quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Mago (Parte 5)




Falo pela quinta vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Ascendendo e Descendendo, litogravura de 1960, 28,5 cm x 35,5 cm. Não me canso de dizer que Escher tinha alma de arquiteto. Seus trabalhos privilegiam formas arquitetônicas, com muitos arcos, colunas, telhados, janelas e escadarias. Aqui, Escher, mais uma vez, revela-se o charadista do século: a escadaria sobe ou desce? Os homens sobem e descem atarefados, incansáveis, incessantemente trabalhando para realizar algo. A escadaria ambígua é a mente de Escher, numa genialidade que sempre instiga o espectador. Os homens estão todos encapuzados, misteriosos, idênticos uns aos outros. De repente são o mesmo homem, só que em vários momentos. Os telhados são meticulosamente construídos, telha por telha, num Escher construtor: teria ele obtido sucesso se tivesse uma firma de construção civil? Neste prédio as formas são belas e delineadas, sem excessos de arquiteto pretensioso e, apesar da escadaria enigmática ao terraço, é um prédio normal, sem charadas, e é um belo prédio, num projeto harmonioso, na busca de Escher pela beleza suprema. Existe em Escher uma certa Matemática, e suas formas são como frias equações, feitas na fria razão numérica. Há apenas dois homens além dos que estão subindo/descendo: um está de pé em um pequeno terraço, debruçado no parapeito, contemplando o trânsito frenético da escadaria mágica; o outro, senta-se numa escadaria mais ao térreo, pensando, refletindo, olhando para o vazio branco à sua frente, perguntando-se o que vem depois da vida na Terra, num Escher pensador e contemplador, sempre querendo retratar a vida de modo próprio e inconfundível. A escadaria traiçoeira é a contradição taoista: o orgulho arrogante é fraco; a fraqueza humilde é forte. A vida é feita de escolhas, e o olho do espectador tem que decidir se sobe ou desce, nunca podendo fazê-lo ambos ao mesmo tempo, no sentido dialético de que tudo traz em si a sua própria contradição, num sinal de senso de humor divino: Deus é um charadista, ou seja, Tao é um brincalhão. O prédio todo está envolto em brumas brancas, num mistério: o que está por traz da camada branca? Até onde vai o universo? O que é o infinito? A luminosidade alva ilumina o quadro todo, e as formas ficam delineadas por um Escher mestre em encontrar luminosidade e delinear formas. O branco é a paz, o entendimento, na missão da Arte de civilizar e guiar o Mundo. As escadarias são um ciclo vital, e tudo acaba caindo na mesma vala. Escher nos diz que, no momento em que achamos que estamos caindo, estamos subindo – isto é a Humildade. Quando você se acha uma lâmina de bisturi afiadíssima, é porque você não está muito bem, e está sendo arrogante; quando você se sente como uma tesoura cega, é porque você está bem, e está sendo humilde e pés no chão. E a pessoa humilde observa o restante das pessoas e as acha tão afiadas. E os capuzes são o mistério existencial, escuro, escondido, com coisas que a Divina Providência nunca revela fora do momento adequado. Quando uma pessoa tem que passar por um determinado momento, não há Cristo que impeça isso. E as formiguinhas trabalham incessantemente, nunca sabendo que o biscoito é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho. Escher não está aqui para dar respostas, mas para lançar dúvidas. É um desinformador, na humildade de um artista que realmente não sabe desvendar todos os mistérios do universo, de Tao. Podemos ouvir os passos dos homens encapuzados, e a Vida segue em seu ritmo, num striptease que nunca revela a nudez completamente, nunca entregando o jogo. E não seria extremamente tedioso se Escher fizesse obras óbvias? O óbvio é um ilusão; o mistério é eterno. Temos que conviver com o mistério da Eternidade, e nunca mataremos a charada escheriana. E é exatamente este mistério o que gera a eternidade. Aqui, os picos dos telhados são pontiagudos, agressivos, ameaçadores, e exigem que sejam observados à distância, exigindo respeito à mente de Escher. São como amargas seringas, contendo um remédio amargo, mas que cura. A Arte é um remédio que cura o Mundo. Qual é o propósito disso tudo? O que vem depois? Escher, em sua humildade, não sabe. Como é dito no divertido filme Dogma, Deus tem muito senso de humor. É um redemoinho, uma galáxia que gira em torno do mesmo Tao, havendo fluxo e contrafluxo. Yin e Yang beijando-se. O buraco negro é poderoso porque é invisível, discreto, tímido, humilde.

