Tenho uma parente de Porto Alegre que diz que tira o chapéu
para um belo templo católico apostólico romano caxiense – a Igreja de São Pelegrino, onde casamentos são um programa para lá de chique. Existe uma
sinergia neste lugar, chegando a superar o principal templo da cidade, a
Catedral. Para onde mais levar em Caxias do Sul um turista de viagem à Serra
Gaúcha? Infelizmente, a vocação de Caxias é predominantemente industrial e não
muito turística, perdendo de longe para destinos como Canela e Gramado, ou para
o elegante Vale dos Vinhedos de Bento Gonçalves – só para puxar aqui um aparte,
visitei há dias atrás o referido vale, e é deslumbrante, principalmente em
vinícolas grandes, como a Casa Valduga. Ônibus repletos de turistas aportam em
Bento para compras de vinhos finos. O turismo principal em Caxias é o
executivo, com ponte aérea para São Paulo.
Falando da Igreja de São Pelegrino, tudo começou em 1891, com
um humilde capitel erguido por Rafael Buratto, o qual batizou o local com o
nome de São Pelegrino por ter herdado de seu sogro uma pintura a óleo
retratando o santo. Mais tarde no local foi erguida uma igrejinha, e a primeira
missa rezada no ano de 1893. Décadas depois, em 1938, uma nova igreja de
madeira foi erguida, e pouco tempo depois o famoso padre Giordani torna-se o
capelão e, depois, pároco no ano de 1942 – há uma estátua em homenagem ao
sacerdote bem em frente à igreja nos dias de hoje, monumento inaugurado no ano
de 1994. Inclusive, em 42, meus avós maternos Ibanez e Carmen casam-se no
templo. Dois anos depois, em 1944, é lançada a pedra fundamental da nova igreja
de alvenaria e, em 1951, o célebre pintor italiano Aldo Daniele Locatelli
começa com a Santa Ceia os intensos trabalhos da pintura interna, só
finalizando-os dois anos depois – Aldo também realizou outros trabalhos no
Brasil, e reza a lenda de que o artista era intenso tabagista, tendo morrido de
câncer em 1962. Minha avó contava que, em bailes em Caxias, Aldo ia com sua
esposa e formavam um belo casal, que dançava elegantemente nos salões da
cidade. No Youtube há o filme da inauguração da Via Sacra no ano de 1960, que
consiste em 14 grandes telas, e neste filme há dois registros marcantes: 1) A
presença de meu respeitado bisavô Joaquim Pedro Lisboa; 2) A presença da
belíssima rainha da Festa da Uva de 1958, Zila Lourdes Turra Pieruccini,
vestindo um delicado véu sobre a cabeça. No filme, cada quadro é revelado atrás
de panos, sob aplausos, num “striptease” sacro.
Em 1953 os interiores do novo templo de São Pelegrino são
inaugurados com esplendor e barulho, pois a comunidade mal podia esperar o
momento de revelação de tão intenso labor do artista italiano. Além de Locatelli,
dois nomes precisam ser salientados: Emilio Sessa e Augusto Murer. Em Porto Alegre há o
Instituto Cultural Emilio Sessa, o ICES, fundado por historiadores e apreciadores
da obra de Sessa, o qual foi um pintor decorativo muito amigo de Aldo, pois os
dois foram colegas na escola de artes na Itália. Sessa, que fez muitos
trabalhos no RS – como em Pelotas – e na Europa, desempenhou em São Pelegrino um
papel coadjuvante mas não menos importante. O site do ICES é rico em
informações, e, com patrocínio da Caixa Econômica Federal, o instituto já
lançou dois livros de uma trilogia, sendo que cada volume fala das três fases
da vida artística de Sessa – início, intermédio e final. Além de pinturas
decorativas, Emilio teve a missão de executar as 14 Obras de Misericórdia nas
laterais internas de São Pelegrino, pintando moldes feitos por Locatelli. Só
que há uma diferença grande entre os dois mestres: as nuvens de Locatelli são
mais vaporosas e arredondadas; as de Sessa, retilíneas e tensas. Em uma recente noite de homenagens em São Pelegrino, o ICES foi lembrado, e um dos fundadores da
instituição, o professor Arnoldo W. Doberstein, que lecionou História na PUCRS,
recebeu um prêmio pela contribuição que Sessa prestou à igreja caxiense. Um dos
membros do ICES é Franco Sessa, filho do pintor, sendo que seus irmãos Fabio e
Nella residem na nação da bota. Já, Murer, italiano de Falcade, Belluno, é
responsável pelas imponentes portas de bronze do templo, inauguradas em 1983 com
esculturas em alto relevo. São três portas ao total.
No ano de 1975, nos áureos auspícios do Centenário da
Imigração Italiana no Brasil, Caxias rompe em acontecimentos, como na Festa da
Uva naquele ano. A Igreja de São Pelegrino ganha um relógio que badala até
hoje, num aparelho fabricado em Estrela, RS, pela firma Schwertner Ltda. No
mesmo ano, a paróquia recebe de presente do Vaticano, dirigido na época pelo
Papa Paulo VI, uma réplica extremamente fiel da Pietà de Michelangelo – há 39
dessas réplicas espalhadas pelo mundo. O único porém é que não é possível
apreciar a parte traseira do trabalho do grande mestre renascentista em São
Pelegrino. Em 1982, a
Nossa Senhora de Pietà é nomeada co-padroeira da paróquia. Falando em réplicas,
a igreja recebe em 1984 a
réplica do Santo Sudário. Um ano depois, vem a falecer o padre Giordani, e
ocorrem homenagens por parte dos caxienses pelo falecimento.
