quarta-feira, 29 de junho de 2016

O Local de Locatelli



Tenho uma parente de Porto Alegre que diz que tira o chapéu para um belo templo católico apostólico romano caxiense – a Igreja de São Pelegrino, onde casamentos são um programa para lá de chique. Existe uma sinergia neste lugar, chegando a superar o principal templo da cidade, a Catedral. Para onde mais levar em Caxias do Sul um turista de viagem à Serra Gaúcha? Infelizmente, a vocação de Caxias é predominantemente industrial e não muito turística, perdendo de longe para destinos como Canela e Gramado, ou para o elegante Vale dos Vinhedos de Bento Gonçalves – só para puxar aqui um aparte, visitei há dias atrás o referido vale, e é deslumbrante, principalmente em vinícolas grandes, como a Casa Valduga. Ônibus repletos de turistas aportam em Bento para compras de vinhos finos. O turismo principal em Caxias é o executivo, com ponte aérea para São Paulo.

Falando da Igreja de São Pelegrino, tudo começou em 1891, com um humilde capitel erguido por Rafael Buratto, o qual batizou o local com o nome de São Pelegrino por ter herdado de seu sogro uma pintura a óleo retratando o santo. Mais tarde no local foi erguida uma igrejinha, e a primeira missa rezada no ano de 1893. Décadas depois, em 1938, uma nova igreja de madeira foi erguida, e pouco tempo depois o famoso padre Giordani torna-se o capelão e, depois, pároco no ano de 1942 – há uma estátua em homenagem ao sacerdote bem em frente à igreja nos dias de hoje, monumento inaugurado no ano de 1994. Inclusive, em 42, meus avós maternos Ibanez e Carmen casam-se no templo. Dois anos depois, em 1944, é lançada a pedra fundamental da nova igreja de alvenaria e, em 1951, o célebre pintor italiano Aldo Daniele Locatelli começa com a Santa Ceia os intensos trabalhos da pintura interna, só finalizando-os dois anos depois – Aldo também realizou outros trabalhos no Brasil, e reza a lenda de que o artista era intenso tabagista, tendo morrido de câncer em 1962. Minha avó contava que, em bailes em Caxias, Aldo ia com sua esposa e formavam um belo casal, que dançava elegantemente nos salões da cidade. No Youtube há o filme da inauguração da Via Sacra no ano de 1960, que consiste em 14 grandes telas, e neste filme há dois registros marcantes: 1) A presença de meu respeitado bisavô Joaquim Pedro Lisboa; 2) A presença da belíssima rainha da Festa da Uva de 1958, Zila Lourdes Turra Pieruccini, vestindo um delicado véu sobre a cabeça. No filme, cada quadro é revelado atrás de panos, sob aplausos, num “striptease” sacro.

Em 1953 os interiores do novo templo de São Pelegrino são inaugurados com esplendor e barulho, pois a comunidade mal podia esperar o momento de revelação de tão intenso labor do artista italiano. Além de Locatelli, dois nomes precisam ser salientados: Emilio Sessa e Augusto Murer. Em Porto Alegre há o Instituto Cultural Emilio Sessa, o ICES, fundado por historiadores e apreciadores da obra de Sessa, o qual foi um pintor decorativo muito amigo de Aldo, pois os dois foram colegas na escola de artes na Itália. Sessa, que fez muitos trabalhos no RS – como em Pelotas – e na Europa, desempenhou em São Pelegrino um papel coadjuvante mas não menos importante. O site do ICES é rico em informações, e, com patrocínio da Caixa Econômica Federal, o instituto já lançou dois livros de uma trilogia, sendo que cada volume fala das três fases da vida artística de Sessa – início, intermédio e final. Além de pinturas decorativas, Emilio teve a missão de executar as 14 Obras de Misericórdia nas laterais internas de São Pelegrino, pintando moldes feitos por Locatelli. Só que há uma diferença grande entre os dois mestres: as nuvens de Locatelli são mais vaporosas e arredondadas; as de Sessa, retilíneas e tensas. Em uma recente noite de homenagens em São Pelegrino, o ICES foi lembrado, e um dos fundadores da instituição, o professor Arnoldo W. Doberstein, que lecionou História na PUCRS, recebeu um prêmio pela contribuição que Sessa prestou à igreja caxiense. Um dos membros do ICES é Franco Sessa, filho do pintor, sendo que seus irmãos Fabio e Nella residem na nação da bota. Já, Murer, italiano de Falcade, Belluno, é responsável pelas imponentes portas de bronze do templo, inauguradas em 1983 com esculturas em alto relevo. São três portas ao total.

