quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Clareza de Clark



Lygia Clark se autointitulava uma “não artista”. Porém, apesar da humildade da artista, podemos observar o talento de LC na obra desta brasileira, e somos levados a discordar do termo “não artista”. Discordamos de alguém com que concordamos! Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Bichos. Animais caminhando e voando por uma floresta virgem, selvagem. É uma variedade de Fauna, num Brasil tão rico em recursos naturais, no modo como a exuberante Natureza Brasileira inspirou, por exemplo, todo o Modernismo Brasileiro, na busca por uma identidade nacional, assim como é um desafio a construção de identidade do Cinema Brasileiro. São brinquedos espalhados em um playground, ou em uma sala de uma casa que abriga uma ou mais crianças. São como pessoas desencarnadas e mortificadas, no modo como o espírito é algo “morto”, sem as trepidantes ambições que tanto flagelam o Ser Humano. É um ambiente, um organismo no qual cada espírito (ou bicho) tem seu papel, e cada um está satisfeito e contente em estar como está, como numa cidade de bonecas, onde a beleza reina por todos os cantos, num lugar de muita Paz e silêncio, onde uma pessoa brutalizada pela Vida pode desencarnar e voltar a ser criança de algum modo, voltando ao grande Lar Uterino, abraçando a Grande Rainha, a Mãe de todas as dimensões do Cosmos. É como no final do filme Elizabeth, em que a rainha entra triunfante, toda de branco, como uma noiva, em uma sala cheia de súditos, e cada súdito tem um papel numa cena tão plácida, iluminada e perfumada. A rainha emerge de uma porta emoldurada por luz, como na magia da cidade de Gramado, e cruza o salão acarpetado em direção ao trono, pálida como a neve, pura como a vontade de se fazer o Bem, com cabelos ruivos ardentes como fogo, na chama que vibra dentro de corações bondosos e pertinentes, moralmente evoluídos, no sentido de qualquer vida – o Crescimento. Aqui, temos origamis elegantes, numa artista atenta a linhas elegantes e simples, de alguém que sabe que menos é mais, como diz Tao. A foto em preto e branco traz elegância ao cenário, numa cena que não precisa mais do que duas cores para se expressar. São como papéis amassados, jogados no chão por anticidadãos, que não amam a cidade onde vivem e, por consequência, não são amados pelo Mundo, pois a receita da Felicidade é amar o Mundo. É como uma pista de dança depois de um baile vibrante, sobrando confetes e serpentinas para serem varridos, renovando o salão e fazendo este apto para um novo baile. Então, a rainha se senta em seu trono e podemos ouvir o som vibrante de samba, com vida e sangue ardendo dentro do corpo da regente, unindo o povo e conduzindo este pelos caminhos da União, num eterno baile que a Vida brota implacavelmente, na universalidade da fluidez, um conceito que ultrapassa Tempo e Espaço, numa cena atemporal, que arrebata pessoas de todas as nacionalidades, nas semelhanças entre japoneses e brasileiros, por exemplo, na universalidade da Dimensão Metafísica. Nas paredes ao fundo, vemos dois quadros de LC. O da direita está disposto como losango, com uma pirâmide alva que se contrapõe ao fundo negro, como numa noite em um momento do Egito Antigo, na sedução das pirâmides sendo sensualmente iluminadas por uma Lua Cheia, a Mãe da Noite, o satélite feminino que rege o Mundo em seus ciclos menstruais. No quadro da esquerda, vemos uma ruptura, como um zíper sendo aberto, numa abertura, numa exposição de pensamentos de LC, abrindo o zíper da mente da artista e do espectador, como uma calça sendo deflorada antes do Sexo, como dois namorados sexualmente felizes. No quadro da esquerda, temos dois pólos, dois opostos que se beijam, como Ocidente e Oriente, na fusão entre os dois opostos, o casal cósmico que gerou tudo, no orgasmo do Cosmos, na força que rege a reprodução e a perpetuação da Vida, pois Tao não pode se envergonhar de algo que o próprio Tao criou, como num livro de Educação Sexual para adolescentes, banindo a Malícia e trazendo o Esclarecimento. Nesta instalação de LC, há uma certa fragilidade, como se qualquer vento poderia levar os “origamis” embora, numa fragilidade, uma vulnerabilidade, num artista que se dá ao Mundo, querendo ser respeitado por este, sendo assim, uma sacanagem o espectador soprar estes origamis. Respeite!


Acima, Contrarrelevo. LC entende ao poder da Simplicidade. Há arestas, que precisam ser aparadas, no modo como uma mesa de vidro se torna nociva se suas extremidades não forem polidas, no modo como a polidez psíquica respeita o próximo, o cocidadão. O termo “canto moeda” denomina essa polidez vítrea, no valor inestimável da gentileza e da civilidade. Aqui, o velho e bom contraste entre preto e branco, como nas fotos monumentais de um Sebastião Salgado, na magia da imagem bicromática, como nas fotografias de um passado mágico e plácido, no eterno retorno a esta dimensão de concórdia e Paz, como num filme, como em monumentais escadarias e lugares elegantes e, ainda assim, simples, pois o excesso é deselegante. Aqui, temos um OVNI, uma nave que aterrisa em uma terra estranha, como seres humanos em Marte, fazendo da Humanidade uma civilização alienígena. É como um diamante impecavelmente polido, brilhando e seduzindo, no modo como brilha uma pessoa humilde e pés no chão, como uma Fernanda Montenegro, que, ao ser indicada a um Oscar, autointitulou-se uma “fodida”, com o perdão do palavrão, Fernanda! Numa humildade que observamos em LC, na simplicidade gráfica, como em boas lições de Geometria no Colégio. É como o brinquedo Genius, uma mania dos anos 80, em que o jogador tem que ter memória fotográfica para vencer, numa complexidade em que cores e sons se misturam para confundir e desnortear o jogador, como um bom filósofo em duelo, confundindo o oponente com as inevitáveis e engraçadas contradições, sendo que sempre há dois lados para a mesma moeda, no entrelaçamento entre Razão e Loucura. Esta forma se equilibra fragilmente, buscando equilíbrio e estabilidade, no modo como um artista quer se estabelecer e ser reconhecido. Neste OVNI, o preto predomina, mas é necessária a presença do branco, é claro, pois seria muito monótono um quadro todo negro. É como se fosse o sinal da reciclagem, e o branco gira pelo OVNI, como um bom gari, varrendo as ruas de uma cidade, no modo como o Mundo seria um caos sem os garis, destruindo completamente a arrogância de uma pessoa que se acha tão superior aos garis. É um jogo de lençóis dobrado, na organização de um lar zelado por uma mulher zelosa e cuidadosa, como nas mães perfeitas dos comerciais de TV de sabão em pó, numa perfeição inexistente, como na amorosa mãe de Kevin em Esqueceram de Mim, a qual, apesar de ter Amor pelo filho, cometeu um deslize em relação ao menino. Podemos ouvir o som de janelas e portas sendo abertas e fechadas, nos barulhos corriqueiros de um lar. Cortando a obra em dois hemisférios, vemos uma linha branca extremamente tênue e discreta, inevitável, numa LC que sabe que a Perfeição é uma ilusão, e os erros aparecem mais do que como imposição divina; os erros surgem para gerar Aprendizado, como num artista no palco, levando um tombo traiçoeiro (e engraçado), como no show que vi de Laura Pausini em Porto Alegre em 1997, quando a cantora escorregou por uma escada no palco, mas levantou-se e tocou o show para frente, ou seja, leve tombos e renasça, lutando sempre! Vamos aqui da esquerda para a direita em dois opostos cortantes, e precisamos usar luvas protetoras, como se estivéssemos pegando uma panela quente no fogão, na lição da Precaução. O quadro todo tem um centro perfeito, bem no meio de tudo, num equilíbrio, num centro gravitacional. O título da obra fala de um branco que resolveu se opor ao total, adquirindo diferenciação, pois não é intragável um artista que quer ser outro artista? É a luta pela identidade, como na campanha publicitária de uma edição recente da Festa da Uva de Caxias: cada uvinha do cacho era, na verdade, uma impressão digital, na identidade de um povo, de uma gente. E temos em LC uma grande impressão.