Acima, Preenchimento de Plano, litogravura de 1957, 37 cm x 31,5 cm. Não existe perda de espaço para Escher, e a imaginação do artista aproveita cada espaço, guiando nossos olhos entre positivo e negativo: na Natureza, tudo se recicla. Aqui, temos um plano biológico, cheio de vida. O termo preenchimento no título ilustra a intenção escheriana, sempre imaginando, com muita inteligência emocional, oportunidades gráficas. E não temos só seres vivos aqui, mas também um violão. Escher vê o Mundo de forma melódica, artística, e temos aqui uma grandiosidade, num artista que não usa muitas cores, sempre se contentando com preto & branco, na magia das contradições entre esses dois opostos. Vemos grandes peixes nadando, dando uma dimensão líquida e fluidia ao quadro, na fluidez da Vida, do modo como o Oceano é a Mãe da Vida na Terra, na semelhança linguística entre os termos, mãe, mar e Maria, numa Iemanjá que reina nas águas, arrastando tudo e todos consigo, reinando e abençoando os pescadores e navegadores, no feriado de Nossa Senhora dos Navegantes, em Porto Alegre. O peixe livre é a imaginação de Escher, do modo como um artista tem que se sentir livre, frustrando-se com a censura, com o veto, com a proibição ideológica. Vemos aqui também seres humanos – um branco e um negro, na diversidade racial do Mundo. Neste quadro, o pensamento de Escher mostra que a Vida vem de um só caldeirão biológico, de uma só fonte, uma só Mãe. Os seres aqui convivem em absoluta harmonia, nadando pelo quadro e misturando-se uns com os outros. Aqui, não temos conflito racial nem qualquer outro preconceito que cause cisão e separação, mas vemos integração num bioma autossuficiente, do modo como na Terra os seres estão incluídos em uma só esfera, sendo impossível haver Vida no espaço sideral – o Mundo é uma grande usina de reciclagem. Seria Escher um amante da Biologia? Vemos aqui um grande caracol, que é a lentidão paciente com a qual Escher produz suas obras, construindo tudo pedacinho por pedacinho, com passos de bebê, alheio ao ritmo frenético e estressante do mundo lá fora, isolando-se em uma bolha de silêncio e quietude, criando sempre, em seu próprio ritmo, sem estresse nem pressões – Escher é trabalhador, mas não workaholic. Também vemos aqui seres fictícios, como diabretes, frutos de mutações, do modo com a Mutação é a chave para a Evolução. Trata-se de um quebracabeça, com peças perfeitamente encaixadas, como na perfeição das teias tecidas pela Divina Providência, numa aranha existencial. Todos aqui respiram o mesmo oxigênio, compartilhando um mesmo útero primordial, numa irmandade, onde há igualdade e, ainda assim, diferenciação, numa contradição essencial. Vemos um canguru, provavelmente guardando um filhote em sua bolsa, do modo como Escher guarda em sua bolsa obras com um longo período de gestação, parindo quando acreditar que é a hora de trazer o “filhote” ao Mundo. No topo da cena vemos um elefante, no peso de um talento claro de se observar, impondo-se com sobrepeso, esmagando mediocridades e incompetências. Parece que todos estão se abraçando, numa orgia gráfica. O homem abaixo do elefante acena para o espectador, numa missão de paz e civilização, convidando as pessoas a integrar a cena e fazer parte dessa grande comunhão: estão todos dentro do mesmo saco, na simplicidade monoteísta: há um só Caminho. Escher nos mostra que em tudo há duas leituras, sendo uma a contradição da outra, do modo como razão e loucura fazem parte do mesmo pacote, como diz Tao: o difícil e o fácil fazem parte do mesmo trabalho. Uma leitura que faz sentido; outra, que não faz. É como lixo seco e lixo orgânico, fazendo parte da mesma limpeza. Ao lado do violão, vemos uma corpulenta serpente, retorcendo-se sensualmente, abrindo a boca para proferir veneno, banqueteando-se na cena repleta de vítimas potenciais. A serpente é a força da mente de Escher, na liquidiscência vital, do modo com a água é essencial à Vida na Terra. A serpente é uma montanha russa, com sua curvas perigosas e traiçoeiras, sempre se insinuando por entre a mata. É um intestino processando o alimento, funcionando na cena biológica. Vemos também uma lagosta com garras fortíssimas, num Escher que se apega profundamente ao labor, nunca largando por completo o vínculo com as próprias obras, sempre sentindo-se um pai que vê o filho saindo de casa; um filho indo morar sozinho – a obra, mesmo comercializada, sempre pertence ao artista que a concebeu.

