quarta-feira, 28 de março de 2018

Vitória de Vincent



É com muito orgulho que informo que esta é a centésima postagem semanal no meu blog – o tempo passa, e rápido. Dono de uma história de vida trágica, Vincent van Gogh só foi reconhecido postumamente, tornado-se um nome altamente célebre no Mundo da Arte, marcando o fim do Século XIX na Europa. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Casa Amarela, 1888. Os traços incertos de van Gogh, nas naturais incertezas espirituais do Ser Humano. Temos uma rua plácida, com construções acolhedoras. É o desejo de estar em casa, acolhido, confortável. As pinceladas entram em profundo contraste com os velhos moldes acadêmicos, assinalando uma revolução estética, precedendo um século de mudanças que foi o XX. As árvores são frondosas, com cada folha pincelada, na exuberância da Natureza. As árvores farfalham ao vento, e temos aqui uma rua plácida, silenciosa, com pessoas passeando com tranquilidade. Os prédios têm traços simples, sem pretensões aristocráticas, sem arrogâncias. Um delicado toldo em rosa pastel é a proteção, o alento, a cura para a sensação de vulnerabilidade, em um lugar onde se sente extremamente seguro e especial. Não sabemos se a rua é pavimentada, e não sabemos se são paralelepípedos ou terra mesmo, trazendo dúvida intrigante, mistério: o que é a Vida? Na extrema esquerda vemos um poste de luz, que é o esclarecimento, a falta de dúvidas, na busca de um artista por seu espaço no Mundo. O poste é rijo e inflexível, difícil, na dureza do dia a dia da Vida, num atelier produtivo, mas que, infelizmente, traz um artista só reconhecido depois da morte, do mesmo modo como a Era Cristã só começou, na prática, tempos depois da morte de Cristo, numa espécie de “vingança”: finalmente a vitória, o devido reconhecimento, num van Gogh muito subestimado em vida, muito menosprezado, e, como diz Tao, aquele que é subestimando, vence. O azul do céu é majestoso, plácido, colorido, num dia glorioso de Sol, abraçando tudo e todos com sua generosidade e energia. É um tom de azul nobre, belo, num artista procurando buscar ver beleza na Vida, propósito. Abaixo de outro toldo, vemos um café com algumas pessoas sentadas, no encanto das cafeterias de Porto Alegre, no hábito cosmopolita francês de se sentar, tomar algo e apreciar o Mundo passando, no modo como o Brasil emerge no Cenário Mundial como grande produtor de Café. Vemos dois adultos e duas crianças atravessando a rua, na travessia existencial do Nascimento à Morte. Na extrema direita, vemos uma ponte em arco, ligando dois extremos, num artista querendo conciliar-se dentro de si mesmo, construindo pontes de acesso entre meta e sucesso. Na ponte, uma forma enegrecida que parece ser um trem passando, e podemos ouvir o barulho dos trilhos e o apito do trem, trazendo movimentação a um quadro tão silencioso e estável. O trem é o galgar da Vida, ligando pontos extremos, sendo que Norte e Sul se complementam, apesar de serem diferentes como preto e branco. É uma cidade pacata, num artista pacato, atordoado por um distúrbio mental que, na época, não obtinha diagnóstico nem medicamento apropriado. Esta urbe despretensiosa não é a vibrante Paris, o lugar onde o Mundo Ocidental se encontra, como nos inimagináveis tesouros do Louvre. E van Gogh traz o simples à tela, encontrando contentamento em não ser reconhecido ainda, ou, pelo menos, buscando encontrar. O artista aqui nos traz um desenho em perspectiva, como na Renascença. Do que será que van Gogh gostava em termos de Arte? De quais movimentos? De quais nomes? Porque ao artista é muito importante a busca por referências. E o trem ao fundo corta esta cena plácida, trazendo barulho e movimento, jorrando sua fumaça a este Céu de Brigadeiro, na sujeira inevitável do progresso. O trem traz as novidades, passageiros de outras bandas, interligando o Mundo, na busca pela integração da Humanidade, num artista tão ávido por se juntar ao Mundo.


Acima, Campo de Trigo com Corvos, 1890. Os corvos negros trazem um certo agouro, numa doença que avança irrefreavelmente. Os pássaros são a Morte, rondando a plantação, querendo comer o trigo, entrando em cena um espantalho, tentando inibir a fome negra do Destino. Ao mesmo tempo, os corvos esfomeados são a liberdade, num artista tão ávido por produzir, com tanta fome de sucesso, numa ambição existencial em se tornar uma superestrela. O quadro todo sem uma sensualidade de movimento, e a estrada que corta o campo agita-se como uma cobra, como um córrego de água, nutrindo a Vida. O amarelo do trigal é majestoso, dourado, brilhando à luz do dia. O trigal é a criatividade, a fertilidade da mente artística, sempre imaginando, sempre concebendo algo, na necessidade de “desova” do artista, imitando Tao, aquele que está sempre criando, na cornucópia da Vida, numa chuva fertilizante que nutre o trigal artístico. A estrada verde e marrom corta o quadro, e é o caminho da Vida, o rumo da existência, o itinerário da Encarnação. Não vemos qualquer figura humana aqui, e o trigal está jogado à própria sorte, vulnerável aos corvos, na vulnerabilidade catártica, do artista que “põe a cara a tapa”, pois, como me disse um artista certa vez, “nunca use a obra contra o artista desta”. O céu aqui não é muito ensolarado, e vemos pontos azulados em meio a pontos mais enegrecidos, juntando-se ao agouro dos corvos, que significam a Morte para todo o esforço do agricultor, como nas pragas que dizimam vinhedos – é a vicissitude material, encarnatória. Neste céu, duas formas redondas de nuvens mais claras, como dois olhos que observam a Criação, zelando pelo Mundo, como os olhos do Criador, sempre atento, sempre tudo vendo, mas nunca se descuidando nem do menor ser. São os olhos do artista sobre a própria obra, com amor de mãe. Trata-se de um quadro muito colorido, e traz alegria em meio a pontos depressivos, como os já mencionados corvos. Os corvos são a fome de sucesso, na busca ávida por reconhecimento, por consagração, no sonho de qualquer artista em vencer na Vida. O trigal dourado é sedutor, na riqueza das grandes obras de Arte, como um blockbuster hollywoodiano que estoura ao redor do Mundo, engordando bilheterias, numa Hollywood que nem sempre acerta: o insucesso acompanha o sucesso, e ambos são difíceis de se lidar. Aqui, vemos a Escuridão tentando se apoderar da Luz, numa batalha entre Bem e Mal, entre ambição e humildade. A estrada que corta o trigal é o Caminho da Vida, o único caminho, o caminho assinalado por Jesus, pois o Universo é um só, apesar do Ser Humano ser sempre seduzido por rotas secundárias. Neste quadro, a vida brota fortemente, e tudo pulsa em busca da Vida, seja na vegetação exuberante, seja na fome dos pássaros, seja na dança mesclada das nuvens. Ao fundo neste horizonte, o trigal se perde de vista, numa riqueza vasta demais para o Ser Humano entender, pois, como diz o Espiritismo, “Deus é o infinito”. O azul e o amarelo contrastam como frio e calor, e podemos ouvir o trigal dançando e farfalhando nesses ventos de mudança, de processo eterno, com tudo dançando integradamente, e é esta a sensualidade do Universo: estamos todos conectados, num van Gogh que existiu muito, muito antes do surgimento da Internet. E é aí que reside o “tesão” da Internet: Integração. Este quadro respira, vive, movimenta-se, num artista buscando na própria respiração a inspiração, de modo inconsciente, instintivo.


