David Hockney nasce em Bradford,
Inglaterra, em 1937, estudando Arte em uma escola local dos 16 aos 20 anos. Trabalha
em um hospital até os 22, onde presta serviço militar. Dos 22 aos 25, estuda em
uma importante instituição londrina de Arte, onde conhece outros artistas da
Pop Art. A partir da década de 1960, David, aos 23 anos de idade, participa de
exposições. Participação da Bienal de Paris em 1961, recebendo um prêmio por
suas estampas e viajando para Nova York. Aos 25, Hockney leciona Arte e, aos
26, viaja pelo Egito e Los Angeles. David conhece outros expoentes da Pop Art,
como Andy Warhol, e começa a ter uma inspiração californiana em seus trabalhos.
De 1963 a
64, leciona em uma universidade americana, instalando-se nestes anos em LA. De 1965 a 67, leciona em outras
duas instituições americanas. Aos 31 anos, David viaja pela Europa,
instalando-se em Londres na mesma época. Aos 33, tem três retrospectivas. Vive
em Paris dos 36 aos 38. Depois, faz cenários teatrais. Regressa a LA aos 39,
onde passa a trabalhar com fotografia. Em 1980, aos 43, David faz programa de
ópera, viajando à China no ano seguinte, publicando um ano depois um diário dessa
viagem. Em meados dos anos 1980, DH trabalha fazendo capas para a renomada
revista Vogue, e mais para o fim da década aventura-se fazendo cenários
teatrais e tapeçarias. Essa década também traz vários autorretratos do artista,
tendo Hockney morando em LA e concluindo projetos para piscinas na cidade –
David pintou várias piscinas em telas em sua carreira, associando-as a prazer e
sensualidade. Sua obra também inclui impressões, retratos e fotocolagens. Trata-se
de um homem multimídia – como todos os grandes da Pop Art – que explorava as
próprias possibilidades criativas, numa cabeça aberta ao mundo, sempre a
serviço da Arte. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do
livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.
Acima, A Bigger Splash, ou seja, Um Esguicho
Maior, acrílico sobre tela de 1967. Um delicioso salto em uma piscina
californiana. O quadro todo é muito doce, prazeroso. Ao fundo, sensuais
palmeiras de Beverly Hills, tradicional bairro de Los Angeles que abriga ricos
e famosos. O céu está limpo e azul como a água da piscina. O trampolim é o
aspecto fálico que proporciona realização, lançando astros, dando corpo a
sonhos, como as várias pessoas que vão a Hollywood em busca do sonho de se
tornar um grande astro. Uma cadeira desabitada toma banho de Sol. A casa tem
traços simples, limpos, fruto da mente de um arquiteto sofisticado e
habilidoso, que sabe que a beleza reside na simplicidade e na limpeza de traços.
Refletidas nos vidros, vemos mais palmeiras. O quadro todo é um verdadeiro
paraíso, e o chão ao lado da piscina está completamente limpo e varrido. O chão
está aquecido pelo tórrido Sol californiano, no estado mais rico dos EUA. Para
um inglês, acostumando com o tempo pouco paradisíaco da Inglaterra, esse Sol e
essa pouca umidade fazem de Los Angeles irresistível, no contraste entre a
aridez e a água da piscina. Certa vez um amigo meu, que viajou para a
Califórnia, disse que esta é pink, ou
seja, cor de rosa, aprumada, quase fictícia. O mergulho traz tons de branco
que, de muito bem pintados, dão a clara impressão de que alguém recém deu um
salto dentro d’água. A água parece ser simplesmente deliciosa, e tudo no quadro
convida ao prazer, não só sexual, mas a todos os prazeres, todos os pecados
capitais, sem mea culpa, num doce
ócio. O quadro não carrega culpas, mas exalta um bem estar que, convenhamos,
não acontece bem assim na vida real – a vida tem seus altos e baixos, e é
errado acreditar que só teremos prazeres na vida, no sentido de que toda bela
rosa tem seus espinhos. Mas, aqui, Hockney convida-nos a um momento singular de
harmonia, e a harmonia de tom entre céu e piscina traz continuidade, silêncio, placidez
e concórdia. As palmeiras são muito, muito longas, talvez no aspecto racional
do pensamento prático, retilíneo. A exuberância das copas das palmeiras dão o
apelo paradisíaco que essa Califórnia cor de rosa pode nos mostrar. Diz uma
canção It never rains in Califórnia,
ou seja, Nunca chove na Califórnia, e
as temperaturas amenas no inverno são uma delícia, uma cheesecake de cobertura
de frutas vermelhas. A canção da popstar Katy Perry diz California girls are undeniable, ou seja, As meninas da Califórnia são irrecusáveis. David mergulha de cabeça
na Califórnia, fazendo desta seu segundo lar. Junto à parede da casa, folhagens
impecavelmente aparadas, e traços em branco da casa entram em harmonia com a
água branca do salto na piscina. Não vemos dor neste quadro; não vemos catarse.
