O
inglês Peter Blake nasce em 1932 em Dartford, Kent. De 1946 a 56, estuda Arte em várias
instituições do país. Entre 1951 e 53 presta serviço militar na Royal Air Force
– fico impressionado com o número de artistas da Pop Art que prestaram algum
serviço militar brutalizante, algo que difere tanto da sensibilidade de quem
produz Arte. Na mesma época, Blake ganha uma bolsa de estudos e, a partir de
1959, trabalha com colagens e elementos da cultura de massa, como pinups, imagens
de estrelas midiáticas e capas de discos, algo muito característico da Pop Art.
Blake leciona Arte em duas instituições entre os anos de 1960 a 64. Em 1961 é
premiado em uma mostra individual em Liverpool, casando-se em 1963 e viajando
para Los Angeles, EUA, para ser ilustrador para o jornal Sunday Times – o contraste
entre a sisudez cinzenta londrina frente ao Sol tórrido e sensual da
Califórnia. De 1964 e 1976, volta a lecionar em Londres, e em 1969 tem uma
retrospectiva em
Bristol. Entre 1973 e 74, retrospectivas na Europa. Em 1974 e
81, ano este em que se divorciou, recebe distinções na Royal Academy. Com
parceria com outro artista em 1975, funda a Brotherhood
of Ruralists, organizando exposições. Grande retrospectiva em 1983 em Londres. Blake já
recebeu distinções de várias instituições de ensino de Arte. Em 2005, funda uma
galeria de Arte, e esta década foi de muitas exposições e homenagens ao artista
que veio de Dartford. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e
não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.
Acima, Bo Diddley, de 1963. Blake faz uma homenagem a Bo Diddley,
influente músico de blues já falecido, classificado como um dos melhores
guitarristas do mundo pela revista Rolling Stone. A pele do homem negro entra
em harmonia com os tons escuros predominante nesta obra em acrílico. O casaco de
Bo é como um kilt, rubro como a guitarra, numa estampa que faz menção à origem
britânica de Blake. Os traços são incertos em alguns pontos; em outros, mais
nítidos. O cabo da guitarra é a retidão do pensamento racional, opondo-se
drasticamente às formas femininas e arredondadas da guitarra. A presença da cor
vermelha é em alusão ao sangue africano de Bo, e podemos ouvir este dedilhando
o instrumento e produzindo som, música – a Pop Art adora flertar com as outras
Artes. Só um dos olhos de Bo está nítido, e podemos ver claramente o branco dos
olhos; já, no outro olho, há a incerteza dúbia, a falta de definição. Por baixo
do casaco, Bo usa uma camisa branca e uma elegante gravata borboleta. O fundo do
quadro é escuro, quase negro como a calça, o cabelo e a barba do músico. O
branco entra na peça para dar certos delineamentos, mas é só um ator
coadjuvante, ainda assim, importante. Delineando a calça, linhas em azul,
talvez em alusão aos blues – azul, em inglês. Uma pequena parte da guitarra está em
verde, cor da natureza, em alusão à naturalidade com que o músico toca. Uma das
pernas de Bo está flexionada, e podemos vê-lo dançando ao som da música. Bo
está completamente à vontade, confortável em sua função artística. Bo não está
completamente no centro do enquadramento; está errante, espontâneo, dançando de
um lado para o outro, tremulando como uma bandeira. As mãos do músico estão
borradas, incertas, em puro movimento de Bo tocando o instrumento. O cabo
retilíneo é a razão da vida de Bo, assim como a Pop Art virou a razão da vida
de Blake, numa metalinguagem: artista falando de artista, do mesmo modo como,
por exemplo, uma atriz interpreta outra atriz. Bo basta a si mesmo e parece não
precisar do resto da banda, tendo esta como coadjuvante. O tom da pele do
músico traz todo o orgulho das raízes afro, e um discreto lenço branco no bolso
externo do casaco simboliza a limpeza, a pureza com que Bo dedica-se ao ofício
artístico. Bo é Blake, produtivo, encontrando a si mesmo, fazendo um trabalho
que lhe dá extremo prazer. As complexas linhas do kilt são as pessoas passando
umas pelas vidas das outras, do mesmo modo como a música passa pela vida de Bo
Diddley. O quadro é emoldurado pelo vermelho, no orgulho do sangue afro do
músico, como o sangue africano foi derramado em um escravo negro sendo punido
com chibatadas. No topo do quadro, coloridas letras garrafais anunciando eloquentemente
o artista, parecendo neon, na necessidade da cultura de massa de transmitir
mensagens muito, muito claras, quase óbvias. Blake mostra não ter preconceitos,
sabendo que somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai, portanto, sobrenomes e
dinastias são inúteis, fúteis, ilusórias. A guitarra e Bo são um só ser, um só
organismo produtor de música. Os pontos do quadro com pinceladas inexatas
trazem dedos que parecem de fato dedilhar. Bo é um objeto à venda, como um LP.