Acima, Lírios, 1889. Podemos sentir um suave perfume neste quadro, num van Gogh delicado, poético, cavalheiresco, dando flores galanteadoras a alguma mulher. Genitais da planta, as flores são o meio de reprodução, como tudo na Natureza visa o sexo para a perpetuação das espécies. É um quadro de cores agradáveis, combinando belos tons de azul com verde, e pitadas de amarelo, num quadro no qual o depressivo van Gogh encontra um pouco de alento e paz, num jardim de Paz e Harmonia. As folhas parecem dançar uma coreografia sensual ao brando vento, e tudo aqui entra em concordância e concórdia, numa figura da Paz, da harmonia entre os povos, numa promessa da Dimensão Metafísica, onde a Paz reina inabalavelmente, na simplicidade matemática do pensamento racional, limpo, lógico, alheio às adversidades da Dimensão Física. As flores deste rico jardim dançam uma só música, como numa pista de dança, num momento de interação social, como nos eventos religiosos, onde o coletivo toma força e acaba por unir as pessoas, mesmo que momentaneamente. O chão de terra aqui é róseo, cândido, como um delicioso presunto, e a terra é a base, a referência, onde raízes profundas se estabelecem e trazem segurança às flores, que estão acima do nível da terra, respirando. A terra é a âncora, a segurança, o sentimento de firmeza e pertencimento, na segurança do Lar, onde o indivíduo se sente à vontade, relaxando, tirando os sapatos e vivendo com simplicidade. Temos um van Gogh mestre em cores, um verdadeiro mago, como o célebre MC Escher, por sua vez já resenhado neste blog. São as grandes mentes que encarnam na Terra e marcam época, nos espíritos depurados, que já passaram por várias encarnações até atingir um considerável nível de aprimoramento moral. E van Gogh obteve uma “vingança”, sendo só valorizado depois de morrer, rindo lá do Céu de como o Mundo reconhece o erro em não o ter valorizado em vida. Este jardim convida-nos a deitar e dormir ao doce som do farfalhar das flores, e aqui temos uma ode à Beleza, ao bom gosto artístico. É como uma grande família, e cada membro carrega um pouco da beleza do quadro geral. Podemos ouvir o zunido de abelhas fertilizando o jardim, dando continuidade à marcha reprodutiva, ao desenvolvimento de um bioma, em uma época em que os ecologistas ainda não tinham aparecido. As flores se abrem ao Mundo, como se fossem um coral cantando, e o Sol as beija generosamente, numa cena tão reconfortante.


Acima, Noite Estrelada, 1889. Os céus deste quadro dançam em conjunto, numa dança tortuosa e sedutora, na beleza de uma noite. A Lua e as estrelas iluminam este céu, e os ventos varrem tortuosamente, como água em um rio ou lago. O tom dominante no quadro é o azul, tanto no céu quanto na terra. No solo, um pitoresco vilarejo onde reina a Paz, com as luzes das casas saindo de suas janelinhas, como aconchegantes lareiras em uma noite fria, junto ao fino e frio brilho das estrelas, como cristais preciosos, como relíquias cristalinas. A Lua rege esse céu, espalhando um brilho amarelado, como uma fatia de queijo, e um cipreste elegante vibra sua vegetação ao sabor desse vento noturno. O cipreste é escuro e misterioso, contrastando com este céu tão iluminado pelos corpos celestes. No vilarejo, uma torre pontiaguda parece ser uma igrejinha, um espinho fálico desfiando os céus, espetando e causando dor, como a coroa de espinhos do Salvador. O vilarejo fica num vale, e ao fundo vemos colinas voluptuosas, banhadas pela luz azulada desta noite enluarada. Este vilarejo tem muita Paz, e é a paz com a qual um artista produz em seu atelier, com a paciência para cada pincelada, e a cena é predominantemente colorida, mesmo que discreta. As próprias colinas parecem dançar, como numa Dança do Ventre, nas formas da Mãe Terra, desafiando desbravadores, do modo como temos em van Gogh um desbravador, adiantado o suficiente para não ser reconhecido em vida, do modo como um Elvis Presley foi avançado demais para o Século XX. Tanto a Lua quanto as estrelas têm uma aura, cercando tido, num céu que parece ser um Sol da Meia-Noite, num sexy limiar entre claro e escuro, entre noite e dia, num momento dúbio, onde os opostos encontram um pouco de concordância. É um limiar entre feio e belo, numa desafiadora linha tênue, enigmática. Por entre o vilarejo vemos arvoredos, na fertilidade criativa de van Gogh, as árvores farfalham ao vento noturno e a Noite beija este vale, abençoando-o. As formas voluptuosas do cipreste se rendem a este ritmo, a esta música, num quadro onde tudo dança a mesma valsa. A Lua e o cipreste formam opostos, dialogando nas duas extremidades do quadro. As estrelas fluem como em uma sopa, como conchinhas à beiramar, como inúmeras galáxias dispostas na vastidão do Universo. E van Gogh permanece um mistério, como todo grande artista.