Vemos a promessa de uma vida melhor, de um Sol que nunca pára de brilhar. É a
promessa da eternidade, eternidade esta que não pode ser totalmente
compreendida pelo ser humano. A cadeira desabitada é como a cadeira de descanso
de uma estrela do Cinema, e a casa desta estrela é simplesmente deslumbrante,
como uma Gisele em uma passarela. Os vidros da casa estão absolutamente limpos,
refletindo este dia de Sol acolhedor e belo. Venha para este mundo, mesmo se
este for de mentirinha. O luxo neste quadro está à disposição. A placidez da
água é quebrada pela violação do salto, e este traz desordem e caos ao
perfeito. O salto desvirgina a água. É uma sensação gostosa como morder um
picolé coberto de chocolate; é o prazer da violação, do “estupro”, do desbravamento
de matas virgens. O quadro é a vagina virgem, e o salto viola tudo e todos em
seu impacto, como uma bomba atômica, que viola o que era indefectível. A água
está recém violada, pois nem vemos ondas de propagação – é o momento exato do
estupro, da invasão peniana no útero, como bárbaros nórdicos saqueando castelos.
E a Califórnia sempre será assim: ensolarada, exuberante, quente, com suas
palmeiras tremulando sensualmente à brisa agradável de uma Beverly Hills
etérea, idealizada, irreal. O salto é o impulso realista, a noção de que é
preciso dar saltos para batalhar pela vida. O Sol aqui é eterno, imutável,
invariável à dor ou ao prazer. Solitário, o quadro não traz uma vida social
agitada e rica em sentido, mas um momento de solitude reflexiva, usando a água
como espelho. Simples, este quadro é fantástico. O único elemento complexo, que
foge da simplicidade, é a água espirrada pelo salto – há muitas gotas e
espirros, ficando difícil apreender tudo. O salto é um orgasmo desordenador,
implacável. A casa em si traz o aspecto de um lar, de acolhimento, numa cama
impecavelmente feita e chão e vidros absolutamente limpos. É uma preguiçosa
tarde californiana, e a indolência do quadro é tentadora. Queremos estar lá. O
delicioso barulho do impacto do mergulho n’água mistura-se ao sexy farfalhar
das folhas das palmeiras. Não podemos ver a pessoa dentro d’água, pois esta
engole-a e oculta-a em suas entranhas aquáticas, no retorno ao mar; à grande
mãe da vida. Pode-se ouvir os acordes de uma delicada canção de Bossa Nova.
Estamos no paraíso, e a preguiça triunfa sobre o esforço. É um momento do
artista consigo mesmo, do mesmo modo como qualquer pessoa precisa de momentos
de solitude. E a cor amarelada do trampolim é o majestoso Sol dourado da
Califórnia; é ouro do dinheiro de uma estrela de Cinema, num contexto
capitalista, onde dinheiro é tudo. O splash
é um espirro libertador, que traz alívio e elimina a tensão. Neste quadro, a
paz luta para persistir. É a cristalização de um momento doce. A água é
purificadora, como uma água benta sem culpa, numa pia batismal – o batismo é um
recomeço, um retorno ao essencial, ao Tao, ao nosso berço, nosso lar, nossa
origem. Raiz. Proveniência.
Acima, The First Marriage (A Marriage of Styles I), ou seja, O Primeiro Casamento (Um Casamento de
Estilos I), óleo sobre tela de 1962. Há a figura paterna e a materna. A
mulher parece uma indígena ou uma deusa egípcia, e seus seios protuberantes são
como duas espingardas, salientes, agressivas como os seios cônicos de Madonna
na turnê Blond Ambition, desenhados por
Jean Paul Gaultier. Sua pele rubra é o sangue essencial à vida, e sua faixa em
torno da cabeça é tensa, oprime com disciplina, dever, papel de mulher na
sociedade. Ela está nua, sentada, amparada, humilhada, confortável, mantida por
um homem. Seus cabelos são alegres e multicoloridos, e ela veste um delicado
véu branco, como uma noiva na igreja, prestes a ser desposada e desvirginada.