Acima, Espaço Modulado. Carteiras de cigarro, no “vício” por Arte, sendo ambos artista e espectador amantes do artístico, do que é obra da Mente Humana, sendo a Arte uma verdadeira unificadora da Humanidade. São teclas de um piano, enchendo a mente de percepção, e podemos ouvir uma delicada melodia enchendo a sala, como no elegante foyer do Theatro São Pedro, de Porto Alegre. São três caixinhas de remédio, com a tarja preta avisando que a droga pode causa dependência, no modo como nunca há Arte suficiente para satisfazer uma mente ávida por ser atiçada por um artista. É como uma lembrança indelével que tenho quando, em um shopping, vi um carrinho de bebê com trigêmeos! É um símbolo de fertilidade e abundância, no modo como LC paria, no modo humano de tentar compreender a Maternidade Biológica. É um conjunto de arranhacéus, competindo inutilmente entre si, pois têm exatamente a mesma altura e largura, sendo uma simétrica equação, num equilíbrio clássico e claro de ser observado. O conjunto é respaldado por discretas linhas finas, separando os blocos uns dos outros, estabelecendo que, apesar de ser uma família, uma mesma ninhada, trigêmeos, são indivíduos, e cada um tem sua própria vida, em seu próprio espírito individual, único. Apesar da semelhança física ser tão evidente, tratam-se de ovos num mesmo ninho, mas um ovo de cada cor, de cada modo, no modo como um pai consegue observar a virtude de cada filho, o ponto forte de cada filho, como nos Ursinhos Carinhosos, os quais, apesar de ser irmãos e iguais, cada um tem no peito um elemento gráfico diferente, delineando-se assim a individualidade inconfundível, como uma família de vinhos, na qual, apesar dos rótulos de cada variedade ser único, podemos observar, colocando as garrafas lado a lado, de que se trata de uma família. São como frios números de identificação, como se cada um tivesse seu número próprio de telefone, na frieza numérica que diferencia e, ao mesmo tempo, iguala, em inevitável (e irônica) contradição. É um sorriso de dentes simétricos, impecáveis, como degraus de uma escada, de uma gradação, numa caminhada evolutiva, na evolução das espécies, pois tudo é processo, e Tao nunca faz algo imutável; bem pelo contrário, faz fluidez. É um portamalas organizado, numa mente organizada, que coloca a em ordem a vida de uma pessoa, rechaçando a desordem de uma vida empobrecida, vida esta mergulhada em um submundo degradante, numa verdadeira prisão. A Mente precisa de Liberdade para operar propriamente, e o problema das ditaduras é que, nestas, a Arte inexiste; nestas, a Arte é um simulacro, um arremedo de Arte. Temos um trio de prédios de uma cidade impessoal, num mundo duro que tanto pode subjugar e assustar o indivíduo, desafiando um artista a levar em frente um velho sonho; o sonho de vencer. São três impositivas placas de trânsito, dando o mesmo aviso três vezes, nas inevitáveis regras civilizatórias da Vida em Sociedade, como, por exemplo, a áurea regra anticriminal. A Vida em Sociedade é um acordo entre partes, um consenso, e o artista precisa encontrar um meio de compreender isso tudo, sem, é claro, deixar de fazer Arte. São três janelas com a persiana quase baixada por completo, num quarto na penumbra, convidando a um dos maiores prazeres que existem – dormir. São como três copos cheios menos do que metade, como um branco leite, sempre nutrindo os filhos, sempre zelando pelo ninho, no modo como um artista é Pai de sua própria obra. São três cigarros todos quase consumidos pelo fogo, no modo como, ao tabagista, nunca um cigarro é o suficiente, e um novo cigarro tem que ser sempre aceso. É um painel de vibração sonora, e, neste momento, há muita tranquilidade e estabilidade, num momento em que a pessoa pode encontrar prazer em coisas simples, como observar uma porção de mata virgem. Aqui, o branco está mais discreto do que o preto, numa dança de contrastes, como na bicromia dos trajes de gala dos cavalheiros, todos iguais, todos irmãos, ao contrário das damas, cujos vestidos são sempre diferentes uns dos outros – ao Yang resta a igualdade; ao Yin, a diferenciação. É a força ritualística da Vida em Sociedade. São três apartamentos de dimensões iguais, mas cada um com um tipo de Decoração.


Acima, Estrutura de Caixas de Fósforos. Uma confortável poltrona, na qual podemos sentar e esquecer dos problemas da Vida, no conforto do Lar, um lugar onde podemos ficar à vontade, sem as obrigações do Mundo lá fora. O vermelho sanguíneo corre pelas veias da artista, numa vida que pulsa, como na Natureza exuberante do Rio de Janeiro, uma terra onde o Sol abençoa a orla. O vermelho é o interior uterino, num perfume feminino delicado e irresistível, no fascínio de pessoas perfumadas, na sensação benéfica e agradável de se sentir uma fragrância fina. Esta obra é um robô, uma criação sintética, na eterna tentativa do Ser Humano em querer imitar Deus, mas, já ouvi dizer de uma mulher que teve um dos seios extirpados por causa do Câncer, falando sobre a prótese peitoral: o que Deus faz, o Homem não faz igual. É um conjunto complexo de gavetas, cheias de coisas, de memórias, de pensamentos de dias que se passaram, talvez em memórias (muito) vagas de dias abençoados na Dimensão Metafísica, no plano espiritual onde a Paz reina, mostrando-nos que as Guerras não são História, mas uma interrupção de História, no sentido de que é só na Paz que há prosperidade e progresso – a Raiva é desprezível, pois esta é muito, muito menor do que a Paz, e isto não sou eu quem está falando, mas Tao. É a forma humana de se organizar, vivendo dias compartimentados, num desejo de organização, de disciplina, com a sensação de que a Vida está nos trilhos, arrumada, bela e perfumada. É uma obra um tanto truncada, e não vemos aqui linhas orgânicas e curvilíneas, mas linhas retas, como num Mondrian, como quarteirões de uma cidade, organizados de forma a haver ruas e avenidas retas, racionais e simples. Acessibilidade. É como um teclado de computador, ou uma tabela periódica, na eterna intenção humana de se compreender o Universo ao nosso redor, tentando encontrar lógica e coerência em uma dimensão tão complicada como a Material, um mundo que é puro enigma, pura charada, estimulando cientistas e filósofos a observar lógica retilínea em formas tão liquidiscentes, e aí surge uma contradição: tanto o redondo quanto o truncado são positivos; são iguais em fascínio. Tem a aparência de um armário que foi jogado fora, desprezado, talvez por estar muito feio e velho, detonado, perecendo em um lixão, talvez na esperança de ser carinhosamente adotado e restaurado, vencendo o Tempo e retornando à Fonte, ao plano primordial das Ideias, à Mãe Psíquica. É a Carne que perece, e a Consciência sobrevive à Morte Orgânica, na vitória da Mente sobre o Corpo; do Virtuoso sobre o Mundano. Estas gavetas estão em movimento, sendo abertas e fechadas o tempo todo, e podemos ouvir os barulhos de um lar, com o barulho das gavetas sendo abertas e fechadas, na demanda do dia a dia de uma casa com várias crianças, na exaustiva demanda de uma casa cheia de Vida, de riso e de choro. É como o universo dos Transformers, em que veículos se transformam em gigantescos robôs, como nos tradicionais seriados infantis japoneses, em que grandes robôs enfrentam horríveis monstros gigantes ameaçadores e destrutivos, e temos aqui novamente a questão: a Razão impondo ordem ao Caos, como uma ferida sendo esterilizada e medicada, coberta por um bandaid. Este “robô” tem duas pernas muito fortes, como pilares de pura pedra, como na metáfora de São Pedro, que fundou a Santa Sé, como na Catedral de Caxias do Sul, templo erguido sobre sólida rocha, resistindo a tudo e todos. Na parte superior da obra, uma lacuna, um buraco sem gaveta, talvez para guardar coisas que precisem de arejamento, no modo como o ar tem que circular, evitando as bactérias de uma água parada, uma água pestilenta que atinge aqueles que desistem de lutar pela Vida. As caixas de fósforo foram escolhidas por LC porque representam o fogo, a luz, o esclarecimento que combate rançosos preconceitos, no modo como um artista jamais pode ser preconceituoso ou malicioso, pois a Arte rechaça a Serpente da Malícia. A Arte é pureza.


