quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Jasper - de Nova York ao Japão




            Jasper Johns nasce em 1930 em Augusta, Geórgia, EUA, e passa a infância na Carolina do Sul, tendo depois prestado serviço militar no Japão. Estuda de 1949 a 1951 na Universidade deste estado americano e trabalha em uma livraria entre 1952 e 1958. Com Robert Rauschenberg, artista já analisado neste blog, Jasper decora uma vitrine e, em 1954, faz seu primeiro quadro. Em 1958, faz a primeira exposição individual em Nova York, participa da Bienal de Veneza e ganha um prêmio na Bienal de Pittsburgh. Em 1959, participa de mostra coletiva no MoMA. Em 1960, começa a fazer litografia. Em 1961, expõe em Paris. Tem retrospectiva coletiva no Museu Judaico de Nova York em 1964, participando neste ano novamente da Bienal de Veneza. Em 1965, grande retrospectiva de Johns no Pasadena Art Museum, recebendo também um prêmio na Iugoslávia. Em 1966, exposição individual na National Collection of Fine Arts, de Washington. Em 1967 aluga um sótão para trabalhar e ilustra poemas de Frank O’Hara. Nessa época, Jasper também torna-se conselheiro artístico, guiando outros artistas. Em 1972, concebe figurinos de peça teatral. Em 1977, importante retrospectiva no Whitney Museum e, em 1978, em Colônia (Alemanha), Paris, Londres e Tóquio. No mesmo ano, ainda mais uma participação na Bienal de Veneza. Em 1979, exposição na Basileia e, em 1988, JJ finalmente recebe um prêmio na Bienal de Veneza. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