Na parte inferior do quadro, grama de verde intenso, no milagre da vida, que
vem do útero da mulher nua. Por que os seios dela têm que ser tão tensos e
rijos? Já, o homem é discreto, com cores cinzentas, em segundo plano. É o noivo
na igreja, esperando por uma noiva charmosamente atrasada para a cerimônia. O
homem é calvo; não é muito jovem. Suas roupas não foram feitas para atrair
atenção, bem pelo contrário, como se ele soubesse o valor da discrição. O homem
e a mulher estão olhando para a mesma direção, pensando nas décadas pelas quais
permanecerão juntos, até que a morte os separe. À direita no quadro, uma longa
palmeira, cujo tronco alvo entra em harmonia com o véu virginal da noiva. As
folhagens são púrpuras, numa divertida subversão da cor original da planta, que
é verde. Ao lado da palmeira, algo que parece ser metade de círculos
circunscritos, talvez um Sol ou uma Lua – não sabe-se. O tom predominante no
quadro é um bege dourado, como o escaldante Sol egípcio, no símbolo de poder e
influência. À esquerda no quadro, elementos confusos, em tons de cinza escuro e
de preto, dentre outras cores coadjuvantes. Nesse subconjunto, uma figura que
parece ser uma porta de igreja, na qual o enlace será selado, em toda a
seriedade social e religiosa em torno da união homem-mulher. E porque a palmeira
é tão descomunal? É como um obelisco, fálico, imponente, guardião da verdade e
da lei. A palmeira dança ao vento, na sensualidade cinematográfica das
palmeiras de Beverly Hills. A mulher está sentada porque, numa sociedade
patriarcal, aquela tem que estar submetida, respaldada por um homem. E os
sapatos pretos do homem significam que é impossível prever o futuro de um
enlace. Neste quadro, há um forte apelo pós-moderno, e nada se parece com um
casamento real, comum ou previsível.
Acima, Man Taking Shower in Beverly Hills, ou seja, Homem Tomando Ducha em
Beverly Hills, acrílico sobre tela de 1964. Momento de
intimidade de um homem banhando-se, numa pose de submissão. Os tons esverdeados
têm grande presença, nos azulejos ou na cortina. A técnica de Hockney faz a água
realmente parecer cair. No fundo, à direita, uma mesa de jantar posta, com
quatro lugares e um vaso de flores ao centro, representando uma florida e
colorida vida social, em oposição à intimidade do homem. A mesa é cercada pela
cor branca, na pureza e na clareza do convívio social, com guardanapos, pratos
e copos, todos limpos. Um grande tapete cor de rosa apara o homem quando este
sai do banho, e a cor alude à submissão feminina nos papéis sexuais – dominador
e dominado, ou dominado e dominador. Tomando grande presença no conjunto, três grandes
folhas negras de folhagem, entrando em harmonia cromática com alguns azulejos
pretos, na imprevisibilidade da existência. Quem é este homem? O que ele quer?
Do que gosta e odeia? Por que ele está submisso? Por que ele não desenvolve
agressividade? Numa sociedade machista, é exigido de um homem o desenvolvimento
da agressividade; de uma mulher, não. As cores verdes aludem ao oceano, à
umidade de limo. A nudez do homem está amparada pela cortina, estabelecendo
limite claro entre público e privado. O homem está a sós, à vontade em sua
nudez uterina. Suas nádegas revelam um restante de corpo bronzeado, nas
sensuais piscinas hollywoodianas. A folhagem busca vestir o homem, ou amenizar
sua nudez, mas não consegue. Estamos invadindo a vida íntima de uma pessoa, e o
poder do fetiche voyeur toma corpo. Os quatro lugares na mesa de jantar são as
quatro estações do ano, no pulsar da natureza em torno de quente e frio;
felicidade e privação. O homem tem o rosto desfocado, e não podemos vê-lo com
nitidez – o movimento da água disfarça-o; protege-o maternamente, como o Mar é
a Mãe. A perfeição geométrica do quadriculado dos azulejos é subvertida pela
queda d’água, como uma irrefreável catarata, na fúria elementar da natureza. Os
quatro lugares da mesa são os quatro elementos básicos: terra, água, fogo e ar.
