quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Agá Dois Ó de Hockney




            David Hockney nasce em Bradford, Inglaterra, em 1937, estudando Arte em uma escola local dos 16 aos 20 anos. Trabalha em um hospital até os 22, onde presta serviço militar. Dos 22 aos 25, estuda em uma importante instituição londrina de Arte, onde conhece outros artistas da Pop Art. A partir da década de 1960, David, aos 23 anos de idade, participa de exposições. Participação da Bienal de Paris em 1961, recebendo um prêmio por suas estampas e viajando para Nova York. Aos 25, Hockney leciona Arte e, aos 26, viaja pelo Egito e Los Angeles. David conhece outros expoentes da Pop Art, como Andy Warhol, e começa a ter uma inspiração californiana em seus trabalhos. De 1963 a 64, leciona em uma universidade americana, instalando-se nestes anos em LA. De 1965 a 67, leciona em outras duas instituições americanas. Aos 31 anos, David viaja pela Europa, instalando-se em Londres na mesma época. Aos 33, tem três retrospectivas. Vive em Paris dos 36 aos 38. Depois, faz cenários teatrais. Regressa a LA aos 39, onde passa a trabalhar com fotografia. Em 1980, aos 43, David faz programa de ópera, viajando à China no ano seguinte, publicando um ano depois um diário dessa viagem. Em meados dos anos 1980, DH trabalha fazendo capas para a renomada revista Vogue, e mais para o fim da década aventura-se fazendo cenários teatrais e tapeçarias. Essa década também traz vários autorretratos do artista, tendo Hockney morando em LA e concluindo projetos para piscinas na cidade – David pintou várias piscinas em telas em sua carreira, associando-as a prazer e sensualidade. Sua obra também inclui impressões, retratos e fotocolagens. Trata-se de um homem multimídia – como todos os grandes da Pop Art – que explorava as próprias possibilidades criativas, numa cabeça aberta ao mundo, sempre a serviço da Arte. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, A Bigger Splash, ou seja, Um Esguicho Maior, acrílico sobre tela de 1967. Um delicioso salto em uma piscina californiana. O quadro todo é muito doce, prazeroso. Ao fundo, sensuais palmeiras de Beverly Hills, tradicional bairro de Los Angeles que abriga ricos e famosos. O céu está limpo e azul como a água da piscina. O trampolim é o aspecto fálico que proporciona realização, lançando astros, dando corpo a sonhos, como as várias pessoas que vão a Hollywood em busca do sonho de se tornar um grande astro. Uma cadeira desabitada toma banho de Sol. A casa tem traços simples, limpos, fruto da mente de um arquiteto sofisticado e habilidoso, que sabe que a beleza reside na simplicidade e na limpeza de traços. Refletidas nos vidros, vemos mais palmeiras. O quadro todo é um verdadeiro paraíso, e o chão ao lado da piscina está completamente limpo e varrido. O chão está aquecido pelo tórrido Sol californiano, no estado mais rico dos EUA. Para um inglês, acostumando com o tempo pouco paradisíaco da Inglaterra, esse Sol e essa pouca umidade fazem de Los Angeles irresistível, no contraste entre a aridez e a água da piscina. Certa vez um amigo meu, que viajou para a Califórnia, disse que esta é pink, ou seja, cor de rosa, aprumada, quase fictícia. O mergulho traz tons de branco que, de muito bem pintados, dão a clara impressão de que alguém recém deu um salto dentro d’água. A água parece ser simplesmente deliciosa, e tudo no quadro convida ao prazer, não só sexual, mas a todos os prazeres, todos os pecados capitais, sem mea culpa, num doce ócio. O quadro não carrega culpas, mas exalta um bem estar que, convenhamos, não acontece bem assim na vida real – a vida tem seus altos e baixos, e é errado acreditar que só teremos prazeres na vida, no sentido de que toda bela rosa tem seus espinhos. Mas, aqui, Hockney convida-nos a um momento singular de harmonia, e a harmonia de tom entre céu e piscina traz continuidade, silêncio, placidez e concórdia. As palmeiras são muito, muito longas, talvez no aspecto racional do pensamento prático, retilíneo. A exuberância das copas das palmeiras dão o apelo paradisíaco que essa Califórnia cor de rosa pode nos mostrar. Diz uma canção It never rains in Califórnia, ou seja, Nunca chove na Califórnia, e as temperaturas amenas no inverno são uma delícia, uma cheesecake de cobertura de frutas vermelhas. A canção da popstar Katy Perry diz California girls are undeniable, ou seja, As meninas da Califórnia são irrecusáveis. David mergulha de cabeça na Califórnia, fazendo desta seu segundo lar. Junto à parede da casa, folhagens impecavelmente aparadas, e traços em branco da casa entram em harmonia com a água branca do salto na piscina. Não vemos dor neste quadro; não vemos catarse. Vemos a promessa de uma vida melhor, de um Sol que nunca pára de brilhar. É a promessa da eternidade, eternidade esta que não pode ser totalmente compreendida pelo ser humano. A cadeira desabitada é como a cadeira de descanso de uma estrela do Cinema, e a casa desta estrela é simplesmente deslumbrante, como uma Gisele em uma passarela. Os vidros da casa estão absolutamente limpos, refletindo este dia de Sol acolhedor e belo. Venha para este mundo, mesmo se este for de mentirinha. O luxo neste quadro está à disposição. A placidez da água é quebrada pela violação do salto, e este traz desordem e caos ao perfeito. O salto desvirgina a água. É uma sensação gostosa como morder um picolé coberto de chocolate; é o prazer da violação, do “estupro”, do desbravamento de matas virgens. O quadro é a vagina virgem, e o salto viola tudo e todos em seu impacto, como uma bomba atômica, que viola o que era indefectível. A água está recém violada, pois nem vemos ondas de propagação – é o momento exato do estupro, da invasão peniana no útero, como bárbaros nórdicos saqueando castelos. E a Califórnia sempre será assim: ensolarada, exuberante, quente, com suas palmeiras tremulando sensualmente à brisa agradável de uma Beverly Hills etérea, idealizada, irreal. O salto é o impulso realista, a noção de que é preciso dar saltos para batalhar pela vida. O Sol aqui é eterno, imutável, invariável à dor ou ao prazer. Solitário, o quadro não traz uma vida social agitada e rica em sentido, mas um momento de solitude reflexiva, usando a água como espelho. Simples, este quadro é fantástico. O único elemento complexo, que foge da simplicidade, é a água espirrada pelo salto – há muitas gotas e espirros, ficando difícil apreender tudo. O salto é um orgasmo desordenador, implacável. A casa em si traz o aspecto de um lar, de acolhimento, numa cama impecavelmente feita e chão e vidros absolutamente limpos. É uma preguiçosa tarde californiana, e a indolência do quadro é tentadora. Queremos estar lá. O delicioso barulho do impacto do mergulho n’água mistura-se ao sexy farfalhar das folhas das palmeiras. Não podemos ver a pessoa dentro d’água, pois esta engole-a e oculta-a em suas entranhas aquáticas, no retorno ao mar; à grande mãe da vida. Pode-se ouvir os acordes de uma delicada canção de Bossa Nova. Estamos no paraíso, e a preguiça triunfa sobre o esforço. É um momento do artista consigo mesmo, do mesmo modo como qualquer pessoa precisa de momentos de solitude. E a cor amarelada do trampolim é o majestoso Sol dourado da Califórnia; é ouro do dinheiro de uma estrela de Cinema, num contexto capitalista, onde dinheiro é tudo. O splash é um espirro libertador, que traz alívio e elimina a tensão. Neste quadro, a paz luta para persistir. É a cristalização de um momento doce. A água é purificadora, como uma água benta sem culpa, numa pia batismal – o batismo é um recomeço, um retorno ao essencial, ao Tao, ao nosso berço, nosso lar, nossa origem. Raiz. Proveniência.

