quarta-feira, 7 de março de 2018

O Nascimento de um Gênio do Renascimento




Há poucos dias eu estava caminhando na Rua e vi um rapaz com a perna tatuada, e a tatuagem era nada menos do que O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli. Este rapaz tatuado mostrou ser fã do artista, ao ponto de viver para o resto da vida com a pele daquele modo. Sandro foi uma das maiores estrelas do Renascimento, em quadros que trazem um frescor incrível, nos ventos de renovação que varriam o Mundo Ocidental da época, numa Europa navegadora. Outra memória que tenho, só que mais remota, é a de uma coleção de livros chamada “Gênios da Pintura”, de propriedade da biblioteca dos meus pais, e na coleção me deparei pela primeira vez com o encantador Sandro, e fiquei hipnotizado pelos tesouros renascentistas. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Anunciação de Cestelo, 1490. O anjo se curva perante a majestade de Maria. O anjo segura um ramo de flores, simbolizando a feminilidade, a sensualidade da Natureza, a força da Vida, vida esta que, a partir do momento da Anunciação, toma corpo de forma imaculada dentro do útero virgem de Maria. A virgindade faz metáfora com a concepção divina, no sentido espírita de que Deus nos faz do nada, de modo totalmente espiritual, sem a interferência da Matéria, pois pensamento é tudo; matéria é nada. É claro que, na história real, Jesus foi um homem de carne e osso, e foi um feto que resultou da junção de um óvulo com um espermatozoide. A Imaculada Conceição é carregada de simbologia, simbolizando o aspecto metafísico do espírito, o qual habita feliz a Dimensão Metafísica, para onde vamos quando desencarnamos. A virgindade representa a ausência de agressividade, do modo como a noiva pura e casta, toda de branco, é entregue ao noivo na igreja. A janela aberta dá um respiro, um sopro de renovação, e Maria diz “sim” ao Anjo – Maria não oferece resistência e cede passivamente, do modo machista como uma mulher não pode ter o controle sobre sua própria vida. Na cena, vemos um personagem marcante – uma árvore. Ela representa a Vida, no menino que começa a ser gerado no interior intocado de Maria. A árvore é a força da Natureza, pulsando e gerando frutos. Ao fundo, vemos um reino muito bonito, o Reino dos Céus, no qual reina a Ordem e a Paz, na promessa de um mundo melhor do que a Dimensão Física, a qual é caótica e aguerrida, longe do útero limpo de Maria – a Virgindade representa a limpeza de Tao, atentando-se ao essencial, ao minimalista indispensável, visto que a cor branca simboliza a limpeza, do modo como tomar banho, lavar uma roupa e limpar uma casa é, também, uma faxina psicológica. No chão vemos a angulação de perspectiva, recurso muito marcante no Renascimento. Tanto o anjo quanto Maria vestem-se de forma luxuosa. Maria é bela, uma deusa, e suas feições transmitem a ideia de imaculação. Ambos têm aureolas que denotam divindade, no plano de Tao sendo colocado em prática, projetando colocar no Mundo um espírito absolutamente aprimorado e benéfico – Jesus. Ao fundo na janela, um rio corre sinuoso, sensual como a Serpente do Éden, no pecado capital da Luxúria. O rio é o curso da Vida, sempre fluindo, nunca se estagnado nem se esgotando. É a vital água, essencial, insípida, incolor e inodora, assim como Maria, pura como um cristal translúcido, leve, elevado. A janela aberta é a Vida respirando sobre a cena da Anunciação, e parece ser um fresco dia de Primavera. Maria e o anjo vestem um véu extremamente fino, vaporoso, um tecido fino demais para existir na Dimensão Física. A leveza do véu é a leveza de uma mente virtuosa, nobre, nunca pesando, nunca causando incômodo, nunca sufocando a Vida. Embaixo de seu manto hierático, Maria revela um vestido de cor rosada, na cor do interior uterino, da Feminilidade. Ironicamente, podemos ver que a barriga de Maria já está com aspecto inchado, ou seja, Jesus já está sendo gerado e está a caminho do Mundo, mudando este para sempre. O anjo e Maria quase se tocam, e têm dedos delicados e aristocráticos, finos, polidos. Ao lado de Maria, um livro, representando as mulheres letradas da Aristocracia, numa época em que o Conhecimento não era amplamente difundido. As paredes da cena são de um cinza escuro, discreto, na discrição da própria Maria. E as flores do anjo se abrem para o Mundo, espalhando deslumbrante perfume, do modo como Tao é fino.


