quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Mago (Parte 2)




Falo pela segunda vez sobre MC Escher. As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Natureza Morta e Rua, xilogravura de 1937. O perto fica longe; o longe fica próximo. Os livros estão dispostos em forma de degraus, para diferentes posições, e são a escada para a Cultura e o Conhecimento, na coincidência de que acabo de vir da Feira do Livro de Caxias do Sul, uma verdadeira Disneylândia para quem gosta de ler. Ler exige paciência e tempo; exige disciplina. Os livros transformam-se em prédios, na edificação de uma nação, construção esta que só é possível com cidadãos letrados e eruditos – nunca ouvimos falar que para parar de construir presídios temos que construir escolas? O cachimbo repousa ao lado de uma caixa de fósforos, no hábito diário de fumar ou de tomar um vinhozinho, no conforto da casa, do lar, da proveniência. Temos um Escher disposto a descobrir seu próprio lar, seu chão, sua base. Numa cena de cidadela italiana, roupas estão estendidas para secar, e são panos brancos que clamam por Paz. É uma vizinhança cheia de vida, com flores nas janelas, com a movimentação da vida – quem é saudável quer ter vida. A ruela medieval perde-se ao fundo, parecendo ser infinita. É uma ruela torta, curvilínea, sinuosa como uma serpente amazônica. As roupas nos fios de varal alcançam distância longínqua, no prazer de se deitar numa cama com lençóis limpos e perfumados, como no espírito Patrícia em Violetas na Janela. A limpeza traz prazer, pois Tao é limpeza, é o essencial, é o importante, é o indispensável. As donas de casa, aqui, debruçam-se sobre suas tarefas diárias, cuidando da casa. As janelas estão quase todas com as venezianas abertas, deixando a luz do dia entrar e arejar os cômodos. Na “minibiblioteca” aqui, vemos um efeito de luz, de um Sol que brilha à esquerda do quadro, projetando sombras suaves, sem haver aqui espaço para escuridão – o Conhecimento ilumina, como diz o slogan de uma instituição caxiense de Ensino Superior. À esquerda do cachimbo vemos um baralho de cartas, no prazer de jogar, de raciocinar, de se concentrar sobre uma mesa cheia de signos, como num jogo de tarô. O cinco de espadas pronuncia-se no topo do baralho, no poder fálico da espada, no Código de Hamurabi, na verdade retilínea que opõe à mentira tortuosa, como na imagem de Nossa Senhora esmagando com os pés a serpente da malícia. Abaixo desta carta, um pequeno vislumbre sobre uma carta de rei, dama ou valete, e ´so podemos observar uma coroa, do modo como o artista tem a majestade sobre sua própria criação, fazendo da censura algo insuportável, uma ofensa horrível, uma frustração. Abaixo desta “coroa”, vemos um signo de copas, no formato de coração, no sentimento do artista, sendo este sentimento cristalizado na forma de desenho, catarseando e libertando o próprio artista. É o coração valente de um rei destemido, que lidera seu próprio povo para a vitória em um conflito inevitável. Abaixo do “coração de leão”, um signo de ouros, no ouro da vitória, da superação, na beleza áurea de um amanhecer majestoso, um tesouro. Ao lado do baralho, vemos uma compota, como uma urna de cinzas, na homenagem póstuma de Escher recebe e ainda receberá por muito tempo, na infinitude de reconhecimento frente a alguém talentoso, visto que talento é um dom divino, uma manifestação de Deus, de Tao. A compota é lustrosa e reflete objetos à sua volta, guardando um verdadeiro mistério dentro – o que será? É o mistério existencial, no qual a pessoa não tem uma ideia extremamente clara do que lhe