No ano de 1975, nos áureos auspícios do Centenário da Imigração Italiana no Brasil, Caxias rompe em acontecimentos, como na Festa da Uva naquele ano. A Igreja de São Pelegrino ganha um relógio que badala até hoje, num aparelho fabricado em Estrela, RS, pela firma Schwertner Ltda. No mesmo ano, a paróquia recebe de presente do Vaticano, dirigido na época pelo Papa Paulo VI, uma réplica extremamente fiel da Pietà de Michelangelo – há 39 dessas réplicas espalhadas pelo mundo. O único porém é que não é possível apreciar a parte traseira do trabalho do grande mestre renascentista em São Pelegrino. Em 1982, a Nossa Senhora de Pietà é nomeada co-padroeira da paróquia. Falando em réplicas, a igreja recebe em 1984 a réplica do Santo Sudário. Um ano depois, vem a falecer o padre Giordani, e ocorrem homenagens por parte dos caxienses pelo falecimento.

No ano 2000, o templo é classificado como Patrimônio Cultural Estadual e, dois anos depois, em 2002, inicia o trabalhoso restauro das pinturas internas e telas da Via Sacra, em um labor só finalizado no ano de 2008 – lembro-me nitidamente das estruturas metálicas “atrapalhando” o local dos bancos da igreja de São Pelegrino. A conclusão dos trabalhos restaurativos foi celebrada com festa.

Apesar da igreja não ser toda trabalhada por Aldo Locatelli, ele permanece como a grande estrela do lugar. A Santa Ceia, coroada pelo luminoso Espírito Santo, fica atrás do altar, para que os fiéis a visualizem durante a missa – é uma missa falando de outra missa, numa metalinguagem, e o padre está ali no lugar de Jesus, sendo que os fiéis têm que ser como apóstolos e fiéis seguidores de Sua palavra. O pôr do Sol sutilmente avermelhado lembra Seu sangue, bebido em forma de vinho tinto, e a cor também antecipa a sangrenta crucificação. Na pintura ao lado esquerdo da Santa Ceia, Jesus aparece em frente a Santa Tereza, padroeira de Caxias do Sul, e a santa, que era freira, ajoelha-se em louvor, enquanto Jesus, em belíssimas feições, revela-se em toda a Sua plácida santidade, e Tereza parece estar chamando-o de “querido”; do lado direito, Nossa Senhora revela-se também numa aparição, e uma leva de anjos são vistos atrás da Virgem, sendo que um deles, discretamente, ajeita o manto de fino tecido que veste Maria e, aos pés da santa, uma roseira revela-se como símbolo de feminilidade, beleza e perfume.

Ainda falando de Locatelli, no teto da igreja, desdobra-se a épica cena do Juízo Final, e acontece outra metalinguagem: é altura falando de altura, pois, ao olhar-se para cima, o teto do templo vira o teto de um céu elevado. No centro da ação está Jesus que, num gesto de aceno com uma das mãos, coordena o Juízo. Maria está em um papel sutil, coadjuvante e modesto. Formidáveis demônios arrastam para o Umbral – ou Inferno – os envergonhados pecadores imorais, e os diabos têm carne translúcida, revelando seus ossos. De arrepiar de medo. Uma pequena parte de um dos demônios chega a extrapolar o limite da pintura, e premeditadamente foge um pouco do quadro. Na extrema esquerda, um nobre arcanjo auxilia na cena, e sua espada é o princípio fálico do pensamento racional – é um julgamento frio, a hora da verdade. Acima de todos os elementos, um exército de anjos toca trombetas douradas para anunciar o julgamento. A cena vai de alfa a ômega, de belo a feio.