            Acima, The First Marriage (A Marriage of Styles I), ou seja, O Primeiro Casamento (Um Casamento de Estilos I), óleo sobre tela de 1962. Há a figura paterna e a materna. A mulher parece uma indígena ou uma deusa egípcia, e seus seios protuberantes são como duas espingardas, salientes, agressivas como os seios cônicos de Madonna na turnê Blond Ambition, desenhados por Jean Paul Gaultier. Sua pele rubra é o sangue essencial à vida, e sua faixa em torno da cabeça é tensa, oprime com disciplina, dever, papel de mulher na sociedade. Ela está nua, sentada, amparada, humilhada, confortável, mantida por um homem. Seus cabelos são alegres e multicoloridos, e ela veste um delicado véu branco, como uma noiva na igreja, prestes a ser desposada e desvirginada. Na parte inferior do quadro, grama de verde intenso, no milagre da vida, que vem do útero da mulher nua. Por que os seios dela têm que ser tão tensos e rijos? Já, o homem é discreto, com cores cinzentas, em segundo plano. É o noivo na igreja, esperando por uma noiva charmosamente atrasada para a cerimônia. O homem é calvo; não é muito jovem. Suas roupas não foram feitas para atrair atenção, bem pelo contrário, como se ele soubesse o valor da discrição. O homem e a mulher estão olhando para a mesma direção, pensando nas décadas pelas quais permanecerão juntos, até que a morte os separe. À direita no quadro, uma longa palmeira, cujo tronco alvo entra em harmonia com o véu virginal da noiva. As folhagens são púrpuras, numa divertida subversão da cor original da planta, que é verde. Ao lado da palmeira, algo que parece ser metade de círculos circunscritos, talvez um Sol ou uma Lua – não sabe-se. O tom predominante no quadro é um bege dourado, como o escaldante Sol egípcio, no símbolo de poder e influência. À esquerda no quadro, elementos confusos, em tons de cinza escuro e de preto, dentre outras cores coadjuvantes. Nesse subconjunto, uma figura que parece ser uma porta de igreja, na qual o enlace será selado, em toda a seriedade social e religiosa em torno da união homem-mulher. E porque a palmeira é tão descomunal? É como um obelisco, fálico, imponente, guardião da verdade e da lei. A palmeira dança ao vento, na sensualidade cinematográfica das palmeiras de Beverly Hills. A mulher está sentada porque, numa sociedade patriarcal, aquela tem que estar submetida, respaldada por um homem. E os sapatos pretos do homem significam que é impossível prever o futuro de um enlace. Neste quadro, há um forte apelo pós-moderno, e nada se parece com um casamento real, comum ou previsível.

            Acima, Man Taking Shower in Beverly Hills, ou seja, Homem Tomando Ducha em Beverly Hills, acrílico sobre tela de 1964. Momento de intimidade de um homem banhando-se, numa pose de submissão. Os tons esverdeados têm grande presença, nos azulejos ou na cortina. A técnica de Hockney faz a água realmente parecer cair. No fundo, à direita, uma mesa de jantar posta, com quatro lugares e um vaso de flores ao centro, representando uma florida e colorida vida social, em oposição à intimidade do homem. A mesa é cercada pela cor branca, na pureza e na clareza do convívio social, com guardanapos, pratos e copos, todos limpos. Um grande tapete cor de rosa apara o homem quando este sai do banho, e a cor alude à submissão feminina nos papéis sexuais – dominador e dominado, ou dominado e dominador. Tomando grande presença no conjunto, três grandes folhas negras de folhagem, entrando em harmonia cromática com alguns azulejos pretos, na imprevisibilidade da existência. Quem é este homem? O que ele quer? Do que gosta e odeia? Por que ele está submisso? Por que ele não desenvolve agressividade? Numa sociedade machista, é exigido de um homem o desenvolvimento da agressividade; de uma mulher, não. As cores verdes aludem ao oceano, à umidade de limo. A nudez do homem está amparada pela cortina, estabelecendo limite claro entre público e privado. O homem está a sós, à vontade em sua nudez uterina. Suas nádegas revelam um restante de corpo bronzeado, nas sensuais piscinas hollywoodianas. A folhagem busca vestir o homem, ou amenizar sua nudez, mas não consegue. Estamos invadindo a vida íntima de uma pessoa, e o poder do fetiche voyeur toma corpo. Os quatro lugares na mesa de jantar são as quatro estações do ano, no pulsar da natureza em torno de quente e frio; felicidade e privação. O homem tem o rosto desfocado, e não podemos vê-lo com nitidez – o movimento da água disfarça-o; protege-o maternamente, como o Mar é a Mãe. A perfeição geométrica do quadriculado dos azulejos é subvertida pela queda d’água, como uma irrefreável catarata, na fúria elementar da natureza. Os quatro lugares da mesa são os quatro elementos básicos: terra, água, fogo e ar. São as forças da dimensão física que, combinadas, geram tudo o que existe. O homem está se banhando para receber suas visitas logo depois; está preparando-se para um momento de vida social, fazendo contato com outros seres humanos, limpando-se e purificando-se para a interação. O banho é um ritual humano cuja função não é só limpar o corpo, mas a alma também. O homem está preparando-se para receber seus convidados, os quais também preparar-se-ão para o jantar. E é da limpeza, do essencial e do minimalismo que vem o perfume.