Acima, A Primavera, 1482. Esta é uma das cenas mais deslumbrantes do Renascimento, fazendo metáfora: o frescor da Primavera junto ao frescor renascentista. Grávida, representando a Vida, a Primavera está no centro, no nervo da cena, como Nossa Senhora. Acima, um querubim se preparando para atirar a Flecha do Amor, espalhando Romantismo no quadro, e o ato de se apaixonar traz todo o frescor primaveril, numa sensação deliciosa. Aqui, a Vida pulsa irrefreavelmente, e as flores trazem essa força implacável. Podemos ouvir “A Primavera” de Vivaldi. Vemos quatro donzelas quase nuas, vestindo um vaporoso vestido translúcido, no culto renascentista ao Corpo Humano, no Antropocentrismo, num momento em que o Vaticano não mais podia dominar culturalmente a Europa. Na extrema esquerda, o rapaz colhe um fruto, na sensualidade da Maçã do Éden. O rapaz também está quase nu, e porta uma agressiva espada, a qual representa o Pensamento Racional, do modo como o Paganismo Grego gerou gênios da Filosofia, e a Antiguidade Clássica, morta havia muitos séculos, retoma a Europa de assalto. O querubim mira em uma das donzelas, talvez querendo fazer com que ela se apaixone pelo rapaz, cuja espada é o senso competitivo de Botticelli, havendo em Florença uma competição atroz para ver quem seria o maior renascentista do Mundo. A donzela na extrema direita tem ramos de flores saindo de sua boca, na fertilidade da imaginação artística, na criatividade sempre germinante de Botticelli. Ao lado desta donzela, uma mulher totalmente estampada de flores, na beleza da vida que renasce após o Inverno gélido e desolador – é o milagre da Ressurreição de Jesus, que desencarnou e foi para um plano onde é sempre Primavera, sempre fresco e novo. É um quadro de predominância feminina, e Botticelli dá protagonismo ao Yin. Ao contrário do rapaz, as moças estão de pés descalços, pisando em um chão repleto de flores silvestres, flores que não tiveram que ser plantadas pelo Homem para florescer: elas simplesmente aparecem nesta época do ano, no milagre da Vida. A moça florada também está grávida, como se quisesse concorrer com a Virgem Maria, na junção renascentista entre sacro e profano; entre católico e pagão. Gordinho, o querubim é o Amor apaixonado, entrelaçando pessoas, na Divina Providência, que faz com que as pessoas passem umas pela vida das outras, nas teias de perfeição de Tao. Neste quadro, o fundo é um tanto sombrio, para fazer contraste com as formas humanas, que são mais claras, num jogo capcioso entre claro e escuro. A única figura humana escura do quadro está na extrema direita, repreendendo a moça de cuja boca saem involuntárias flores. Botticelli nos traz rostos humanos de beleza atemporal. As barrigas volumosas das donzelas são como ovos de Páscoa, no fascínio da Vida, que surge aparentemente do nada. Bem ao fundo, um céu límpido e azul. Vemos um Botticelli em seu estúdio, pintando a partir de modelos humanos. Na cena, a flecha do cupido está pronta para “perturbar” a Paz e a Inocência, visto que o rapaz e as três donzelas ao lado não parecem estar ainda apaixonados. E a Virgem ao centro rege a cena, mas nunca fazendo com que a Igreja impeça os ventos de renovação renascentista. A flecha do cupido e a espada do rapaz são um só, numa pitada de agressividade em um quadro tão feminino, perfumado e harmônico. A flecha é a Maçã do Éden, pronta para desvirginar, numa pitada necessária de agressividade, sendo esta ausente antes da maçã da inocente Branca de Neve ser mordida, pois temos em Jesus Cristo uma certa agressividade na hora de tecer críticas à Sociedade e ao Homem, do modo como Tao também critica amplamente os vícios e defeitos do Ser Humano.