Também olhando para o teto, Locatelli nos traz a cena da expulsão de Adão e Eva do Éden, e o princípio fálico repete-se na forma da espada do arcanjo que expulsa o casal, mostrando também o princípio de bestialidade da serpente do pecado – o homem e a mulher estão envergonhados, como as almas más do Juízo Final. Ao lado, Aldo mostra Deus concebendo carinhosamente o Homem, e Adão parece estar despertando de um sono. Já, na Via Sacra, lembro-me de minha professora de Educação Artística no Ensino Médio, Roxane Torelly Comandulli, rainha da Festa da Uva de 1975, mestra que nos levou ao templo e solicitou que captássemos as linhas básicas de movimento dos quadros, um trabalho muito interessante, que visava captar a essência geométrica das telas de Aldo. Em um dos quadros, a irreverência do mestre pintor: é jogadocontra Cristo um sapato, algo que não existia na Antiguidade. Em outra tela, o pano no qual o sangue foi enxugado do rosto de Jesus. Realmente, Locatelli era digno merecedor de respeito, numa expressividade que exala competência.

O site da Igreja de São Pelegrino é pleno em dados, sendo muito bem disposto. Não é exagero dizer que São Pelegrino é o lugar mais fino de Caxias do Sul, em uma cidade que está desenvolvendo um pensamento de valorização da cultura como sendo esta um bem social de todos.

Na ilustração desta postagem, o Deus de Locatelli inventando o mundo. A figura patriarcal revela um Pai zeloso, extremamente atencioso e debruçado no trabalho de concepção do universo. É o Grande Arquiteto, com mãos musculosas como as fortes mãos do colono italiano que cultivou a terra brasileira. Aliás, a corpulência é uma característica de Aldo, e a forma humana extremamente atlética é frequente em seu pincel. Os homens de Locatelli são vigorosos homenzarrões, e as mulheres têm traços faciais suaves. E Aldo era um pai zeloso em relação ao próprio trabalho.

Frequentemente visito a Igreja de São Pelegrino (fora do horário de missa) para a contemplação dos trabalhos. O lugar é praticamente um museu sacro, inesgotável. Sempre há algo a ser revisto e reinterpretado. Locatelli prova ter um apelo universal, e o templo caxiense é, de longe, sua obra-prima. Certa vez, em meus anos de universitário, retirei na biblioteca da Universidade de Caxias do Sul um livro sobre os trabalhos de AL em Caxias – o mestre fazia um desenho pequeno, dividido por quadrados, e depois ampliava as proporções na hora de transferir para o teto, paredes e telas. Caxias do Sul respirará para sempre os ares glamorosos da Igreja de São Pelegrino, um orgulhoso cartão de visitas da cidade.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Santa Cidade




Estive várias vezes em São Paulo, cidade que respirou o auge e a riqueza da economia cafeeira. Nos sábados, domingos e feriados, a cidade é um oásis, pois as ruas estão desocupadas e a cidade pertence a quem gosta de curtir calma e tranquilidade. Em dias úteis, o infame trânsito absolutamente caótico é uma marca registrada desta urbe que é a maior e a mais influente cidade da América Latina. Certa vez, pegando um táxi para ir do aeroporto até o hotel, levei duas horas inteiras por causa do engarrafamento: “Estou tentando chegar no Brooklin”, disse o taxista a um colega pelo telefone. Geralmente, encontrei taxistas simpáticos, e um até mostrou cordialmente os pontos importantes da cidade enquanto fazíamos a corrida. Como em toda cidade grande, há em São Paulo gente estressada e grosseira, mas há também gente boa. Já me hospedei no The Time e no excelente Matsubara, este com um belo interior de um pé direito altíssimo. Quando eu era criança, em minha primeira vez na cidade, viajei em excursão com minha família. As lembranças são vagas, mas lembro-me de comermos uma pizza no tradicional bairro do Bixiga, berço da imigração italiana em São Paulo. O italiano de SP é diferente do italiano do Rio Grande do Sul, inclusive no sotaque – em São Paulo, os imigrantes instalaram-se em um contexto citadino; no RS, o italiano levou uma vida absolutamente agrária, vindo em grande parte do Vêneto e com dialeto próprio, o talian. Até o diretor Fábio Barreto assinalou essa diferença cultural entre essas duas “Itálias brasileiras” – ele tolheu um ator quando este fez o tradicional gesto italiano de falar com as mãos, e o diretor disse: “Isso é coisa de italiano de cantina de São Paulo”. Hehehehe!!!!