            Acima, Sunbather, ou seja, Tomador de Banho de Sol, acrílico sobre tela de 1966. Mais uma vez, a nudez masculina de forma passiva, submissa, sem agressividade, e o homem em questão parece ser o mesmo de Homem Tomando Ducha em Beverly Hills e, quem sabe, é a mesma pessoa mergulhando em Um Esguicho Maior. Quem é ele? O próprio Hockney? A toalha branca ampara o homem, que toma banho de Sol em um momento de privacidade e prazer, privacidade esta violada pelo próprio David Hockney, como um paparazzo intrometido, tirando fotos de celebridades, em imagens vendidas a peso de ouro a jornais sensacionalistas. O Sol é bem californiano, implacável, mas o homem não parece se importar em tomar queimaduras solares – é um Sol benéfico, clemente e, ainda assim, forte, num lugar onde não há frio ou calor. Podemos sentir a tórrida temperatura no chão de pedra, e a marca pálida nas nádegas revela que o homem não costuma despir-se com frequência para tomar Sol, numa atitude experimental, arriscando-se. As nádegas são o último espaço de reserva e privacidade do homem, o qual revela-se nu para entregar-se ao espectador. É um momento de entrega, de rendição. O restante de sua pele é bronzeado, adaptado a Beverly Hills. As linhas absolutamente tortuosas da água na piscina são a languidez do homem nu, e as linhas retas conscientes tornam-se curvas e inconscientes, produzindo uma tarde preguiçosa em torno da piscina. O homem parece estar dormindo, entregue ao prazer do relaxamento. É o retorno ao útero, à origem, à fonte. As linhas aquáticas entrelaçam-se umas com as outras, formando um quebracabeça confuso, enigmático, insolúvel, impávido. O homem está completamente entregue, sem consciência do mundo ao redor. A piscina é um oásis, um Éden, e, em sua borda, azulejos perfeitamente quadriculares, cujas linhas tensas e masculinas resistem ao “canto da sereia” da água. As linhas tortas beijam umas às outras, numa orgia geométrica, parecendo-se com o laço mágico da Mulher Maravilha, na paixão da Por Art pela cultura de massa, como espaguete na piscina, como rodovias confusas que se encontram e desencontram. As linhas das pedras também são curvilíneas, integrando-se à dionisíaca piscina. O quadro todo é muito doce, em um momento de paz e silêncio. Nada ouve-se, com a exceção de pássaros e o delicioso som de água movimentando-se. Há entorpecimento, e a pureza da nudez é representada pela toalha branca. Há inocência, candura. A nudez não é maliciosa nem sexual, mas tratada com naturalidade europeia. A paixão de Hockney por água revela-se predominante, num delicioso drink à beira da piscina. As linhas aquáticas são como uma teia sedutora, que chama ao prazer sem culpa. Delícia, como a maçã do Éden. A serpente do prazer revela-se nas águas envolventes. Relaxamento. Ausência de tensão. Hockney traz-nos a uma dimensão própria, onde a vida é aproveitada em seus aspectos mais simples. O homem é um filé de porco sendo assado, num convite à apreciação gastronômica, no pecado da gula. Atrás do homem, um gramado perfeito, impecavelmente aprumado. E um suave degradê de azul na piscina parece refletir o limpo céu de Los Angeles, uma cidade sexy que pode seduzir mentes e sonhos, como o fez com Hockney. E tem coisa mais deliciosa do que um copo d’água quando a pessoa está “morta” de sede? No livro de Osterwold, Tomador de Banho de Sol está impresso ladeado por dois retângulos brancos, os quais entram em harmonia com as cores claras deste quadro, como a toalha branca.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Na velocidade de Hamilton




            Richard Hamilton nasce londrino em 1922. Aos 12 anos, faz cursos noturnos de Arte. Aos 14, trabalha como publicitário e estuda em duas escolas de Arte. Aos 15, volta a ser publicitário. Aos 16, estuda pintura na Royal Academy Schools até os 18 anos. Entre os 19 e 23 anos de idade, faz desenho industrial. Aos 24, prossegue na Royal Academy mas é expulso por falta de assiduidade (!), prestando serviço militar na mesma época. Aos 25, casa-se e, aos 26, inicia três anos de estudo em pintura em outra instituição de ensino. Aos 28, faz sua primeira exposição individual e produz também estampas nesta mostra. Aos 29, faz outra individual e, aos 30, leciona Arte, aliando-se ao artista Eduardo Paolozzi e fundando o Independent Group, que abrigava artistas e cientistas na busca de compreender o mundo à sua volta. Aos 31, Hamilton leciona curso geral em desenho em outra instituição inglesa. Em 1955, aos 33 anos, mostra em Londres, com influência cubista. Aos 34, nova individual, com colagem Pop. Dos 35 aos 39, leciona Arquitetura de Interiores, tendo, aos 38, ganho um prêmio de pintura, e tendo no mesmo ano revelado publicamente ter tido influência de Marcel Duchamp. Aos 40, Richard fica viúvo, na década de explosão da Pop Art. Aos 41, faz sua primeira viagem aos EUA. Aos 44, faz grande retrospectiva de Duchamp e, no mesmo ano, RH faz mostra sobre o Museu Guggenheim de Nova York, numa metalinguagem: museu falando de museu, na ironia metalinguística. Aos 47, colabora ativamente na produção de um filme. Aos 48, recebe um prêmio em Amsterdã. Aos 52, três retrospectivas: no Guggenheim de NY, em Munique e em Tubinga (Alemanha). Aos 57, primeiras grandes retrospectivas em duas galerias diferentes. Aos 60, publica escritos, notas e documentos importantes. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

