Neste ano de 2017, como eu já disse anteriormente, Mara De
Carli foi indicada com várias obras ao Prêmio PIPA do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro. Dessas obras, trago três xilogravuras que, juntas, formam a
série Meta III/II/I (acima), como
numa contagem regressiva, em busca de um foguete que deslanche a vá para longe
da Terra, na meta de explorar. Como numa sucessão monárquica, só que ao
contrário, subvertendo a dura e perfeita lógica numérica. É a meta metendo-se a
construir e desestruturar. São três tempos; três momentos. O princípio
xilográfico é o mesmo – um longo retângulo preto, maculando a base branca
virginal, numa artista explorando variedades sobre um mesmo assunto. São como
trigêmeos que não são univitelinos, tendo em cada um uma marca diferente,
apesar de virem da mesma barriga mental. São três janelas, vazias, ocas,
permitindo a entrada da luz à obra. Temos três momentos, como no conto dos Três
Porquinhos, em que cada casa responde de uma forma ao sopro do lobo, com uma
casa fraquinha de palha, uma casa intermediária de madeira e a última sendo de
tijolo, que quase não se abala com o sopro malévolo do lobo. Temos um momento
de relativa ordem, um de menos ordem e um terceiro de caos e destruição, como
na Psicologia, com as três casas mentais: saúde, neurose e psicose, numa
progressão gradual, na qual temos ordem, seguida de caos inicial e seguida de
caos total. Como na célebre obra O Jardim das Delícias Terrenas, com três tomos: no primeiro, tudo está em ordem, paz
e harmonia, e Jesus conversa calmamente com Adão e Eva, no paradisíaco Éden,
onde o céu está límpido e os animais convivem em paz; no segundo, a
luminosidade do céu é ainda a mesma, mas a ordem já começa a sofrer abalos, e
tudo descamba para uma orgia caótica, com animais agitados e furiosos, e tudo
está um parque de luxúria e pecado, cometendo os Pecados Capitais, como num
parque de diversões insano; no terceiro, na psicose, caos total, com tudo
envolto em sombra, em destruição, em danos e má sorte, e a perda de controle
atinge o ápice, num quadro no qual pouco resta da vida em civilização. De modo
que, se colocarmos o tomo ordeiro ao lado do tomo caótico, vemos um contraste
imenso, abismal e claro, de modo que o tomo semicaótico da neurose faz um
perfeito intermédio entre saúde e doença. Nas metas de Mara temos uma
progressão cronológica, em estágios distintos, e o Id, Ego e Superego convivem,
indo do inconsciente ao consciente e ao pensamento moral e ético, nas três
instâncias psíquicas. Se suprimirmos a meta intermediária, vemos um contraste
entre a casa de palha e a casa de tijolos. A fria razão da ordem impõe-se em
sua importância, libertando o Ego e domando o Id. As metas são a mesma meta, só
que em situações diferentes. São os macacos que não falam, nem escutam e nem
ouvem, na Santíssima Trindade, que funciona como um sistema. É uma artista
explorando variações, muitas variações, numa prova de criatividade. E por que
“meta”? Porque o objetivo do artista é criar e trazer algo novo, na meta de
conquistar o mundo e ser reconhecido, o suficiente para chamar a atenção do
MAM. Aqui, as metas, com contraste entre claro e escuro, são claras, definidas
e simples, e mesmo a mais tortuosa desordem aqui tem princípio geométrico
retangular, numa espécie de “tortuosidade reta”.
Acima, Meta I.
Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Vemos relativa fragilidade, mas
relativa estabilidade também. É como uma frágil janela em uma casa que está
sendo demolida ou simplesmente numa casa que está sofrendo desgaste e erosão
pela passagem do tempo. É uma espécie de Mondrian orgânico, no qual as linhas
até são retas, mas estão dispostas de forma não reta. São como um jogo de
dominó, no qual a queda de apenas uma peça já é o suficiente para causar
comoção e estrago, numa reação em
cadeia. Há uma espécie de cola branca que gruda os longos
retângulos uns nos outros, numa brecha, uma lacuna, uma interrupção, e as peças
não estão totalmente coladas, dando uma vazão, como um rio que divide duas
cidades, estabelecendo referência e respeito – daqui para cá, é meu terreno; de
cá para lá, é o teu. É como um Estreito de Gibraltar, aberto, diz a lenda, pela
força do semideus Hércules, como um Canal de Suez, artificialidade que une
oceanos, poupando navios de darem enormes voltas continentais. É como o Mar
Vermelho, que divide África de Ásia, nos cruéis e autoritários egípcios que
morreram afogados ao tentarem recapturar os escravos judeus. São brechas pelas
quais a artista observa o mundo, estabelecendo fechaduras e espiando, no prazer
de voyeur. É uma criança brincando de Lego, construindo, destruindo, e
construindo novamente, como em castelos de areia, fadados para a danação, para
a natural destruição. O artista quer cristalizar este momento, como numa tecla
Pause-Still do controle remoto. São teclas de controle remoto, que traduzem a
vontade, o desejo de onde o artista quer chegar, de como o artista quer ser
lembrado pelas pessoas. É um trabalho de formiguinha, que constrói lentamente o
formigueiro e, quando este é destruído, a formiguinha, pacientemente, retoma o
labor, numa desistindo, persistente. São gavetas de um armário caótico,
desestruturado, ruindo e dançando a dança da morte. Havia uma cola colando as
peças, mas a cola mostrou-se ineficiente e fraca, fazendo com que tudo possa
ruir, desaparecendo. São folhas de papel, de santinhos de campanha eleitoral,
levados pelo vento, desaparecendo da memória, abarrotando as ruas de sujeira
eleitoral, no eleitor brasileiro, que tem o desejo de colocar os políticos no
lixo, desaprovando amplamente um presidente. Esses delgados retângulos negros
estão ao sabor do vento, deliciando-se em sua passividade, deixando tudo a
cargo do tempo e do vento, entregando-se num confortável berço. Os quadrados
estão competindo uns com os outros, esbarrando em atrito uns com os outros,
lutando para obter a atenção do espectador. Os quadrados não são exatamente
equiláteros, pois têm ângulos não retos, desejando um dia, talvez um dia, ser
redondos, sem arestas, como na deliciosa água uterina, reconfortante e
quentinha, acolhedora. O espectador pode quase soprar esta xilo, fazendo com
que tudo fique bagunçado. Mara bagunça para depois arrumar, e arruma para
depois bagunçar, na ânsia do ser humano: se estou na cidade, quero ir ao campo;
se estou no campo, quero ir para a cidade. O ser humano nunca está satisfeito,
e Mara retrata essa inerente insatisfação: se o cabelo está crespo, quero
alisar; se está liso, quero encrespar. É uma caixa de tesouros recém-aberta,
revelando nada dentro, absolutamente nada, zombando dos ambiciosos e egoístas,
entregando a estes nada mais do que ar. O tesouro do artista não pertence à
vida mundana e material, mas a um mundo onde há desapego. Um marceneiro quer
vir aqui e realocar as peças, fabricando um armário funcional e sano, dando dignidade
a este armário caótico. Os quadrados são ocos, revelando o fundo, transmitindo
a felicidade de quem se esvazia de vaidades e arrogâncias. E as frestinhas até
revelam-se eficientes, respirando. É um jogo-da-velha vazio, sem jogo, sem
público, sem competidores, esperando para ser preenchido pela percepção do
espectador. São como paralelepípedos indispostos, carregados pelo impiedoso
fluxo de carros em uma rua movimentada, como eram certa vez absolutamente todas
as ruas de Caxias do Sul, num quadro de nostalgia, de vontade em se manter em
uma saudosa época, num passado perfeito que, na verdade, nunca foi tão perfeito
assim. Falta aqui uma boa cola, um link, uma “matéria escura” que mantém o
cosmos unido de modo invisível, do modo como o artista busca pelo invisível, pelo
não palpável. A escada em caracol do NAVI desdobra-se como uma cadeia de DNA, o
qual, decodificado, é despido de mistérios, rendendo-se à ordem de linhas
retas, à fria razão.
Acima, Meta II.
Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Aqui, quase perfeição e quase
estabilidade, numa Mara quase arquiteta. São os quarteirões de uma cidade não
tão apolínea, não tão perfeita, numa fragilidade que faz as estruturas balançar
ao vento, anunciando uma chuva, uma mudança de tempo, um próximo passo em um
processo infinito – permanente transformação. É um jogo de xadrez preguiçoso,
querendo render-se à fluidez. Aqui, como em Meta I,
há tênues lacunas entre os longos retângulos, como elegante cigarro, o qual, em
certa época, era sinônimo de sofisticação e charme. São as estruturas de um
prédio não muito firme, mas relativamente resistente, em comparação às duas
metas restantes de Mara. É uma cidade fluidia, confortável, na qual as arestas,
cedo ou tarde, serão aparadas. É uma promessa de uma cidade melhor, não tão
dura e difícil. Parece que Mara consideraria monótona uma estrutura
perfeitinha; consideraria óbvio e pouco interessante, visto que qualquer
artista quer se diferenciar e não ser uma máquina de fotocópia. São folhas de
papel recém-saídas da máquina de fabricação, ou da impressora, abastecendo a
vida em sociedade, a qual, cada vez mais, pensa em poupar recursos florestais,
inserindo-se na Era da Informática. É como uma tradicional rolha de cortiça de
vinhos, a qual vem sendo substituída pela prática tampa rosca. A tortuosidade
aqui desafia os ângulos perfeitamente retos das margens da base branca. São
caixas empilhadas, numa pilha que não se revela tão resistente assim, começando
a ameaçar a ruir, mas não ainda ruindo. São tijolos de vidro, que possibilitam a
passagem da luz, iluminando ambientes que seriam escuros com tijolos
tradicionais. Assim, a luz, ao ter entrada permitida, exerce sua função, do
modo como o artista se encontra existencialmente e passa a produzir para o
mundo. É um quebracabeça linear, óbvio, mas ainda assim misterioso, pois não
sabemos qual peça deve vir depois da outra, formando um conjunto que é um
esqueleto, esperando para ser preenchido por concreto, aço e vidro; por carne e
sangue. É uma base essencial, um projeto, algo esperando para ser realizado e
consolidado, como Elizabeth I consolidou a religião de seu próprio pai. Há o
formato de duas cruzes, uma em cima da outra, em uma cidade tão católica como
Caxias do Sul. Apesar do artista não ser obrigatoriamente religioso, esse mesmo
artista pode ser influenciado, fazendo seu próprio registro de fé, mesmo não
tendo intenções diretas ou conscientes. É como um sorriso branco, com linhas
definidas que separam o dentes, estabelecendo limites entre vizinhos, na vida
em sociedade, embasada pelo respeito, do modo como o artista trabalha para
obter tal respeito, obtendo assim um papel na vida em sociedade. É uma folha de
papel setorizada, compartimentada, com um dia após o outro; um ano após o
outro. São gavetas que organizam a mente, colocando cada objeto psíquico em seu
devido lugar. A Arte é uma forma de organização mental, de saúde. A Arte é
essencial na vida em
sociedade. São teclas de um teclado de computador, onde cada
dígito tem uma função para que um texto seja redigido e transmitido. São cubos
de gelo que vêm refrescar em um dia cálido, congeladinhos no portagelo do
freezer. Cada cubo em seu lugar, numa harmonia. São várias bandeirinhas brancas
clamando por paz em uma guerra, agitadas em uma manhã alva e pacífica. Esta é a
peça mais estável das três metas de Mara analisadas aqui neste blog. Esses
retângulos negros de Mara trazem um pouquinho de Mondrian, só que sem cores e
sem linhas extremamente retas. É uma criança brincando de empilhar cubinhos de
madeira, e, aqui, a estrutura ainda não caiu, mas está a um passo de ruir –
bastam apenas alguns cubinhos mais, numa criança brincando para aprender os
limites, as bordas divisórias da vida e sociedade. É um painel digital pronto para
expressar letras e números, servindo ao mundo na tarefa de transmitir, como um
médium espírita, que é um “telefonista”. São as folhas em branco esperando por
preenchimento na sessão mediúnica, entregando cartas a mães angustiadas, que
perderam os filhos.
Acima, Meta III.
Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Mara se dá ao luxo de fazer uma
bagunça. Aqui, não há comprometimento ordeiro. Há carnaval e diversão, até
confusão, com muitos foliões em êxtase. É uma suástica bagunçada, desmoralizada,
na vitória da Vida sobre a Morte, rechaçando as ditaduras opressoras. Parece
que, a princípio, esses “palitos” estavam organizados, mas, depois, alguém veio
e os soprou, trazendo um formidável caos. É a casa de palha do porquinho sendo
destruída, como eu já disse nesta mesma postagem. É uma aranha negra morta,
esmagada, exterminada por um aracnofóbico aterrorizado. A aranha ainda luta
pela vida, mas há pouco a se fazer. O animal luta pela vida até o fim, com
esperança de superar os ferimentos mortais. É como um texto embaralhado, com as
letras avançando umas contra as outras, compondo um texto enigmático, sem
sentido, sem significado, pois a clareza, aqui, está debilitada. É um canto de
uma marcenaria com tábuas jogadas aleatoriamente, retalhos inúteis, lixo. Mas a
madeira ainda pode ser aproveitada para fazer fogo e uma lareira. É um menino
que, jogando bola, atingiu uma janela e a estilhaçou, como numa memória de
minha infância, na qual cortei minha própria palma da mão em um vidro de
janela. Mara sabe que o registro preto & branco é charmoso, e traz aqui
ausência das cores do arcoíris. São setas caóticas, apontando para todos os
lados, confundindo o motorista, do mesmo que, ao entrar em um teatro para ver
uma peça, uma moça do elenco disse: “Estou aqui para desinformar e não para
informar”. O poder da Arte reside nesse desinteresse – quanto menos Ego,
melhor. Os palitos negros de Mara formam uma variedade de polígonos, sem padrão
repetitivo. Parece que a artista estava jogando aquele jogo dos palitinhos,
pegou um punhado deles e os jogou na tela. Não parece que Mara trabalhou; parece
que ela se divertiu. As xilogravuras fazem com que o artista teste inúmeras
possibilidades, sempre explorando terrenos ainda não trilhados. É como se um
monstro tivesse chegado na cidade e tivesse destruído-a, no caos depois de um
terremoto, ou um tsunami, ou um furação etc. A vida em sociedade está afetada,
e há muito trabalho pela frente para a reconstrução de lares e vidas. Como
disse Barbra em um concerto: “Será que sempre precisamos de uma catástrofe para
lembrarmos de que somos apenas pessoas que precisam de pessoas?”. É como uma
linguagem obscura, nunca antes vista no mundo, emitindo recados ainda
misteriosos. Como eu já disse, Mara não é muito fã de formas arredondadas, e,
se há alguma onda tortuosa, esta mesma onda é composta de linhas retas em
posições oblíquas. É uma casa bagunçada, que precisa de uma boa organização,
como na casa caótica de um acumulador compulsivo, com pilhas e pilhas de
objetos que não do chão ao teto, mal podendo a pessoa circular por dentro da
casa, num lar insalubre e confuso, muito distante de Tao, que é limpeza. Nessas
três metas de Mara, há a bagunça inicial, o andamento intermediário da faxina
e, por fim, o fim da limpeza, num lar com pouquíssima sujeira remanescente, na
quase perfeição da vida. São como as janelas do NAVI, inundando de luz o
trabalho do artista. É um labirinto confuso, sem centro, num enigma existencial:
onde estou? É como um chão riscado pela incessante passagem de pessoas caminhando
sobre ele, nos vestígios de um longo tempo de uso. É um ninho de minhocas
retas, ou fios de espaguete retos, colocados na panela com água quente,
amolecendo após, rendendo-se à água fervente. São as estruturas remanescentes
de uma casa arrasada por um tufão, trazendo desolação. É uma cidade que não foi
planejada por um urbanista, com ruelas intrincadas de cidadelas medievais,
cujas vias foram se formando ao longo dos séculos, tornando-se confusas para um
turista, que não conhece a cidade. São degraus desordenados, numa escada a qual
não parece levar a algum lugar. Vemos nessas três metas uma evolução, uma
passagem de tempo, um crescimento, num artista que muda e cresce a cada criação
deste mesmo.