A Avenida Paulista passou por uma grande despoluição visual. Entrou em vigor uma lei que passou a proibir anúncios publicitários e indicadores muito explícitos de marcas ou empresas. Deu certo. Centro financeiro do país, a avenida está com visual limpo, abrigando o nervo paulistano – o Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Frequentemente, o museu serve de pano de fundo para passeatas e protestos, e a ampla via abrigou já manifestações gigantescas. Por quê? Porque o local é tido, mesmo que de modo implícito, o centro da capital, sendo o museu o lugar mais fino em toda a São Paulo. O célebre vão do museu é um enigma arquitetônico – como conseguiram projetar aquele prédio com um vão tão livre, forte o suficiente para sustentar tanto concreto? O acervo permanente do MASP é deslumbrante, partindo de obras da Antiguidade, passando por obras renascentistas e chegando até trabalhos de Renoir – “Não acredito que estou frente a um Renoir”, disse uma moça próxima a mim no museu. Reza a lenda que o magnata Assis Chateubriand, que deu nome ao museu, fazia especulações de obras e, assim, pagava preços baixos por obras valiosas, destinando estas à cidade de São Paulo. Pertinho do museu, há a formidável Livraria Cultura, com uma grande variedade de itens e uma cafeteria aconchegante. O projeto arquitetônico da loja é de um arquiteto no auge de sua própria inspiração, num espaço que convida e entrar e ficar. De um modo geral, os paulistanos são um povo cosmopolita e grande consumidor de cultura, como peças de teatro, por exemplo. Uma boa peça de teatro não pode deixar de passar pelas casas paulistanas de teatro, numa cidade muito vibrante com musicais e shows em geral. E o paulistano prestigia essas manifestações artísticas. Povo culto. Dizem que Caxias do Sul quer ser uma pequena São Paulo, mas não passa de uma grande Farroupilha, mas é fato que o parque industrial caxiense, no Brasil, só perde para o de São Paulo. E o MASP, que nunca pára, faz parte desse bolo cultural paulistano, um símbolo de orgulho municipal, e seus pilares vermelhos contrastam com a cinzenta capital de concreto e o cinzento céu encoberto. Só há um pequeno porém: para se ter acesso ao museu, deve-se pegar um elevador, fazendo com que os visitantes entrem lentamente em “contagotas”.

O Museu do Ipiranga, dirigido pela Universidade de São Paulo, é um grandioso prédio amarelo neoclássico que narra a saga brasileira desde o Brasil Colônia. No Salão Nobre, há uma fabulosa pintura que narra o episódio épico da Independência do Brasil. Muito no museu trata da escravatura, e há até mechas do cabelo da princesa Isabel. No subsolo, há um painel de Aldo Locatelli. O prédio tem jardins que nos fazem sentir na Europa, e há também uma gigantesca rampa de asfalto a qual a gurizada aproveita para andar de skate. Outro ponto alto deste ponto turístico é o rico e complexo estatuário no monumento à Independência, com uma tocha permanentemente acesa. Só São Paulo para brindar-nos com tanta suntuosidade. No museu, dá orgulho de ser brasileiro.