Acima, Planos em Superfície Modulada. Temos aqui uma exata simetria, como muitas logomarcas, como a do Banco do Brasil e outros órgãos públicos. Podemos observar o exato centro da obra, numa precisão matemática, o centro de tudo, numa vida centrada, numa LC focada, atenta ao essencial, em uma vida artística tão rica em simplicidade franciscana. É como o sinal de reciclagem, sempre girando, sempre fazendo a “máquina” girar, como numa Economia pulsante, num país rico, em que o dinheiro circula facilmente, rapidamente. É como uma máquina de lavar roupa, no ciclo de lavagem, numa máquina que é uma grande invenção, fazendo-me lembrar do inesquecível Tatata Pimentel, o qual dizia que minha geração não sabe o que é torcer roupa, como torcer um lençol, tendo uma pessoa de cada lado, girando em sentidos opostos, e é o que podemos ver aqui, com duas pessoas torcendo o mesmo lençol, como num trabalho de equipe, em que cada ator tem seu papel para o todo. Temos uma LC flertando com a Arquitetura, como nas formas simples e grandiosas de Brasília, como se diz que, na Dimensão Metafísica, a Arquitetura é depurada, digna de grandes mestres. Aqui, temos dois continentes se beijando, numa junção de opostos, num 69, em que tudo se encaixa, apesar de cada metade parecer ser tão diferente da outra. Imaginemos que o fundo é branco e que o restante é preto: as formas negras estão absolutamente próximas mas, mesmo assim, nunca se beijam. É a forma como o Amor Incondicional, Imaterial e Desapegado age, com sutileza, num gesto que nada de material tem – só espiritual. É como o Adão de Michelangelo quase tocando o dedo do Criador, o Grande Patriarca com sua longa barba branca, num neo Papai Noel, cheio de riqueza e fartura para distribuir. Em Michelangelo, esse Amor Intocado é o Psicológico, no modo que, depois do Desencarne, tudo o que permanece é psicológico, espiritual, no modo como, nos primórdios da Imigração Italiana no RS, as igrejas eram fundamentais, no sentido de existir, fornecido pelo padre, acompanhamento psicológico. E Arte é isso – Pensamento. Temos aqui uma lajota, a qual, combinada com muitas outras iguais, forma uma estampa, um chão, como um papel de parede, como numa xilogravura, que é uma espécie de carimbo, fazendo com que o artista vislumbre inúmeras combinações com este carimbo primordial, como no trabalho da xilogravurista caxiense Mara de Carli, a qual, a partir de um simples retângulo negro, criou muitas combinações, no poder da Imaginação. Agora, suponhamos que o fundo é negro e que o elemento é branco: temos novamente este quase beijo, este quase toque, e o centro sobrenatural é do pensador Jesus, o qual brilhou antes e depois de morrer, na comprovação da sobrevivência da Mente ante o perecer da Carne. Aqui, parece que temos peças em concreto, como na sedutora Fundação Iberê Camargo de POA, prédio que, por si só, já é Arte e, ainda assim, abriga mais Arte, numa metalinguagem: inspiração falando de inspiração. Parece as naves diabólicas de Guerras nas Estrelas, em que naves guiadas pelo tirano Darth Vader buscam destruir resistentes, no fato de que, no finzinho do sexto filme da franquia, Vader se arrepende e morre bonzinho. Aqui, temos um ventilador que nunca para, sempre ventilando, sempre fazendo fluxo, sempre vivendo e respirando, sempre provendo vales com chuvas, sempre alimentando seus filhos, como na logomarca dos produtos Nestlé – uma ave mãe alimentando os filhotinhos no ninho. Aqui, temos a beleza das linhas retas e matemáticas, como me disse um professor do Ensino Médio: a Matemática é bela, como cores dissociadas por um cristal. Temos uma LC ciente do charme do preto e branco, no charme das fotografias de antigas estrelas do Cinema, como no céu negro da Noite, salpicado de estrelas brancas.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Salvando a Arte



Estrela suprema do Surrealismo, Salvador Dalí alcançou um nível de reconhecimento gigantesco, tendo se tornado um verdadeiro popstar. Seu bigode pontiagudo ficou famoso, numa fina agressividade. Dalí virou sinônimo de Modernidade e Sofisticação. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, A Face da Guerra. Temos um Dalí pacifista, que odeia guerras e violência. Este quadro é um manifesto político universal, colocando a Arte como o oposto da Guerra, pois tudo o que o artista quer é Paz para se expressar, sem censuras. É um quadro de dor, pavor, assombro. A grande face humana está contorcida de dor, no momento de um espasmo insuportável, num desconforto existencial enorme, depressivo, num Dalí catarseando o sentimento de depressão e solidão, uma catarse que podemos ver nos elementos desérticos e ermos de muitos quadros do artista, no poder da Arte de curar almas. Aqui temos a Guerra como uma reação em cadeia, num estopim frente a uma frágil fila de peças de dominó em pé, e um só empurrãozinho é o suficiente para derrubar todas as outras peças, na fragilidade de nações belicistas, sempre tensas, sempre procurando um inimigo, no talento milenar humano em brigar e odiar – o Ódio é um capricho humano, e não uma invenção de Tao, pois este é Paz. A reação em cadeia traz então os olhos e boca deste grande rosto infeliz, e dentro deles há mais rostos contorcidos, e dentro deste temos ainda mais rostos contorcidos, numa infinidade de dor e privação, no modo como as guerras arrasam países e causam fome e destruição. São como bonecas russas, uma dentro da outra. São os estados regidos por forças incompetentes, as quais nada mais fazem do que guiar um país sem se importar com o que mais importa – o Cidadão. É como um motorista bêbado, que coloca pessoas em risco, podendo causar um grave acidente a qualquer momento. É como uma criança irresponsável brincando de governar, em homens gananciosos que querem o Poder apenas pelo Poder, e não para servir o Mundo, como diz Jesus, um sábio que permanece extremamente atual até os dias de hoje: os pregadores gananciosos não querem servir o Povo, mas explorar o Povo. Os pregadores querem ludibriar e arrancar dinheiro dos fiéis, quando que o verdadeiro líder quer servir, quer ser útil ao Povo, quer entender as necessidades do Povo. Há algum tempo recebi na Rua um panfleto doutrinário de uma instituição de pregadores – claro que joguei o panfleto fora assim que passei por uma lixeira, ao contrário de pessoas ignorantes, que dão dinheiro aos pregadores, um dinheiro que o ignorante ganhou com um trabalho tão suado, na (amarga) ironia de que esses pregadores sugadores dizem agir em nome de Jesus e de Deus! Por favor. Aqui neste quadro temos Morte, numa caveira que um dia abrigou uma alma vivente, numa carcaça de um boi morto, numa terra erma e arrasada pela Guerra, num mundo tão desolador, tão árido e infértil, na pobreza causada pela Guerra, uma miséria, como uma cidade deserta, fantasma, solitária, com um indivíduo vagando incessantemente em solidão por ruas desabitadas e desoladas. No canto direito superior, uma formação rochosa cortante, em um lugar de um calor insuportável, numa temperatura longe de ser amena e agradável. No canto direito inferior, uma marca de esqueleto de mão ou pé, uma pegada de alguém desolado que vagou por tanto tempo por terras tão desinteressantes, tão cruéis. É um vestígio de Vida; não é Vida de fato. Ao redor do grande rosto dolorido, várias serpentes cruéis e agressivas, causando dor, mordendo a vítima e envenenando almas, espalhando malícia e má fé. Seus dentes afiados fincam fundo, numa cruel injeção dolorosa, como no inferno que é uma crise de abstinência de alguma droga. As cobras são como ralos cabelos, num empobrecimento de uma pessoa que passa por um momento difícil na Vida, enfrentando toda a dureza de tão ter um Norte, um sentido. Qual o sentido na Guerra?