Acima, Belvedere, litogravura de 1958, 29,5 cm x 46,2 cm. Há uma ambientação medieval, visível nos trajes das pessoas aqui. No topo da estrutura, uma bela dama observa o horizonte, num Escher vislumbrador de desafios e oportunidades artísticas. A dama está quase inacessível, exigindo muito esforço por parte do homem que quiser esta dama. Mais uma vez, a ilusão de ótica toma conta, com arcos entremeando-se, ludibriando as percepções do espectador. Abaixo da dama elevada, um senhor nobre também olha para o horizonte, só que numa direção diferente. O céu está enegrecido, sem esperança, e o recorte geológico de montanhas toma a linha do horizonte. São picos agressivos, como facas afiadas. Podemos ver um pequeno rio no fundo de um vale, alimentando com água as florestas ao seu redor. Dois homens competem um com o outro, disputando a dama elevada, que é o princípio passivo, numa goleira de futebol, como o vale atrai a água para si – a dama está numa posição superior e, ao mesmo tempo, inferior. A escada que dá acesso à dama é traiçoeira, prometendo dar um nó em quer quiser subir ao topo da estrutura. É uma teia traiçoeira de aranha, e os homens ascendendo estão enfeitiçados, inebriados pela dama, como espermatozoides competindo pelo mesmo óvulo, na corrida da Vida, da seleção natural. O homem abaixo da dama está alheio a essa competição mundana, observando os picos nevados de montanhas ao longe, na frieza da mente de Escher, estabelecendo divertidas ilusões de ótica, numa cabeça definitivamente pensante. Ao pé da cena, vemos um homem preso, atrás de grades. O que ele fez para chegar àquilo? Ele está com a cabeça para fora, louco para ser libertado, como o Espiritismo diz, quando questionado se um espírito gosta de estar encarnado, o espírita dirá: “Pergunte a um prisioneiro se este gosta da prisão”. É o cárcere da encarnação, da missão que o espírito precisa cumprir antes de se libertar, ou seja, desencarnar. Ao lado do homem gradeado, outro homem, sentado, manuseia um cubo mágico, que é um subconjunto da ilusão de ótica da qual Escher lança mão no quadro. O cubo é dinâmico em sua formidável contradição, formando uma charada insolúvel, assim como Escher forma charadas. O homem sentado contempla o cubo piadista, e está alheio à ânsia encarcerada do homem gradeado. Ao pé da escadaria, um casal começa a subi-la. O longo vestido da mulher é como um rabo de peixe, fluindo livre pelas escadarias. O homem aponta para a escadaria, convidando a mulher para acompanhá-lo. É uma cena de sedução, e o homem tem intenções ocultas para com ela, num Escher sedutor em sua arte. No lado direito, abaixo, mais uma janela gradeada e, ao lado, uma porta fechada, no cárcere da carne, da vida na Terra, na dimensão material, do modo como um psicopata não consegue enxergar além da dimensão material – é o mundanismo vulgar e criminoso, num espírito infeliz, o qual não tem nobreza para transcender e superar as vicissitudes da vida material, pois um psicopata não quer ser respeitado; um psicopata quer ser temido. É engraçado observar que a dama ao topo está num lugar inacessível, apenas acessível por um artifício, um improviso. Por que tanta inacessibilidade? Será que isso excita os homens que sobem, como numa ereção? Os telhados têm picos agressivos como os picos das montanhas, do modo como um artista precisa se diferenciar e ser original, evitando assim a competição medíocre e pequena. O homem mais ao topo da escada olha o opositor ascendendo, e parece disposto a fazer de tudo para tolher e eliminar o oponente, na agressividade da vida selvagem, como dois machos competem pela fêmea. O chão abaixo na cena é quadriculado como um tabuleiro de xadrez, num Escher habilidoso, que move-se com suas peças em estratégias inimagináveis, revelando maestria. O telhado alvo contrasta com o céu negro, pois sabemos que Escher é uma espécie de barroquista, tendo entendido o jogo entre claro e escuro. Os arcos são sensuais, deixando o ar circular, trazendo vida à cena, oxigenação – podemos sentir a brisa. Abaixo, na extrema direita, vemos ao fundo uma estrutura que pode ser o pedaço de uma pirâmide, apontando para o céu, como uma longa escada que leva à transcendência, num formato agressivo e abrasivo, como pastas de dente, que deixam os dentes ficar polidos. Símbolo de poder e renascimento, a pirâmide traz a dignidade da grande dama ao topo, inspirando e fascinando. A inacessibilidade é a virgindade, na Imaculada Conceição, no mistério da concepção divina, da dimensão acima da nossa, sendo aquela uma dimensão livre das influências da matéria.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Mago (Parte 4)