Acima, Os Comedores de Batata, 1885. Trata-se de uma cena sombria, com uma fraca lamparina brilhando. A lamparina é a iluminação da inspiração, no momento em que uma ideia chega à mente do artista. O escuro é a imprevisibilidade da existência, nos meandros sombrios da Vida, onde pouco se sabe como, o quê e quando vai acontecer – as coisas nunca acontecem exatamente como imaginávamos que aconteceriam, e esse mistério é excitante. É a casa de uma família pobre, mas é aconchegante, e a travessa no meio da simples e tosca mesa tem muitas batatas, e ninguém passa fome aqui. Uma velha senhora serve em xícaras o que parece ser café. O líquido negro preenche as xícaras, e é negro como petróleo, e o ímpeto é a gasolina, o combustível de um artista. É uma cena de convívio familiar. Abaixo, na extrema direita, vemos uma chaleira envolta em sombras, discreta, em segundo plano, nunca se colocando no centro da cena, na questão de como a discrição é importante, pois aquele que é subestimado consegue surpreender. A chaleira é um van Gogh discretinho, sempre subestimado, e subestimado ele foi em vida, só sendo consagrado depois de bater as botas. Existe algo mais subestimado do que um artista que é reconhecido postumamente? O próprio Jesus Cristo só foi reconhecido postumamente, e se tornou o centro sobrenatural da História. Seria esta cena de van Gogh algo autobiográfico, que retrata a própria família do artista? Um senhor estende a xícara para ser servido pela senhora idosa. É a sede de se tornar célebre, sempre estendendo a xícara para ser preenchida. A xícara vazia é a sensualidade do vazio, do modo como as águas de rios correm para regiões mais baixas, regiões subestimadas, e poderosas como a Lei da Gravidade. Uma moça está de costas, nunca se revelando, sempre escondida e misteriosa, nos segredos da Feminilidade. Todos giram em torno da mesa, e o centro da mesa é Tao, o Uno, o Vazio, sempre acolhendo e atraindo, sempre provendo com batatas a família. Todos na cena vestem algo sobre a cabeça – é a proteção, o resguardo, a autoestima, algo relativo ao amor próprio. As pessoas giram em torno da mesa como mosquitos em torno da lamparina. A travessa com batatas é o nervo, o principal, o regente, sempre provendo, como uma mãe amamentando. E podemos ouvir uma conversa entre os atores da cena.


Acima, Terraço do Café na Praça Fórum, 1888. A majestosa cor dourada toma conta do café, brilhando como brilhou (e brilha) van Gogh. Estamos (querendo ou não) em Paris, no hábito cosmopolita de se sentar e tomar café. Várias pessoas são atendidas pelo garçom, que está de pé, vestindo um avental branco, neutro. O garçom é o instinto provedor, como o artista quer prover o Mundo com Arte, com ideias novas, com revoluções. Podemos ouvir o burburinho da clientela, conversando animadamente, emitindo opiniões intelectuais, produzindo Cultura. As mesas redondas são brancas, e trazem a paz de uma cena prazerosa. Mas o café não está todo lotado, e algumas mesas esperam por clientes, sempre atraindo, seduzindo, num lugar onde sempre cabe mais um, num lar generoso. Várias pessoas caminham pela rua de pavimentação colorida, alegre, na riqueza de uma cidade que tem vida cultural. Na extrema direita vemos uma vitrine multicolorida, como um mágico caleidoscópio, clamando por diversidade e respeito às diferenças. Mais acima, um pequeno galho de pinheiro, que protege contra a chuva, como um pinheiro de Natal sem enfeites, minimalista, leve. Ao fundo, uma parte mais sombria do quadro, com prédios enegrecidos, emitindo luz de dentro, na vida que pulsa na veia artística, como cidadãos felizes na proteção de seus respectivos lares. No céu noturno, vemos quatro majestosas estrelas brancas enfeitando o Céu, do modo como um céu estrelado é uma cornucópia de beleza, convidando o Ser Humano a sonhar com a beleza de um fino cristal, nobre – é a Dimensão Metafísica.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Amando Amaral



A intelectual Tarsila do Amaral foi uma das estrelas do Modernismo Brasileiro, movimento que revolucionou a Arte e rompeu com velhos moldes acadêmicos, trazendo frescor ao Século XX, numa onda revolucionária e impactante que desagradou os mais conservadores, pois, parafraseando Elis, “o novo sempre vem”. Obra de Tarsila já esteve no Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires, o MALBA, e, recentemente, Amaral ganhou mostra no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MOMA. Chic, não? Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Lua, 1928. Os mistérios dos ciclos lunares, nos mistérios do feminino, no oposto do Sol, pois, se não podemos ver este diretamente, podemos ver a branda Lua diretamente, numa suavidade feminina, numa Tarsila mulher expressando-se como tal, e temos em Tarsila o masculino também, numa artista que teve as bolas para ousar e transgredir, tendo coragem, apesar de sentir um friozinho na barriga. Aqui, temos uma cena solitária, sensual, e a Lua segue só no céu, cercada por sensuais brumas e nuvens, como véus mágicos de uma noiva estonteante, a estrela do casamento. A suave luz da Lua banha os céus, em curvas sedutoras, relaxantes, numa artista querendo relaxar e produzir no ateliê. É o enigma do luar: está noite mas, ao mesmo tempo, há uma certa claridade, nas noites claras tropicais de luar, do modo como os chineses se guiam pelo calendário nos ritmos lunares. Se o Sol é simples e direto, nascendo e morrendo linearmente ao dia, a Lua é mais complexa, alheia ao Sol, nos ciclos lunares que guiam os úteros menstruados – a Lua é linkada à Mulher. Estes céus têm um azul marinho discreto, fechado e denso, contrastando com as nuvens brancas, banhadas pela luminosidade do satélite natural. A cor desta Lua é amarelada, como se quisesse ser ouro e concorrer com o Sol para ver quem é mais belo. Este é um quadro sem linhas tensas, sem fálicos pensamentos racionais, sem a tensão do mundo dos Homens, sem guerras, sem tensões entre países, integrando o Globo sob a mesma mãe, ou seja, a Lua, pois, quando se viaja para o Exterior, até para os lugares mais longínquos, a pessoa fica espantada ao ver que, não importando onde está, a mesma Lua de sempre estará lá, unindo continentes, fazendo-nos humanos, igualando-nos. Esta Lua parece ser um colar dourado, adornando o pescoço de uma mulher nobre, numa Lua Minguante ou Crescente, sempre pulsando no seu ritmo de inchar e desinchar, como se respirasse como as ondas do Mar – a Natureza está toda interligada, numa única estrada, na sensualidade integradora de Tao, o Uno. Na porção terrestre do quadro, um gramado de um verde cinzento, discreto, perfeito como um carpete, convidando-nos a tirar os sapatos e sentir a suavidade desta grama divina, relaxante, reconfortante. Temos, cruzando este gramado, um rio curvilíneo, integrando-se à sensualidade fluidia da Lua e do Céu Noturno, deixando correr uma água fresca, pura, nutrindo as entranhas da Terra, num quadro tão paradisíaco como este, como se Tarsila soubesse como são acolhedoras as colônias espirituais da Dimensão Metafísica, do plano onde os arrogantes orgulhos mundanos perecem. E temos aqui uma forma enigmática: não sabemos se é um cacto ou uma figura humana. Se for um homem, ele parece abanar para a Lua, querendo falar com a noiva dos céus negros, seduzido pelo brilho suave e discreto dela, apaixonado por uma noite tão amena e gostosa, paradisíaca, ideal; se for um cacto, está absolutamente sem espinhos, sem as vicissitudes dolorosas e inevitáveis da Vida, num vegetal sem a agressividade espinhosa, num ser vivo relaxado e tranquilo, que não se sente obrigado a pegar em armas e matar seus irmãos – Tarsila era da Paz. Tudo neste quadro entra num só ritmo, numa só artista, na ambição de se unir ao Mundo e servir este, do modo como Tarsila o fez, sempre colocando sua inteligência a serviço dos outros seres humanos, merecendo reconhecimento nacional e internacional, ou seja, universal.