Acima, The Solomon R. Guggenheim Museum, de 1965-66, de fibra de vidro e celulose. O conceito lembra o estilo de Andy Warhol: mesma base de imagem, mas com combinações cromáticas diferentes. Richard revela seu amor por Nova York e pelo célebre museu da Big Apple, num quadro que, ironicamente, pertence ao acervo da referida instituição novaiorquina. No quadro com a fachada do museu, temos três registros: 1) Um negro, fechado, noturno, com poucos detalhes em cinza, que só servem para delinear o museu todo escurecido; 2) Um branco, na luz do dia, com poucos detalhes em preto, surfando pelas linhas arredondas de um prédio concebido no auge da criatividade de um arquiteto, prédio que inspirou a Fundação Iberê Camargo de Porto Alegre; 3)Um multicolorido, como um cristal rico em uma explosão cromática. Como as Três Marias na constelação de Órion, os quadros precisam uns dos outros para brilhar individualmente, e a distância torna-se proximidade. O negro parece um capacete do megavilão Darth Vader, de Star Wars, sinistro, misterioso como notas de jazz pulsante. A negritude é densa, e há um lustro sofisticado, como uma pele negra retinta. O prédio é duro, impenetrável, parecendo ser recheado de pedra intransponível. É como a Torre de Orthanc de O Senhor dos Anéis, resistente, forte, imune a agressões. Nem uma poderosa bomba atômica pode derrubá-la. Se receber tiros de canhão, rechaçará cada um. Nem mesmo uma lasquinha pode ser subtraída deste Guggenheim negro. É o lado negro da Força revelando-se em toda sua falta de sentido. É um quadro depressivo, sem rumo, preso na própria negritude maléfica e, ainda assim, importante, pois torna-se uma referência em sua resiliência. Não tente dar um murro nesse museu negro, pois você vai machucar a própria mão, enquanto o museu nada sentirá. O quadro negro é para ser temido, e há coisas secretas acontecendo dentro dele, como os nazistas tramando planos para derrubar os Aliados na II Guerra Mundial. É um quartel general cheio de conspirações e espionagem. Na cidade que nunca dorme, o museu tem insônia, recusando-se a relaxar. Ele está cheio de tesouros artísticos inestimáveis, sendo símbolo de poder e dinheiro, num país perfeitamente capitalista. É o oposto da estrutura piramidal, a qual tem base grande e topo pequeno: o Guggemheim é magro na base e gordo no topo. Já, no quadro branco, temos a normalidade da luz do dia, uma foto sendo tirada por qualquer máquina fotográfica. O museu aqui está aberto, recebendo visitantes em suas galerias e sua espiral interna, uma serpente arquitetônica. O museu mistura-se a todos os outros prédios da cidade, sendo uma de muitas atrações de uma cidade importante como Nova York. Dessa vez, o museu se parece com os capacetes dos soldados do Mal de Star Wars, cruéis, sob o comando de um sádico ditador psicopata, louco, antissocial, altrodestrutivo e autodestrutivo, no niilismo do Mal. As linhas arredondadas são femininas, formosas, sensuais, como um suspiro em uma gostosa soneca no meio da tarde. Neste quadro, o museu se parece com teclas de piano, em branco e preto, no bom gosto da foto em preto e branco, na simplicidade do registro binário: luz e ausência de luz. Formando a contradição um do outro, o preto e o branco dançam nesse baile de arquitetura, abraçando contradições e vivendo em paz, como numa nação desenvolvida e democrática. Na luz do dia, os mistérios estão minimizados, e a negritude assume um papel coadjuvante. O Guggenheim é livre, leve e solto, um diamante negro coruscando em meio à agenda cultural intensa de uma metrópole. Não são todos os prédios de Nova York que assumem formas tão singulares e instigantes, fazendo deste museu um must, um roteiro obrigatório para visitantes e moradores da cidade. Já, no terceiro quadro, esbanja-se alegria nas cores de alto astral, quase superficial. O Guggenheim está em festa, numa ocasião muito especial. As cores dançam entre si, e as linhas curvilíneas do prédio dão espaço à festa cromática, do infravermelho ao ultravioleta, na pureza de um cristal límpido e puro. Difícil de se observar um arco-íris em uma selva de pedra como Nova York. As multicores jogam fora o registro em preto e branco dos dois quadros acima, rechaçam a sisudez e celebram a diversidade, em uma cidade grande, cheia de várias culturas, histórias e nacionalidades. A cidade festeja sua própria pluralidade e convida todos a participar. Os raios do Sol, filtrados pelas gotículas de água da chuva, fazem a promessa de um mundo melhor, onde as diferenças são respeitadas. Num plano geral, os três quadros são faces de um mesmo personagem, na busca da Pop Art em explorar as faces de uma mesma fonte, como filhotes que, mesmo sendo de uma mesma ninhada, têm cada um seu próprio sentido, seu Tao, seu estilo. A mensagem residual que fica é a tradicional “As diferenças unem e não desunem os seres humanos”. Portanto, respeito é essencial, pois todos somos da mesma família. O Guggenheim desafia a lei da gravidade e, de tão aparentemente frágil, ameaça cair, mas não devemos subestimá-lo, pois é mais forte do que parece ser. É como um vaso de flores, sendo que as flores são a imaginação do espectador. É um sofisticado portal para o futuro, na vocação artística de Manhattan. O quadro colorido compensa a falta de cores dos quadros restantes, numa busca do artista por equilíbrio, buscando vários efeitos para a mesma causa, num Guggenheim sempre cheio de novidades, um deleite de frescor para quem curte Arte.