Falo pela quarta vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Metamorfose I, xilogravura de 1937. Escher adora estampas em xadrez. Seu trabalho é tijolo por tijolo, imaginando transições matemáticas. Não sabemos se a metamorfose começou pela esquerda ou pela direita. Na extrema direita, ou seja, no Extremo Oriente, vemos um chinês sorridente, tipicamente trajado, num Escher universal. O chinês vai tornando-se formas de aspecto estelar, até resultar em cubos de brinquedo, que por suas vezes viram uma colina rochosa de uma praia, talvez grega. O mar não está revolto, e requebra em discretas ondas na margem. A cidade parece ter sido esculpida na rocha, e a colina oferece uma vista invejável, de frente para o vasto oceano, o vasto universo, cheio de galáxias, com estrelas que somam maior quantidade do que os grãos de areia em todas as praias da Terra juntas. Temos aqui uma liquidiscência, e extrema esquerda e extrema direita mesclam-se como no oceano da cena, e temos um degradê, um gradiente entre opostos, unindo o mundo, o ser humano dentro de si unido, inteiro, sem preconceitos de raça. Ambas as extremidades estão mergulhadas no preto, o qual é o pai, a mãe, a origem misteriosa, o útero espiritual. Trata-se de uma cena essencialmente noturna, e o oceano está imerso em sombras, na incerteza da existência, nas dúvidas de como será o futuro, o amanhã, o desencarne. Ao centro do quadro temos cubinhos de brinquedo, desafiando a criatividade da criança, e temos aqui um Escher criança, divertindo-se na tarefa meticulosa de criar de inventar possibilidades, pois, como eu já disse, MC Escher tem veia de arquiteto – uma pena que o artista nunca tenho feito projetos arquitetônicos, os quais seriam, certamente, um deslumbre. Preto e branco casam-se e unem-se, bailando juntos para que formas sejam claramente delineadas, numa maestria em jogar com apenas duas cores, na charmosa simplicidade da foto sem cores. Por que será que Escher raramente usa cores? Seu traço é tão genial que cores tornam-se desnecessárias, e o artista decide jogar com simplicidade, como ocorre nas xilogravuras, uma técnica que não permite cores e mais cores. Pessoas, pequenas como formigas, passeiam pela cidadela rochosa, cuidando de suas vidas ou, simplesmente, passeando. A cidadela parece estar banhada por luz, apesar do oceano estar negro. Escher aproveita muito bem os espaços em branco, na base alva do papel virgem, pronto este para ser “manchado” pela xilo, desvirginado. A xilogravura é uma agressão, só que uma agressão do bem, positiva, buscando possibilidades de criação. Os cubinhos, surgindo após a cidadela, vão se revelando formas geométricas modernas, simples, retas, como manda a Arquitetura Modernista, que tomou corpo em princípios do Século XX. Ao contrário, a arquitetura da cidadela não é tão simples assim, revelando formas mais complexas. Os cubinhos vão tornando-se escadas, na paixão de Escher por escadas, e arcos revelam-se sensuais, numa noite grega de luar e céu limpo, na sensualidade do ar circulando, trazendo vida que pulsa. São blocos que vão construindo uma pirâmide, como pixels, que, um a um, começam a revelar uma obra, revelar algo que existe na mente do artista. Após os cubinhos, vemos as formas ficarem mais complexas, como em formas de asterisco, até revelarem o homem chinês, num processo de transformação. Fica a dúvida em saber como Escher, trabalhava; quais eram seus rascunhos, seus projetos; quanto tempo levava para fazer um trabalho. O chinês, com o chapéu típico de seu país, veste uma estampa florida e quadriculada, do modo como Escher revela-se um mestre de estampas, sempre imaginado, de forma líquida, as possibilidades de transformação – nada para Escher é estático, e sua mente é um corpo vivo, como tem que ser a mente de qualquer pessoa que queira fazer Arte, pois, como diz a Dialética, tudo é processo, e o infinito se revela em todo o seu poder. Os cubos são escadarias modernas. As rochas ao pé da cidadela permanecem firmes, resistentes ao chicotear das ondas. O homem chinês simboliza a universalidade da mente de Escher, que é um homem de uma mente sem fronteiras. Cinza, preto e branco bailam numa só pista de dança, elegantemente. O título “Metamorfose” é muito pertinente, e não há linhas divisórias no quadro, como o girino tornando-se sapo – há gradiente, sem bipolaridade, sem latência.

Acima, Ciclo, litogravura de 1938. Aqui, um Escher biólogo, ciente dos ciclos na Natureza, na noção de que nada se perde; tudo se renova. Os homens correndo pelas escadas parecem duendes, apressados. Ao fim da escadaria, mergulham num mar e mesclam-se numa espécie de oceano mãe, transformando-se em cubos, que se transformarão em escadas novamente, fechando o ciclo, como na Cadeia Alimentar. O piso quadriculado neste quadro lembra-me do piso de um colégio de padres no qual estudei, e é uma charada, pois tem duas leituras, sendo uma a contradição da outra. Os homens estão afoitos, com os braços para cima, como se estivessem rendendo-se frente a uma arma de um policial ou ladrão, como uma vez apontaram uma arma para o coração de uma amiga minha, tendo os ladrões levado o carro dela. Os duendes surgem milagrosamente de uma porta arqueada, como os arcos na casa onde cresci em Caxias do Sul. Os duendes vêm do nada, simplesmente aparecendo, do modo como tudo veio do nada; veio de Tao. É o milagre da vida. Aqui, tudo retorna à fonte, e há muito movimento, oxigenação, vida em movimento. Há um vaso de plantas na beira de uma janela, simbolizando a vida, os seres vivos da Terra. A planta parece dançar ao doce sabor da brisa, do modo como o movimento aqui gera arejamento, vida. Há uma janela gradeada, proibida, secreta, como se guardasse um segredo inviolável de uma paixão inflamável. É o segredo divino, o enigma da vida e da morte: por que há nascimento e óbito? Os cubos são a infância, a brincadeira criativa, na diversão de construir, desconstruir e construir de novo, como em castelinhos de beira da praia, num eterno aprendizado. Há outra janela aqui, só que sem grades, na transparência dos vidros, do modo como é transparente o fato de Escher ser um grande talento – é fácil de observar. Bem ao fundo na cena, um rio em um vale fértil, no caminho