Acima, A Persistência da Memória. Dalí mostra como tudo é relativo, inclusive o Tempo, seguindo a lógica de Einstein. A modesta Ciência Humana não tem como compreender a totalidade de um Universo tão vasto, infinito. As referências terrestres de medição de Tempo e Espaço perdem toda a validade perante o Cosmos que cerca esta pequenina esfera, e o Ser Humano se depara com a própria e inevitável incompetência. Aqui, o Tempo perde referências e derrete, incapaz de impor ordem ao Caos, à infinidade de galáxias existentes ao nosso redor. Os relógios derretem e perdem sua função medidora, e o Ser Humano passa a perceber que não há Norte nem Sul; não há Ontem nem Hoje. O Caos é inevitável, e a Humanidade sofre este desfio diariamente. Os relógios derretem como se estivessem na superfície de Vênus, um dos planetas mais quentes do Sistema Solar. É uma temperatura insuportável, numa esfera impossível de ser visitada pelo Homem. Aqui, temos um quadro de solidão, e os relógios derretendo pouco consolo fornecem. É como um chão se abrindo sob os pés de uma pessoa que enfrenta uma grande crise, e a perda de referências é assoberbadora, fortíssima, numa pessoa que percebe de forma clara que velhos moldes e velhas referências vão indo ralo abaixo, desaparecendo, e tudo derrete para trazer um grande desafio – o desafio da volta à plenitude psíquica, num esforço enorme, descomunal. Podemos ouvir o assobio de um vento desolador, e os relógios sem função pouca esperança dão – são inúteis. A demanda da Vida é abrir mão de vaidades e admitir que ninguém sabe tudo, e os relógios aqui assinalam um momento de decadência e danação, num cenário duro e  infértil, num artista que tem que ter a humildade para admitir a própria pequenez, pois pobre do arrogante que se sente afiado como um bisturi. Vemos a parte traseira de um relógio sendo assediado por formigas ensandecidas, no trabalho de formiguinha. As formigas são a Vida querendo sobreviver em um terreno tão inóspito, tão desafiador, no sentido de que não há livro ou faculdade que ensine alguém a brilhar – o brilho tem que ser instintivo; tem que vir de dentro. Temos aqui um terreno inóspito, onde nada prospera, nem uma florzinha, nada, num artista que tem que tirar força do fundo d’alma para ser criativo e para ter uma vida produtiva, laboriosa, disciplinada, sedimentada e centrada. As formiguinhas são a luta pela Vida, em seres que insistem em sobreviver a um cenário de hecatombe nuclear, como da força das baratas, que sobrevivem a tudo, sendo muito importante para um artista saber sobreviver, saber virar as páginas e “tocar o barco”. E como é desafiador sobreviver! Nem todo mundo sobrevive, infelizmente. Vemos ao fundo um lago plácido, muito calmo, um espelho. É a Serenidade, a Ponderação, num artista que tem a paciência para explorar criativamente a si mesmo, no desafio que é uma pessoa não se repetir em décadas de carreira, pois, do contrário, acontece o seguinte: “O Fulano? O Fulano é um saco; sempre faz a mesma coisa!”. É um espelho de Narciso, na tentação que é um artista ficar bêbado com o próprio sucesso, nos meandros do Narcisismo. Rochas inóspitas beijam o lago plácido, e este é a promessa de estabilidade, de calmaria, de paz consigo mesmo. E o Mundo não pertence àqueles que têm autorrespeito? Um ramo de árvore seco, sem Vida, sustenta um dos relógios, num ser que antes viveu, mas que agora está mortificado, no modo como o Espiritismo prega a mortificação espiritual, numa pessoa que tem que deixar para trás a sedução dos sinais auspiciosos e ater-se ao que é realmente importante, que é evoluir como pessoa. Aqui, este céu azulado traz esperança, e o lago espelhado é a reflexão psíquica, num artista feliz, que se encontrou em sua própria produção, na glória da qual gozam os espíritos produtivos. Este chão marrom traz a esperança de uma plantação farta, numa promessa de cornucópia, sonhando com um Mundo em que apenas o psíquico é o que importa. Aqui, perde-se a Memória, o Norte. Sustentando um dos relógios, uma forma que é um olho fechado, repousando em delírios oníricos, sendo estes mensagens existenciais. Vão-se a experiências e fica o Aprendizado.


Acima, Mulher com Pão. Com esta obra eu me deparei no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, em fevereiro de 1998. Os milhos e as formiguinhas me chamaram a atenção, numa obra de fertilidade, abundância no Campo, na sensualidade de lavouras produzindo alimentos para alimentar a América de cereais, no café da manhã de cada americano. É uma fertilidade sexual, na força da Natureza em fazer brotar Vida. A moça ruborizada parece estar com vergonha de ter os seios expostos, numa graciosidade de escultura grega clássica. Seus olhos estão despertos como uma Nefertiti sempre atenta, sempre consciente, assegurando a colheita de trigo ao seu povo, tornando-se uma extensão da terra fértil às margens do Rio Nilo. Os milhos são como grandes brincos extravagantes, exagerados, numa colheita de fartura orgiástica, como o pólen fertilizador na Primavera, fazendo das flores órgãos sexuais, na sensualidade da época de acasalamento. As figuras humanas ao redor do pescoço são seus filhos, numa rainha fértil que produziu muitos herdeiros do Sexo Masculino, cumprindo com o seu dever reprodutor, reduzindo uma mulher ao mero papel reprodutor, numa sociedade que castra a inevitável Sexualidade Feminina – são os preconceitos do Mundo. A mulher é branca como neve, numa manhã branca, após uma nevasca, no chão branco intocado, implorando para ser maculado e desvirginado por pegadas, como uma moça virgem que é entregue ao noivo na Igreja, perante o testemunho de toda a Sociedade. As formiguinhas são a força intermitente da Vida, sempre lutando para sobreviver, sempre na luta, no ringue da Vida, nunca se rendendo, pois verás que filho teu não foge à luta. É o prazer desvirginador de danificar um formigueiro, e ver todas as formigas em alvoroço, enlouquecidas, nunca parando para descansar, sempre reconstruindo o que foi destruído, numa paciência eterna, dando um exemplo biológico e instintivo de que o Labor é sempre necessário, pois pobre daquele que não se coloca à disposição do Mundo. As formiguinhas estão tomando conta desta obra de Arte, e prometem monopolizar tudo, transformando o Mundo em um grande formigueiro, numa sociedade perfeita, na qual cada um é um agente essencial, no desafio de um artista em se ver útil ao Mundo. A boca da Mulher com Pão é minimalista, recatada, como de uma gueixa, no arquétipo feminino de passividade, desprovida de qualquer iniciativa agressiva, quando, na verdade, qualquer mulher tem que desenvolver agressividade. A enorme baguete é o falo, sempre regendo a moça aqui, no poder patriarcal de estabelecer acordos matrimoniais, forçando uma menina a se casar. É como se fosse um porrete, batendo na cabeça da mulher, no trabalho de transformar trigo em pão, numa cornucópia aqui, numa mesa farta, onde a comida não tem preços exorbitantes. É o prazer de saciar a Fome, e quase sentimos o cheirinho de pão recém saído do forno da padaria, num Dalí delicioso, um verdadeiro chef da Arte. Mais acima, vemos uma figura feminina e outra masculina, como um casal, selando um acordo de divisão de tarefas: o homem sai para a lavoura e a mulher cuida dos afazeres em casa. E podemos ver duas formas que lembram o formato de privadas, no ato catártico de se fazer “cocô”, fazendo da Arte um instrumento de purificação espiritual, num Dalí extremamente catártico. Esta peça toda traz equilíbrio, numa certa simetria, quebrada apenas pelas formiguinhas ensandecidas, as quais tomam conta da percepção do espectador e ameaçam devorar os milhos e o pão – a Vida não para.


