma nesga de esperança, sonhando com um Brasil menos pobre, e a flor é a promessa de que, um dia, todo aquele chão terroso estará coberto de flores, num Brasil rico e próspero, sem tanta miséria. Temos a simplicidade de um Portinari cansado dos excessos da Elite Brasileira. Portinari mergulha em uma nova Arte, inovadora, implacável, inevitável. São os ventos de novos tempos. O flautista é o próprio Portinari, fazendo Arte despreocupadamente, nunca almejando glórias nababescas e, por isso mesmo, tornando-se grande. A Vida é de quem não tem expectativas. Enquanto redijo este texto, eu como castanhas de caju, que simbolizam a riqueza gastronômica brasileira e, assim, simbolizam o Brasil em si, promissor. O flautista é Jobim encantado com a Garota de Ipanema.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Cândido, um Brasileiro


O brasileiro Cândido Portinari nasceu e cresceu em um ambiente rural, algo que influenciou decididamente em sua obra. Foi absolutamente produtivo em sua vida artística, tornando-se sinônimo de Arte e talento. Há na ONU, em Nova York, o gigantesco painel “Guerra e Paz” de Portinari, um trabalho que passou por recente restauração, pois as décadas e décadas de Sol cobraram seu preço, e hoje, depois do restauro, os vidros ao lado do painel foram substituídos por vidros que filtram a luz solar, preservando a célebre peça. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Descoberta da Terra, 1941. Ao fundo, vistosas caravelas, ao lado de um morro que parece ser o Pão de Açúcar, no Rio. As águas aqui são inconstantes, impiedosas, revoltosas, longe de ser um paraíso, e os homens lutam para dar estabilidade à embarcação. Eles se dependuram por cordas e fazem força para guiar o veículo, remontando a uma época em que as tecnologias eram precárias, possuindo poucos guias, como a Bússola e as Estrelas. O título deste quadro faz então menção à descoberta das Américas e, consequentemente, do Brasil. As naus portuguesas dão um recado a possíveis rivais nos Mares, numa Portugal que, na época, era temida e poderosa na Europa. Há um choque entre europeus e índios, sendo estes últimos dizimados e destituídos da própria terra. A nau está inquieta e instável, e os homens corpulentos tentam domar como um toureiro doma o touro – são as forças da Natureza, da Dimensão Material, diferente da placidez da Dimensão Metafísica, onde reina a Paz. A vicissitude faz com que o ser humano cresça, e uma vida sem dificuldades não tem sentido, pois, sem obstáculos, não há crescimento – só estagnação, como disse-me uma amiga psicóloga: “As crises são positivas”. Neste quadro, há um retrato de crise, e as dificuldades são gritantes, no ardor do trabalho esforçado. Dentro desta nau, vemos uma imagem que parece se homens trabalhando em uma lavoura, curvados, suando, trabalhando, arando o solo e colhendo, como recompensa, o fruto da terra, obtido de forma tão esforçada. Os homens dependurados estão em contraste quase barroco, entre claro e escuro, no contraste entre Yin e Yang, nas forças opostas que regem o Universo, na dança eterna da Criação – o artista quer ser como Tao; quer criar e se expressar, pois, já ouvi, Arte é um ser humano querendo se expressar. Há formas assemelhadas a ovos vermelhos, que são a fertilidade da mente artística, na magia do ovo de Páscoa, sendo aberto e revelando o tesouro da vida dentro, no mistério da Criação. Arte é um ovo sendo aberto e visto, no fetiche do voyeur, de olhar o que há dentro, o que há escondido, no prazer da violação, das desvirginação. Há também formas que parecem ser vasos de barro, no barro indistinto da mão do artista, e este cria do nada, fazendo de algo, de algum material, algo novo, do modo como Deus fez Adão do pó – é o mistério criacional. As cordas aqui têm forma de serpentes revoltosas e sensuais, hipnotizando os homens e seduzindo-os aos encantos da feminilidade, do princípio belo e gracioso da Vida – é um jogo de sedução. Ao fundo da nau, figuras de homens rabiscados, parecendo abanar para as naus ao fundo, no processo de comunicação entre seres humanos, do modo como o artista “conversa” com o espectador – gente falando com gente; mente atingindo mente. Nada mais humano do que a Arte. Os homens tentam domar essas “cobras”, na empreitada viril de desvirginar terras selvagens e virgens, cheias de “selvagens incivilizados”, exercendo fascínio na Europa, com muitos europeus narrando os hábitos de canibalismo dos indígenas. As naus são o “Clube do Bolinha”, e mulheres não têm vez no ato agressivo civilizatório, no mergulho da Europa nas Américas, na agressividade (e até na violência) do europeu civilizador. Este quadro balança, num ritmo que só uma grande mente artística pode prover, como na Dança, na Música ou no Cinema, pois, já me disse uma artista, as Artes estão uma dentro da outra, na universalidade da Mente Humana.