A indústria fonográfica inventa seus deuses no afã de vender produtos, e Bo não
tem como escapar disso, por mais que tente ser musicalmente fiel à Arte e
íntegro em sua profissão. Rebelde, Bo parece querer fugir do quadro e rechaçar
a indústria fonográfica, a qual, como dizia o inesquecível Prince, faz dos
músicos escravos. Mas, no frigir dos ovos, Bo está bem, contentado em sua
função de fazer Arte. Bo está humilde em sua posição de destaque, parecendo não
se importar com seu nome sendo esfuziantemente anunciado na fachada de uma casa
de shows. Tudo é que Bo quer é tocar a guitarra, divertindo-se como um garoto
na beira-mar, pegando ondas. A guitarra é a namorada de Bo, num romance feito
para ser eterno. Bo está tão à vontade que a guitarra é como um terceiro braço,
na necessidade de um músico em ter intimidade com o instrumento. Bo está aproveitando
uma oportunidade na vida, vislumbrando possibilidades musicais. O olho nítido
de Bo é um farol que ilumina o resto da banda. Bo está consciente de que é feliz,
pois feliz daquele que tem talento e desenvolve o mesmo. O rosto de Diddley tem
pinceladas incertas, quase escondendo os traços faciais, sendo que neste rosto
o único elemento nítido é o branco do olho à direita – o branco é a clareza com
a qual Bo vê o próprio instrumento, e o extenso retângulo fálico do cabo da
guitarra é a simplificação que o pensamento racional faz. É simples de se ver:
Blake deita e rola na Música, alheio às histerias bobas da tietagem. Bo despreza
o mesmo mundo que ama.
Acima, ABC Minors, ou seja, Crianças
da Pré-Escola, de 1955. Os meninos parecem ser siameses, formando um só
ser, como uma pessoa que quer harmonizar a própria vida, conciliando o aspecto
público com o privado, Yang e Yin. Este óleo sobre painel pode ser a vivência
de Blake na escola. Os meninos são muito semelhantes – devem ser gêmeos. Seus
cabelos extremamente curtos e recém cortados são a disciplina escolar, que
exige silêncio na aula e dedicação aos estudos. Os meninos parecem estar em
meio a um trigal dourado, em menção ao ouro conferido ao aluno aplicado, que
tira dez na prova – a sociedade estimula a cultura erudita, a qual começa nos
bancos escolares, pois a escola é o pilar da vida em sociedade. As vestes
dos meninos são bem similares, sisudas, num mundo que exige que crianças
cresçam e tornem-se responsáveis. Os meninos têm bótons nas lapelas, registros que
simbolizam instituições tradicionais de Educação e Esporte, na tradição inglesa
aristocrática de dar distinções, como nos títulos de sangue azul: condes,
duques, príncipes etc. Os meninos estão comportados, resignados e tímidos, com
as mãos nos bolsos das bermudas. O id está contido pelo superego, e o
comportamento em sala de aula revela-se em toda a sua importância imponente –
pune-se o aluno indisciplinado. Nesta obra de Blake, as pinceladas são afoitas
mas, mesmo assim, nítidas. Pode-se dizer que apenas os olhos e bocas dos
meninos são feitas com pinceladas mais definidas. O menino da direita olha
diretamente ao espectador, parecendo ter consciência de que está sendo visto e
vigiado; já, o menino da esquerda está distraído, olhando para o lado, talvez
vendo algo que lhe subtraiu a atenção e o foco. Os meninos são razão e loucura
juntas, complementando uma à outra. Um menino é comportado; o outro, nem tanto.