Acima, O Grande Masturbador. A mulher beija o sexo do homem, e pela mulher correm veias cheias de sangue, de Vida, no poder pulsante da sexualidade, a qual é natural no Ser Humano. Apesar de encoberto, o sexo do homem é claro de se observar, e a mulher fecha os olhos, num momento sensorial em que a Visão não é muito necessária, como num quarto escuro em que dois amantes se encontram. Este quadro tem um grande e complexo corpo em amarelo, num artista catártico que se empenha para tornar visível o seu próprio Inconsciente. Como muito em Dalí, vemos um terreno deserto e um céu limpo, num desejo de limpeza, de Tao. Os cabelos da mulher são como dunas num deserto, e as dunas virgens são defloradas pelas pegadas de exploradores, de estupradores, no prazer da violação, da agressão. Novamente vemos formiguinhas numerosas, na força da Vida que brota do nada. As formiguinhas cobrem um corpo que parece ser um zepelim, nos sonhos aéreos de uma mente sonhadora, com “a cabeça nas nuvens”. O zepelim é a elevação psíquica; é a busca por inspiração, por ter algo a falar e mostrar. Dalí nos traz uma luz que ilumina e mostra essa mente, jogando luz sobre o obscuro Id, talvez namorando com a Psicanálise, a qual alegaria que tudo na obra de Dalí são projeções do self do próprio artista, daquilo que é figura em Dalí, no poder da catarse em explorar o misterioso, trazendo luz, esclarecimento, análise e interpretação. Ordem. A mulher tem formas belas, formosas, numa aula de nu em uma escola de Arte, ou, como vi em um atelier, revistas de mulher nua, no poder da simplicidade do Nu. No canto esquerdo inferior, um homem solitário, quase coberto pela sombra do grande corpo amarelo. O amarelo é a gema do ovo; é a nutrição vital; é a Arte como comida, ou seja, indispensável. E as formiguinhas ameaçam tomar conta de tudo, num grande formigueiro regido por um ditador sanguinário, opressor, ou, como ouvi hoje, um líder absolutamente hipócrita e falso. Vemos novamente, no corpo amarelo, um olho fechado, dormindo, viajando pelos próprios meandros mentais, em sonhos enigmáticos, os quais podem ser interpretados por um bom psicoterapeuta. Acima do olho fechado vemos cílios multicoloridos, carnavalescos, num Dalí que, além de produzir, gosta de se divertir, pois a Vida não é só labor. Abaixo do zepelim vemos um casal apaixonado se beijando, num Dalí romântico, que sabe que “love is beautyful”. O título “masturbador” traz uma grande fantasia sexual, e Dalí se empenha em “fotografar” o que não pode ser fotografado, no enigma de Tao: o Tao sobre o qual se pode falar não é o verdadeiro Tao. Ou seja, é uma frustração encorajadora, como um cometa, que derrete lentamente, deixando um rastro de interpretações as quais nunca atingem o cometa diretamente. À frente do zepelim vemos pernas magras e enguias, como um louva-a-deus, na elegância que existe em muitos animais, como o cavalo, no choque inevitável entre Darwinismo e Criacionismo: a Evolução é uma obra de Deus? Pode ser. Abaixo da mulher vemos uma flor copo-de-leite, a flor das noivas simbolizando a pureza e a ausência de agressão, no poder sedutor das flores, as quais são sinais claros da inspiração divina que cria as coisas, como abundantes azaleias na Primavera, explodindo em cor, numa vontade de viver, uma vontade enorme, fortíssima, pois a Vida é luta. Os ombros nus da mulher são graciosos, suaves, numa mulher no auge. Sua pele é intocada, e o homem ameaça deflorar a flor em questão. A mulher aqui é dotada de desejo sexual, implodindo o preconceito patriarcal que tolhe a sexualidade feminina – as mulheres têm o direito de amar, de transar, de ter orgasmo, de ter prazer, ao contrário dos machistas filmes pornôs, nos quais, quase sempre, só é mostrado o orgasmo masculino. Vemos aqui uma continuidade entre veias e ramos de árvore, como raios poderosos de tempestade, na força irrefreável da libido humana, a qual não deve ser reprimida. No canto direito inferior, vemos um buraco, um furo, uma janela que nos permite espiar para fora, podendo ver o que se passa na mente de um artista, observado que a Catarse é um explosão de supernova, avassaladora, como um popstar explodindo pelos quatro cantos do Mundo. É um respiro, um alívio, é a Vida respirando e se alastrado pelo planeta e pelo Universo. Podemos ouvir os gemidos da mulher, em puro prazer, sentindo-se livre para ser o que é, sempre foi e sempre será: mulher. Acima do corpo amarelo, vemos pedras, que podem ser o cocô sendo feito, na sensação de alívio em colocar para fora algo que nasceu para ser colocado para fora.