ocorrerá, como ocorrerá e quando ocorrerá, pois há coisas que a Divina Providência só revela com tempo – se soubéssemos exatamente o que nos aconteceria, não passaríamos pelo que teríamos que passar. É a Caixa de Pandora, que deve permanecer fechada. No lado esquerdo do quadro, vemos um livro com uma capa orgânica, tortuosa, insinuante, como mármore, numa contradição: como uma pedra tão dura pode ser tão liquidiscente? Tudo o que é material está condenado à ruína. A riqueza de Jesus Cristo, por exemplo, está nos pensamentos que Ele propagou, e não no aspecto material. Cada livro aqui tem sua identidade, seu jeito de ser, numa diversidade política, num pedido por Paz em um mundo tão birrento. O senso de humor de Escher reside no fato de só percebemos “tarde demais” o que estamos vendo de fato. Aqui, por exemplo, estamos vendo uma mesa sobre a qual os livros estão dispostos, e só lá depois, no fundo, percebemos que, o tempo todo, estávamos vendo também uma ruela. Então o invisível entra e Tao se faz presente, numa piada fina. No cinzeiro, a finitude, os vestígios do dia, com palitos queimados, que já exerceram seu papel e sua função, na eterna demanda de uma casa cheia de vida, de trânsito, de pessoas convivendo sob o mesmo teto. No rótulo da caixa de fósforos, a identidade, a proveniência de produtos que vieram de algum lugar, de algum fabricante. Como eu já mencionei (e não me canso de mencionar), Escher trabalha muito bem com luz & sombra, trazendo nuances de iluminação, sendo um projetista arquitetônico, ciente da existência de um foco de luz, de uma direção, uma referência astronômica. Outro talento de Escher é em relação à perspectiva, numa nuance renascentista, num momento em que a geometria complexa toma conta do Mundo. A riqueza de Escher é tal que, apesar de dele ter trabalhado sempre com preto & branco, quase podemos ver cores em sua obra, trazendo-nos um verdadeiro enigma: o que é o talento? Talento é o infinito; é Tao. O infinito está além de qualquer interpretação.

Acima, Céu e Água, xilogravura de 1938. Escher abraça as contradições naturais da existência. Como falei na Face sobre esta postagem, o sertão vira mar; o mar vira sertão. Meticuloso, debruçado em resoluções matemáticas, buscando sempre ironia. Escher é um piadista total, e, em vida, deveria ser uma pessoa divertida e jovial, assim como o foi Leonardo da Vinci. Escher prega peças, como a comediante Ellen DeGeneres, que é uma moleca! Aqui, o preenchimento de espaço é assombroso, como numa perfeita equação, mostrando a ligação entre Ciência Humana e Exata, opostos que fazem parte de um mesmo espectro intelectual, visto que a mente do ser humano é universal. Escher faz piada com a Teoria da Evolução, e do modo como as mutações genéticas foram moldando “o barro” e geando espécies novas, adaptadas às mais variadas realidades, seja, por ar, seja por água. O quadro todo aqui parece lustrosas escamas de peixe, e podemos sentir o delicioso gosto de sushi, ou de um bom galeto. A ave ao topo voa muito livre, mas com um objetivo – a sobrevivência em meio à Natureza, às Leis Naturais. Parece a logomarca da loja Brooksfield, no apelo aristocrático da vida ao ar livre, das caçadas, do prazer de lutar pelo alimento, uma luta referente a qualquer ser vivo. Aqui, a água é negra, bem negra; o céu, branco. É claro que tudo aqui funciona à base do contraste, do choque cromático, num Escher apaixonado por preto & branco, como se o artista soubesse como é simples e charmosa a foto bicromática, como nos áureos tempos do Cinema, nas “telas prateadas”. Aqui, há o brilho de prata, num