Acima, um óleo, colagem e folha plástica sobre madeira com um título extenso: Towards a Definitive Statement on the Coming Trends in Men’s Wear and Accessories, ou seja, Em Direção a Uma Definição das Futuras Tendências da Moda Masculina em Roupas e Acessórios, de 1960. Ficamos sem saber o porquê de um título tão complexo. Os olhos de JFK, no namoro da Pop Art com figuras populares. O presidente aparece como símbolo do sexo masculino, ocupando uma posição de muito poder, respeito e prestígio, na ambição de qualquer homem. O branco tem grande presença na peça, conferindo aspecto limpo, na limpeza da imagem do clã Kennedy. Ao lado do líder político, uma forma oval em vermelho que parece ser um estômago, no sentido de que um presidente tem que ter entranhas para encarar a tarefa de dirigir um país tão grande e complexo. Vemos também uma estrela metálica, como a de um xerife, pois o presidente nada mais é do que o xerife de uma nação, na dureza da mão de ferro que precisa ter para tomar decisões difíceis. Vemos um pequeno aparelho de rádio, simbolizando a cultura de massa, na esmagadora popularidade de JFK frente ao povo americano. Há outros elementos difíceis de ser definidos, num Hamilton enigmático e hermético. Na extrema esquerda, vemos desenhos que parecem ser um projeto de avião ou algo do gênero, no sentido da responsabilidade planejadora com a qual um presidente tem que agir, medindo todas as possíveis consequências e prováveis efeitos colaterais – os grisalhos começam a aparecer na cabeça de um presidente, pois a cabeça que governa sente o peso de uma coroa. Vemos dois borrões negros – um à esquerda e um abaixo do “estômago vermelho”, e o preto pode ser visto como a noite, os mistérios dos meandros do poder, num homem brutalmente assassinado em público, numa grande ironia: uma pessoa de vida pública acaba despedindo-se dessa forma tão testemunhada pela cultura de massa da América. Podemos ver o que parece ser um círculo que lembra uma roda de carro, o carro presidencial que transporta o líder pelo país, numa agenda apertada e atarefada, tendo pouco tempo para descansar e relaxar. Podemos ver também dois pequenos pontos negros quase ao centro do quadro, como os olhos de uma fera assassina que fica à espreita, aguardando um descuido da vítima e atacando esta, no sentido de que a família Kennedy é extremamente famosa e visada pelo povo dos EUA, que tem os seus próprios mitos e lendas. Esta peça de Hamilton é estranha, e pouco de óbvio podemos observar nela. É exatamente esta estranheza que faz com que uma peça de Arte sofra inúmeras interpretações, pois o óbvio nada significa a um artista, o qual convida-nos a entrar em sua mente e a desbravar esta. O presidente Kennedy olha para o futuro, um tanto assoberbado por tanta responsabilidade. Seu rosto nem precisa ser totalmente revelado, e o espectador sabe de quem Hamilton fala. JFK é uma figura tão pop que apenas uma parte do rosto é o suficiente para que seja identificado. É um líder confiado por seu próprio povo, num carisma como de o Obama. E a estrela do xerife dá-lhe autoridade para interferir à vontade nos assuntos de estado. Ele não é presidente; ele está presidente, e sabe que um dia deixará o Salão Oval da Casa Branca, passando a tocha para o próximo eleito pelo povo. Mesmo assim, Kennedy tem um carisma de rei, jamais perdendo a majestade, mesmo após o brutal fim do seu mandato, sendo eternamente lembrado pelas tradições ianques. Raios de Sol irradiam do líder, o qual parece estar numa entrevista coletiva, dando atenção a todos os jornalistas, que iluminam-no com os flashes de evidência da Pop Art.

Acima, Interior II, de 1964, um óleo com colagem e relevo de alumínio sobre madeira. A presença feminina é marcante, dominando o quadro. A mulher em preto e branco, com um elegante penteado, lembra do glamour dos filmes em preto e branco. O televisor representa a cultura de massa, motif da Pop Art. A cadeira de rodinhas tem assento vermelho, sangrando em dor como em uma cruz. A mulher é a dona da casa, e o homem sequer aparece. Há uma certa predominância de cores neutras. Um tapete amarelado traz borrões de tinta, num movimento artístico que libertou a Arte em muitos sentidos – o século XX mostrava-se em sua plenitude pós-guerra. A mulher está de bolsa e salto alto, pronta para sair, arrumada, maquiada e perfumada, uma diva. Ela tem o controle sobre tudo e todos, opondo-se ao brilho viril de JFK. As pernas da cadeira parecem ser de uma aranha, ameaçadora, enquanto um estreito retângulo negro, abaixo do televisor, é como se fosse uma pata decepada da aranha. A mulher reina no lar, e atrás dela vemos outras partes da casa, mostradas de forma discreta, pois o centro de tudo é a mulher, talvez uma catarse de Hamilton para exorcizar o Complexo de Édipo – é o poder terapêutico da Arte, com catarses que faxinam a alma. Não se trata de um quadro escuro e misterioso, mas de um quadro iluminado e limpo, na mulher que se empenha em deixar a casa sempre impecável enquanto o marido sai para trabalhar, e talvez, nesse período, a mulher entregue-se a si mesma e não ao lar que ajudou a construir e manter. A mulher está dizendo Tchau, volto tal hora. Uma pequena tomada elétrica está desplugada, do modo como a Rainha do Lar quer, às vezes, desplugar-se do dia-a-dia e ausentar-se de um mundo às vezes enfadonho. A mulher está meio presa, pois, além do casamento, quer algo a mais da vida, mas não sabe o quê. A mulher está em um vazio existencial, incerta, duvidosa. Ela sabe que, no fim do dia, tem que voltar para casa, fazer o jantar e receber o marido bem bela, lépida e faceira – é uma prisão. A mulher está com um pouco de ódio em relação à sua própria posição subalterna, numa sociedade patriarcal – uma mulher não pode ser livre, mas pertencer a um homem, seja o pai, seja o marido. Ela esqueceu de desligar o televisor, o qual funciona indiferente ao drama desta dona de casa. Eu próprio sou um filho da comunicação de massa, e passei minha infância em frente à televisão. A mulher quer algo mais do que o consumismo pode oferecer – ela quer realização, sentido na vida. E, como disse-me uma grande amiga psicóloga, É tão desinteressante uma pessoa que só é dona de casa. A mulher está prestes a encarar um desafio, o desafio de dar a volta por cima. Torcemos por ela, pois queremos que ela seja feliz e realize seus próprios sonhos. E o tapete multicolorido dá alegria a essa busca existencial, dando um leque de opções à mulher em crise. A mulher está dando-se conta de que estar sempre arrumada e perfumada não é tudo na vida. É uma perua que foi desde sempre educada a servir a um homem. A mulher está percebendo que tem que se esforçar e catartear demônios. Força, mulher!

