Falo pela quinta vez sobre o célebre artista MC Escher. As
imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As
análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Ascendendo e
Descendendo, litogravura de 1960, 28,5 cm x 35,5 cm. Não me canso de
dizer que Escher tinha alma de arquiteto. Seus trabalhos privilegiam formas
arquitetônicas, com muitos arcos, colunas, telhados, janelas e escadarias.
Aqui, Escher, mais uma vez, revela-se o charadista do século: a escadaria sobe
ou desce? Os homens sobem e descem atarefados, incansáveis, incessantemente
trabalhando para realizar algo. A escadaria ambígua é a mente de Escher, numa
genialidade que sempre instiga o espectador. Os homens estão todos encapuzados,
misteriosos, idênticos uns aos outros. De repente são o mesmo homem, só que em
vários momentos. Os telhados são meticulosamente construídos, telha por telha,
num Escher construtor: teria ele obtido sucesso se tivesse uma firma de
construção civil? Neste prédio as formas são belas e delineadas, sem excessos
de arquiteto pretensioso e, apesar da escadaria enigmática ao terraço, é um
prédio normal, sem charadas, e é um belo prédio, num projeto harmonioso, na
busca de Escher pela beleza suprema. Existe em Escher uma certa Matemática, e
suas formas são como frias equações, feitas na fria razão numérica. Há apenas
dois homens além dos que estão subindo/descendo: um está de pé em um pequeno
terraço, debruçado no parapeito, contemplando o trânsito frenético da escadaria
mágica; o outro, senta-se numa escadaria mais ao térreo, pensando, refletindo, olhando
para o vazio branco à sua frente, perguntando-se o que vem depois da vida na
Terra, num Escher pensador e contemplador, sempre querendo retratar a vida de
modo próprio e inconfundível. A escadaria traiçoeira é a contradição taoista: o
orgulho arrogante é fraco; a fraqueza humilde é forte. A vida é feita de
escolhas, e o olho do espectador tem que decidir se sobe ou desce, nunca
podendo fazê-lo ambos ao mesmo tempo, no sentido dialético de que tudo traz em
si a sua própria contradição, num sinal de senso de humor divino: Deus é um
charadista, ou seja, Tao é um brincalhão. O prédio todo está envolto em brumas
brancas, num mistério: o que está por traz da camada branca? Até onde vai o
universo? O que é o infinito? A luminosidade alva ilumina o quadro todo, e as
formas ficam delineadas por um Escher mestre em encontrar luminosidade e
delinear formas. O branco é a paz, o entendimento, na missão da Arte de
civilizar e guiar o Mundo. As escadarias são um ciclo vital, e tudo acaba
caindo na mesma vala. Escher nos diz que, no momento em que achamos que estamos
caindo, estamos subindo – isto é a Humildade. Quando você se acha uma lâmina de
bisturi afiadíssima, é porque você não está muito bem, e está sendo arrogante;
quando você se sente como uma tesoura cega, é porque você está bem, e está
sendo humilde e pés no chão. E a pessoa humilde observa o restante das pessoas
e as acha tão afiadas. E os capuzes são o mistério existencial, escuro,
escondido, com coisas que a Divina Providência nunca revela fora do momento
adequado. Quando uma pessoa tem que passar por um determinado momento, não há
Cristo que impeça isso. E as formiguinhas trabalham incessantemente, nunca
sabendo que o biscoito é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é
fresquinho. Escher não está aqui para dar respostas, mas para lançar dúvidas. É
um desinformador, na humildade de um artista que realmente não sabe desvendar
todos os mistérios do universo, de Tao. Podemos ouvir os passos dos homens
encapuzados, e a Vida segue em seu ritmo, num striptease que nunca revela a
nudez completamente, nunca entregando o jogo. E não seria extremamente tedioso
se Escher fizesse obras óbvias? O óbvio é um ilusão; o mistério é eterno. Temos
que conviver com o mistério da Eternidade, e nunca mataremos a charada
escheriana. E é exatamente este mistério o que gera a eternidade. Aqui, os
picos dos telhados são pontiagudos, agressivos, ameaçadores, e exigem que sejam
observados à distância, exigindo respeito à mente de Escher. São como amargas
seringas, contendo um remédio amargo, mas que cura. A Arte é um remédio que
cura o Mundo. Qual é o propósito disso tudo? O que vem depois? Escher, em sua
humildade, não sabe. Como é dito no divertido filme Dogma, Deus tem muito senso de humor. É um redemoinho, uma galáxia
que gira em torno do mesmo Tao, havendo fluxo e contrafluxo. Yin e Yang
beijando-se. O buraco negro é poderoso porque é invisível, discreto, tímido,
humilde.