Acima, Abaporu, 1928. Este é um dos quadros mais emblemáticos da carreira de Tarsila. Não podemos ver se é um homem ou uma mulher, numa androginia, desprovida de sexo e de desejo sexual. O corpo está completamente nu, entregue, exposto, no sentido de que o artista coloca a cara a tapa, arriscando-se, ousando, equilibrando-se numa linha tênue, desnudando-se. Há aqui uma visão de perspectiva, como se o “fotógrafo” enquadrasse o modelo de baixo para cima, dando o efeito de desproporção. O pé e a mão são gigantescos, descomunais, como se, com seu peso, com a gravidade, estivessem puxando o corpo para baixo, aprisionando em uma dimensão inescapável, só escapável no momento do desencarne, na libertação do espírito. É uma pele bonita, homogênea, da raça branca, talvez um autorretrato de Tarsila. A minúscula cabeça está repousada no braço ao lado, como se estivesse pensando, pois Tarsila foi uma grande cabeça, acima de mediocridades. A cabeça tem cabelos negros curtos, talvez pela influência das tendências capilares da época, numa Tarsila moderna, cosmopolita, citadina, abrilhantando a cena cultural brasileira. Os olhos estão tristes, mergulhados em reflexão e Filosofia. Vemos um nariz delgado e não vemos boca, numa face minimalista, num quadro tão simples em formas, no poder da Simplicidade. Mais uma vez, vemos um cacto sem espinhos, sem amarguras, como se fossem pernas de mulher depiladas, femininas, preparadas para o Mundo, na questão da autoestima – cuidar-se, amar-se, aceitar-se. Ao fundo, um Céu de Brigadeiro, límpido, majestoso, rico em claridade, iluminando o Mundo e os seres deste. Esta forma humana repousa em um monte verde, suave, sem recortes de picos espinhentos, acolhendo como em um lar perfeito, reconfortante. As mãos não têm unhas, numa preocupação de Tarsila em se ater ao essencial. O pé tem unhas em quase todos os dedos, e o mindinho está carente, sem unha, desprotegido, na sensação desoladora de um morador de Rua, entregue à própria sorte, como um cachorro abandonado. Acima, regendo tudo e todos, um brilhante Sol dourado, como uma deliciosa rodela de laranja, trazendo toda a doçura da riqueza agrária brasileira. O Sol é um grande olho que tudo observa, banhando seus filhos, esbanjando vida e energia, nunca deixando de brilhar entre as esferas do Sistema Solar. É como uma moeda de ouro, trazendo a riqueza que é a Vida, por Terra, Ar e Mar, trazendo os seres vivos à Vida. É como uma bola de espelhos numa boate, exercendo fascínio, sendo, ao mesmo tempo, perigosa – não olhe diretamente para ela, no modo como uma nação é pacífica mas, se provocada, irá à Guerra. Precioso como uma pérola gigantesca, o Sol, um dia perecerá, e Tarsila traz o Sol para perenizar este, eternizando-o na forma de Arte, garantindo que, pintado aqui, jamais deixará de funcionar, na intenção artística de desafiar o tempo e os prazos de validade, na busca pela Vida Eterna – Tarsila quer se lembrada. Este quadro é maravilhoso em sua simplicidade, colocando na tela somente o essencial, trazendo a limpeza espiritual tão almejada pelos rituais de purificação humanos: banhar-se, escovar os dentes, lavar roupa e limpar uma casa. A pele desta figura humana tem um brilho saudável, viçoso, jovial, sem qualquer indício de rugas ou marcas de expressão, do modo como o pensamento racional não perece. Este Sol é como a explosão titânica de uma supernova, abalando as estruturas da Arte, trazendo o inevitável – a Evolução, e os novos capítulos vêm.