São verdade e mentira, e o espectador tem que escolher o caminho que vai
seguir, assim como o aluno tem que decidir qual curso seguir no vestibular. O
trigal parece dançar por uma agradável brisa, balançando os fios de cabelos dos
meninos. Suas bocas são bem vermelhas, em alusão ao sangue azul que, na
prática, é vermelho como o dos plebeus. O céu atrás está nublado e não azul
anil, entrando em harmonia com as partes pálidas dos rostos dos meninos e com
as golas das camisas deles, impecavelmente limpas. Os meninos nasceram em uma
posição social que ainda não entendem em sua inocência infantil. Só na maturidade
é que eles notarão que são representantes da aristocracia, do topo do bolo
social inglês. Nação ultratradicional, a Inglaterra fabrica seus próprios
parâmetros sociais e os cultua. Tudo o que os meninos querem é correr pelo
trigal e se divertir ao término da aula. A inocência da criança ignora os
preconceitos do mundo, e as amizades infantis são puras como a amizade dos meninos,
os quais são como dois olhos do mesmo rosto. A técnica de Blake é tão primorosa
que podemos ver o brilho nos cabelos e a textura do tecido das bermudas. As
pernas dos meninos são completamente borradas, misturando-se ao trigal. O cinto
do menino à direita é a rigidez disciplinar, amarrando-o e domando-o em um
doloroso nó sufocante – o menino está louco para tirar o cinto e sair para
brincar, sem entender direito a inflexível e abismal divisão social entre
sangue azul e vermelho.
Acima, Tuesday, ou seja, Terça-feira,
de 1961. Este óleo sobre madeira traz grande intensidade cromática. A
sensualidade feminina é explorada: à esquerda, uma mulher glamorosa como uma
estrela de cinema, com o rosto emoldurado por um extravagante capuz felpudo; à
direita, uma mulher em uma cama, com um fundo vermelho uterino, num convite ao
sexo. A palavra título desta obra é como ferro parafusado, na implacável
indestrutibilidade da cultura de massa, na dureza do mundo. O retângulo
vermelho entra em harmonia com a mulher na cama, e é a dor da cólica menstrual,
dor pela qual a mulher é simplesmente obrigada a ter. O retângulo amarelo dá
calor e entra em contraste com o retângulo azul, que é frio. Entre as mulheres
há um desnível, uma diferença: a da esquerda é dona de si e tem o controle
sobre a própria vida, divertidamente desafiando os homens a tê-la e domá-la,
como uma floresta virgem selvagem, cheia de mistérios e obstáculos, numa mata
fechada e enigmática; a da direita está controlada, submissa, esperando pelo
homem, que a sustenta e a escraviza na função de objeto sexual. As cores em Tuesday têm o claro papel de alegrar a
cena, a brincadeira da Pop Art na irreverência jovial deste movimento artístico,
pois o artista tem que estar sempre antenado no que está sendo feito ao redor
do mundo a nível de Arte. A palavra título está blindada e é impermeável, na
dureza de uma América na Guerra Fria, sendo que esse aspecto duro e blindado
pode ser também relacionado à misteriosa Cortina de Ferro. Por outro lado, as
cores superam essa sisudez pétrea. Os três retângulos são como a bandeira de
uma nação desconhecida, um lugar alegre e divertido, onde todos somos crianças.
A feminilidade das mulheres em Tuesday
contrasta com a vicissitude masculina da vida; contrasta com as letras
blindadas. Os retângulos são como andares de um prédio divertido; a palavra
título é o nome do prédio; as mulheres ao topo são os destaques, as estrelas.