Acima, Meio Ambiente, 1934. Todo o amor de Portinari pelo Brasil, principalmente pelo Rio de Janeiro. Amor pela diversidade, pela riqueza natural brasileira. Um rico cacho de bananas está maduro e delicioso, pronto para ser devorado, como numa Carmen Miranda que, em Hollywood, é apresentada ao público como a diva de um país selvagem e belo chamado Brasil, cheio de bananais. Um símio insinua-se para comer uma banana, na riqueza da gastronomia brasileira, uma gastronomia que é fruto da Cultura Popular. Exuberantes folhagens tomam papel na cena, num Darwin fascinado pela Fauna e Flora dos Trópicos. Flores estranhas e exóticas também surgem, hipnotizando o ser humano que não vive nos Trópicos – o Brasil é sedutor, num Portinari que queria ser uma espécie de embaixador do Brasil, divulgando imagem, como dizia o diretor Fábio Barreto: “O Brasil tem que exportar mais imagem, e não apenas importar imagem”. Uma arara colorida repousa em um tronco forte de árvore, do modo como a Arte se tornou o baluarte da vida de Portinari, num tronco duro pelo qual a preciosa seiva artística transita, na vida pulsante por veias de pensamento – Portinari mistura-se com o seu próprio Brasil. Ao fundo, uma doce praia de areias brancas, plácidas, limpas e puras, muito longe da realidade da falta de modos do brasileiro na beira da praia, numa atriz Patrícia Pillar que foi fotografada na praia do Rio catando do chão o lixo que os praianos pouco educados jogam na areia. Pillar e Portinari acreditam num Brasil melhor, muito melhor. E o tronco da árvore é o pilar da Natureza, da riqueza biológica. Mais ao fundo, deliciosas ondas, como nas gravuras em pedra portuguesa no calçadão carioca, no doce balanço das ondas do Mar de Tom Jobim: como o Brasil é rico em artistas! Bem ao fundo, os exuberantes morros cariocas, nas pernas torneadas de Maria do Socorro, caminhando pelas ladeiras do Morro. Os morros erguem-se imponentes, e já ouvi uma portuguesa dizer: “Tudo no Brasil é grande!”. E, finalmente, céus ensolarados, banhando de luz a Cidade Maravilhosa, tendo um amigo já me dito que, quem é muito branco e vai morar no Rio, a pele dessas pessoas fica “curtida” pelo Sol, nos corpos bronzeados dos cariocas. E como há flores nesta cena! De vários aspectos, cores e formas. E na bananeira surge o coração da bananeira, no coração amoroso de um Portinari, um artista que pulsou junto com o Brasil, na fartura da Culinária Brasileira. Este sagui é furtivo, esperto, sendo “primo” dos furtivos esquilos do Central Park. Estas flores são o florescimento de uma nova era na Arte, num Portinari vanguardista, abraçando os novos tempos de então. Portinari consagrou-se, sendo tido como sinônimo de status, como na novela O Dono do Mundo, da Globo, na qual o personagem cínico de Antônio Fagundes adquiria obras de Portinari não pela Arte em si, mas pelo elevado preço das pinturas. Aqui, vemos uma cena rica em camadas, e podemos observar o que está perto e o que está longe. E a areia parece ser de puro açúcar, num Portinari doce e poético. Esta areia é repleta de flores e plantas, no milagre da Vida. Na cena, vemos também alguns cactos, com seus espinhos agressivos, num Portinari que sabia que o Mundo da Arte é concorrido e que, todos os dias, inúmeros artistas querem se destacar e se tornar célebres. E este céu azulado é um tanto renascentista, como dizem que é extremamente límpido o céu das colônias espirituais. Portinari é um sonhador, e sonhou com um Brasil melhor, sem tanta corrupção, sem tanta sujeira, como no manifesto do último carnaval do Rio: a Arte não pode se alienar, sendo a Censura um golpe muito forte na cara de qualquer artista. Arte é expressão. E Portinari foi um agente da Identidade Brasileira.