Escher que só muito tempo depois, em sua própria vida, veria o Cinema a cores. Os peixes e as aves vão mudando sutilmente, até tornarem-se nada, apenas água e ar. Tudo na dimensão material está condenado à danação, ao fim, ao apodrecimento, numa vida que, do mesmo modo que inspirou, expirou. É a inevitabilidade da morte, opondo-se à vida eterna espiritual, que está ligada à infinitude do amor e da paciência de Deus. Aqui, as leis entram em harmonia, e natureza revela-se um só corpo, um só plano, e tudo está conectado, como uma versão orgânica da Internet. Os peixes vão perdendo as escamas até esvaírem-se no ar, morrendo e deteriorando-se, pois a Natureza é a maior cadeia de reciclagem – tudo volta à Fonte, e o planeta basta a si mesmo, só precisando do Sol. Os pássaros vão mergulhando na água e dissolvendo-se nesta, afogando-se e fornecendo insumos orgânicos putrefatos, na fertilização da terra, nutrindo. É a Cadeia Alimentar, num ciclo voraz onde tudo serve para algo, na perfeição das teias biológicas. O negror do Mar aqui é bem profundo, misterioso, e não podemos ver o que se faz ali dentro. Por outro lado, os Céus são observáveis, num jogo sensual de mostra/esconde, como num striptease, provocando sensações eróticas na junção uma do Universo: há um só Deus, um só Tao, um só Caminho, como dizia Jesus. O Monoteísmo revolucionou a Humanidade, pois a ideia de um só Senhor é simples, portanto, poderosa. O formato de losango desafia o quadriculado desta obra, como querendo arredondar arestas, do modo como uma encarnação é um abrandamento enorme de arestas espirituais. Escher encarnou dotado, muito dotado, e mostrou isso ao Mundo. Imagina-se aqui a paciência para moldar cada detalhe, cada escama, cada pena, e lacunas revelam-se preenchimento. É interessante observar que o artista respeitou a linha horizontal. O que isso quer dizer? Quer dizer que, em cada linha horizontal, os peixes ou as aves são o mesmos, no recurso xilográfico de repetição. É claro que Escher fazia inúmeros rascunhos antes de debruçar-se de fato sobre o quadro, num trabalho em que o laboratorista não revela pressa em executar, nada de pressa, bem pelo contrário, vemos em Escher uma pessoa que desprezava o passar das horas, assim como, reza a lenda, Albert Einstein não tinha noção de tempo, e o cientista tinha que perguntar que dia da semana era. Como encontrar sentido em uma dimensão tão realista, tão pragmática, onde tudo está pré-condenado? O peixe bem ao fundo e a ave bem ao alto estão em paz, e correspondem ao topo de um processo evolutivo, num ponto de estabilidade e aprimoramento – são um ponto final. É a capacidade de adaptação, num Escher que se adaptava às possibilidades geométricas, desenhando o que era possível desenhar. É como a água adaptando-se, preenchendo os lugares. E engraçado observar que as aves e os peixes rumam na mesma direção, encontrando um sentido na vida, estabelecendo um rumo, uma meta, um ponto de encontro, passando como carros e aviões em vias terrestres e aéreas muito atribuladas e demandosas. É a vida acontecendo. Tenho até a impressão de que há uma corrida sendo apostada, e todos nesta participam, na inevitável concorrência biológica e existencial, como inúmeros espermatozoides concorrendo pelo mesmo óvulo. É um desafio, e a vida não tem graça (nem sentido) sem vicissitudes. Já ouvi dizer que a gravidez é uma grande piada de Deus para com a mulher: aquele ser tão íntimo seu, entranhado, de repente, é parido, não mais fazendo parte do corpo da mãe. Escher chama nossa atenção para o fato de tudo virar nada, causando surpresa.