da vida, pois Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. E Tao é este caminho. A água segue seu incansável curso, alimentando o mundo, irrigando plantações, hidratando seres vivos – o líquido essencial da vida na Terra. O grande rio caudaloso ao fundo lembra o plano de fundo da Monalisa de da Vinci, na Mãe Natureza em sua interminável tarefa de fazer a vida e guiar esta. É como uma professora bela é sábia, hipnotizando o aluno. As formas na parte inferior do quadro trazem formas de quebracabeça, num Escher debruçado em raciocínio, encaixando pacientemente as pecinhas umas nas outras, enfrentando as vicissitudes iniciais e triunfando ao final, com o quadro montado, no doce sabor do êxito. O quebracabeça me lembra de um montado no consultório de minha dentista, quando eu era criança. Era a figura de um grande castelo europeu, e o enigma foi montado pelo filho de minha dentista, e esta expunha orgulhosamente o quebracabeça em seu consultório. É o raciocínio que desvenda charadas, e Escher é um exímio charadista, sempre brincando com as percepções do espectador. Sua paixão por escadas reside no fato destas trazerem truncadas fases distintas mas que, colocadas lado a lado, revelam uma continuidade, uma liquidiscência gostosa, no conforto do útero, do lar. As colinas ao fundo são a Geologia, traçando terrenos e impondo-se como percalços aos colonizadores, desafiando a sede de crescer do ser humano. Certamente Escher crescia a cada trabalho que concluía, apaixonando-se pelo processo criativo, tornando-se popular e amado – o labor faz crescer. O rio corre como os duendes, com pressa, na demanda do day by day, do dia a dia. Este rio lembra a capa do livro Gênesis do fotógrafo Sebastião Salgado, pessoa já comentada aqui no blog. Na capa, o rio revela-se a fonte da vida, o provedor, sendo a gênese, o princípio imutável e eterno. Existe algo mais poderoso do que a eternidade? Nenhuma pedra preciosa supera a eternidade, pois a matéria está condenada à danação, danando-se cedo ou tarde – pedras são matéria. As escadarias são teclas de piano ou de dominó, rendendo várias leituras e releituras. Virando o quadro de pontacabeça, temos a impressão de que flocos de neve caem do céu, na beleza do inverno, na Natureza congelada, eternizada, cristalizada, na beleza de Galadriel de O Senhor dos Anéis. E céu e terra dançam a doce dança da vida, fazendo amor. Escher, mestre da Geometria. As desérticas colinas ao fundo trazem a solidão do trabalho de criação, no qual o artista está só consigo mesmo, tendo paz e sossego para criar. É o Vale dos Vinhedos de Bento Gonçalves, irrigando parreirais e fazendo a vida virar prazer em bebida. Cada obstáculo é uma perspectiva de crescimento. Uma grande amiga minha psicóloga me disse: “As crises são positivas”.

Acima, Olho, meia tinta de 1946. Como num espelho, o espectador se olha. É o olho de Deus, sempre observando seus filhos. É o olho no topo da pirâmide nas notas de dólares, sempre ciente, sempre no controle de tudo e todos no universo inteirinho. Onisciência, onipresença. Não deixa de ser um autorretrato, com o artista olhando a si mesmo, num momento de reflexão, de olhar interno, de momento de introspecção. O traço é primoroso, com cada cílio como detalhe, com cada textura epitelial desenhada, num Escher mestre em luz & sombra, retratando o lustro do olho, provavelmente refletindo uma janela, dando a entender que a luz é natural neste trabalho. A pálpebra é cuidadosamente desenhada, e é quase um retrato fotográfico de tão perfeito. Quem sou eu? A íris também é primorosamente delineada, e até podemos ver pequeno vasinhos sanguíneo no branco ao redor da íris. O olho parece piscar, como se observasse o espectador, numa troca de olhares, num flerte, num momento de troca e comunicação, de contato. Bem ao fundo na pupila vemos uma caveira, que é a finitude, a morte inevitável, num artista que se pergunta o que vem após o óbito do corpo de carne. É o Castelo de Grayskull de He-Man, a caveira cinzenta da dúvida, entre preto e branco, podendo ser tanto do Bem quanto do Mal, numa eterna disputa entre forças antagônicas, na luta da virtude contra o mundanismo; do material versus o espiritual. O artista observa sua própria ruína, seu destino, perguntando-se se sua obra entrará para a História da Arte. É Van Gogh, que morreu pobre sem testemunhar o próprio êxito de reconhecimento e valorização. É uma bandeira de pirata, anunciando o crime de pirataria, na falsificação de produtos, num mercado negro, ilegal, vulgar. O olho é como um peixe nadando, livre pela água, perguntando-se se existe vida fora da água: como se pode respirar fora d’água?, pergunta-se o peixe. Podemos também observar delicados pelos de sobrancelha, num artista perfeccionista, é claro. O interessante ó observar que olhos, na verdade, não olha só para frente, mas olha um pouco do lado esquerdo, como se Escher quisesse evitar um olhar inquisidor do espectador; como se o artista previsse um incômodo, uma verdade nua e dura. É como se o espectador fosse a própria caveira, estando refletido na pupila do artista. É o “ser ou não ser” shakespeareano, encarando a morte inevitável: o que tenho para contribuir ao mundo? O espectador é a Morte. O olho está cheio de dúvidas e questionamentos, e está meio cansado, exausto de tanto labor, mas é um cansaço recompensador, de quem merece uma pausa, ou de um desencarne pacífico, rechaçando o suicídio. É um olhar puro e