O grande Mercado Público de São Paulo foi todo revitalizado na administração da prefeita Martha Suplicy, então petista. Há vários e amplos vitrais, que, com sua beleza, brindam o visitante e o convida a apreciar os produtos à venda. No mercado, há muitas frutas exóticas e frescas, e por preços módicos, vibrante como um mercado londrino. Adquiri uma bandeja de morangos graúdos e deliciosos. Almocei em um restaurante turco no segundo andar, e comi um ótimo peixe frito. De sobremesa, um doce de mel com rosas. O mercado em si é um ponto atraente, mas o entorno é precário, com prédios semi-abandonados e extremamente degradados. “São Paulo tem, convivendo dentro de si, o Primeiro e o Quarto Mundo”, disse-me certa vez uma senhora culta de Porto Alegre, e a capital paulista é assim: onde há riqueza, há pobreza, como na terrível cracolândia, num contraste social bem brasileiro.

No Bixiga – não sei porque leva esse nome - tem a concorrida pizzaria Speranza, e se há algo que São Paulo oferece em abundância, são as pizzarias. O bairro da Liberdade é o berço da imigração japonesa, e a etnia nipônica é muito forte em São Paulo. O bairro chama-se assim porque muitos dos imigrantes japoneses, ao chegarem ao Brasil, foram submetidos a trabalho escravo, sendo libertados posteriormente. Comi por duas vezes no mesmo restaurante, com sushi feito com peixe bem fresquinho, e outra vez em um lugar de comida chinesa – infelizmente não me lembro do nome desses restaurantes na Liberdade, que é um bairro movimentado, com muitos, muitos camelôs pelas calçadas. São Paulo é assim, uma Babilônia, uma colcha de retalhos étnico-cultural, numa cidade aberta à diversidade, em todos os sentidos, como a Parada Gay Anual e diversas outras manifestações. São Paulo tem cheiro de democracia.

O grande Parque do Ibirapuera é ponto de referência para lazer ao ar livre. No museu do parque, vi uma mostra de artes plásticas. No local há também o Museu Africano, que homenageia essa etnia, lembrando-me muito do contundente departamento de arte africana no Metropolitan Museum of Art de Nova York. Fui também ao planetário do Ibirapuera, o que me remeteu a lembranças da infância no planetário de Porto Alegre.

É claro que o progresso tem seu ônus, visto o cheiro de ovo podre do rio Tietê, mencionando novamente a tranqueira do tráfego. Cidade com custo de vida alto, São Paulo exige que o cidadão e o turista tenham dindim no bolso para usufruir do que a urbe oferece. Andar de carro pela paulista à noite é um programa interessante, no qual pode-se sentir, sem a loucura do dia-a-dia, o poder que emana dos prédios da via – é a capital do Brasil, deixando para Brasília um papel puramente político. Andei de ônibus, metrô e táxi, e, graças a Deus, nunca fui assaltado. É claro que São Paulo tem um charme especial, e é uma cidade de oportunidades de negócios.

Já ouvi dizer a respeito do contraste entre a mulher paulistana e a carioca: a primeira é linda na noite e um desastre na praia; a segunda, linda na praia e um desastre na noite! Mas deve ser mito. “Terra da Garoa”, São Paulo tem um microclima próprio, pois, apesar de estar quase na mesma latitude da cidade do Rio de Janeiro, está em uma elevação planáltica. Em uma das vezes em que fui, fez bastante frio (para os moldes tropicais brasileiros). E São Paulo abriga inúmeras feiras, congressos e simpósios, sendo uma vitrine daquilo que é produzido no Brasil.

Deixem-me contar uma historinha. Eu estava hospedado em um hotel em São Paulo, mas não revelarei o nome do empreendimento. No quarto ao lado do meu, um hóspede medonho: eram altas horas da noite e ele recebeu amigos no quarto, e dê-lhe gritos e risadas, ao ponto de eu, fechado no meu quarto, em minha cama, com a cabeça encostada no meu travesseiro, simplesmente não conseguir dormir – quando eu estava engrenando no sono, um quá-quá-quá no quarto ao lado me acordava. Então liguei para a recepção e disse para eles enviarem alguém para advertir o meu “querido” hóspede. O segurança foi lá, pediu que diminuíssem o barulho, mas não adiantou muito, e o barulho durou até a hora do grupo inteiro sair do quarto e ir para alguma balada ou bar na cidade de São Paulo. Quando eu achava que estava tudo bem, no dia seguinte, estou no corredor em direção à porta do meu quarto e, do mesmo quarto barulhento da noite anterior, emanava um fedor indisfarçável de maconha, e eu tenho pavor da maldita erva. Então nem liguei para a recepção - desci lá direto, e disse: “Vocês têm duas opções – uma é chamar a polícia; a outra, mudar-me de quarto”. O que os atendentes da recepção escolheram? A segunda opção, hehehe!!! Nada tenho a ver com os vícios dos outros.