Acima, Target with Plaster Casts, ou seja, Alvo e Moldagem em Gesso, de 1955. O alvo é o objetivo do artista. O alvo deve ser agredido pela flecha; deve sentir a dor da incisão. O vermelho ao redor do alvo esquenta a cena, como um molho de tomate sobre espaguete. O alvo é um prato vazio, o qual deve ser preenchido pelo pensamento racional. No filme A Época da Inocência, a personagem de Winona Ryder, cujo sobrenome é Archer, ou seja, Arqueiro, ganha um concurso de arco e flecha, numa personagem que tem um objetivo claro e simples: casar, ter filhos, ter uma vida social harmônica e construir um lar com L maiúsculo. Já, a personagem depressiva de Michelle Pfeiffer está perdida, sem objetivo, sofrendo, sendo considerada um objeto cuja utilidade é desconhecida. O alvo é visado pela agressividade, a qual deve ser impiedosa. Quem sabe o vermelho é o sangue pulsante, excitando um vampiro psicopata. O cinza azulado são as cinzas na vida de quem não tem propósito ou objetivo, do modo como a pessoa sem objetivos é tratada como cocô, sendo condenada a ser levada embora pela descarga da privada. O amarelo é o ouro, a recompensa para quem vence o concurso de arco e flecha; é o ouro da estatueta do Oscar e do robô C3PO de Star Wars. Acima do alvo, há pequenas prateleiras com objetos que retratam partes do corpo humano, no desmantelamento psíquico da pessoa depressiva: são pés, orelhas, narizes, mãos, bocas, como um Frankenstein, uma reunião de peças desconexas que tratam de gerar um novo ser, do mesmo modo como produzir Arte Plástica é combinar elementos para produzir algo novo. O alvo é como uma gota d’água caindo e gerando ondas de propagação, na fragilidade da superfície d’água, sensível a qualquer toque, como era sensível a personagem de Pfeiffer. O alvo é a glória olímpica dos campeões arqueiros, numa metalinguagem, pois o alvo, objetivo de vida deles, é, ironicamente, um alvo. As formas arredondadas giram em torno de um sol, num sistema solar regido pelo astro-rei. Organização. Tudo gira em torno de algo, ou seja, de Tao. As caixas com os pedaços humanos são lúgubres, como um sádico que mata vítimas, esquarteja-as e guarda seus pedaços como souvenires. As prateleiras são o hábito de analisar e classificar, do mesmo modo como a Medicina analisa o corpo humano e o setoriza em forma de órgãos, sistemas e aparelhos. O alvo tem uma certa fragilidade feminina – é passivo, exposto, disponível, uma donzela em apuros. O arqueiro fica obcecado em acertá-lo. O alvo é o símbolo de uma vida centrada, uma vida bem-estruturada, construída cuidadosamente. A obsessão pelo alvo é tão grande que uma arqueira chega a amputar o próprio seio direito para poder manejar o arco com destreza. O alvo é o feminismo, numa mulher que quer ser livre e que quer ter um objetivo, como qualquer homem o tem. O alvo é como pratos de diferentes tamanhos organizados por ordem de tamanho, numa hierarquia – quanto maior, mais para trás fica, para mostrar os seus irmãos menores, pois, como o Espiritismo diz, há uma hierarquia muito forte entre os espíritos: os mais depurados moralmente regem os menos depurados, fazendo metáfora com a hierarquia militar, por exemplo, ou com os jogos de bonecas russas, nos quais as bonecas maiores abrigam as menores. O alvo é como se fosse uma bola cortada ao meio, como um cadáver é dissecado em nome da Ciência. O alvo é o útero avermelhado, o misterioso âmbito da vida, e o pênis é o princípio de desbravamento, a flecha que se atém somente ao necessário – é a simplicidade viril. Os pedaços de corpo são multicoloridos, como num arco-íris, trazendo alegria e diversidade. Alvo e Moldagem em Gesso é muito colorido, quente, acolhedor. É um confortável sofá chamando-nos para sentar nele. O vermelho é um tapete vip, uma decoração chinesa, vibrante. São ondas sonoras espalhando-se, num pulsar de vida. Cada prateleira tem uma portinhola removida, permitindo que os conteúdos sejam vislumbrados pelo espectador. É a revelação de mistérios, de cores doces, como numa salada de frutas, como numa paella de carnes variadas, como num fondue de queijos. O alvo vibra como uma sirene, escandalosamente, ruidosamente. É como um disco de vinil tocando, sensível à agulha fálica, revelando arte e sensibilidade na vagina feminina, o buraco acústico do violão. O disco de LP, assim como o CD, tem um furo bem no meio, e é esse vazio que faz com que o LP e o CD sejam úteis – a ausência e o minimalismo tornam-se poderosos, como um buraco negro no meio de uma galáxia. O alvo é uma explosão como na clássica obra Explosão Número Um de Roy Lichtenstein, já analisada por este blog. O alvo é uma deliciosa pizza, com queijo quentinho e derretido, com ingredientes e condimentos irresistíveis. O vermelho é a pimenta, a excitação, a graça, o sabor do objetivo. A pessoa objetivada tem uma vida simples, centrada no meio do alvo. A partir de um centro, a vida torna-se harmônica, e o sofrimento é minimizado. O alvo é como um espasmo de dor, um sinal de alerta, de que algo está errado. É claro de se observar que tudo nesta obra gira em torno do centro do alvo, na beleza do vazio, do mesmo modo como o vazio de uma porta aberta faz com que esta seja útil. Na linguagem publicitária, o termo target (alvo) é usado para designar o perfil do público o qual deseja-se atingir com uma campanha publicitária. O alvo é a clareza, a desconstrução, transformando o complicado em simples, abreviando dores e eliminando superstições sombrias e dúbias. Uma vida centrada é uma vida feliz. O alvo é uma visão aérea de um bolo com vários andares, como num casamento, o objetivo da vida de uma mulher. As argolas do alvo abrigam umas às outras, gerando um lar, um ninho, uma referência, um aconchego. O centro do alvo faz com que tudo gravite em torno de si, organizando a vida. Do modo como a palavra “gol” vem do inglês “goal”, que quer dizer “meta”, o jogador cruza o campo driblando percalços e saindo-se vitorioso na consumação do único objetivo em um esporte – o ponto. O alvo é um grande ponto-final, na simplicidade na qual uma goleira, o princípio feminino de passividade, deve ser desvirginada pela bola, que é o princípio ativo. O ponto organiza textos, finalizando frases e marcando o início de outras. É como o planeta Terra cortado ao meio, revelando camadas geológicas chegando ao núcleo, à raiz, ao útero, à fonte central da vida, vida quente como o vermelho desta obra de Jasper Johns. O alvo é o princípio e o fim, a finalidade. A pessoa centrada tem razão para viver, dando um norte à própria vida. O que é de um navegador sem sua bússola? O alvo propaga-se por todos os pontos cardeais, espalhando-se uniformemente em todas as direções. É como um Código Morse, numa estrela coruscando como fino cristal, do modo como um astro de cinema brilha e propaga seu brilho aos olhos do mundo. O alvo é a cidade perdida de Atlântida, com seus anéis de concreto intercalados por anéis de água, num mistério que perdura. E as várias luas de Júpiter circundam o planeta, como os espermatozóides em torno de um óvulo.