inocente, e tudo gira em torno da discreta caveira, como no rótulo de algum produto tóxico. Escher tem cautela em fazer Arte, e nunca se contenta com o óbvio ou o medíocre. A caveira ri discretamente, zombando do medo que os homens têm da Morte, do desencarne, do desapego do material, da dimensão material: vão-se os anéis; ficam os dedos. Escher tem uma vontade de “fotografar” – será que poderia ter sido um fotógrafo de fato? E a caveira sorri para o artista, o qual encara de frente o óbito. Aqui, o espectador é a caveira. Teria Escher medo do público, do mundo que observa o trabalho do próprio Escher? É um olhar meio triste, catarseando uma melancolia. Tudo gira em torno da caveira, do destino escrito. E Escher tem que resolver o que fazer com esses dias que lhe restam no mundo. “Sem a poesia, o que faria eu desta tarde brumosa?”, disse minha querida avó Nelly em um de seus poemas. A vida é uma tarde brumosa e cinzenta, como a caveira, e temos que fazer escolhas – realmente, não há como fugir da Vida. Para os que vão, praia brancas; para os que ficam, a dúvida cinzenta. Escher despede-se triste, mas com uma pontinha de esperança, distraído no vaivém dos momentos existenciais – as coisas passam. E da janela vem a luz de esperança, como a luz no fim do túnel. E como é sombrio o túnel, e como nos guia a luz no fim dele. A janela é a Estrela D’Alva, anunciando um novo dia, anunciando um amanhã onde só resta o espiritual. A Aurora vence tudo.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Mago (Parte3)




Falo pela terceira vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Casa de Escadas, litogravura de 1951. Criaturas extremamente curiosas, frutos da mente fértil de Escher – são lagartixas que parecem ser pequenos robôs. Aqui, volto a falar das fascinantes escadas do artista, num cômodo sem Lei da Gravidade, onde cada um caminha por onde bem entende. É certo dizer que Escher inspirou a abertura da telenovela da Globo, Top Model, no finzinho dos anos 80. Nela, modelos desfilam por escadas sem ponto de referência gravitacional. É nesta obra escheriana que observo algo parecido com o interior de um formigueiro, com operárias ocupadíssimas, cumprindo suas funções instintivas, nunca descansando. Como eu já disse, o divertido de Escher é observar cada quadro nas quatro posições cardeais, e assim teremos um novo quadro, na piada lendária de Escher: Onde estou e para onde vou? É uma charada. É uma dimensão nova e misteriosa, e não sabemos o que se esconde por trás deste quadro; não sabemos o que está além. São pequenos androides de nanotecnologia, numa colmeia incessante, e podemos ouvir um barulho intermitente de muitos passos, no dia a dia de uma empresa vibrante, laboriosa, movimentada. Este é o Escher trabalhador, ralador, que se dava a um trabalho muito meticuloso. Podemos ver Escher em seu atelier, e as horas passando, numa mente perfeccionista. A luz entra pelas portas em arco, numa arquitetura romana, sensual, renascentista. Cada uma das lagartixas tem dois grandes olhos negros, como duas bolas negras de sinuca, no jogo da vida, onde as possibilidades são encaradas e as chances sendo feitas. Aqui, temos uma foto tirada por uma lente grande angular, aproveitando cada espaço na cena. Cada ladrilho é o esforço de Escher, construindo sua obra passo a passo, ladrilho por ladrilho, ignorando o tempo passando, mergulhando na dimensão atemporal, onde tempo de nada serve. São máquinas automotivas; são uma indústria movimentada, onde muitos operários montam carros, num processo longo e dotado de muitas etapas. O engraçado é observar que há muita harmonia aqui, e que as lagartixas nunca entram em atrito umas com as outras, e cada passo delas é matematicamente calculado, e nunca vemos aqui colisões ou acidentes de trabalho, na perfeição da Natureza em reger a vida e o labor do dia. São como filhos de uma mesma rainha, iguais, nunca maltratando uns aos outros, num Escher sedento por harmonia e paz, tendo o artista testemunhado a II Guerra Mundial. Aqui é tudo incessante, e não temos dia nem noite, nem dias úteis ou de descanso – a Natureza não para. As lagartixas têm escamas metálicas, fortes, impenetráveis, com a capacidade de dizer “não” e de refratar possíveis perigos. São carros blindados, paranoicos sempre com a possibilidade de ser assaltados por bandidos profissionais. A harmonia é tanta que não parece provável a possibilidade de se adicionar algo a este trânsito frenético – a colmeia basta a si mesma, como numa cidadestado, autossuficiente, cercada por muralhas protetoras, como Minas Tirith em O Senhor dos Anéis, uma cidade esculpida na pedra da uma montanha. É como num convento, e cada freira aqui tem uma função importante a desempenhar: umas cuidam da horta; outras, da limpeza; outras, do almoço, e assim por diante. É um organismo absoluto em si, em freiras que só saem do convento para fazer algo que realmente não possam fazer dentro do convento. Do mesmo modo, só permitindo entrar no convento alguém que realmente tenha que estar ali dentro, talvez para fazer algum conserto ou obra de pedreiro. As lagartixas não falam umas com as outras, pois cada uma sabe o que cada uma tem a fazer, e conversas são desnecessárias, pois espantam a paz do claustro religioso, algo que me remete a um hotel que visitei em Salvador, que foi construído em um antiquíssimo monastério baiano. Aqui, a guerra é derrotada pela paz, e a produtividade vence o ócio.