Na ilustração desta postagem, a Medusa do pintor Caravaggio. A obra-prima esteve em São Paulo de passagem pelo MASP. A curadoria da mostra está de parabéns.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Bons Ares




            Estive na capital argentina por três vezes: quando eu era criança, depois pós adolescente e mais tarde adulto. Certa vez ouvi a frase: “Os argentinos são italianos que falam espanhol e se acham ingleses”. Talvez essa frase tenha sido dita após o episódio da Guerra das Malvinas, na qual Argentina e Inglaterra disputaram um arquipélago no Hemisfério Sul, conflito que trouxe baixas para ambos os lados. Semelhantes ao Brasil, os argentinos passaram por um período de ditadura militar, e foram esses ditadores que fizeram questão de pisar nos calos da Inglaterra e fazer do episódio uma bandeira de propaganda do regime opressor argentino. A própria Margareth Thatcher, primeira ministra inglesa na época, chamou os militares da Argentina de “gangue de fascistas”. Eram os anos 1980, e o mundo voltou suas atenções à disputa. Inclusive, quando foi lançado o jogo de tabuleiro “War”, naquela década, o filme publicitário mostrava sósias de personalidades mundiais jogando e disputando terras ao redor do mundo, e uma das sósias era de Teacher, digo, Thatcher. A Argentina perde a guerra e os militares passam do “prazo de validade”. A ditadura cai de podre. E há em Buenos Aires um memorial em homenagem aos mortos no conflito – uma gigantesca flor artesanalmente feita com pedaços dos aviões argentinos que lutaram nas Malvinas. A flor da paz é maior do que o sangue da guerra. O orgulho inglês saiu renovado, visto que a Inglaterra teve (e ainda tem) uma atitude colonizadora, vendo outrora na Argentina uma oportunidade de investimentos civilizatórios, como estradas de ferro cortando o país. Mas, hoje, argentinos e ingleses estão em paz, sem mais agressividade, e cada um fica quieto no seu canto. As guerras são sempre arrasadoras para todos os lados. Não se respiram bons ares na raiva.

            A Argentina tem um charme especial, e o Sol de lá parece ser mais dourado do que o comum. Por que será? Mas dizem que, meteorologicamente, Buenos Aires é uma cidade “bipolar”, pois o inverno é bem frio e o verão é bem quente, e o calor é turbinado pelo grande acúmulo de concreto e asfalto.

            Há a face negra da nação argentina – o racismo. Assim como o Brasil, a Argentina teve a força econômica de trabalho da escravatura, e negros foram arrancados da África para o trabalho forçado, e assim foi com os afrodescendentes argentinos destes, nesse absurdo que é a escravidão. Só que há um ponto contrastante no momento da abolição da escravatura: no Brasil, os negros foram libertados e passaram a ser cidadãos brasileiros, herdando de seus senhores os seus sobrenomes – é por isso que há tantos Silva no Brasil, por exemplo; já, na Argentina, os negros foram libertados mas foram todos reunidos e mandados de volta à África, sendo inaceitável serem convertidos em cidadãos – os escravos na Argentina foram usados e descartados como Kleenex. Uma parente minha viajou para Buenos Aires em excursão e, quando o grupo chegou à porta de uma casa noturna, o segurança, ao saber que se tratava de um grupo brasileiro, perguntou se neste havia algum negro, e minha parente disse ao segurança que, no Brasil, o portenho seria processado por injúria racial. Em outra oportunidade, um amigo meu estava com um grupo de amigos em um restaurante portenho, e uma de suas amigas era negra. Então o meu amigo disse que ouviu pessoas locais que, ao saírem do restaurante, olharam para a moça negra e disseram: “Não dá mais para vir aqui”. Será que os argentinos têm inveja dos brasileiros pela Argentina não ter tido um Pelé? Será que os argentinos gostam de haver uma família negra na Casa Branca nos EUA? Levando em conta o racismo, seria coincidência o fato de que vários nazistas refugiaram-se na Argentina após a II Guerra Mundial? Eu, hein. Preconceito é uó.