Acima, Swingeing London 67 II, ou seja, Londres Violenta 67 II, uma serigrafia e óleo sobre tela de 1968. Um quadro misterioso, no qual poucos elementos podemos identificar. Parece que há dois cavalheiros evitando de ser fotografados, tendo uma atitude antipática frente à câmera e cobrindo os rostos com as mãos. Parece que estão numa boate ou num trem de metrô. O agressor é o fotógrafo, que, mesmo vendo a aversão dos homens, insiste em fazer o registro fotográfico, como na baixaria dos tablóides sensacionalistas ingleses, os quais apelam à falta de ética e integridade para vender jornais. É a mazela da cultura de massa e de consumo – quanto mais vendas, melhor, nem que para isso seja preciso publicar artigos mentirosos, parciais ou vulgares. Os tablóides não querem ser respeitados; querem ser lidos pelo maior número de pessoas possível. Os homens sabem disso e evitam a lente ao máximo. Uma celebridade paga o preço por ser uma celebridade, e o desrespeito dos paparazzi toma forma, invadindo vidas, desrespeitando espaços e coisificando pessoas – transformando-as em produtos –, fazendo com que as vidas dessas pessoas tornem-se um número de circo dos horrores. O ser humano tem uma tendência à fofoca, e os tablóides são uma prova disso. A agressiva luz do flash fotográfico revela-se inconveniente, invasiva e amoral, nunca importando-se com a integridade de um profissional de imprensa. Os homens do quadro não estão dispostos a fazer parte desse circo, e não querem sua intimidade exposta, no desejo de preservação das pessoas discretas e íntegras. O fotógrafo aqui é persona non grata, e não percebe que a vida que leva, visando dinheiro, é válida. O fotógrafo tem que repensar sua própria vida. A escuridão predominante nesse quadro é um retrato pessimista e sem ilusões, e a aludida violência no título fala dessa invasão, a qual destrói a dignidade de um ser humano – tanto quem fotografa quanto quem é fotografado. O flash é forte como a luz solar em um dia claro de verão, e essa agressividade revela-se sem sentido. É o vício humano em falar (mal) dos outros. Como diz uma marchinha de carnaval, a água lava tudo; só não lava a língua dessa gente.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

What Blake Makes (O Que Blake Faz)




            O inglês Peter Blake nasce em 1932 em Dartford, Kent. De 1946 a 56, estuda Arte em várias instituições do país. Entre 1951 e 53 presta serviço militar na Royal Air Force – fico impressionado com o número de artistas da Pop Art que prestaram algum serviço militar brutalizante, algo que difere tanto da sensibilidade de quem produz Arte. Na mesma época, Blake ganha uma bolsa de estudos e, a partir de 1959, trabalha com colagens e elementos da cultura de massa, como pinups, imagens de estrelas midiáticas e capas de discos, algo muito característico da Pop Art. Blake leciona Arte em duas instituições entre os anos de 1960 a 64. Em 1961 é premiado em uma mostra individual em Liverpool, casando-se em 1963 e viajando para Los Angeles, EUA, para ser ilustrador para o jornal Sunday Times – o contraste entre a sisudez cinzenta londrina frente ao Sol tórrido e sensual da Califórnia. De 1964 e 1976, volta a lecionar em Londres, e em 1969 tem uma retrospectiva em Bristol. Entre 1973 e 74, retrospectivas na Europa. Em 1974 e 81, ano este em que se divorciou, recebe distinções na Royal Academy. Com parceria com outro artista em 1975, funda a Brotherhood of Ruralists, organizando exposições. Grande retrospectiva em 1983 em Londres. Blake já recebeu distinções de várias instituições de ensino de Arte. Em 2005, funda uma galeria de Arte, e esta década foi de muitas exposições e homenagens ao artista que veio de Dartford. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, Bo Diddley, de 1963. Blake faz uma homenagem a Bo Diddley, influente músico de blues já falecido, classificado como um dos melhores guitarristas do mundo pela revista Rolling Stone. A pele do homem negro entra em harmonia com os tons escuros predominante nesta obra em acrílico. O casaco de Bo é como um kilt, rubro como a guitarra, numa estampa que faz menção à origem britânica de Blake. Os traços são incertos em alguns pontos; em outros, mais nítidos. O cabo da guitarra é a retidão do pensamento racional, opondo-se drasticamente às formas femininas e arredondadas da guitarra. A presença da cor vermelha é em alusão ao sangue africano de Bo, e podemos ouvir este dedilhando o instrumento e produzindo som, música – a Pop Art adora flertar com as outras Artes. Só um dos olhos de Bo está nítido, e podemos ver claramente o branco dos olhos; já, no outro olho, há a incerteza dúbia, a falta de definição. Por baixo do casaco, Bo usa uma camisa branca e uma elegante gravata borboleta. O fundo do quadro é escuro, quase negro como a calça, o cabelo e a barba do músico. O branco entra na peça para dar certos delineamentos, mas é só um ator coadjuvante, ainda assim, importante. Delineando a calça, linhas em azul, talvez em alusão aos blues – azul, em inglês. Uma pequena parte da guitarra está em verde, cor da natureza, em alusão à naturalidade com que o músico toca. Uma das pernas de Bo está flexionada, e podemos vê-lo dançando ao som da música. Bo está completamente à vontade, confortável em sua função artística. Bo não está completamente no centro do enquadramento; está errante, espontâneo, dançando de um lado para o outro, tremulando como uma bandeira. As mãos do músico estão borradas, incertas, em puro movimento de Bo tocando o instrumento. O cabo retilíneo é a razão da vida de Bo, assim como a Pop Art virou a razão da vida de Blake, numa metalinguagem: artista falando de artista, do mesmo modo como, por exemplo, uma atriz interpreta outra atriz. Bo basta a si mesmo e parece não precisar do resto da banda, tendo esta como coadjuvante. O tom da pele do músico traz todo o orgulho das raízes afro, e um discreto lenço branco no bolso externo do casaco simboliza a limpeza, a pureza com que Bo dedica-se ao ofício artístico. Bo é Blake, produtivo, encontrando a si mesmo, fazendo um trabalho que lhe dá extremo prazer. As complexas linhas do kilt são as pessoas passando umas pelas vidas das outras, do mesmo modo como a música passa pela vida de Bo Diddley. O quadro é emoldurado pelo vermelho, no orgulho do sangue afro do músico, como o sangue africano foi derramado em um escravo negro sendo punido com chibatadas. No topo do quadro, coloridas letras garrafais anunciando eloquentemente o artista, parecendo neon, na necessidade da cultura de massa de transmitir mensagens muito, muito claras, quase óbvias. Blake mostra não ter preconceitos, sabendo que somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai, portanto, sobrenomes e dinastias são inúteis, fúteis, ilusórias. A guitarra e Bo são um só ser, um só organismo produtor de música. Os pontos do quadro com pinceladas inexatas trazem dedos que parecem de fato dedilhar. Bo é um objeto à venda, como um LP. A indústria fonográfica inventa seus deuses no afã de vender produtos, e Bo não tem como escapar disso, por mais que tente ser musicalmente fiel à Arte e íntegro em sua profissão. Rebelde, Bo parece querer fugir do quadro e rechaçar a indústria fonográfica, a qual, como dizia o inesquecível Prince, faz dos músicos escravos. Mas, no frigir dos ovos, Bo está bem, contentado em sua função de fazer Arte. Bo está humilde em sua posição de destaque, parecendo não se importar com seu nome sendo esfuziantemente anunciado na fachada de uma casa de shows. Tudo é que Bo quer é tocar a guitarra, divertindo-se como um garoto na beira-mar, pegando ondas. A guitarra é a namorada de Bo, num romance feito para ser eterno. Bo está tão à vontade que a guitarra é como um terceiro braço, na necessidade de um músico em ter intimidade com o instrumento. Bo está aproveitando uma oportunidade na vida, vislumbrando possibilidades musicais. O olho nítido de Bo é um farol que ilumina o resto da banda. Bo está consciente de que é feliz, pois feliz daquele que tem talento e desenvolve o mesmo. O rosto de Diddley tem pinceladas incertas, quase escondendo os traços faciais, sendo que neste rosto o único elemento nítido é o branco do olho à direita – o branco é a clareza com a qual Bo vê o próprio instrumento, e o extenso retângulo fálico do cabo da guitarra é a simplificação que o pensamento racional faz. É simples de se ver: Blake deita e rola na Música, alheio às histerias bobas da tietagem. Bo despreza o mesmo mundo que ama.