Acima, Outro Mundo, xilogravura de 1947. Nos trabalhos de Escher, é a segunda vez que me deparo com esta ave metálica com cabeça humana. Por que será que a ave é reincidente? Como eu já disse, ela é a Sabedoria – a cabeça humana representa o pensamento racional; as asas, a liberdade de pensamento. Aqui, temos três enfoques para a mesma cena, e Escher explora as possibilidades de pontos de vista, como numa Democracia, onde as diferenças existem e são respeitadas. A estrutura de arcos está harmônica, bastando a si mesma, num Escher com um pé na Arquitetura. Os arcos são sensuais passagens sensoriais que revelam uma paisagem cósmica, espacial, fora da Terra. Vemos crateras em uma superfície lunar, como cicatrizes, contando uma história, uma proveniência, uma origem, como rugas em pessoas mais velhas, sinais de idade que contam uma trajetória, uma estrada, nos vários momentos de vida encarnada e desencarnada de um espírito, um ser, uma pessoa, um humano. Vemos dependurados três formas que parecem uma corneta, ou um corno de animal, como na corneta de Boromir em O Senhor dos Anéis, sendo o corno um instrumento que emite um som poderoso, forte amedrontador, num forte aviso de que algo acontece, como os boiadeiros, com seus mugidos de corneta, guiam o gado pelo campo. A corneta ruidosa é a divulgação, a Propaganda, num Escher que sabe muito bem “vender-se”, obtendo reconhecimento justo e merecido, pois se alguém quer fazer sucesso, este alguém tem que fazer algo para obtê-lo. Cada corno está suspenso por dois fios, numa suspensão que desafia a Lei da Gravidade, como veias e artérias que sustentam um corpo, nutrindo-o. As aves metálicas posam com tranquilidade, e apreciam a cena. Parece que a temperatura da cena é extremamente agradável, primaveril, num universo ideal, no qual há vida incessante e vibrante, numa dimensão agradável, quase impossível de ser imaginada. Em partes do quadro, vemos o Universo, negro em seu fundo, misterioso, vasto, infinito, um verdadeiro enigma para a Humanidade desvendar – o Ser Humano é ainda muito jovem. Galáxias jogam-se pelo Cosmos como conchinhas à beiramar, na leis eternas da Natureza, da dimensão material, onde matéria é tudo, onde riqueza é tudo – são as mazelas do Ser Humano: a ganância. As galáxias giram freneticamente como discos de vinil no tocadiscos, galáxias tão distantes que fica impossível as visitar. Vemos aqui, também, Saturno, com seus sensuais anéis, num Sistema Solar ainda enigmático para a Ciência. Apesar do som não se propagar no vácuo espacial, podemos aqui ouvir barulhos orgânicos, como tripas trabalhando na digestão do alimento, nos sons de um organismo pulsante. Bem ao centro do quadro vemos uma esfera recatada e discreta, talvez um planeta próximo, como Marte, na cor vermelha da Guerra, do sangue, da luta agressiva pela sobrevivência, num Escher incansável, guerreiro, que construiu toda uma obra venerável. As crateras são como gotas caindo sobre uma plácida superfície líquida, propagando ondas de som pelo cosmos, num dia cinzento e chuvoso. As crateras aqui são cinzentas, entrando em harmonia com o Universo tão negro e indecifrável. Este quadro é como uma caixa de interior misterioso, como se fosse uma porta para a entrada em uma dimensão mágica, que desafia a Lógica. As formas arquitetônicas são ladrilhadas, construídas pacientemente uma a uma, num artista absorvido pelo próprio trabalho. Aqui, não podemos fazer uma escolha, porque todas as opções aqui são respeitáveis. Temos que lidar com essa pluralidade e aceitar as diferenças, no sentido de que cada pessoa é o tijolo de uma sociedade. Os arcos, arredondados, são sensuais e femininos, como no corpo de uma mulher que abriga um ser, um filho. A ave aqui é este filho, e este ser contempla o universo, num Escher contemplativo, que gosta de observar a Vida. Parece uma sala de espelhos, na qual há caminhos enganosos (e divertidos). Vemos três reflexos em um só enfoque, e podemos observar a ave em três dimensões, só que em um quadro de apenas duas dimensões – este é Escher, um transcendente. Escher nos abre uma porta e nos convida a entrar em seu mundo. E estrelas salpicam a escuridão do Universo, brilhando em meio a uma escuridão tão imprevisível, sendo este negror relativo a galáxias que estão tão longe que sua luz sequer chegou até nós, na Terra. É como um triplo enfoque sobre uma mesma notícia, contando todos os lados da história, de modo que cada personagem tem seu ponto de vista sobre um mesmo filme ou livro. São três mundos em um só, numa abordagem a mais abrangente possível. Como eu já disse em outra postagem, o engraçado de Escher é observar cada quadro não só na posição original, mas também de cabeça para baixo, revelando-nos um quadro totalmente novo, numa montanha russa. A sensualidade dos arcos deixa a brisa passar e ventilar, numa mente ventilada e jovial, sempre aberta a novos conceitos. Não canso de dizer que Escher tem um pezinho na Renascença, adorando Arquitetura. É o interior de uma casa com muitos corredores, como uma intrincada teia de aranha, pronta para captar uma mosca distraída, para captar a atenção do espectador. A ventilação aqui é arrebatadora, e podemos respirar um ar muito puro de temperatura amena, do modo como é sempre agradável a temperatura das Colônias Espirituais, onde vivem felizes os espíritos desencarnados. É como uma história em quadrinhos, com os momentos abraçando uns aos outros. O título desta obra evoca uma dimensão nova e diferente, longe do dia a dia terreno.