Acima, Antropofagia, 1929. Mais uma vez, o sol que parece uma rodela de laranja, na riqueza gastronômica popular brasileira, num refresco revigorante e delicioso, como foi a Arte Moderna Brasileira. O título traz dois corpos nus, entrelaçados um no outro, e um grande seio lactante é revelado, nutrindo a Natureza, no vínculo forte entre mãe e cria, no modo como a amamentadora dá tudo de si para o filho, do modo como uma cachorrinha que tive, que, ao amamentar a ninhada, ficou desnutrida, numa mãe sempre se doando ao máximo pelos filhos, numa Tarsila dedicada. As cabeças estão sem rosto, sem olhos nem nada, apenas cabeças carecas, numa Tarsila atenta ao essencial, ao mínimo, à elegância comedida. Estes corpos formam um só, como numa simbiose vegetal, onde um organismo beneficia o outro, e vice-versa. Ao fundo, uma grande folha de bananeira, nas densas matas virgens brasileiras desbravadas pelos portugueses, num fruto tão barato e nutritivo como a banana, no modo como o grande artista se torna alimento para os olhos do espectador, como Tarsila alimentou (e continua alimentando) inúmeros olhos. Um pouco abaixo da folha, uma forma que parece ser uma espátula vermelha, no sangue pulsante da Miscigenação Brasileira, numa mistura única, sem par no Mundo. É o sangue derramado nas guerras, que dizimaram os índios, que outrora foram senhores das Américas. Mais uma vez, a paixão de Tarsila por cactos, sempre sem espinhos, sempre gentis e suaves, na delicadeza contraditória da transgressão: violar e acariciar, ao mesmo tempo, sempre respeitando a tradição, apesar de contrastar com esta. Ao fundo, um céu limpo, sem nuvens cinzentas de incertezas existenciais, sem a dúvida cinzenta do que nos espera após o Desencarne. O quadro todo tem formas arredondadas, sem arestas a ser aparadas, e o seio descomunal tem papel central na história contada aqui, entrando em harmonia geométrica com o Sol, o provedor, o Senhor dos Planetas, o Tao provedor, o qual, apesar de nascer e morrer no horizonte, jamais se esgota, na estabilidade e na continuidade da produção de um artista, sempre criando, com uma mente inquieta, fértil como a Flora Brasileira. Os rostos sem face são como bonecos, seres estritamente espirituais, metafísicos, livres das vicissitudes existenciais, realizados em sua simplicidade, vivendo uma vida simples e prazerosa, na delícia do metafísico mortificante, que traz a existência racional, sem as marés traiçoeiras das emoções. A folha de bananeira parece tremular em uma brisa suave, e podemos ouvir o sensual farfalhar das folhas ao vento, um barulho aveludado, como uma dama caminhando e fazendo farfalhar o seu próprio vestido, num barulho minimalista, sutil, e, em paradoxo, poderoso e forte, pois a sutileza é uma onda de tsunami: curva-te e reinarás, diz Tao. É como um jardim fabricado, com plantas e gramados artificiais, de carpete, como uma casa confortável, cheia de prazeres de comodidade, um lugar que acolhe e traz a Paz ao filho que ali mora, no prazer de quem produz e contribui para com a Sociedade. Os tons de verde musgo trazem densidade e discrição, numa Tarsila também discreta, colocando a própria (aguçada) mente a serviço do Mundo.


Acima, Cartão Postal, 1928. Uma mãe macaca e seu macaquinho repousam alegremente em um galho – cada macaco no seu galho. Simples casinhas brancas e rosas trazem lares simples, acolhedores, sem as sobrecargas das vaidades humanas, que tanto atormentam a Sociedade. As folhas da árvore onde repousam os símios têm formas de coração, numa Tarsila tão apaixonada por Arte, tão envolvida em produzir com amor de mãe. O longo e forte rabo da macaca-mãe agarra-se ao tronco, como uma forte âncora, responsável por trazer estabilidade ao navio, fazendo Tarsila manter os pés no chão, concentrando-se em produzir obras dignas de reconhecimento. A vegetação é frondosa e abundante, brasileira. O Sol tem um formato oval, num mágico ovo de Páscoa, banhando de ouro as abençoadas terras tupiniquins, e abençoando Tarsila, a queridinha do Modernismo. Ao centro do quadro, parece ser o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, com suas rochas intimidantes e monumentais, enormes. Esta Baía da Guanabara tem uma água limpa, azul, deliciosa, e podemos ouvir o som de Bossa Nova, na tranquilidade morosa do carioca. Além do Pão de Açúcar, vemos mais formações gigantescas, num Rio de Janeiro abençoado por Deus, o Sol Criador, o fértil ovo. No lado esquerdo do quadro, duas palmeiras de proporções titânicas, desafiando a Lei da Gravidade, como na flora do Jardim Botânico do Rio, imperiais, altivas como os Orleans e Bragança. Ao lado do Pão de Açúcar, uma ponte, ligando lugares e pessoas; ligando Tarsila ao mundo de espectadores e admiradores. Aqui, temos uma tropicalidade idealizada, como a índia Iracema, de beleza arrebatadora.  A grande árvore à direita tem raízes fortes e profundas, trazendo estabilidade à copa, no modo como o Brasil se liga à Copa do Mundo, na tradição brasileira em torno do Futebol. A Arte se enraíza no indivíduo, provocando uma avalanche de percepções, pois, sabemos, a função da Arte é tocar o Humano, tornando-se indicador da Inteligência, do Metafísico.


Acima, O Pescador, 1925. As copas das palmeiras parecem aranhas, tecendo pacientemente suas teias, com uma precisão matemática. Parecem folhas de maconha, numa erva que anuvia o pensamento do usuário. Por todo o quadro vemos formas que parecem ovos, de várias cores, guardando vida dentro de si, esperando pela hora da desova, como um artista faz a desova de uma obra ou de uma exposição, esvaziando-se, colocando seus “filhos” no Mundo, com orgulho de mãe. A água aqui é doce e plácida, tranquila, muito calma, e o pescador exerce com calma e prazer sua função, captando um peixe em sua rede. O peixe é o alimento essencial e diário, na luta pela Vida, como índios homens de uma tribo, com a função de sair de casa e pescar ou caçar, na eterna divisão de tarefas entre homens e mulheres. O chapéu do pescador é a proteção, o resguardo, como usar filtro solar na beira da praia, na ação de precaução. A camisa e calça do pescador estão arregaçadas, não só para poder colocar os braços e pernas n’água, mas também para aguentar o calor tropical brasileiro. Mais ao fundo vemos morros arredondados que parecem seios femininos, na Terra Mãe, sempre provendo seus filhos, sempre exalando vida, como um belo chafariz, jorrando cornucópia, como as pérolas que Iemanjá dá aos pescadores, simbolizando a riqueza dos frutos do Mar. Como vemos com frequência em Tarsila, um céu plácido e limpo, glorioso, pacífico, sem as arestas do mau tempo, da chuva impiedosa, dos céus cinzentos e incertos da dúvida existencial – Tarsila retrata um Brasil ideal, paradisíaco, no desejo de ver o Brasil se tornando um lugar belo e harmonioso. Vemos pitorescas casinhas de pescadores, simples, convidativas, num lar que recebe o convidado oferecendo um cafezinho. Tarsila gosta dos biomas brasileiros, sendo uma amante da Natureza, numa época em que o Ambientalismo ainda não existia. Ao lado do pescador, uma planta de pontas afiadas, abrasivas, em meio a uma base inóspita, simbolizando o milagre da Vida, de um ser que encontrou força para prosperar na adversidade. Vemos também folhas gigantescas de bananeiras, num tropicalismo pré-Carmen Miranda e pré-Bossa Nova. Podemos ouvir o delicioso ruído de águas plácidas, como no reconfortante útero materno. Tarsila adora a simplicidade, e, em vida, deve ter sido uma pessoa simples, sem afetações ou frescuras. Inteligente.