Acima, Preenchimento
de Plano, litogravura de 1957, 37 cm x 31,5 cm. Não existe perda de espaço para
Escher, e a imaginação do artista aproveita cada espaço, guiando nossos olhos
entre positivo e negativo: na Natureza, tudo se recicla. Aqui, temos um plano
biológico, cheio de vida. O termo preenchimento
no título ilustra a intenção escheriana, sempre imaginando, com muita
inteligência emocional, oportunidades gráficas. E não temos só seres vivos
aqui, mas também um violão. Escher vê o Mundo de forma melódica, artística, e
temos aqui uma grandiosidade, num artista que não usa muitas cores, sempre se
contentando com preto & branco, na magia das contradições entre esses dois
opostos. Vemos grandes peixes nadando, dando uma dimensão líquida e fluidia ao
quadro, na fluidez da Vida, do modo como o Oceano é a Mãe da Vida na Terra, na
semelhança linguística entre os termos, mãe, mar e Maria, numa Iemanjá que
reina nas águas, arrastando tudo e todos consigo, reinando e abençoando os
pescadores e navegadores, no feriado de Nossa Senhora dos Navegantes, em Porto Alegre. O
peixe livre é a imaginação de Escher, do modo como um artista tem que se sentir
livre, frustrando-se com a censura, com o veto, com a proibição ideológica.
Vemos aqui também seres humanos – um branco e um negro, na diversidade racial
do Mundo. Neste quadro, o pensamento de Escher mostra que a Vida vem de um só
caldeirão biológico, de uma só fonte, uma só Mãe. Os seres aqui convivem em
absoluta harmonia, nadando pelo quadro e misturando-se uns com os outros. Aqui,
não temos conflito racial nem qualquer outro preconceito que cause cisão e
separação, mas vemos integração num bioma autossuficiente, do modo como na
Terra os seres estão incluídos em uma só esfera, sendo impossível haver Vida no
espaço sideral – o Mundo é uma grande usina de reciclagem. Seria Escher um amante
da Biologia? Vemos aqui um grande caracol, que é a lentidão paciente com a qual
Escher produz suas obras, construindo tudo pedacinho por pedacinho, com passos
de bebê, alheio ao ritmo frenético e estressante do mundo lá fora, isolando-se
em uma bolha de silêncio e quietude, criando sempre, em seu próprio ritmo, sem
estresse nem pressões – Escher é trabalhador, mas não workaholic. Também vemos
aqui seres fictícios, como diabretes, frutos de mutações, do modo com a Mutação
é a chave para a Evolução. Trata-se de um quebracabeça, com peças perfeitamente
encaixadas, como na perfeição das teias tecidas pela Divina Providência, numa
aranha existencial. Todos aqui respiram o mesmo oxigênio, compartilhando um
mesmo útero primordial, numa irmandade, onde há igualdade e, ainda assim,
diferenciação, numa contradição essencial. Vemos um canguru, provavelmente
guardando um filhote em sua bolsa, do modo como Escher guarda em sua bolsa
obras com um longo período de gestação, parindo quando acreditar que é a hora
de trazer o “filhote” ao Mundo. No topo da cena vemos um elefante, no peso de
um talento claro de se observar, impondo-se com sobrepeso, esmagando
mediocridades e incompetências. Parece que todos estão se abraçando, numa orgia
gráfica. O homem abaixo do elefante acena para o espectador, numa missão de paz
e civilização, convidando as pessoas a integrar a cena e fazer parte dessa
grande comunhão: estão todos dentro do mesmo saco, na simplicidade monoteísta:
há um só Caminho. Escher nos mostra que em tudo há duas leituras, sendo uma a
contradição da outra, do modo como razão e loucura fazem parte do mesmo pacote,
como diz Tao: o difícil e o fácil fazem parte do mesmo trabalho. Uma leitura
que faz sentido; outra, que não faz. É como lixo seco e lixo orgânico, fazendo
parte da mesma limpeza. Ao lado do violão, vemos uma corpulenta serpente,
retorcendo-se sensualmente, abrindo a boca para proferir veneno,
banqueteando-se na cena repleta de vítimas potenciais. A serpente é a força da
mente de Escher, na liquidiscência vital, do modo com a água é essencial à Vida
na Terra. A serpente é uma montanha russa, com sua curvas perigosas e
traiçoeiras, sempre se insinuando por entre a mata. É um intestino processando
o alimento, funcionando na cena biológica. Vemos também uma lagosta com garras
fortíssimas, num Escher que se apega profundamente ao labor, nunca largando por
completo o vínculo com as próprias obras, sempre sentindo-se um pai que vê o
filho saindo de casa; um filho indo morar sozinho – a obra, mesmo
comercializada, sempre pertence ao artista que a concebeu.
Acima, Belvedere,
litogravura de 1958, 29,5 cm
x 46,2 cm.