Acima, Três Mundos, litogravura de 1955. Esta imagem me remete a uma passagem do sagrado livro do Tao. Esta passagem aconselha ao leitor ser discreto, quieto, pacífico e “invisível”, sendo um peixe que nada tranquilamente pelas águas profundas, nunca mordendo iscas nem nadando às vistas dos pescadores. Aqui, este peixe está em paz consigo mesmo, nadando sob as folhas outonais, que assinalam a passagem do tempo e a chegada de uma nova estação do ano, num Escher observando sua própria vida e observando também a passagem do tempo. Este é um peixe que deve ser delicioso de ser devorado, como faz o monstrinho Gollum de O Senhor dos Anéis, um ser que captura capciosamente o peixe e o come cru, com o bicho ainda se retorcendo em resquícios de força frente aos dentes de Gollum. Aqui, temos muita placidez e silêncio, e um sutil barulhinho d’água ilustra a cena, numa quietude profunda como o inverno. As folhas boiam e enfeitam a superfície, como barcos em águas quietas e irresistivelmente pacífica, de modo como Tao diz que a Paz é maior do que a Raiva. Este peixe aqui não tem raiva alguma, e vive em paz com o universo, com o lago, com as folhas. As folhas claras entram em contraste com a profundidade negra do lago, e esta superfície reflete a luz do dia e as árvores mais atrás, como veias irrigando um organismo, talvez o peixe mesmo. As três árvores refletidas são irmãs, crescendo uma ao lado da outra, como trigêmeos compartilhando um útero – nunca vou me esquecer quando vi, certa vez, um carrinho de bebê com trigêmeos. É o milagre da vida, da procriação, como Jesus multiplicando pães e peixes. É uma ninhada de cachorros. As árvores aqui estão completamente nuas, em pleno inverno, e as folhas, cedo ou tarde, afundarão e nutrirão o fundo das águas turvas. Não podemos aqui ver o fundo do lago, e só o peixe pode transitar pelos níveis misteriosos da profundidade. O peixe nada sensualmente, retorcendo-se e parecendo um verdadeiro modelo em uma passarela. As águas e o peixe entram em harmonia, formando um só corpo. Aqui, a natureza é um espectro só; uma esfera só. Suas escamas são visíveis, e seus olhos, acostumados com a escuridão, enxergam à noite, na lei biológica da adaptação. A imagem aqui é quase uma fotografia, num Escher hábil em produzir efeitos entre claro e escuro, com o cinza intermediário. O peixe realmente parece mover-se na cena, curvilíneo, liquidiscente, somando-se ao meio ambiente – é o modo sexy como o Universo é um só corpo; um só organismo pulsante. As folhas são de espécies diferentes, assinalando uma diversidade, um pluralismo, como os flocos de neve são diferentes uns dos outros, como impressões digitais, trazendo identidade – cada ser vivo tem um papel a desempenhar na cadeia natural. As árvores parecem ser idênticas, mas não o são – a prova disso são as folhas diferentes. Só que, nuas, aprecem ser iguais, do modo como a nudez igualada os seres, na sensualidade universal de Igualdade da Revolução Francesa. A nudez ilustra o Universo, e a nudez é absolutamente natural na Arte. O peixe nada tão placidamente que sequer emite ondas de movimento na água, sendo discretíssimo e recolhido, modesto em viver sua própria vida com simplicidade. As árvores aqui parecem também ser raízes profundas que mergulham n’água, como na Floresta Amazônica, numa interminável cadeia de nutrição botânica. O peixe, apesar de ser visível aqui, passa a maior parte do tempo no fundo, só vindo à superfície para se alimentar, sabendo do perigo de anzóis de pescadores. É a seleção natural – aquele que é esperto não sofre danos, podendo assim passar para frente a sua própria genética; aquele que se expõe ao perigo, não passa. Os troncos negros contrastam com o céu alvo, ficando firmes em seus galhos e raízes desenvolvidos. O peixe parece um desenho japonês, numa cena de quietude na qual o animal é o rei do lago, regendo este com calma e ponderamento, nunca interferindo na quietude de seus próprios súditos; nunca abusando do povo com impostos altos. O peixe sabe que sabedoria é querer paz.