Acima, Namorados, 1940. Dois vultos negros se abraçam à luz da Lua e de estrelas – o romântico Portinari acredita no Amor. Não há alguém além do casal, com duas pessoas completamente a sós, como num aviso em uma porta de quarto de hotel: “Não perturbe”. O céu atrás é transitório, combinando dia com noite, e não sabemos se está anoitecendo ou amanhecendo, em como o tempo voa quando se está amando. Mais acima, o céu tem um elegante tom de azul marinho profundo, e nuvens ondulantes são a sensualidade dos enamorados, que se abraçam e se beijam até formar um só ser. Love is beautiful. É um casal heterossexual: a mulher usa na cabeça um laço avermelhado, como em Chapeuzinho Vermelho, na cor da feminilidade; o homem usa um chapéu de tom claro. O casal são as partes do artistas se unificando, sendo uno, sem vida dupla. O Amor aqui une opostos e resolve conflitos, trazendo Paz e unificação. Do lado direito, vemos uma caixa que parece ser de correio, do modo como os namorados trocam cartas de Amor. Parece também uma caixa de pão, do modo como um relacionamento feliz alimenta a alma e o corpo. É uma caixa misteriosa, e não sabemos o que há dentro – é o mistério do Amor, força que rege o Universo. Acima da caixa, vemos arbustos enfilerados, como vinhedos, na sensualidade do vinho e de Baco, na sedução entre amantes. O terreno atrás é de um amarelo arenoso, desértico, e os dois amantes estão absolutamente a sós, desligados do mundo ao redor, concentrados no puro e simples namoro. É como se os amantes estivessem fugindo do Mundo lá fora, do modo como um artista se refugia em seu próprio trabalho, produzindo a sós, concentrado, desligando-se temporariamente da “loucura” do mundo lá fora. Vemos rochedos sólidos, na solidez do talento de um artista tão reconhecido como Portinari. É a firmeza da afirmação, num artista provando ter talento. Aos pés dos namorados, uma poça negra, imprevisível. O que acontecerá com o casal? Será que a chama desta paixão durará para sempre? Mas os namorados não se importam com essas dúvidas, pois sabem que o relacionamento será eterno, mesmo que não dure para sempre: o que importa é a qualidade do tempo compartilhado, e não a quantidade. O deserto tem um apelo sensual, no vazio, como numa orla vazia, esperando para ser preenchida pela Vida.


Acima, O Lavrador de Café, 1939. Toda a paixão de Portinari pela terra e pelas fazendas; pela cena rural. Vemos um toco de árvore cortada, tolhida, ceifada, no inevitável fato de que um dia o artista morrerá, com a Morte esperando pelo inevitável momento do desencarne – cada um tem que decidir o que fazer com o tempo que lhe é dado. O trabalhador é um Portinari laborioso, focado, concentrado, sempre produzindo, trabalhando. Cândido mostra a miscigenação brasileira, única no Mundo, com um rapaz que tem sangue misturado de negro, com mãos e pés fortes e descomunais, fortes para dar conta do trabalho pesado na lavoura. A cena é um cafezal, na riqueza brasileira, num artista rico em talento produtivo. A enxada é o instrumento essencial, como o pincel o foi para Portinari. O rapaz veste roupas simples e confortáveis, própria para o labor rural. Ele está de perfil, olhando para tudo o que fez e para tudo o que tem ainda por fazer, num trabalho incessante, incansável, apaixonado, apesar de desgastante, como se formou o culto ao trabalho na região gaúcha de Imigração Italiana. O cabo fálico da enxada é a agressividade do senhor das terras, senhor dos cafezais, em um Brasil que ainda vive ecos da Escravatura, num contexto social em que ser preto é sinônimo de ser pobre, de ser socialmente desavantajado. Aos pés do rapaz, um monte de terra, talvez um monte feito pelo próprio trabalhador, ou pode ser um formigueiro, silencioso em seu interior de formigas em constante labor, dia e noite. A calça branca é a paz de um atelier produtivo, no silêncio do dia a dia de labor, numa rotina deliciosa, sempre construtiva, dinâmica. A cor rósea da terra combina com a camiseta, na cor sensual da carne, do terreno fértil, reprodutor, da Mãe Terra provedora. Os céus têm “nuvens de algodão”, plácidas, convidando para uma plácida soneca bem no meio da tarde de trabalho, num canto sedutor de descanso, de um doce Pecado Capital da Preguiça. E o toco de árvore cortado segue mostrando o seu interior róseo, outrora repleto de seiva e vida. O rapaz corpulento tem a força necessária para trabalhar a terra. Seus pés descalços revelam simplicidade; revelam falta de vaidades fúteis ou auspiciosas. O rapaz e sua enxada são o centro deste quadro, na paixão de Portinari pela força e beleza do trabalhador brasileiro. E os cafezais revelam-se muito vastos, até onde a vista alcançar, no poder de um Brasil rico por causa do Café. O Universo é vasto, muito vasto, ao ponto do Ser Humano não ter como o apreender: há mais estrelas no Universo do que grãos de areia de todas as praias da Terra juntas. Oh, My God. Tao é o infinito.