Há uma ambientação medieval, visível nos trajes das pessoas aqui. No topo da
estrutura, uma bela dama observa o horizonte, num Escher vislumbrador de
desafios e oportunidades artísticas. A dama está quase inacessível, exigindo
muito esforço por parte do homem que quiser esta dama. Mais uma vez, a ilusão
de ótica toma conta, com arcos entremeando-se, ludibriando as percepções do
espectador. Abaixo da dama elevada, um senhor nobre também olha para o
horizonte, só que numa direção diferente. O céu está enegrecido, sem esperança,
e o recorte geológico de montanhas toma a linha do horizonte. São picos
agressivos, como facas afiadas. Podemos ver um pequeno rio no fundo de um vale,
alimentando com água as florestas ao seu redor. Dois homens competem um com o
outro, disputando a dama elevada, que é o princípio passivo, numa goleira de
futebol, como o vale atrai a água para si – a dama está numa posição superior
e, ao mesmo tempo, inferior. A escada que dá acesso à dama é traiçoeira,
prometendo dar um nó em quer quiser subir ao topo da estrutura. É uma teia
traiçoeira de aranha, e os homens ascendendo estão enfeitiçados, inebriados
pela dama, como espermatozoides competindo pelo mesmo óvulo, na corrida da Vida,
da seleção natural. O homem abaixo da dama está alheio a essa competição
mundana, observando os picos nevados de montanhas ao longe, na frieza da mente
de Escher, estabelecendo divertidas ilusões de ótica, numa cabeça
definitivamente pensante. Ao pé da cena, vemos um homem preso, atrás de grades.
O que ele fez para chegar àquilo? Ele está com a cabeça para fora, louco para
ser libertado, como o Espiritismo diz, quando questionado se um espírito gosta
de estar encarnado, o espírita dirá: “Pergunte a um prisioneiro se este gosta
da prisão”. É o cárcere da encarnação, da missão que o espírito precisa cumprir
antes de se libertar, ou seja, desencarnar. Ao lado do homem gradeado, outro homem,
sentado, manuseia um cubo mágico, que é um subconjunto da ilusão de ótica da
qual Escher lança mão no quadro. O cubo é dinâmico em sua formidável
contradição, formando uma charada insolúvel, assim como Escher forma charadas.
O homem sentado contempla o cubo piadista, e está alheio à ânsia encarcerada do
homem gradeado. Ao pé da escadaria, um casal começa a subi-la. O longo vestido
da mulher é como um rabo de peixe, fluindo livre pelas escadarias. O homem
aponta para a escadaria, convidando a mulher para acompanhá-lo. É uma cena de
sedução, e o homem tem intenções ocultas para com ela, num Escher sedutor em
sua arte. No lado direito, abaixo, mais uma janela gradeada e, ao lado, uma
porta fechada, no cárcere da carne, da vida na Terra, na dimensão material, do
modo como um psicopata não consegue enxergar além da dimensão material – é o
mundanismo vulgar e criminoso, num espírito infeliz, o qual não tem nobreza
para transcender e superar as vicissitudes da vida material, pois um psicopata
não quer ser respeitado; um psicopata quer ser temido. É engraçado observar que
a dama ao topo está num lugar inacessível, apenas acessível por um artifício,
um improviso. Por que tanta inacessibilidade? Será que isso excita os homens
que sobem, como numa ereção? Os telhados têm picos agressivos como os picos das
montanhas, do modo como um artista precisa se diferenciar e ser original,
evitando assim a competição medíocre e pequena. O homem mais ao topo da escada
olha o opositor ascendendo, e parece disposto a fazer de tudo para tolher e
eliminar o oponente, na agressividade da vida selvagem, como dois machos
competem pela fêmea. O chão abaixo na cena é quadriculado como um tabuleiro de
xadrez, num Escher habilidoso, que move-se com suas peças em estratégias
inimagináveis, revelando maestria. O telhado alvo contrasta com o céu negro,
pois sabemos que Escher é uma espécie de barroquista, tendo entendido o jogo
entre claro e escuro. Os arcos são sensuais, deixando o ar circular, trazendo
vida à cena, oxigenação – podemos sentir a brisa. Abaixo, na extrema direita,
vemos ao fundo uma estrutura que pode ser o pedaço de uma pirâmide, apontando
para o céu, como uma longa escada que leva à transcendência, num formato
agressivo e abrasivo, como pastas de dente, que deixam os dentes ficar polidos.
Símbolo de poder e renascimento, a pirâmide traz a dignidade da grande dama ao
topo, inspirando e fascinando. A inacessibilidade é a virgindade, na Imaculada
Conceição, no mistério da concepção divina, da dimensão acima da nossa, sendo
aquela uma dimensão livre das influências da matéria.