No ano 2000, o templo é classificado como Patrimônio
Cultural Estadual e, dois anos depois, em 2002, inicia o trabalhoso restauro
das pinturas internas e telas da Via Sacra, em um labor só finalizado no ano de
2008 – lembro-me nitidamente das estruturas metálicas “atrapalhando” o local
dos bancos da igreja de São Pelegrino. A conclusão dos trabalhos restaurativos
foi celebrada com festa.
Apesar da igreja não ser toda trabalhada por Aldo
Locatelli, ele permanece como a grande estrela do lugar. A Santa Ceia, coroada
pelo luminoso Espírito Santo, fica atrás do altar, para que os fiéis a
visualizem durante a missa – é uma missa falando de outra missa, numa
metalinguagem, e o padre está ali no lugar de Jesus, sendo que os fiéis têm que
ser como apóstolos e fiéis seguidores de Sua palavra. O pôr do Sol sutilmente avermelhado
lembra Seu sangue, bebido em forma de vinho tinto, e a cor também antecipa a
sangrenta crucificação. Na pintura ao lado esquerdo da Santa Ceia, Jesus
aparece em frente a Santa Tereza, padroeira de Caxias do Sul, e a santa, que
era freira, ajoelha-se em louvor, enquanto Jesus, em belíssimas feições,
revela-se em toda a Sua plácida santidade, e Tereza parece estar chamando-o de
“querido”; do lado direito, Nossa Senhora revela-se também numa aparição, e uma
leva de anjos são vistos atrás da Virgem, sendo que um deles, discretamente,
ajeita o manto de fino tecido que veste Maria e, aos pés da santa, uma roseira
revela-se como símbolo de feminilidade, beleza e perfume.
Ainda falando de Locatelli, no teto da igreja, desdobra-se
a épica cena do Juízo Final, e acontece outra metalinguagem: é altura falando
de altura, pois, ao olhar-se para cima, o teto do templo vira o teto de um céu
elevado. No centro da ação está Jesus que, num gesto de aceno com uma das mãos,
coordena o Juízo. Maria está em um papel sutil, coadjuvante e modesto.
Formidáveis demônios arrastam para o Umbral – ou Inferno – os envergonhados pecadores
imorais, e os diabos têm carne translúcida, revelando seus ossos. De arrepiar
de medo. Uma pequena parte de um dos demônios chega a extrapolar o limite da
pintura, e premeditadamente foge um pouco do quadro. Na extrema esquerda, um
nobre arcanjo auxilia na cena, e sua espada é o princípio fálico do pensamento
racional – é um julgamento frio, a hora da verdade. Acima de todos os elementos,
um exército de anjos toca trombetas douradas para anunciar o julgamento. A cena
vai de alfa a ômega, de belo a feio.
Também olhando para o teto, Locatelli nos traz a cena da
expulsão de Adão e Eva do Éden, e o princípio fálico repete-se na forma da
espada do arcanjo que expulsa o casal, mostrando também o princípio de
bestialidade da serpente do pecado – o homem e a mulher estão envergonhados,
como as almas más do Juízo Final. Ao lado, Aldo mostra Deus concebendo carinhosamente
o Homem, e Adão parece estar despertando de um sono. Já, na Via Sacra,
lembro-me de minha professora de Educação Artística no Ensino Médio, Roxane
Torelly Comandulli, rainha da Festa da Uva de 1975, mestra que nos levou ao
templo e solicitou que captássemos as linhas básicas de movimento dos quadros,
um trabalho muito interessante, que visava captar a essência geométrica das
telas de Aldo. Em um dos quadros, a irreverência do mestre pintor: é jogadocontra Cristo um sapato, algo que não existia na Antiguidade. Em outra tela, o
pano no qual o sangue foi enxugado do rosto de Jesus. Realmente, Locatelli era
digno merecedor de respeito, numa expressividade que exala competência.
O site da Igreja de São Pelegrino é pleno em dados, sendo
muito bem disposto. Não é exagero dizer que São Pelegrino é o lugar mais fino
de Caxias do Sul, em uma cidade que está desenvolvendo um pensamento de
valorização da cultura como sendo esta um bem social de todos.
Na ilustração desta
postagem, o Deus de Locatelli inventando o mundo. A figura patriarcal
revela um Pai zeloso, extremamente atencioso e debruçado no trabalho de
concepção do universo. É o Grande Arquiteto, com mãos musculosas como as fortes
mãos do colono italiano que cultivou a terra brasileira. Aliás, a corpulência é
uma característica de Aldo, e a forma humana extremamente atlética é frequente
em seu pincel. Os homens de Locatelli são vigorosos homenzarrões, e as mulheres
têm traços faciais suaves. E Aldo era um pai zeloso em relação ao próprio
trabalho.
Frequentemente visito a Igreja de São Pelegrino (fora do
horário de missa) para a contemplação dos trabalhos. O lugar é praticamente um
museu sacro, inesgotável. Sempre há algo a ser revisto e reinterpretado.
Locatelli prova ter um apelo universal, e o templo caxiense é, de longe, sua
obra-prima. Certa vez, em meus anos de universitário, retirei na biblioteca da
Universidade de Caxias do Sul um livro sobre os trabalhos de AL em Caxias – o
mestre fazia um desenho pequeno, dividido por quadrados, e depois ampliava as
proporções na hora de transferir para o teto, paredes e telas. Caxias do Sul
respirará para sempre os ares glamorosos da Igreja de São Pelegrino, um orgulhoso
cartão de visitas da cidade.