Acima, Operários, 1933. Os rostos mostram a diversidade racial brasileira, com peles de vários tons, numa riqueza cromática, na diversidade. Ao fundo, as cinzentas chaminés industriais, jorrando fumaça aos céus, na “escravidão” industrial, onde tudo gira em torno de produtividade, exigindo o máximo de um operário, muitas vezes explorando este. Todos os operários aqui estão sérios, nunca sorrindo, numa vida dura e laboriosa, do modo como a Revolução Industrial trouxe uma nova escravatura, só que remunerada. Os prédios industriais aqui são impessoais, duros, num patrão que exige o máximo dos empregados. Seria este um manifesto político-social de Tarsila? Vemos apenas um homem de óculos, simbolizando a Intelectualidade, num trabalho duro que pouco exige da mente do operário, num trabalho subserviente, anônimo, que não traz muita realização pessoal. Os operários são anônimos tijolos em uma parede, indistintos, sendo apenas mais um impessoal peão no tabuleiro. Vemos tanto homens quanto mulheres, num mercado de trabalho aberto à diversidade de gênero. Vemos pessoas mais velhas e pessoas mais jovens, nas décadas que uma pessoa tem que trabalhar para poder se aposentar. É a passagem do tempo, e o indivíduo, involuntariamente, torna-se um agente desse sistema capitalista, onde tudo é dinheiro. Os operários olham diretamente para o espectador, trocando olhares, comunicando-se, expressando a cinzenta tristeza da vida de proletariado. Todos têm carteira assinada, e gozam de todos os direitos, num Brasil que não mais é exclusivamente agropecuário, num Brasil que está se industrializando, como no boom industrial chinês. A seriedade deste quadro é arrebatadora, e Tarsila faz questão de mostrar essa vida tão dura, de tantas horas de labor por semana. Talvez o operário esteja aqui de mau humor por se sentir mal-remunerado, na inevitabilidade do canibalismo capitalista, no qual o trabalhador acaba sendo lesado de alguma forma. É o Capitalismo, que só interpela quem tem dinheiro. Mais à direita, vemos um jovem negro, descendente de escravos, e o jovem, de algum modo, também é escravo, ironicamente, mesmo após o ano de 1888, na Abolição da Escravatura – a exploração do Homem pelo Homem não cessa.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Na Mira da Arte




O catalão Juan Miró emergiu como um dos principais artistas espanhóis da História. As formas simples e abstratas de JM continuam a fascinar o Mundo. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Azul II, 1961. O traço vermelho é como um ferimento sangrando, sendo vestígio de uma agressão, de uma transgressão, do modo como uma sociedade evolui a partir da transgressão de alguns de seus membros, no poder do Escândalo. É um traço tosco, estremecido, incerto, e é um falo descomunal, tentando impor ordem e razão a um mundo de caos. É como uma brecha, a entrada de uma vagina, no aspecto de ferimento, do modo como os transexuais se castram voluntariamente, almejando serem considerados mulheres pela Sociedade. O clitóris tem esse aspecto de castração, como se fosse uma genitália masculina castrada, mortificada, desprezada, algo que vai contra o Espiritismo, que diz se deve mortificar o espírito e não o corpo, mas cada um é livre para viver como quiser, e, nesse sentido, há o conceito de Livre Arbítrio do Espiritismo. Este quadro tem formas incertas, como se tivesse sido concebido através de um acidente, de porções de tintas caídas ao acaso sobre a tela, mostrando as saudáveis transgressões das Artes Plásticas no Século XX, um século de inovações, como o surgimento do Cinema e, mais ao final, da Internet. Este traço rubro deixa uma espécie de rastro, como cocozinhos de ovelha, do modo como as fezes representam a catarse: a expulsão de algo que, não expulso, estava fazendo mal ao indivíduo catarseante. São como esferas de um mesmo sistema solar, como uma família, com vários irmãos sendo criados debaixo do mesmo teto, num útero em comum, um tronco em comum, na Árvore da Vida. Os pontos negros são incerteza, num Miró que presenciou a Guerra, tendo esta deixando um rastro de destruição e amargura, no caos bélico, onde as pessoas padecem de fome, em meio a vidas dilaceradas e almas assassinadas. Ao fundo, temos um azul como Céu de Brigadeiro, limpo, claro, num Miró observando com certeza e clareza a própria existência. Só que, neste céu tão bonito e aberto, há os pontinhos negros de Morte, de incerteza, numa dúvida existencial: para onde vou? Miró não finge ser uma pessoa resolvida, uma pessoa absolutamente sem fraquezas ou inseguranças, pois quem entra em contato com a própria fraqueza, fica forte, no discernimento taoista: curva-te e reinarás. O céu azul também tem um quê de tristeza, mesmo frente a um dia tão ensolarado, pois os pontos de escuridão “poluem” a cena e trazem a indefinição do Ser Humano, indefinição esta que acaba por nortear as atividades humanas, como a Arte, pois um ser humano só pode fazer Arte sendo humano, incerto, inseguro, pois não haveria algo mais repulsivo do que uma pessoa que posa como dona da Verdade. A insegurança traz estabilidade. Os pontinhos parecem fazer fila, como patinhos seguindo a mãe, e esta mãe é o risco vermelho de sangue, de guerra, de morte violenta, como inúmeros mortos no Holocausto. Miró sabe que a Vida não é belíssima, e abraça este fato feio. Os pontos negros são como ilhas em um oceano paradisíaco, do modo como se diz que ser mãe é padecer no Paraíso. Estas ilhotas são incertezas cercadas, ilhadas, isoladas, e o artista consegue esse isolamento, do modo como o Ser Humano precisa de um pouco de solidão para produzir, pois nada mais doloroso do que estar, o tempo todo, cercado de pessoas – cada um tem que se recolher de vez em quando, e é esta a solidão saudável do estúdio do artista, de qualquer artista. O fundo azul é uma sopa, nutrindo, com ingredientes jogados aleatoriamente, e o líquido aqui está completamente parado e estagnado, pacífico, e tudo aqui paira em paz. O azul é a sensualidade da beira da praia, um espaço vazio, uma lacuna pronta para ser preenchida por vida, por pessoas, e é neste vazio onde reside o fascínio, como um copo, que brilha ao ser utilizado, sendo preenchido de água que mata a sede – propósito, função, dignidade, identidade. O traço vermelho, quente, contrasta com o azul frio, numa tentativa de equilíbrio, de obter uma temperatura ideal – nem quente, nem fria. O artista obtém estabilidade ao produzir, servindo ao Mundo, às demandas infindáveis do Mundo. Neste quadro há um equilíbrio de formas, nos mistérios assimétricos, como numa equação matemática. E esta causalidade, essas formas que pingaram por acidente, trazem o papel lúdico da Arte: ter senso de humor é imprescindível.