            Certa vez em uma entrevista, o ex jogador Diego Maradona fez uma gozação do estilo brasileiro e da tradição do futebol arte brazuca. Cidade que respira futebol, BA é o cenário da ópera rock “Evita” de Andrew Lloyd Webber. A larga avenida 9 de Julio tem a reputação de fazer com que as pessoas, por causa da alta poluição, fiquem com resquícios de poluentes nas narinas, mas é puro mito. O célebre obelisco na avenida é símbolo do orgulho portenho, numa urbe que abriga em sua região metropolitana um terço de toda a população da Argentina. Os portenhos curtem uma boa cafeteria, tendo uma certa semelhança com Porto Alegre, sendo que esta tem mais a ver com BA do que com o Rio de Janeiro. A sofisticada avenida Santa Fé abriga uma livraria, El Ateneo, que se instalou onde era certa época um teatro. A mistura ficou excelente e inusitada, um símbolo da paixão portenha por cultura. El Ateneo aproveita todos os espaços – os camarotes laterais também abrigam livros e, mais ao fundo, no palco, há uma cafeteria, num conceito muito criativo, equiparando-se à Livraria Cultura na cidade de São Paulo. Ainda falando da 9 de Julio, o centro de Buenos Aires já não respira o glamour portenho de outrora, e há prédio antigos decadentes e pichados, há camelôs vendendo tranqueira e há mendigos.

Berço do tango, com shows gratuitos da dança pela rua, a Big Apple da Argentina tem, em uma bela galeria em art déco, o teatro Astor Piazzolla, cujo nome homenageia o célebre músico astro do tango. O impecável show de tango, nesta dança apreciada por Eva Perón, é apresentado após servido um jantar, um bom programa para namorados e casais em geral. A técnica dos dançarinos é perfeita e, num certo momento da apresentação, há uma dança gauchesca extremamente parecida com as tradições do Rio Grande do Sul. São os pampas.

O grandioso Museu de Arte Latinoamericana, o Malba, com suas paredes brancas, lembra um pouco o MoMA de Nova York. Vibrante, o centro cultural portenho sempre traz mostras, e, quando fui, deparei-me com uma instalação indescritível. Foi a catarse mais forte e marcante que vi na minha vida. Uma porrada na mente. Não lembro do nome do autor e nem quero lembrar, hehehehe! E o monumental Puerto Madero é um bom programa de passeio, com gastronomia e muitos barcos atracados, num espaço que Porto Alegre quer fazer semelhantemente no Cais Mauá, no centro da capital gaúcha.

Na luz do dia, Buenos Aires é uma cidade relativamente segura. Bater perna é bom, visto que os pés bombeiam o sangue para o resto do corpo. Os guias recomendam não caminhar na rua após as 22 horas, e estão havendo vários furtos pelas ruas da cidade, em plena luz do dia. Os portenhos não vivem absolutamente seguros. Uma característica dos boêmios portenhos é o horário, pelo menos em boates onde fui – a festa começa, de fato, só às 3 da manhã, e vai até as 8 horas da matina. Cidade de passado rico e próspero, Buenos Aires respira o poder da Casa Rosada, num bom passeio, com uma entrada especial para turistas, com grandes quadros pintados com ícones da história política argentina. Mas, quando fui, observei algo instigante: num mastro estava hasteada a bandeira nacional, só que esta estava absolutamente esfarrapada, em frangalhos. Seria por causa de uma tradição que desconheço? Quanto pode custar uma bandeirazinha nova?