Uma assusta; a outra, acolhe. Pode-se dizer que trata-se da mesma mulher, só
que em contextos diferentes, sendo uma a contradição da outra. Os retângulos
são como pistas de corrida, e as mulheres competem entre si, na competitividade
do mercado de trabalho, no qual todos competem com o mesmo objetivo. Quem vai
ganhar – a acessível ou a inacessível? A mulher acessível está à disposição dos
preconceitos da sociedade patriarcal; a inacessível, à disposição de si mesma e
apenas de si mesma. A cabeceira da cama tem formas voluptuosas, na sensualidade
carnal da mulher prostituída e reduzida a um papel coadjuvante. Não me admira o
fato das feministas terem tanto pavor do machismo do mundo. Tuesday é, ao mesmo tempo, uma alforria
e uma senzala, e as cores estão aí para nos distrair e apagar o foco de
discussão: vivemos em um mundo preconceituoso?
Acima, Tarzan, Jane, Boy and Cheeta, ou seja, Tarzan, Jane, Menino e Cheeta, de 1966-75. Este óleo sobre tela
explora o famoso Rei da Selva, personagem inspirado no Cinema por um clássico
da Literatura. É claro que nesta obra de Blake há uma releitura e uma
inspiração absolutamente livre. Jane mostra voluptuosos seios, sem se
constranger com a nudez de si mesma. Jane observa seus próprios seios, na nudez
natural da selva, do Éden. O atlético Tarzan está barbeado e com o cabelo
devidamente cortado, um gentleman, muito distante do homem criado na selva por
gorilas. O menino está à imagem e semelhança do pai Tarzan. Cheeta está
tranquila, distraída. Atrás dos personagens, paredes de madeira da arquitetura
típica da dinastia Tudor da Inglaterra. Nas paredes, dois brasões
aristocráticos. Acima da parede, uma pequena ilustração de Mickey Mouse, no
apelo midiático da Pop Art. Um prato dourado é o Sol que nasce e ilumina a
selva de Tarzan, o qual é o Rei Sol de seus próprios domínios. Ao lado um
cálice, o Santo Graal de Jesus Cristo, o Rei dos reis; fazendo conjunto com o
cálice, uma jarra que contém vinho, o sangue do Salvador. Mais à direita, um
quadro em preto e branco de um homem sério, talvez o próprio Blake em sua
atitude artística séria, preocupado em fazer um trabalho bem feito. Ao fundo de
todos os objetos, uma parede cor-de-rosa, na feminilidade de Jane, a Rainha da
selva. Jane banha-se em uma água azulada, numa figura de profundo prazer.
Cheeta é uma fiel companheira, tranquilamente incorporada ao lar da família
Tarzan. Tanto a nudez feminina quanto a masculina são tratadas sem o peso da
culpa da maçã que tentou Adão e Eva. Mickey Mouse é um bichinho da selva; é um
súdito de Tarzan. Podemos dizer que a cena é toda pós-moderna: há uma releitura
ousada, arejada, inovadora, inusitada, irreverente. Blake não leva a si mesmo
tão seriamente, e sabe que a mente tem que se manter jovial, livre de ranços.
Ao mesmo tempo, em contradição, Blake traz aspectos sérios, como a
estratificação social da nobreza inglesa. Misturando tudo em uma só panela, há
na boca um gosto muito próprio, de um artista que nunca se repetiu e nunca
entediou o público. Por fim, Jane está com as pernas bem abertas, mas a virilha
está borrada, sem revelar a nudez íntima da esposa de Tarzan, o qual sorri ao
espectador, feliz em seu próprio lar, doce lar. As pernas abertas são um
convite de Blake a entrar na mente do artista e aventurar-se por essa selva de
Arte. Os pelos da vulva de Jane são os pelos de Cheeta, no mistério da criação,
da vida, da gênese. Já ouvi falar que a vida é o nervo da Arte. Atrás de Jane,
um triângulo vermelho. O que será?
Referência
bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007
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