Acima, A Madona de Port Lligat. Temos em Dalí uma bomba atômica de Arte Moderna, e aqui temos uma releitura ousada, talvez influenciando o pintor portoalegrense Fernando Baril. Temos aqui uma desconstrução, uma análise, em que cada elemento é dissociado, e cada coisa é colocada em sua devida gaveta, num Dalí organizado, ordeiro, que, apesar de ter inovado tanto, mantinha dentro de si uma grande disciplina, uma sisudez conservadora, numa inevitável contradição, pois, já ouvi dizer, uma pessoa agressiva, provocadora e transgressora é, na verdade, uma pessoa extremamente careta. Vemos um lago absolutamente plácido, intocado, num silêncio avassalador, berrante, numa harmonia inabalável, na Paz de um artista que ama o que faz, no silêncio acolhedor de um atelier, de um ambiente de trabalho, na alegria das mentes produtivas e centradas. O Céu de Brigadeiro também é limpo e calmo, talvez sendo cortado pelo rastro de um avião a jato, e podemos ouvir o som da nave rasgando os céus, num Dalí avião, avassalador. Vemos formas arquitetônicas em perspectiva, como na Renascença, em que a perspectiva é (re)descoberta, ilustrando a moda, a vogue do momento. Dalí é uma onda, uma grande onda que engole surfistas amadores e desavisados. O interior desta Madona é oco, para podermos ver o bebê, que dorme placidamente, num sono inabalável, como o sono de um desencarnado, que dorme por muitos dias após morrer, acordando na Dimensão Metafísica. A Madona ora com as mãos em posição de reza, formando um telhado, uma estrutura protetora que vai selar pelo Menino Jesus. A Madona aqui é a grande estrela do quadro, talvez a própria mãe do artista. As vestes da mãe são majestosas, de fino tecido, na riqueza produtiva de um artista que virou sinônimo de divino talento, de talento claríssimo de ser observado. No topo do quadro, uma concha, como a Vênus de Botticelli brotando das profundezas do Mar, trazendo o cheiro de água marinha e o som das ondas estourando à beiramar. São os mistérios da Mãe-Mar, como no final de O Senhor dos Anéis, em que os desencarnados embarcam numa nave que o levará para uma praia de areia branca e paradisíaca, no cheiro de Lar. Vemos um sólido pedestal embasando tudo, forte como os pilares da Terra, elevando a imaginação criativa, no modo como um artista é mãe, produzindo filhos por Imaculada Conceição, no mistério da Criatividade: de onde vêm os bebês? O bebê repousa sobre uma almofada, que é o aconchego do Lar, numa sensação deliciosa de Liberdade. Reconforto. Sobre o pedestal, duas frutas deliciosas, de um pomar abençoado e delicioso, no modo como a Arte é alimento. Na outra extremidade do pedestal, uma folha caída, talvez uma carta escrita de forma psicografada, com pessoas que querem proporcionar Paz aos que permanecem na Terra. Um pouco mais acima, conchas e formas de Vida Marinha, na diversidade biológica, num Universo tão repleto de Vida, numa imensidão de formas exóticas de Vida. São os seres que povoam a Imaginação, como o artista é um pouco como Tao, que é a força criadora universal. É o Homem tentando, sem sucesso, ser Deus, numa perspectiva infindável de aperfeiçoamento, ao nível dos arcanjos. Há certa degradação em parte das estruturas arquitetônicas aqui, e essas falhas são as falhas do Ser Humano, um ser que tem que ter sempre a humildade para admitir que o sentido da Vida é crescimento; é depuração moral. A Madona ora profundamente, de olhos fechados, alheia aos sinaizinhos auspiciosos vulgares mundanos, alheia a bobagens. E abaixo da concha na porção superior do quadro, um singelo ovo, o qual é, claro, a Vida vindo ao Mundo. É o ovo de Páscoa, em uma cesta colorida e cheia de doces, no iluminado mistério da força invisível que faz um coração bater. O coração do artista pulsa, parindo Arte.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Ado Locatelli, digo, Malagoli



O artista deu nome ao Museu de arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, o MARGS. Recentemente, houve em Caxias do Sul uma mostra que incluía quadros de Ado de uma coleção particular, algo que me arrebatou. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, um quadro cujo título não pude identificar – peço perdão! Uma paisagem gaúcha, dos Pampas ou dos Campos de Cima da Serra. O Vento Minuano parece cortar os campos, e podemos ouvir o assobio do vento, com uns eventuais cantos de queroquero. É um lusco fosco, pois não sabemos dizer se é noite ou dia; se amanhece ou entardece, num limiar, um limite, num artista que tem a coragem de transitar por linhas tênues, num espírito aventureiro de quem gosta de uma pitada de risco. As linhas são curvilíneas, onduladas, e parece uma cena marítima, com ondas indo e vindo, na liquidiscência existencial, com ondas que hora levam ao topo, hora para o fundo. É uma combinação cromática de muito bom gosto, com tons de azul e verde, num Ado elegante, criterioso, numa pincelada que dá frescor, uma delícia. O capim selvagem ondula ao sabor do vento, e podemos ouvir o farfalhar sensual da vegetação, dançando ao vento, no grande baile que é um ecossistema, onde cada agente tem seu lugar nesta “pista de dança”. Aqui, pode ser uma noite clara de luar, num céu limpo no qual a Lua exerce todo seu fascínio, numa universalidade, pois a mesma Lua é vista por seres humanos de todas as épocas e lugares, como uma mãe que abraça toda a sua ninhada, fazendo de nós irmãos, iguais, no conceito de Igualdade da Revolução Francesa, como no paradigma da urna eleitoral: homem ou mulher, gay ou hétero, preto ou branco, rico ou pobre: todos somos absolutamente iguais na hora de pressionar as teclas da urna eletrônica, num exercício de Democracia, um sistema que tem nobres intenções. O artista é uma pessoa que quer se engajar neste “baile”, buscando um papel (relevante) nessa cena social: O que é a Arte? Por que ela é importante? Como devemos tratar os artistas? Aqui, as colinas são baixinhas e suaves, com curvas dignas de corpão de top model, na forma como o Feminino é relacionado à Natureza, à Mãe de todos nós, seres de carne e osso, ou a Mãe psíquica, na imaculada concepção espiritual. É como uma máquina de lavar roupa, onde todos são submetidos ao mesmo processo, num exercício de equiparação. Estes campos têm pontos enegrecidos, talvez num Ado Malagoli desejoso de catarsear um sentimento de abandono e escuridão, no poder terapêutico das catarses, quando o artista vomita sobre as pessoas, exigindo ser respeitado e valorizado. Na porção mais inferior do quadro, vemos uma forma negra, indecifrável, misteriosa. Pode ser uma moita solitária, em um campo tão ermo e desabitado, tão selvagem. Pode ser uma figura humana, sozinha, talvez padecendo no frio do vento invernal, talvez um gaúcho de poncho, agasalhado para enfrentar a travessia incerta que é a Vida, sempre pronto para esbarrar em percalços que, no fim das contas, acabam ajudando o indivíduo a encontrar seu próprio caminho. É um sentimento de solidão e desolação, num quadro que, apesar de um tanto melancólico, é belo. Talvez a Lua esteja quase aparecendo ao fundo, atrás dos montes, anunciando-se com uma luz azulada, reinando sobre as noites dos Pampas. Os montes ao fundo parecem um mar muito revolto e inquieto, nas inquietudes dos artistas, mentes sensíveis em constante busca de percepções singulares, criativas, pois criar é a obrigação de cada artista, ou seja, produzir, e isto é a receita da felicidade – ter um lugar no Mundo. A misteriosa forma negra parece uma criança perdida, chorando pelos pais, num sentimento de estar longe de casa, longe do aconchego do Lar, a casa primordial que nos espera após o Desencarne. É um como um poeta atravessando uma ponte, sempre com receio, talvez com medo de cair no rio e se perder. As ondulações são cabelos ao vento, numa certa rebeldia, numa porção adolescente mínima que acompanha o indivíduo mesmo na idade adulta, pois é interessante a pessoa conservar dentro de si uma pontinha de jovialidade.