Acima, Three Flags, ou seja, Três Bandeiras, de 1958. Patriotismo claro, quiçá uma catarse para expulsar o chauvinismo. As bandeiras são três irmãs, como no Cinturão de Órion, para sempre brilhando, alinhadas às três famosas pirâmides egípcias. Há um céu noturno repleto de estrelas, como no panteão de Hollywood. É como uma pirâmide vista de cima, numa estrutura absolutamente estável – a base é grande, e vai afinando à medida em que sobe até o topo pontiagudo, numa forma agressiva de geometria. A intercalação de listras brancas e vermelhas são o contraste entre dor e prazer, visto que estes dois mesclam-se e produzem um sabor agridoce na vida. E por que o artista só se contentou depois de três bandeiras? Seria uma forma de reiterar seu orgulho de ser americano? A Pop Art faz isso, explorando os aspectos do modo americano de vida, como o consumo e o culto a personalidades da arte e da política. A bandeira menor faz com que a maior seja notada em seu tamanho, e a bandeira maior faz com que a menor também seja vista como pequena, tendo uma sustentando a outra. A bandeira do meio é o tamanho ideal, o equilíbrio, o bom senso. Há uma metalinguagem, pois há uma bandeira falando de outra bandeira que, por sua vez, fala de mais outra bandeira, num túnel de profundidade eterna. A sobreposição dá movimento ao quadro, e as bandeiras parecem tremular. Quase podemos ouvir o hino nacional dos EUA, e a tradição militar do país do Tio Sam é inegável. A América cultua si mesma, como em super-heróis como Capitão América e Mulher Maravilha, cujos trajes trazem alusão não só à bandeira nacional americana como também a conceitos patrióticos como liberdade – o busto da MM é adornado por uma águia, sendo esta símbolo nacional dos direitos de cada cidadão americano, como liberdade de expressão e de pensamento. Terra dos livres, lar dos valentes, diz o hino dos EUA. O americano está confortável em sua própria pele. As bandeiras de Jasper anteciparam, ironicamente, o momento em que JJ foi condecorado décadas depois com uma honraria nacional americana, momento comentado no final desta crônica. O próprio artista falou sobre Três Bandeiras, dizendo que a peça não é nem quadro, nem bandeira, numa contradição enigmática, característica da grande obra de Arte. Nada mais natural do que este quadro patriótico fazer parte do acervo de um museu especializado em arte americana, o Whitney Museum de Nova York.