Acima, Mulher em Frente ao Sol, 1950. Seria a bola vermelha o Sol nascente da bandeira japonesa? Uma poça d’água quente, fervendo, num Miró ardente em criatividade. Três asteriscos brilham como estrelas, como nas Três Marias do Cinturão de Órion, guindo navegadores. São três mucosas anais, prontas para expelir o que deve ser expelido. Esta mulher é estranhíssima, com um olho só, no famoso personagem Guiodai do seriado japonês Changemen, ou como no monstrengo simpático do filme Monstros S.A., ambos com um só olho e uma cabeça descomunal, abrigando um cérebro grande, brilhante, como numa barriga de mãe pronta para o parto, pronta para fazer Arte. Os braços e pernas da mulher são curvos, parecendo um desenho infantil, numa criança se esforçando para se expressar ao Mundo. A mulher aqui tem um grande olho onisciente, que tudo registra, tudo controla, como num regime totalitário, ditatorial, que vigia e controla impiedosamente seus próprios cidadãos, como câmeras de um Big Brother, numa clareza fascista, como um corpo sendo velado por muitos olhos, num defunto pronto para levantar e avisar que não morreu. As estrelinhas ao redor são o encanto de uma fada, e uma das pernas da mulher segura uma varinha mágica, ou um pirulito, ou um cetro, reinando sobre o Povo. O cabo longo é a regência fálica, pronta para punir o cidadão que ferir a Lei. O corpo da mulher é num formato de saia, e o olho descomunal tem um formato de balão de festa de criança, num Miró que se diverte ao criar, na empreitada dos homens querendo ser mães, genitoras. Este balão a gás sobe aos Céus, nas alturas de sonhos, na marcha do Ser Humano para se libertar e viver feliz, sem tanta dor. No cabinho desse “balão”, um formato de gota vermelha, num nariz sangrando após sofrer uma agressão, numa lágrima rubra, cheia de vida, de dor e de propósito. Ao redor da cabeça da mulher vemos tentáculos, como uma Medusa, aprisionando e destruindo homens, castrando-os. É um polvo com várias faculdades, como um deus hindu, como um macrófago, que se alimenta das bactérias que fazem mal ao Organismo. O artista se nutre dessa bactéria, e produz Arte, curando-se de dentro para fora. O grande Sol vermelho está abaixo da mulher, e não sabemos se está nascendo ou morrendo, do modo que, sempre morrendo, o Sol renasce, nos mistérios da Ressurreição de Jesus, que deixou a Dimensão Material para trás e (re)ingressou no Plano Metafísico, onde tudo é mental e nada é material, numa dimensão em que as riquezas mundanas são desprezadas, trazendo, assim, felicidade incondicional. Este sol não é perfeitamente redondo, é incerto, imperfeito, e assim Miró o quis, como se o sol estivesse sofrendo influências de força maior, perdendo sua perfeição e ingressando nos maravilhosos meandros imperfeitos da Arte. Os asteriscos cercam a mulher como se quisessem protegê-la e abençoá-la. O sol está em segundo plano, superado pela mulher gigante, e é como uma bolha de sabão, tortuosa, fluidia, ultrassensível, podendo se desfazer com um simples toque ou sopro – é a fragilidade do Ser Humano. Os asteriscos têm pontas espinhosas e agressivas, e dão um aviso: mantenha-se distante. As pontas estão prontas para estourar o sol rubro, mas não parecem ter o mesmo poder sobre a mulher, a qual reina no quadro, preenchendo-o. É o enigma dos desenhos infantis, no qual a mar é retratada de forma gigantesca, como no famoso personagem Babyssauro, que chamava o próprio pai de “Não é a mamãe”. E por que um só olho? Porque representa a unidade do ser, que tem que ter uma vida só, uma única e simples vida, nunca almejando as sujeiras das vidas duplas. O olho uno é o desejo de paz e integração, e o círculo rubro é um doce tomate, suculento, pronto para ser devorado, no prazer de comer. Aqui, a cabeça da mulher imita o sol, tornando-se o único caminho, a única porta, no inevitável destino – o desencarne. De cabeça para baixo, o quadro parece trazer um tamanduá com um longo bico, nutrindo-se de uma ameba deliciosa e nutritiva, na luta pela Vida. O olho amarelo é o pus, resíduo da luta contra visitantes indesejados, no ato catártico de expulsão.