            Acima, ABC Minors, ou seja, Crianças da Pré-Escola, de 1955. Os meninos parecem ser siameses, formando um só ser, como uma pessoa que quer harmonizar a própria vida, conciliando o aspecto público com o privado, Yang e Yin. Este óleo sobre painel pode ser a vivência de Blake na escola. Os meninos são muito semelhantes – devem ser gêmeos. Seus cabelos extremamente curtos e recém cortados são a disciplina escolar, que exige silêncio na aula e dedicação aos estudos. Os meninos parecem estar em meio a um trigal dourado, em menção ao ouro conferido ao aluno aplicado, que tira dez na prova – a sociedade estimula a cultura erudita, a qual começa nos bancos escolares, pois a escola é o pilar da vida em sociedade. As vestes dos meninos são bem similares, sisudas, num mundo que exige que crianças cresçam e tornem-se responsáveis. Os meninos têm bótons nas lapelas, registros que simbolizam instituições tradicionais de Educação e Esporte, na tradição inglesa aristocrática de dar distinções, como nos títulos de sangue azul: condes, duques, príncipes etc. Os meninos estão comportados, resignados e tímidos, com as mãos nos bolsos das bermudas. O id está contido pelo superego, e o comportamento em sala de aula revela-se em toda a sua importância imponente – pune-se o aluno indisciplinado. Nesta obra de Blake, as pinceladas são afoitas mas, mesmo assim, nítidas. Pode-se dizer que apenas os olhos e bocas dos meninos são feitas com pinceladas mais definidas. O menino da direita olha diretamente ao espectador, parecendo ter consciência de que está sendo visto e vigiado; já, o menino da esquerda está distraído, olhando para o lado, talvez vendo algo que lhe subtraiu a atenção e o foco. Os meninos são razão e loucura juntas, complementando uma à outra. Um menino é comportado; o outro, nem tanto. São verdade e mentira, e o espectador tem que escolher o caminho que vai seguir, assim como o aluno tem que decidir qual curso seguir no vestibular. O trigal parece dançar por uma agradável brisa, balançando os fios de cabelos dos meninos. Suas bocas são bem vermelhas, em alusão ao sangue azul que, na prática, é vermelho como o dos plebeus. O céu atrás está nublado e não azul anil, entrando em harmonia com as partes pálidas dos rostos dos meninos e com as golas das camisas deles, impecavelmente limpas. Os meninos nasceram em uma posição social que ainda não entendem em sua inocência infantil. Só na maturidade é que eles notarão que são representantes da aristocracia, do topo do bolo social inglês. Nação ultratradicional, a Inglaterra fabrica seus próprios parâmetros sociais e os cultua. Tudo o que os meninos querem é correr pelo trigal e se divertir ao término da aula. A inocência da criança ignora os preconceitos do mundo, e as amizades infantis são puras como a amizade dos meninos, os quais são como dois olhos do mesmo rosto. A técnica de Blake é tão primorosa que podemos ver o brilho nos cabelos e a textura do tecido das bermudas. As pernas dos meninos são completamente borradas, misturando-se ao trigal. O cinto do menino à direita é a rigidez disciplinar, amarrando-o e domando-o em um doloroso nó sufocante – o menino está louco para tirar o cinto e sair para brincar, sem entender direito a inflexível e abismal divisão social entre sangue azul e vermelho.