Acima, Natureza Morta com Espelho Esférico, litografia de 1934. A ave metálica tem vida e, calva, sorri, na satisfação de alguém que faz algo que dá orgulho a si mesmo. A ave é a sabedoria, embasada por letras – jornal e livro. A grande esfera é uma maçaneta, trazendo uma porta para outra dimensão; para a cabeça de Escher. A esfera também pode ser vista como um vaso de bico bem estreito, pouco deixando passar, num ambiente hermético, restrito, privado, como alguém que clama por privacidade. No reflexo vemos o atelier de Escher, e ele trabalha sobre uma base, talvez uma xilogravura. A luz do dia entra pelas janelas da sala, fornecendo ao artista a bênção da visibilidade. É um ambiente limpo, organizado, e, ao fundo do artista, vemos várias estantes de livros, talvez num Escher apaixonado pela leitura. A ave “robótica” também está refletida, e seu reflexo é como se fosse um bebê, um rebento, e a ave maior é a mãe zeladora, num artista que zela muito por sua própria obra. O traço impecável de Escher nos traz uma imagem que poderia ter sido fotografada, tal o esmero do artista em reproduzir a realidade sem cores – temos que entender que Escher é da época do Cinema sem cores. Alguns quadros nas paredes estão refletidos – será que quadros do próprio artista? Há também uma singela luminária no teto, auxiliando na iluminação. O jornal é o dia a dia, nas notícias pertinentes ao cotidiano, num Escher sempre antenado a tudo ao seu redor, no infalível olho artístico, fotográfico. O livro é a base de tudo; é o princípio, do modo como a Civilização surgiu em torno das Letras. Ao fundo no atelier, duas portas, dois caminhos, duas escolhas, sendo ambas dirigindo à escuridão, à sombra, assim como o fundo do quadro aqui é também de um negro profundo, assim como a superfície da mesa é negra. Aqui, o artista é também espectador da cena, na ironia de Escher entre causa e efeito – quem vem antes? O engraçado é que a ave tem cabeça humana, numa junção entre humano e animal – a cabeça é a liberdade que o pensamento traz, e suas asas complementam esta liberdade psíquica, pois Escher foi livre, muito livre para criar, do modo como o Espiritismo diz que todo espírito é livre para escolher o que fazer. E por que será que o fundo é tão preto? Talvez para trazer contraste e delineamento ao restante dos elementos, que são banhados por luz. A ave aqui não tem penas – é uma máquina, não um ser vivo. Do modo como o pensamento racional, lógico, é frio e matemático, sem ser afetado pelos efeitos da dimensão material, da Natureza, da Biologia. A maçaneta é o momento da escolha, da opção, e girar este instrumento traz a perspectiva de liberdade. A fascinante mente de Escher é repleta de portas, de escadas, de nortes, de caminhos, e é divertido navegar pela mente de um artista assim. Num pequenino autorretrato no reflexo da esfera, Escher está imóvel, olhando para o espectador firmemente, colocando-se num papel modesto e coadjuvante mas, no fim das contas, domina a cena, como se tivesse sido subestimado. Atrás do artista há algo que parece um aquecedor, um fogão a lenha, trazendo o conforto de um ambiente acolhedor, do modo como o artista se sente em casa em seu ambiente de trabalho. A grande esfera é o planeta Terra, no seu ritmo incessante de rotação e translação, num tempo que passa sempre. Há alguns quadros dependurados nas paredes – o que será que Escher gostava de pendurar nas paredes? Trabalhos próprios ou de outros artistas? É o Narciso olhando o próprio reflexo, talvez aqui catarseando um narcisismo. Por que é importante para o artista estar na cena mesmo que em um papel tão diminuto (e poderoso)? A maçaneta lustrosa é uma fotografia em uma lente grande angular, buscando captar cada canto da cena, abrangendo. E por que havia tantas filas para ver uma exposição de Escher em São Paulo? É uma prova de seu magnetismo que desafia a passagem do tempo. Escher não tem muitas pretensões, e traz simplicidade temática, sem querer complicar muito. Escher é cristalino de ser observado. É um prazer. O artista olha sério para o espectador, enquanto a ave sorri suavemente, como o Kouros do Met de NY, num sorriso brando e polido. O livro é a base, o Norte, a referência. A ave parece estar sendo sugada para dentro da cena refletida, numa implacável Lei da Gravidade, e seu peito toca suavemente a esfera, numa paixão comedida e discreta. Enigma labiríntico, Escher prova ter poder.

Um comentário:

  1. Bravo, Gonçalo. O artista, com certeza, ficaria imensamente feliz com esta tua semiótica da recepção. Continue a nos brindar com tuas postagens.

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