Acima, O Nascimento de Vênus, 1486. Certa vez, no Cinema, a deslumbrante atriz Uma Thurman encarnou esta Vênus de Botticelli, e anjos vieram e vestiram-na. Aqui, temos toda uma simbologia, pois o Mar é associado ao sexo feminino. O cheiro de oceano é agregado ao sexo de Vênus, que se mostra muito tímida, uma dama recatada, cobrindo o sexo com os longos cabelos e cobrindo também um dos seios. Temos aqui uma Gisele, com seus cabelos ondulados seguindo as ondas do mar, no Calçadão de Ipanema, com os fios balançando docemente na brisa da orla, na sensação de liberdade que a beira da praia traz, com o ar puro vindo das entranhas oceânicas. Vênus nasce em uma concha como se fosse uma pérola, e revela-se uma virgem intocada, nascida pura d’água, limpa, perfumada. A concha aberta traz uma revelação, e a beleza é revelada, antes oculta e secreta. Seus cabelos estão um tanto revoltos sob o trabalho do Senhor dos Ventos à esquerda, que sopra como o sopro de vida que traz Vênus ao Mundo. Seus cabelos nunca foram cortados na vida, e é como uma Rapunzel, passiva, pronta para ser salva e desposada por um homem nobre e paladino, armado com uma agressiva espada. O quadro todo faz uma ode à umidade, como água correndo da torneira, sempre gerando vida, hidratando os seres vivos, no fascínio da Água, o solvente universal. Vênus nasce como uma estrela, anunciando a noite e o dia, sempre precursora, brilhando límpida, clara, preciosa, cristalina, assim como a água. Sobre Vênus caem flores perfumadas, glorificando a deusa, num quadro sem alusões religiosas, apesar desta Vênus ser virgem como Maria, como uma Iemanjá nua. O olhar de Vênus é triste e desatento, nunca tendo consciência do fascínio que exerce, sempre humilde, sempre brilhando inconscientemente, hipnotizando a inspiração de Botticelli. Aqui, temos um brinde à Feminilidade, à Mulher, numa Vênus capaz de desarmar até os homens mais agressivos, como King Kong e Hulk. As flores caindo são a Glória, e a deusa revela uma pele clara, quase alva, fazendo metáfora com a Virgindade. À direita, uma aia trata de recatar a deusa, buscando cobri-la com um manto avermelhado de estampa florada, assim como o recatado traje da aia é floreado também, num brinde à Identidade Feminina. As flores nada mais são do que os órgãos sexuais das plantas, ou seja, neste quadro temos uma menção sexual implícita, mas forte. Os seios de Vênus são proporcionais – nem grandes; nem pequenos. O manto avermelhado é o sangue pulsante, que bombeia vida pelo corpo, no encantamento de uma mulher vestida de vermelho. Todos no quadro estão de pés descalços, mostrando a simplicidade artística, pois, para o artista, muitos aspectos mundanos são desprezíveis. É claro que aqui podemos ouvir o barulho à beiramar, com o som incessante de ondas respirando, vivendo, indo e vindo, como no coito sexual. Este mar está desabitado, e não vemos ao fundo sequer uma única caravela, numa época em que as Navegações bombavam. Este mar é doce e plácido, sedutor por sua suavidade, e temos em Vênus o toque de seda, suave, feminino. Ao fundo, um céu limpo e plácido, com orlas sendo beijadas pela água. Atrás da aia, árvores escurecidas, contrastando com a clareza da aia e de Vênus. Esta Vênus é uma menina que sempre foi criada para ser passiva, uma dama, nunca desenvolvendo agressividade, projetando esta em outrem, em homens. A beleza da estrela venusiana é associada ao feminino, enquanto a estrela rubra, da cor do sangue, é associada a Marte, o agressivo deus da Guerra, derramando sangue em combate, ao contrário de Vênus, que só produz sangue na Menstruação, no mistério dos ciclos lunares. Num detalhe muito discreto, no canto inferior esquerdo do quadro, alguns ramos de vegetação praiana, na geração da Vida, do modo como a Vida nasceu nos Oceanos, dentro d’água. Vênus traz os mistérios da Vida, enigmática, nunca se revelando por total. Este quadro traz, ao mesmo tempo, exibição e recato, numa Europa que começara a lidar naturalmente com a Nudez – eram ventos de renovação. Vênus nasce assim como o próprio Botticelli nasce como astro renascentista, numa metalinguagem: estrela falando de estrela. E a mulher atrás do Senhor dos Ventos está extasiada com Vênus, contemplando toda a beleza da deusa, querendo um dia ser como Vênus, do mesmo modo como, no ano 2000, Gisele nasce das profundezas e é revelada ao Mundo – o Ser Humano é atemporal e universal.