Acima, Os Retirantes, 1944. Aqui, temos um Portinari crítico social, numa face política do artista, como no último desfile da Beija-Flor no Carnaval do Rio, numa crítica ao Governo Brasileiro. Aqui, temos representada toda a miséria do Mundo (e do Brasil). Esta família paupérrima tem feições distorcidas, fantasmagóricas, infelizes, miseráveis. São magérrimos, ossudos, esfomeados, tristes. O terreno na cena é árido, desolado, sem vegetação, sem água, sem cor, só deserto e pedras áridas atiradas ao chão. Esta família sequer tem sapatos. Uma das crianças demonstra ter verminose, tal o inchaço da barriga. Temos um Portinari indignado com os abismos sociais brasileiros. No céu, agourentos urubus negros, pessimistas, sombrios, fantasmagóricos, amaldiçoando quem passar por terras tão infelizes como esta. As cores neste quadro puxam pelo cinzento, na cor das cinzas, simbolizando a finitude, a Morte, a condenação a uma encarnação dolorida, ardida, desprivilegiada, pobre. Portinari não é alienado – bem pelo contrário. Como brasileiro, Cândido conhece de perto o próprio país, amando-o e criticando-o ao mesmo tempo. Neste céu sombrio e maldito, uma Lua Nova pálida, apagada, fraca, sem força para brilhar, abatida, doente. Ao fundo na paisagem, vemos montanhas desoladas e duras – é a dureza de uma vida tão miserável. Podemos ouvir o barulho de um vento castigante, gelado, açoitando quem estiver por perto. Esta família simplesmente não tem para onde ir. As numerosas aves negras voando condenam estes seres humanos, esperando para que essas pessoas morram e sirvam de carniça alimentar. Podemos ouvir os passos ofegantes destas pessoas, num Brasil sem planejamento familiar. Um velho patriarca segura uma longa vara, tentando guiar seu povo, batalhando para poder vislumbrar um amanhã melhor, menos sofrido. Portinari não tem medo da feiúra da realidade, e faz questão de mostrar os problemas do Mundo. Todos nesta cena estão calados, sem comentários sobre a própria situação de padecimento. Ao centro do quadro, a mãe carrega sobre a cabeça uma trouxa de roupas, os únicos bens de uma família que não tem casa. São semimendigos, tendo só praticamente a roupa do corpo. As pedras cortantes no chão castigam os pés cansados, e há várias crianças na cena, pessoas que nasceram sem saber o que é ser minimamente abastado financeiramente. A Sociedade de Consumo despreza esta família pobre, pois esta mesma sociedade só interpela o indivíduo que tem dinheiro. Esta família está bem em cima da margem, faltando pouco para que virem moradores de rua. Mais acima no quadro, o céu está completamente mergulhado nas sombras, sem beleza, sem céu azul, sem Sol. Seus estômagos estão vazios, carentes. E, no chão, só há ossos de animais, animais estes há muito vencidos pela dureza de uma vida assim tão rica em provação, em privação.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A Mensagem de um Anjo (Parte 2)




Volto a falar sobre Michelangelo. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Davi. Davi encara o gigante Golias. Quando meus pais viajaram à Europa em 1989, depois, de volta, fizeram slides, e uma foto foi exatamente do Davi de Michelangelo. A riqueza de detalhes de Michelangelo, onde podemos ver uma simples veia sobressalente na mão de Davi. Aqui, temos o total resgate dos padrões pagãos de beleza da Antiguidade, e esta peça poderia tranquilamente ter sido feita na Grécia Antiga. O cabelo é complexo, cheio de cachos, num artista meticuloso, que nunca perdeu um detalhe sequer. O olhar de Davi é um pouco tenso, como se algo chamou-lhe repentinamente a atenção. É um corpo perfeito, sem qualquer percentagem de gordura, num ideal de boa forma perseguido obsessivamente pelos “ratos” de academia de ginástica. Em uma das pernas há um suporte, como um tronco de