Na última vez, hospedei-me no Hotel Bisonte, com um ótimo café da manhã, servido até as 13 horas. O táxi na cidade é barato, até barato demais, e a categoria, na época em que fui, estava insatisfeita com as baixas tarifas. Alguns taxistas não são lá muito gentis. Ainda por cima, há táxis não regulamentados e não licenciados trabalhando pela cidade, e você tem que se assegurar que está pegando um táxi legalizado. Além do mais, circula em Buenos Aires muito dinheiro falso, e há até taxistas que passam aos passageiros cédulas inverídicas, e é por isso que os guias recomendam nunca dar cédulas de valor muito alto, pois, no troco dado pelo motorista, pode haver “ouro de tolo”. Deus que me perdoe, isso tudo numa cidade tão bonita. Por fim, o trânsito é meio caótico, e, em avenidas largas, com várias pistas, os carros nunca ficam na mesma pista, e invadem incessantemente as outras pistas demarcadas no asfalto. Mas isso Dios perdoa, mesmo porque é portenho o Papa Francisco. E abençoados são os shoppings de BA, que são finos, como as Galerias Pacífico, com seus afrescos pintados, com algo que amo – uma loja da rede mundial de cafeterias Starbucks, com um cappuccino excelente, só que caro. Diz-se que Francisco adorava tomar café pela cidade.

No retorno de minha terceira viagem a Buenos Aires, quando fui com minha família em um feriadão de Corpus Christi, uma pessoa de minha família, que adora doce de leite, adquiriu um vidro do produto na cidade. Chegamos em Porto Alegre e desembarcamos. E eu, para poupar os mais velhos de grande esforço, coloquei em meu carrinho a maior parte das malas. O que eu não percebi é que eu estava com “cara de sacoleiro”, como se eu estivesse cheio de contrabando. Então o funcionário da alfândega, ao me ver, solicitou que eu colocasse as malas sob o raio x, e o pote de doce de leite foi descoberto. O funcionário informou que, por ordens da vigilância sanitária, doces de leite da Argentina não podem entrar no Brasil. Aí o homem abriu o pote na nossa frente e o descartou, pra mostrar que o produto seria de fato jogado fora. E lá se foi um delicioso doce de leite. Fazer o quê? Inclusive, o funcionário nos deu um folder explicando as razões da legislação. Firme, porém, gentil.

Há o tradicional passeio pelo bairro El Caminito, com sua casas multicoloridas – como no Pelourinho em Salvador –, e há a feira de antiguidades no bairro de San Telmo. É bom também fazer visitas guiadas pelo colossal Teatro Colón. Buenos Aires é uma cidade grande e aberta ao mundo, numa bela escolha de lua de mel, por exemplo. BA é doce. Os argentinos retribuem as visitas dos turistas brasileiros, e vão às praias brasileiras no verão – vi até argentinos em um resort em Salvador. Certa vez, no verão em Capão da Canoa, eu cheguei em um café e sentei-me inocentemente em uma mesa. Então veio um argentino que disse-me em espanhol – como seu eu, no Brasil, tivesse a obrigação de entender a língua dele – que ele estava sentado, antes de mim, na referida mesa. Cedi gentilmente, dizendo que eu não sabia. Não vou puxar briga com um argentino, principalmente por uma mesa em um café em Capão da Canoa. Em outra ocasião, em Gramado, duas senhoras argentinas estavam batendo fotos, e eu me ofereci para tirar fotos delas. Quando lhes devolvi a máquina, uma delas agradeceu e disse-me, em espanhol, que eu era muito amável. Amo a Argentina, principalmente os vinhos!

E não podemos esquecer da Republica de Los Niños, ou seja, a República das Crianças, parque temático fundado por Evita Perón nos anos 1950 – olha ela aí de novo, tendo sido tema deste mesmo blog anteriormente. Reza a lenda que quando Walt Disney visitou o parque, teve a inspiração para construir a Disneylândia na Califórnia, EUA. Falando em crianças, certa vez minha família alugou nossa casa no litoral para um casal argentino com filhos. E também tive a oportunidade de conhecer, no Brasil, o portenho Félix Monti, o talentoso diretor de fotografia de cinema.

Na ilustração desta postagem, um banco exótico no interior do Malba. É a sofisticação dos citadinos hermanos.