Acima, Vênus e Marte, 1483. Aqui, temos uma mensagem clara: o Yang rende-se ao Yin. O agressivo Marte está entorpecido, adormecido, dormindo deliciosamente ao som dos diabretes, os quase debocham de Marte, vestindo seu elmo e portando sua lança fálica. Marte aqui tem um corpo de atleta no auge de sua forma, quase nu, enquanto Vênus está devidamente vestida e recatada, expondo de si mesma apenas um pé, mãos, pulsos, rosto e parte do peito, num vestido comportado, o qual marca discretamente o formato dos seios. Marte está em um sono muito, muito profundo, relaxando, deixando de lago a tensa agressividade, tão necessária (e capital) no Campo de Batalha. Vemos aqui quatro diabretes, maliciosos, e esses diabinhos, além de ter cornos, têm os membros inferiores em forma animal, sugerindo sexo, numa Vênus que parece ter um cuidado materno, nunca tendo intenções sexuais para com a Estrela da Guerra. Esta Vênus está tranquila, serena, e Marte é como se fosse um feto, dormindo incessantemente dentro de um útero, absolutamente dependente da mãe, no vínculo do Cordão Umbilical, o qual é aniquilado no parto, e dois seres, que eram um só, separam-se no trauma da vinda ao Mundo Físico. Vênus e Marte repousam sobre almofadas confortáveis, e a grama macia, como a do Éden, convida a tirar os sapatos, como no filme Uma Linda Mulher, em que a mulher na grama tira os sapatos do homem para fazer este sentir o prazer simples de viver. Temos aqui uma Vênus triunfante, que obteve sucesso na intenção de acabar com as guerras, na promessa da Harmonia que reina nas Cidades Espirituais. No centro do peito, Vênus tem um broche em forma de flor, simbolizando a Beleza da Vida, no modo como é a Criação de Deus e, do mesmo modo, é obra Dele a Evolução de Darwin. Ao fundo, um bosque sombrio, num recurso frequente em Botticelli – o escuro embasando o claro. Ao fundo, ao centro, um bosque com colinas, num reino abençoado, vestido por maravilhosas roupas de vegetação. O diabrete ao centro olha para Vênus, e debocha (e diverte-se) com o sono profundo de Marte. Os corninhos dos diabretes remetem ao sexo, ao desejo orgânico de se reproduzir, do modo como o Adolescente entra em uma fase de libido, como disse Marta Suplicy em uma palestra que assisti em Caxias do Sul: “A Adolescência é uma fase em que se masturbar dez vezes por dia é perfeitamente normal”. E Marte está seminu como Cristo na cruz, mas este não estava inconsciente, bem pelo contrário – sentiu cada pulsar de dor na crucificação. Marte está anestesiado, sem qualquer dor, no prazer do Recruta Zero de dormir, dormir e dormir, assim como o célebre espírito Patrícia, que dormiu por muitos dias após desencarnar – o Pecado Capital da Preguiça se revela nesta obra de Botticelli. Um dos diabretes faz uma melodia sedutora soprando uma concha, a qual, como em O Nascimento de Vênus, simboliza o Mar e o Sexo Feminino, a liquidiscência. Vênus zela por Marte, num quadro de amor e dedicação de um pintor apaixonado por Arte. Outra interpretação é a de que Marte está morto, sem mais respirar, como se tivesse sido abatido em combate, descansando finalmente, com a beleza da Estrela D’Alva triunfando sobre os horrores da Guerra, trazendo Paz.

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