árvore, num Michelangelo que aproveitou um bloco de mármore problemático. Este Davi faz-me lembrar do Kouros do Met de Nova York, de como o Renascimento levou a sério o resgate da Antiguidade Ocidental. Este Davi não sorri, e sua nudez não o envergonha, numa nudez sem tom sexual ou erótico, numa genitália pequena, algo que Michelangelo viu ser necessário frente ao puritanismo da poderosa Igreja Católica da época. O Renascimento mesclou Paganismo e Catolicismo, numa Europa que vivia tempos de avanços. Michelangelo, assim como da Vinci, era apaixonado por Anatomia. Podemos observar os ossos dos joelhos de Davi, sobressaindo-se sob a pele. Do mesmo modo, vemos os ossos dos pulsos. Aqui, o condicionamento físico do modelo é como o físico de Cristo na Cruz, num atleta no auge de sua forma. A musculatura deste Davi é tensa, como a de um cavalo, e o músculo, sob a pele, mostra sua forma extremamente saudável, em padrões de beleza imortais. É um boneco, e não um ser humano. Não podemos imaginar órgãos internos, como um intestino funcionando ou um coração batendo. Este Davi é “sintético”, por assim dizer. É uma máquina, um boneco de pura beleza e nada de orgânico, do modo como não podemos imaginar um deus grego fazendo cocô em uma patente. Temos aqui um Michelangelo que crê que, após o desencarne, a pessoa, livre das vicissitudes da carne, torna-se uma “máquina”, absolutamente livre de dores, doenças, tristezas ou depressões. Este Davi está desencarnado, e não podemos imaginá-lo urinando. Há um aspecto semelhante aos padrões de beleza de hoje: o corpo de Davi é desprovido de pelos, só tendo pelos pubianos e cabelos na cabeça, do mesmo modo como homens hoje em dia depilam-se. Este Davi é imberbe. Por quê? Seria ele jovem demais para ter Barbra? Ou teria ele cuidadosamente barbeado-se antes de posar para o escultor? O que significa a ausência de barba? Significa a civilidade, num cavalheiro que, ao acordar de manhã, barbeia-se para o Mundo. Os testículos deste Davi são a fertilidade da mente de Michelangelo, sempre pensando, sempre criando, num artista que não parava de imaginar, de sonhar, tornando-se um artista que foi uma megaestrela do Renascimento. O pênis infantil é a candura infantil de Michelangelo, o qual criava sem malícia, mas com uma pureza que se revelava em sua Arte, em seu talento que atravessa séculos e, provavelmente, jamais perecerá. Este Davi é simples, e nunca tenta seduzir o espectador. Ali está ele, no esplendor de sua firma, desinibido em sua nudez, sequer percebendo as multidões de espectadores que passam por ali todos os dias. Suas mãos são fortes e corpulentas, como as de um agricultor que trabalha de Sol a Sol. Sua estatura dá-lhe ar de colosso, como se fosse um guardião do museu, impondo respeito pelo seu tamanho e sua força. E por que um Davi tão grande? É a grandiosidade de um artista que de simplório nada tinha. Davi apóia-se em uma das pernas, e a outra relaxa. Ele parece mover-se suavemente, nunca parecendo que é apenas um pedaço de pedra esculpida. Este é o dever de qualquer artista: trazer vida ao inanimado, como Deus deu vida a Adão. O artista persegue Deus, e quer saber como Ele fez e faz tudo. Podemos ver Davi respirando suavemente, vendo seu tórax inflar e desinflar, respirando com calma e serenidade. Seu umbigo é o centro do Universo, numa barriga impecavelmente atlética. Seus músculos do pescoço são fortes, sustentando uma cabeça que pensa sem parar, sempre produzindo concepção, criação. É um gladiador pronto para entrar na arena e vencer um gigante. É paladino, corajoso, sem um pingo de mediocridade ou medo. É alguém certo de que obterá vitória, uma vitória natural e certa. Podemos ouvir o burburinho dos visitantes do museu, comentando sobre como é formidável esta obra que é um dos ícones renascentistas.