São as forças da dimensão física que, combinadas, geram tudo o que existe. O
homem está se banhando para receber suas visitas logo depois; está
preparando-se para um momento de vida social, fazendo contato com outros seres
humanos, limpando-se e purificando-se para a interação. O banho é um ritual
humano cuja função não é só limpar o corpo, mas a alma também. O homem está
preparando-se para receber seus convidados, os quais também preparar-se-ão para
o jantar. E é da limpeza, do essencial e do minimalismo que vem o perfume.
Acima, Sunbather, ou seja, Tomador
de Banho de Sol, acrílico sobre tela de 1966. Mais uma vez, a nudez
masculina de forma passiva, submissa, sem agressividade, e o homem em questão
parece ser o mesmo de Homem Tomando Ducha
em Beverly Hills
e, quem sabe, é a mesma pessoa mergulhando em Um Esguicho Maior. Quem é ele? O próprio Hockney? A toalha branca
ampara o homem, que toma banho de Sol em um momento de privacidade e prazer,
privacidade esta violada pelo próprio David Hockney, como um paparazzo
intrometido, tirando fotos de celebridades, em imagens vendidas a peso de ouro
a jornais sensacionalistas. O Sol é bem californiano, implacável, mas o homem não
parece se importar em tomar queimaduras solares – é um Sol benéfico, clemente
e, ainda assim, forte, num lugar onde não há frio ou calor. Podemos sentir a
tórrida temperatura no chão de pedra, e a marca pálida nas nádegas revela que o
homem não costuma despir-se com frequência para tomar Sol, numa atitude
experimental, arriscando-se. As nádegas são o último espaço de reserva e
privacidade do homem, o qual revela-se nu para entregar-se ao espectador. É um
momento de entrega, de rendição. O restante de sua pele é bronzeado, adaptado a
Beverly Hills. As linhas absolutamente tortuosas da água na piscina são a
languidez do homem nu, e as linhas retas conscientes tornam-se curvas e
inconscientes, produzindo uma tarde preguiçosa em torno da piscina. O homem
parece estar dormindo, entregue ao prazer do relaxamento. É o retorno ao útero,
à origem, à fonte. As linhas aquáticas entrelaçam-se umas com as outras,
formando um quebracabeça confuso, enigmático, insolúvel, impávido. O homem está
completamente entregue, sem consciência do mundo ao redor. A piscina é um
oásis, um Éden, e, em sua borda, azulejos perfeitamente quadriculares, cujas
linhas tensas e masculinas resistem ao “canto da sereia” da água. As linhas
tortas beijam umas às outras, numa orgia geométrica, parecendo-se com o laço
mágico da Mulher Maravilha, na paixão da Por Art pela cultura de massa, como
espaguete na piscina, como rodovias confusas que se encontram e desencontram.
As linhas das pedras também são curvilíneas, integrando-se à dionisíaca
piscina. O quadro todo é muito doce, em um momento de paz e silêncio. Nada
ouve-se, com a exceção de pássaros e o delicioso som de água movimentando-se.
Há entorpecimento, e a pureza da nudez é representada pela toalha branca. Há
inocência, candura. A nudez não é maliciosa nem sexual, mas tratada com naturalidade
europeia. A paixão de Hockney por água revela-se predominante, num delicioso
drink à beira da piscina. As linhas aquáticas são como uma teia sedutora, que
chama ao prazer sem culpa. Delícia, como a maçã do Éden. A serpente do prazer
revela-se nas águas envolventes. Relaxamento. Ausência de tensão. Hockney traz-nos
a uma dimensão própria, onde a vida é aproveitada em seus aspectos mais
simples. O homem é um filé de porco sendo assado, num convite à apreciação
gastronômica, no pecado da gula. Atrás do homem, um gramado perfeito,
impecavelmente aprumado. E um suave degradê de azul na piscina parece refletir
o limpo céu de Los Angeles, uma cidade sexy que pode seduzir mentes e sonhos,
como o fez com Hockney. E tem coisa mais deliciosa do que um copo d’água quando
a pessoa está “morta” de sede? No livro de Osterwold, Tomador de Banho de Sol está impresso ladeado por dois retângulos
brancos, os quais entram em harmonia com as cores claras deste quadro, como a
toalha branca.
Referência
bibliográfica:
OSTERWOLD,
Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007