Acima, Mulher com Criança. A criança está completamente entregue, jogada nos braços da mulher, a qual tem um olhar incerto, olhando para o nada, talvez se perguntando se poderá sustentar com tranquilidade a menina, cujo cabelo está adornado com uma fita vermelha, combinando com o círculo rubro no busto da mulher, na cor que significa os laços de sangue, a genética. Talvez seja a avó da criança, e a mãe pode ter morrido, deixando a menina aos cuidados da vó, pois esta mulher não tem traços joviais, e seus olhos negros se deparam com algo imprevisível e denso, num quadro não muito iluminado, com um certo peso de cores escuras. É o mistério existencial, e ao indivíduo sobra a sombra do imprevisível, rezando para não sofrer com os movimentos da Vida. A mulher veste uma toca branca, que é o telhado do Lar, a proteção, a estrutura familiar, e talvez a avó faça guarda compartilhada enquanto a mãe da menina sai para trabalhar e trazer dinheiro para casa, na obrigação de fornecer alimento e conforto para a menina, numa mãe que começa a sentir o avassalador peso da responsabilidade. Uma ponta da toca branca é em vermelho, num útero que sofreu as dores do parto e trouxe ao Mundo de forma sofrida um bebê, na coragem que uma mulher tem que ter no momento do parto, num ato de expulsão e, ao mesmo tempo, Amor. Podemos ouvir o choro da criança se espalhando pela casa, e podemos ver seus brinquedos espalhados pelo chão, numa casa permanentemente bagunçada, o que é inevitável nas crianças. A mãozinha da menina entra em contraste com a mão grande da avó, num ato de proteção, em que um adulto lembra do modo como ele mesmo foi criado, transmitindo às crianças o modo como foi educado, no modo como é inevitável criarmos nossos filhos do modo como fomos criados por nossos pais. Atrás no quadro, uma parede cinzenta e escura, na cor discreta da dúvida existencial, e vemos linhas azuis retilíneas, que são o uso da razão, num adulto que tem que ser, além de afetuoso, racional, impondo à criança limites racionais, limites disciplinares, num lar onde, além de Amor, há regras rígidas, fazendo com que a criança, nesse sistema disciplinar, sinta-se respaldada e protegida. A gola da mulher é um tanto elizabetana, no modo como o monarca se torna pai de todo o seu povo, havendo no trono uma metáfora da Divina Providência, a força governamental invisível que rege a todos na Terra, numa forma de governo tão forte que mal é percebida. As mãos fortes da mulher seguram com força a menina, garantindo que nada de mal poderá acontecer à menina, no impulso protetivo de qualquer pai ou mãe: preservar o filho, garantindo que este sinta o mínimo possível de dor, pois, já ouvi de uma psicóloga, a dor psíquica é inevitável; o que é evitável é o sofrimento por esta mesma dor. A linha azul é a imposição de limites, e é dura, fazendo com que a criança se torne um adulto realista, forte e responsável, para, então, este novo adulto ter sua vez de criar uma criança, no ciclo intermitente da Vida, onde o adulto volta a ser criança. Aqui, a mulher está absolutamente séria, sem esboçar qualquer sorriso de alegria, sentindo o peso da menina em seus braços. Sua blusa é de uma cor verde profundo, muito profundo, na meditação que só é possível numa casa na qual a criança esteja dormindo pacificamente. Já, a menina tem uma roupa de cândido rosa, num quê doce, como docinhos em uma festa de aniversário infantil, numa avó adulta que, apesar de ser crescida, pode voltar um pouco a ser criança novamente, sendo criança através da própria neta. A criança está numa posição de amamentação, mas é claro que a avó não fornece leite materno, ao contrário das amas de elite, as escravas negras que amamentavam bebês aristocráticos da fazenda de café. É como a gloriosa sensação de “mamar” leite condensado, num reconfortante retorno ao Lar, à casa de todos nós, a esta “urna eletrônica” que tanto nos faz irmãos.


Acima, Arlequim e o Gato Preto. Símbolos de alegria e irreverência, os arlequins, neste quadro de Malagoli, estão representados por um homem sério, talvez cansado de ser palhaço, do tipo de palhaço que faz os outros rir mas, em seu interior, é um palhaço que chora. Este arlequim é lânguido, preguiçoso, talvez esperando o momento de entrar em cena, concentrando-se para arrancar risadas do público. Talvez seja um folião de Carnaval, mas um folião sério, que pouco se diverte no baile. É um Ado mortificado, livre de ilusões, livre da influência de sinais auspiciosos, como se soubesse que, por mais lindo que o circo seja, este circo vai levantar a lona e irá embora, no sabor inevitável da desilusão... E o terreno, que outrora abrigou o circo, transforma-se em um vazio existencial enorme, num Mundo tão duro, que tanto castra sonhos e ilusões, sendo tão difícil manter a alegria em um Mundo que tão pouco sorri. O gato preto é o agouro, o mistério que nos espera em qualquer esquina da Vida, e podemos ouvir seu miado e seus passos silenciosos, no negror da Noite, da boemia, um hábito que, apesar de alegre, pode viciar, pois, ao lado deste triste arlequim, há uma garrafa de vinho e um cálice, talvez num palhaço alcoólatra, que se viciou em inocentes goles de bebida, talvez enchendo a cara antes de subir no palco, numa vida tão triste e tão desprovida de perspectivas. É um quadro melancólico. O arlequim não sabe direito onde colocar os braços, numa incerteza, num desconforto, e talvez esteja pensando em largar a profissão para fazer um trabalho que lhe traga mais dignidade e estabilidade. É uma pessoa de alma circense, mas uma pessoa que, apesar de jovem ainda, começa a sentir a seriedade da Vida. O gato é seu companheiro, talvez seu único amigo, numa vida solitária, num circo que passa de cidade em cidade, nunca estabelecendo raízes, sempre nômade tal qual cigano, com uma certa dificuldade para definir e estabelecer o seu próprio papel no Mundo, o papel do arlequim. A sua roupa tem losangos um tanto coloridos, mas um tanto pálidos, na própria palidez da pele do rapaz e de seu chapéu, fazendo contraste com o gato negro, e o cálice é branco também – aqui, o branco define um certo vazio, como uma folha em branco, e o arlequim imagina o que poderá ser escrito nesta folha, e começa a perceber que, cada vez mais, a Vida lhe exige escrever algo nesta folha, exigindo uma definição existencial: Afinal de contas, o que você vai fazer da Vida? A garrafa de álcool é uma espécie de companheira, um amigo, um consolo, mas uma amizade que pode vir a comprometer todo um sistema neurológico, fazendo com que este “amigo” se torne seu pior inimigo, havendo no álcool algo que pode atrapalhar muito uma vida. O arlequim está prostrado, desanimado e desnorteado, mas é jovem e tem toda a vida pela frente, e parece que está esperando por algo, por algum sinal, mas um sinal que ainda parece estar longe de se revelar por completo, pois quando o indivíduo tem certas etapas existenciais à sua frente, essas etapas jamais podem ser abreviadas ou ignoradas, pois cada passo de uma existência é capital, numa etapa que leva à outra – a Vida nunca é em vão. Ao lado da garrafa temos um pano branco, que é o desejo de Paz, numa pessoa que se autoapaziguar, buscando harmonia e querendo, de algum modo, se libertar de tantas dúvidas escuras. O gato negro é o destino que não pode ser previsto antes da hora certa, e o álcool é uma espécie de “anestésico”, havendo no alcoólatra alguém que quer atenuar as dores do dia a dia, havendo na bebida uma válvula de escape em um Mundo tão duro, que tanto exige do indivíduo. O chapéu do arlequim é abrasivo como uma pirâmide, pontiagudo, na dose de agressividade necessária a qualquer pessoa que queira se definir existencialmente, como um arqueiro preciso, que sabe o que quer; que sabe a quê veio. Os braços do rapaz são como correntes, no modo como é a própria pessoa quem se amarra, quem se limita, quem se castra, pois o autoencontro é dentro da pessoa, e não fora. O problema se constitui quando a pessoa quer se encontrar esperando algo do Mundo, e é reconfortante observar que o Mundo não muda. Coragem!