Acima, Studio, ou seja, Atelier, de 1964. O azul cinzento traz sisudez e discrição. Na parte direita, algo que parece ser uma explosão, um sol negro, ou um formato parecido com a folha de maconha, nas explosões inventadas pela indústria cultural, a qual quer vender ídolos vendáveis. Na extrema direita, latas descartadas dependuradas, mostrando como a sociedade de consumo produz lixo, no ritmo frenético de uso e desuso de embalagens e produtos, como na célebre lata de sopa de tomate de Andy Warhol, peça já analisada neste blog. O vazio das latas é o vazio do consumismo – quanto mais tenho, menos feliz sou; quanto mais compro, maior a sensação de vazio. É a ironia do ter. Impondo-se quase centralmente nesse óleo sobre tela, um bloco branco que parece ser uma geladeira, um objeto de desejo, um eletrodoméstico moderno à disposição na loja somente para quem tem cacife – a sociedade de consumo é excludente, e gera no indivíduo sonhos de aquisição, na ilusão do materialismo. À direita da geladeira, três blocos coloridos, na tendência de Jasper em evocar a mágica cromática – um artista que gosta de se divertir, nunca perdendo a jovialidade, como Leonardo da Vinci. Os blocos são países do bloco capitalista, e entram em harmonia uns com os outros, em oposição ao bloco comunista. O consumismo não deixa de ser uma ditadura, pois não achar que se tem o suficiente é caótico. O tom de azul cinzento opõe-se à alegria de um céu azul anil. A Guerra Fria tem toda uma seriedade, e um artista tem o dom e o desejo inconscientes de enaltecer momentos históricos e expressar estes. As latas vazias são descartadas como uma pessoa pobre, excluída do convívio social. Elas pendem por um frágil fio como um relógio, pendendo e marcando o tempo, pois tempo é dinheiro, dizem os americanos. O fino fio é a fragilidade de uma existência voltada ao ter.

Acima, Untitled, ou seja, Sem Título, de 1964-65. O óleo sobre tela lembra, inegavelmente, o bairro multicolorido El Caminito, de Buenos Aires. A Pop Art revela-se em toda a sua paixão pelas cores festivas e intensas. O conjunto é vibrante, e letras desfilam divertidamente pelo quadro, o qual não tem norte, não tem ponto gravitacional de referência. Na extrema direita, uma vassoura dependurada, no desejo de Jasper de limpar a América de tanta sisudez e celebrar a superação em relação à II Guerra Mundial. A Pop Art foi uma grande vassoura conceitual, trazendo um vento fresquinho de novidade – a Arte transforma-se sempre. Quase não há curvas, mas blocos retangulares, em uma certa tensão. As poucas curvas existentes lembram frações de arco-íris, como num prisma mágico projetando um baú rico em cores variadas, como na bandeira gay. Há três círculos negros, fazendo referência espacial, delimitando territórios de uma nação feliz e harmônica – Jasper revela ter fé na América. O amarelo, vermelho e laranja são uma explosão de calor, como no verão da Flórida. Desfilando pelo quadro, retângulos menores, predominantemente brancos, contrapondo-se aos pontos negros – são como cartões de visita, apresentando os EUA ao mundo, obtendo respeito universal em torno da obra de Jasper Johns, um artista do mundo. Um desajeitado retângulo verde, com gotas de tinta escorrendo, traz a inclinação de Jasper em torno de pinceladas furiosas, apressadas, marcantes – a Arte libertava-se de certos paradigmas, e trouxe toda uma atitude, uma verve, um pólo. O amarelo de ouro nesta tela é uma medalha olímpica, um reconhecimento, um marco. Jasper sobre a um pódio e recebe seu prêmio; recebe reconhecimento, a ambição de todo artista. Sem Título tem uma certa semelhança com as linhas retilíneas de Piet Mondrian, com quadrados e retângulos trazendo cores. É impossível para um artista não sofrer influências; é impossível não ter inspirações baseadas em outros artistas. É um corpo dinâmico em constante processo. Esta tela tem uma certa candura infantil, como caramelos multicoloridos à venda num bar. E a vassoura pertence a uma bruxa de contos infantis, só que a bruxa foi dar uma volta e esqueceu a vassoura em casa. A vassoura é a vida de um gari, que passa os dias varrendo as ruas de uma cidade, tentando impor ordem ao caos da sujeira. A limpeza pertence a Tao, o guardião do essencial. Esta tela de Jasper tem um aroma doce, uma delicada fragrância jovial. É como um comercial de Coca-Cola, com a juventude radiante e feliz, curtindo a vida e divertindo-se risonhamente, numa colorida loja de moda jovem.

Acima, Jasper Johns recebendo do presidente Obama a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior condecoração civil dos EUA. O mesmo presidente já deu a honraria a, entre outros, a deusa Meryl Streep, Bill Clinton, Steven Spielberg e Oprah Winfrey.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

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