Acima, Ouro de Azure, 1967. O quadro tem um calor sedutor, num Miró sempre atento às cores, numa vibração espanhola, latina, apaixonada. Mais uma vez, vemos os asteriscos estelares, com traços um tanto tortuosos, incertos, infantis, trêmulos. O círculo azul, cercado por uma aura branca, num formato um tanto oval, é o fértil ovo de Páscoa, numa cor arejada, ao ar livre, na esfera azul que é a Terra, vista do Espaço pelos astronautas, fazendo estes crer em Deus, em uma inteligência suprema, que arquitetou o Universo. O ovo está prestes a explodir de vida, trazendo seres ao Mundo, numa passagem, como Jesus passou ao Mundo Espiritual e os judeus fugiram do Egito. Vemos um pequeno e discreto ponto em vermelho, como um semáforo que tenta impor ordem a um mundo de caos, tentando reger a Humanidade, tendo esta tentativa frustrada por tantas e tantas vezes, fazendo-nos crer que Tao tem paciência eterna para com os pecadores, assim como é rezado na Ave Maria. Este amarelo áureo enriquece o quadro, no prazer de um Sol quentinho no Inverno, numa consolação, na promessa de um Mundo mais elevado, espiritual. É como se pudéssemos olhar diretamente para o Sol, mas este nunca podendo ferir ou ofuscar nossas vistas, num Sol vibrante, porém clemente, num ponto de equilíbrio, de ponderação, numa contradição: é forte e fraco, ao mesmo tempo. Há também no quadro elementos negros, como gotas de piche à beiramar, sujando a orla, dando-nos um aviso: estamos inseridos, entranhados na Dimensão Material. Portanto, não devemos construir ilusões em relação a uma dimensão tão dura, tão exigente, como um duro professor, que cobra o máximo do aluno. Os pontos pretos são partes queimadas, carbonizadas, num fogo que fere e viola, como num sinistro que ocorre do nada, destruindo, do modo como a Gastronomia é uma Arte fadada a ser destruída pela mastigação e pelo estômago. A grande curva negra, em forma de “C”, é um momento de guinada, em que o artista olha a si mesmo e chega à conclusão de que é Arte o que quer produzir, numa pessoa encontrando a si mesma nos labirintos existenciais. A curva negra é como uma grande lombriga, um sociopata parasita, que se alimenta de almas, sendo um verdadeiro vampiro: o sociopata fica feliz com a infelicidade dos outros; o sociopata fica infeliz com a felicidade dos outros. É uma curva bem fechada, na estrada da Vida, e nunca sabemos ao certo o que iremos encontrar ao fim da curva, nessa estrada tão imprevisível, na qual nem tudo sabemos. Na extremidade direita da curva, uma forma que parece ser uma torneira, no dispositivo da Vida: a Água é essencial, e Miró tornou-se essencial à Arte Europeia. Bem ao centro do quadro, outro traço negro, só que mais sutil, discreto e delgado. É como se o traço quisesse dividir o quadro em dois, do modo como Jesus dividiu em duas a História da Humanidade. Em comparação à linha grossa, esta é uma linha fina e elegante, a qual nunca tenta se apoderar do quadro, sendo sempre subestimada, sendo quase invisível. Esta é uma curva mais suave, não tão fechada, na sensualidade das ondas indo e vindo, respirando à beiramar. Os pontos negros são como se o quadro tivesse sido usado como alvo de flechas, estando ferido, violado, estuprado. São como cigarros terem sido apagados nele, marcando-o para sempre, no trauma do Nascimento: vir ao Mundo é o primeiro grande trauma do Ser Humano, saindo do conforto zeloso do útero, enfrentando o Mundo lá fora, tendo que ser corajoso e aventureiro. O “ouro” do título é uma almejada medalha, no topo de um pódio, na intenção dos artistas em busca da valorização.


Acima, Paisagem Catalã – O Caçador, 1924. Mais uma vez, o sedutor Sol espanhol de Miró, dourado, abundante, rico, deslumbrante. Na extremidade superior esquerda, uma estrela negra, seguida de traços que fazem-na parecer a Estrela de Belém, que guiou os Três Reis Magos até a Manjedoura. A estrela, então, tem o papel de guia, de referência, guindo Miró em meio à produtividade, na magia natalina de um pinheirinho cercado de presentes, em meio à magia da Infância, com doces lembranças, como o Cidadão Kaine lembra carinhosamente de seu trenó Rosebud, com o qual, quando criança, brincada na neve, tendo Kaine passado por um trauma, sendo arrancado à força do adorado trenó, lembrando deste em seu leito de morte. Quase ao centro do quadro, vemos uma flecha fálica, agressiva, ditando ordens, direcionando a vida em Sociedade, estabelecendo noções e leis, as quais precisam ser respeitadas, pois, se não, o Caos toma conta do Mundo. É o caçador. Na porção inferior do quadro vemos uma serpente, sinuosa e sexy como o curso de um rio, atravessando vales, rebolando como numa lambada, ou fluindo poeticamente como em uma valsa, numa sensualidade elegante, desprovida de vulgaridade. Cruzando o quadro de ponta a ponta, vemos linhas que parecem ser de um exame cardiológico, no coração de Miró pulsando e construindo obras, apaixonado, vindo de um país que, um dia, foi a nação mais poderosa e temida da Europa. Essas linhas que cruzam o quadro são como picos de montanhas, espinhosos, prontos para agredir e ferir quem ousar chegar mais perto. Na extremidade superior direita, um círculo rubro, como uma lareira que seca a umidade, trazendo consolo em um dia úmido e frio de inverno. A bola vermelha parece se mover, deixando um rastro à sua direita, assim como a Estrela Guia, como pegadas na areia, fadadas a ser deletadas pelo simples galgar das ondas à beiramar. Acima da serpente, uma forma que parece ser uma mulher, com um corpo sinuoso, com seios e glúteos, num vestido como o de uma Mortícia Adams, uma mulher sedutora, pálida, dramática. Sua cabeça é um simples círculo, como uma poça d’água, num Miró sempre atento à simplicidade, nunca querendo carregar o quadro com elementos desnecessários. Por todo o quadro vemos outros elementos, e as nuances douradas trazem tanta riqueza. Ao lado da mulher, vemos uma forma estilizada, que parece ser um homem com os braços para cima, como numa grotesca pintura rupestre, na tentativa humana em perenizar o efêmero, produzindo registros que, mais tarde, transformar-se-ia em letras, trazendo o Homo Sapiens à Era da Civilização. Pelo quadro vemos várias outras formas redondas, como, por exemplo, os círculos concêntricos ao lado da bola vermelha, a qual é um nariz de palhaço, na missão da Arte em entreter, fazendo nascer as Artes Cênicas e, depois, o Cinema. Os círculos concêntricos são como linhas de planetas em rotação, em torno de uma estrela, uma mãe, um Sol capaz de trazer calor e, assim, estimular a Vida, impedindo que um planeta vire uma mera bola de gelo impenetrável e morto. É a dança dos planetas em torno de algo maior, como no topo de um bolo de casamento, no qual reina o casal de noivos; como numa sociedade monárquica: o rei (ou a rainha) é o cidadão mais importante do reino, na tentativa do Ser Humano em imitar as obras de Deus, as quais são infinitamente maiores e melhores do que as do Ser Humano. O artista cria como Deus cria, e este é um artista incansável, sempre criando. Portanto, só resta ao Ser Humano imitar Tao. No lado esquerdo da mulher, uma forma que parece ser um moedor de pimenta, trazendo calor e diversão à comida, na apimentada paixão espanhola, na beleza arrebatadora da Dança Flamenca, celebrando a vida e a vontade de viver, de vencer, de crescer, de se aprimorar. Ao lado do sistema planetário, um ponto negro oval, como um OVNI, bisbilhotando a Terra, tentando compreendê-la, na vontade do artista em entender a Vida, trazendo esta para o nervo da Arte. Temos um catalão apaixonado pela própria terra, sendo, inevitavelmente, amado por esta também. Nunca ouvimos falar que Amor é tudo?