            Acima, Tuesday, ou seja, Terça-feira, de 1961. Este óleo sobre madeira traz grande intensidade cromática. A sensualidade feminina é explorada: à esquerda, uma mulher glamorosa como uma estrela de cinema, com o rosto emoldurado por um extravagante capuz felpudo; à direita, uma mulher em uma cama, com um fundo vermelho uterino, num convite ao sexo. A palavra título desta obra é como ferro parafusado, na implacável indestrutibilidade da cultura de massa, na dureza do mundo. O retângulo vermelho entra em harmonia com a mulher na cama, e é a dor da cólica menstrual, dor pela qual a mulher é simplesmente obrigada a ter. O retângulo amarelo dá calor e entra em contraste com o retângulo azul, que é frio. Entre as mulheres há um desnível, uma diferença: a da esquerda é dona de si e tem o controle sobre a própria vida, divertidamente desafiando os homens a tê-la e domá-la, como uma floresta virgem selvagem, cheia de mistérios e obstáculos, numa mata fechada e enigmática; a da direita está controlada, submissa, esperando pelo homem, que a sustenta e a escraviza na função de objeto sexual. As cores em Tuesday têm o claro papel de alegrar a cena, a brincadeira da Pop Art na irreverência jovial deste movimento artístico, pois o artista tem que estar sempre antenado no que está sendo feito ao redor do mundo a nível de Arte. A palavra título está blindada e é impermeável, na dureza de uma América na Guerra Fria, sendo que esse aspecto duro e blindado pode ser também relacionado à misteriosa Cortina de Ferro. Por outro lado, as cores superam essa sisudez pétrea. Os três retângulos são como a bandeira de uma nação desconhecida, um lugar alegre e divertido, onde todos somos crianças. A feminilidade das mulheres em Tuesday contrasta com a vicissitude masculina da vida; contrasta com as letras blindadas. Os retângulos são como andares de um prédio divertido; a palavra título é o nome do prédio; as mulheres ao topo são os destaques, as estrelas. Uma assusta; a outra, acolhe. Pode-se dizer que trata-se da mesma mulher, só que em contextos diferentes, sendo uma a contradição da outra. Os retângulos são como pistas de corrida, e as mulheres competem entre si, na competitividade do mercado de trabalho, no qual todos competem com o mesmo objetivo. Quem vai ganhar – a acessível ou a inacessível? A mulher acessível está à disposição dos preconceitos da sociedade patriarcal; a inacessível, à disposição de si mesma e apenas de si mesma. A cabeceira da cama tem formas voluptuosas, na sensualidade carnal da mulher prostituída e reduzida a um papel coadjuvante. Não me admira o fato das feministas terem tanto pavor do machismo do mundo. Tuesday é, ao mesmo tempo, uma alforria e uma senzala, e as cores estão aí para nos distrair e apagar o foco de discussão: vivemos em um mundo preconceituoso?

            Acima, Tarzan, Jane, Boy and Cheeta, ou seja, Tarzan, Jane, Menino e Cheeta, de 1966-75. Este óleo sobre tela explora o famoso Rei da Selva, personagem inspirado no Cinema por um clássico da Literatura. É claro que nesta obra de Blake há uma releitura e uma inspiração absolutamente livre. Jane mostra voluptuosos seios, sem se constranger com a nudez de si mesma. Jane observa seus próprios seios, na nudez natural da selva, do Éden. O atlético Tarzan está barbeado e com o cabelo devidamente cortado, um gentleman, muito distante do homem criado na selva por gorilas. O menino está à imagem e semelhança do pai Tarzan. Cheeta está tranquila, distraída. Atrás dos personagens, paredes de madeira da arquitetura típica da dinastia Tudor da Inglaterra. Nas paredes, dois brasões aristocráticos. Acima da parede, uma pequena ilustração de Mickey Mouse, no apelo midiático da Pop Art. Um prato dourado é o Sol que nasce e ilumina a selva de Tarzan, o qual é o Rei Sol de seus próprios domínios. Ao lado um cálice, o Santo Graal de Jesus Cristo, o Rei dos reis; fazendo conjunto com o cálice, uma jarra que contém vinho, o sangue do Salvador. Mais à direita, um quadro em preto e branco de um homem sério, talvez o próprio Blake em sua atitude artística séria, preocupado em fazer um trabalho bem feito. Ao fundo de todos os objetos, uma parede cor-de-rosa, na feminilidade de Jane, a Rainha da selva. Jane banha-se em uma água azulada, numa figura de profundo prazer. Cheeta é uma fiel companheira, tranquilamente incorporada ao lar da família Tarzan. Tanto a nudez feminina quanto a masculina são tratadas sem o peso da culpa da maçã que tentou Adão e Eva. Mickey Mouse é um bichinho da selva; é um súdito de Tarzan. Podemos dizer que a cena é toda pós-moderna: há uma releitura ousada, arejada, inovadora, inusitada, irreverente. Blake não leva a si mesmo tão seriamente, e sabe que a mente tem que se manter jovial, livre de ranços. Ao mesmo tempo, em contradição, Blake traz aspectos sérios, como a estratificação social da nobreza inglesa. Misturando tudo em uma só panela, há na boca um gosto muito próprio, de um artista que nunca se repetiu e nunca entediou o público. Por fim, Jane está com as pernas bem abertas, mas a virilha está borrada, sem revelar a nudez íntima da esposa de Tarzan, o qual sorri ao espectador, feliz em seu próprio lar, doce lar. As pernas abertas são um convite de Blake a entrar na mente do artista e aventurar-se por essa selva de Arte. Os pelos da vulva de Jane são os pelos de Cheeta, no mistério da criação, da vida, da gênese. Já ouvi falar que a vida é o nervo da Arte. Atrás de Jane, um triângulo vermelho. O que será?

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007