Acima, Detalhe do Juízo Final. Jesus reina absoluto no Juízo Final, assim como no Juízo Final de Aldo Locatelli na Igreja de São Pelegrino. Nossa Senhora está passiva e submissa, num papel meramente coadjuvante. Maria está alheia a tudo, mal prestando atenção na cena toda, com a cabeça envolta num sutil véu. Ao contrário de Jesus, que está quase nu, Maria está completamente vestida, e podemos ver apenas seu rosto, mãos e pés nus – o resto está decentemente coberto, pois é absolutamente impossível vermos Nossa Senhora nua, com poucas roupas, e a Imaculada Conceição só pode ser apresentada em meio a muitas vestes, jamais nós podendo imaginar Maria quase nua, pois as fartas roupas são a decência de uma mulher pura e casta, mesmo em momentos mais libertários como o Renascimento. Aqui, temos um Jesus imberbe, ao contrário das imagens de Jesus com as quais estamos acostumados, pois quase sempre vemos um Jesus barbudo e com cabelos longos, num padrão de beleza milenar, num homem em cuja época não havia o corte de cabelos, nem um aparelho de barbear. Por que Michelangelo barbeou Jesus? Na cena, tudo gira em torno de Jesus, e há uma luminosidade emoldura a figura do Salvador, um espírito avançado que veio à Terra para dizer à Humanidade conceitos de apuro moral os quais os Homens de então não conheciam. A luz ao fundo de Jesus é uma nova alvorada, um novo tempo no qual o apuro moral era novidade, num tempo em que os conceitos de Amor e Perdão eram inéditos e desconhecidos. A luz ao redor do Cristo é a aurora de um novo tempo, como na luz do esclarecimento positivista, na qual o Ser Humano precisa se destacar no apuro moral, de decência. Este Jesus é extremamente corpulento, assim como as demais figuras masculinas à sua volta, no padrão renascentista de beleza nua. São corpos absolutamente atléticos, na nudez renascentista que remetia ao paganismo grecorromano. Maria está completamente vestida, e revelar nudez em Maria seria uma heresia inominável, uma ofensa, um assédio absolutamente repreensível. Aqui, o Homem está além da Mulher, sendo o guardião viril da feminilidade, do modo como jamais uma mulher poderá ser Papa. O gesto de Jesus, com uma das mãos elevadas, assemelha-se muito ao Juízo de Locatelli, e Jesus reina absoluto no julgamento do caráter moral dos Homens, julgando quem tem ou não tem apuro moral. O Juízo Final é o fim dos tempos, num momento decisivo em que as ações são reveladas sob a luz de um microscópio, revelando quem merece ou não merece o Céu. O Juízo é o desencarne, um momento no qual o indivíduo é confrontado, sendo condenado ao prazer ou à dor, no momento em que o indivíduo é confrontado com o modo com o qual viveu. É claro que o Juízo Final não faz sentido, pois tudo é processo, e tudo o que acontece é o julgamento do indivíduo após o desencarne. Não haveria sentido em um ponto final, no qual tudo permaneceria constante e imutável. Na verdade, cada indivíduo tem a chance de evoluir moralmente e de voltar a encarnar, para que, assim, possa evoluir e ter novas chances. Neste detalhe de Michelangelo, temos muita presença do azul anil, na cor do céu que reina nas colônias espirituais, na cor da serenidade, em um azul muito plácido e límpido. Tudo gira em torno do Salvador, aquele homem que trouxe os parâmetros de moralidade, consolidando as leis dos Dez Mandamentos de Moisés. O objetivo da Humanidade é o apuro moral, e, nas colônias espirituais, só entra quem tiver este apuro. Anjos e homens giram em torno de Jesus, e a masculinidade de Adão sobressai-se sobre a feminilidade de Maria: por que o Salvador tinha que ser do sexo masculino? Por que Maria tem um papel tão passivo e submisso? Por que houve a Imaculada Conceição? Qual é o problema com o sexo? Maria está resguardada pelo filho, e ela nunca tem um papel decisivo na história. É um mundo de homens, e quanto mais passiva for a mulher, melhor. Podemos ver nos pés de Jesus os furos dos pregos da crucificação, na cicatrizes de um trauma indelével. Confortáveis nuvens abrigam seus pés descalços, numa promessa de reconforto a pés cansados de uma caminhada tão exaustiva e dolorida – é a promessa de um amanhã melhor, no qual as dores são reconfortadas e curadas. É a volta ao Lar.