Acima, Natureza Morta. As frutas são perfeitamente redondas, como esferas em um sistema solar, num balé rítmico, como na abertura do seriado televisivo Third Rock From the Sun, em que planetas dançavam alegremente em cenas de irreverência no Cosmos. As frutas estão dispostas espontaneamente, como se cada uma delas tivesse livremente escolhido onde ficar. São coloridas, maduras e suculentas, num artista que se tornou delicioso. Existe algo em Malagoli que nos transporta àqueles céus renascentistas, azuis, limpos, angelicais. O limpo pano branco respalda as esferas, na cor preferida dos centros espíritas, havendo uma ritualização ao redor do branco, tomando este por símbolo de limpeza e de verdade nas atitudes; claridade; certeza. Mais ao fundo, uma garrafa escura, e não podemos saber se ela está cheia ou madura, numa dúvida que perdura, fazendo contraste com a previsibilidade branca: sempre há coisas as quais nos pegam de surpresa, e aí está a irreverência divina, num Tao piadista, repleto de senso de humor. A garrafa guarda algo que só é revelado no momento certo e oportuno, e reserva algo por anos, numa revelação, como na Vida plena que nos espera. Neste quadro, há duas partes – a interna e a externa, havendo um intermédio de uma janela retangular, um canal, uma utilidade, pois a janela que não é vazia, deixa de ser janela, no sentido de como o vazio é sexy, atraente. Do lado de fora, uma orla paradisíaca, num Ado desejoso de se desplugar um pouco e curtir o que há de mais simples na Vida, como olhar para um Céu de Brigadeiro e encher os próprios pulmões de ar, na simplicidade de momento em que tudo de que precisamos é absolutamente nada. E este nada é Tao, o caminho eternamente desobstruído. E assim é esta janela. Duas pessoas caminham tranquilamente pela beira da praia, talvez um casal em Lua de Mel em um belo resort nordestino brasileiro. As duas almas são a companhia, a fidelidade, a amizade, no modo como um amigo faz com que o Mundo deixe de parecer tão duro e solitário, tão assoberbador. É uma praia intocada, sem um sinal de lixo sobre a areia, no modo como o ser humano, normalmente, não é cidadão, jogando lixo na areia de forma irresponsável – a cidade é do cidadão, e de ninguém mais. A água é de um azul caribenho, sedutor, limpo e perfumado, na clareza que respalda as intenções boas e puras. Há suaves colinas verdejantes, numa flora que pulsa feliz em um ecossistema exótico. Temos um Ado que ama as coisas belas e simples, numa elegância de revista de Decoração. A luz de Ado sai do quadro e toca o espectador. Podemos ouvir as pequenas ondas requebrando na beira, em ondas num vaivém, sempre respirando, indo e vindo, num inocente coito. O céu limpo é a promessa de dias com mais clareza, em que o indivíduo pode olhar para si mesmo no espelho e saber quem está ali refletido. É claro que não existe 100% de certeza na Vida, mas o autoencontro busca prever o máximo possível, evitando a sensação ruim de estar perdido e solitário, frente a um cálculo matemático indecifrável. Ado nos convida ao compartilhamento, e temos a vontade de cortar estas frutas e comê-las, deglutindo Ado, como comemos a carne de Jesus na hóstia. As duas pessoas na orla são os dois olhos de Ado, sempre atento ao Mundo ao redor, sempre querendo registrar da melhor forma possível. A janela é como uma tela de Cinema, na mais jovem das Artes, numa tela sonorizada que nos convida a viajar pelos olhos de um diretor, de um ator, de um diretor de Arte, de um artista. Podemos sentir o perfume das frutas, no perfume espiritual que dizem que se podia sentir na presença do médium Chico Xavier, o maior médium de todos os tempos. Esta janela está aberta e revelada, pronta para servir ao Mundo em sua dignidade vazia, absolutamente desprovida de narcisismo ou egocentrismo. Como é viva esta natureza morta!


Acima, Sonho. Temos um Ado com um pezinho no Surrealismo, tentando decifrar os códigos herméticos oníricos, pois a Psicologia acredita que os sonhos nada mais são do que projeções da psique da própria pessoa, numa espécie de “olhar-se no espelho”. Semioticamente falando, a Arte também é feita de projeções. Então, temos aqui uma metalinguagem: projeção falando de projeção, no sonho do próprio Ado. Mas, na hora da análise, precisamos respeitar o artista e jamais usar o trabalho do artista contra este. Vemos um cavalinho, que é a Liberdade, na deliciosa sensação de cavalgar livre pelo campo, num Ado que ama o ar livre, que é uma paixão dos gaúchos. O cavalo está parado, pronto para ser montado; o cavalo é a rebeldia, que tem que ser domada para que a pessoa tenha Paz. Podemos ouvir o relinchar do bicho, desafiando um cavaleiro a montá-lo. Vemos uma mulher deitada no divã, como numa sessão de Psicanálise, como se o sonho no quadro fosse desta mulher, num terapeuta esforçado a decifrar os sonhos e dar um diagnóstico preciso, científico. A mulher deita, dorme e sonha. Vemos um busto sem face, como um herói desconhecido, no modo como no Mundo há tantas pessoas que não são reconhecidas ou valorizadas, no baita desafio que é ganhar o respeito de outrem. Vemos uma garrafa azulada, talvez um remédio, no modo como a Psicoterapia visa ser este remédio, com psiquiatras receitando drogas que façam com que o paciente se sinta bem – é o paradigma da drogadição assistida, legalizada. Atrás do busto sem face – anônimo busto –, vemos formas retangulares que parecem ser livros, no prazer do ato de ler, no modo como um livro pode se tornar uma companhia, como um rádio ligado, por exemplo. Cortando o quadro vemos uma faixa amarela, dourada, como numa torcida amarela de alguma seleção brasileira, na promessa de um Brasil melhor, mais rico e mais pleno, num Brasil do futuro, que nos espera após deixarmos o Brasil da Terra. A faixa amarela é a remuneração, o trabalho dignificado, no esforço para se ganhar a Vida, na necessidade mundana de se pagar contas e adquirir alimentos e roupas – é o day by day. Sobre a faixa amarela, vemos um castiçal com uma longa vela intacta, que nunca foi acesa – é o resguardo, a reserva, a autopreservação, numa vela que está sendo guardada para dias de escuridão, para momentos de dúvida, de incerteza negra, nas surpresas da Vida. Mais ao fundo vemos uma catedral de formato espinhoso e agressivo, furando os céus, num aviso claro – tome distância; respeite. É uma seta que aponta para algo acima, para um Mundo mais depurado. No fundo do quadro, o que vemos é uma vila, um vilarejo pacato, eventualmente alvo de arrombadores de caixas eletrônicos, numa vila em que há a Paz para se criar e produzir, no modo como um artista tem que se desplugar do Mundo para, depois, replugar-se. Há um gramado verde e bem cuidado, na dedicação do trabalho de um bom jardineiro, sempre debruçado sobre o próprio trabalho, num exercício diário de Disciplina. Neste vilarejo, vemos uma pequena torre vermelha, como um hidrante, pronto para controlar chamas, no modo como a aparelho psíquico humano tem recursos para reprimir comportamentos nocivos e perniciosos, evitando o acúmulo de ressentimentos, sendo estes nocivos como se acumular lixo – o Desnecessário tem que ir embora. Bem ao fundo, o vilarejo é beijado por um por do Sol ardente, na força ardente que queima dentro de cada artista, sempre trazendo a luz do dia sobre as percepções humanas, na missão do artista de unir as pessoas em torno de uma mesma obra de Arte, no constante apelo dos padres em missas: Somos todos irmãos, e caminhos diferentes levam ao mesmo destino, que é Tao. Na porção direita do quadro, há uma forma incerta que imita um ponto de interrogação, na inevitável dúvida do artista: Será que as pessoas vão me compreender?