Acima, Moisés. Moisés desce do Monte Sinai com os Dez Mandamentos e vê seu próprio povo idolatrando uma figura. Sentado como um rei em seu trono. Sua barba é extremamente extensa, revelando a sabedoria de muitas décadas de vida. É uma barba majestosa e fluidia, como ondas no Mar, em um efeito de movimento no qual Michelangelo era mestre. Ao redor deste grande trabalho em Escultura, o entorno traz decoração neoclássica, no paradigma ocidental de beleza, elegância e fineza, um paradigma que segue indestrutível até hoje. Aqui, Moisés tem um bíceps colossal, numa forma atlética de um homem no auge de seu vigor, no vigor da sociedade patriarcal, na forma fálica e agressiva do cajado de Moisés, com cujo instrumento abriu-se um vão milagroso no Mar Vermelho e libertou os Hebreus. Moisés é um libertador, um grande líder, um paladino com coragem o suficiente para desafiar um império tão poderoso, escravocrata, brutal, cruel e belo como foi o Antigo Egito. É como Davi derrotando o gigante, como a Inglaterra de Elizabeth I derrotando a então toda poderosa Espanha. Moisés tem a coragem de um libertador, do modo como Cristo, de certa forma, libertou a Humanidade, trazendo os parâmetros morais da Era Cristã. Aqui, Moisés tem veste de rei, majestosa, luxuosa. Debaixo do braço tem a tábua dos Dez Mandamentos, os quais foram um marco civilizatório, pois traziam regras comportamentais de moralidade, pois, como diz o Espiritismo, o objetivo da existência de um ser humano é o apuro moral – os que não desenvolvem moral, sofrem no Umbral, que é uma dimensão de sofrimento, chamada de “Inferno” pelos católicos... As religiões não são bobagens – o Marxismo que me perdoe. É claro que este Moisés não é um gurizote, mas um homem absolutamente maduro, racional, responsável, guiando um povo que não parou de sofrer, vide o Holocausto. A Estrela de Davi faz parte do design da Colônia Nosso Lar, no filme espírita homônimo. O Judaísmo sobrevive como o primeiro foco monoteísta da Humanidade, quase no mesmo momento do herege reinado do faraó Aquenáton, um rei que desprezou o paganismo egípcio da época. Moisés condenou a Idolatria, ficando furioso quando seu próprio povo confeccionou um ídolo, uma imagem, uma estátua, do modo como o Islamismo despreza e condena quaisquer tentativas de se dar forma a Deus, ou então a Alá. O Renascimento traz o culto às imagens mas, ao mesmo tempo, respeita a antidolatria judaica, porém rendendo-se ao delicioso apelo visual renascentista. Goste ou não, aqui temos uma imagem de Moisés, uma Idolatria, só que “filtrada” pela moralidade do Vaticano – o Renascimento foi uma onda poderosa. Este Moisés olha para o lado, como se algo tivesse lhe chamado a atenção. Está tenso, talvez preocupado com o atraso moral do Ser Humano, sendo este um ser que está constantemente seduzido por Imoralidade – Moisés fica furioso com a Idolatria. Mas a Idolatria é inevitável, seja na Política, seja na Arte. Este Moisés não está completamente parado, e parece se mover em seu lindo trono, inquieto, sempre observando a tendência antimoral do Povo. Temos um Moisés desconfiado, sem muitas ilusões em relação à Humanidade. A iconografia de Michelangelo segue imbatível em plena Era Digital, numa mente de inacreditável destreza. Apesar de maduro, este Moisés está no auge da juventude. Este Moisés, na tendência pagã renascentista, está como um Poseidon, o deus dos Mares, com artistas buscando no Olimpo a inspiração para criar com liberdade, num Vaticano rendendo-se a este onda pagã que varreu o Ocidente após a Idade Média. Foi uma releitura, uma reedição, como nunca antes na trajetória da Humanidade – era considerado moderno, afiado, atual. E este Moisés é um guardião, um zelador de algo marcante e importante – os santos viram deuses e viceversa.