quarta-feira, 30 de agosto de 2017

As Metas de uma Artista




Neste ano de 2017, como eu já disse anteriormente, Mara De Carli foi indicada com várias obras ao Prêmio PIPA do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dessas obras, trago três xilogravuras que, juntas, formam a série Meta III/II/I (acima), como numa contagem regressiva, em busca de um foguete que deslanche a vá para longe da Terra, na meta de explorar. Como numa sucessão monárquica, só que ao contrário, subvertendo a dura e perfeita lógica numérica. É a meta metendo-se a construir e desestruturar. São três tempos; três momentos. O princípio xilográfico é o mesmo – um longo retângulo preto, maculando a base branca virginal, numa artista explorando variedades sobre um mesmo assunto. São como trigêmeos que não são univitelinos, tendo em cada um uma marca diferente, apesar de virem da mesma barriga mental. São três janelas, vazias, ocas, permitindo a entrada da luz à obra. Temos três momentos, como no conto dos Três Porquinhos, em que cada casa responde de uma forma ao sopro do lobo, com uma casa fraquinha de palha, uma casa intermediária de madeira e a última sendo de tijolo, que quase não se abala com o sopro malévolo do lobo. Temos um momento de relativa ordem, um de menos ordem e um terceiro de caos e destruição, como na Psicologia, com as três casas mentais: saúde, neurose e psicose, numa progressão gradual, na qual temos ordem, seguida de caos inicial e seguida de caos total. Como na célebre obra O Jardim das Delícias Terrenas, com três tomos: no primeiro, tudo está em ordem, paz e harmonia, e Jesus conversa calmamente com Adão e Eva, no paradisíaco Éden, onde o céu está límpido e os animais convivem em paz; no segundo, a luminosidade do céu é ainda a mesma, mas a ordem já começa a sofrer abalos, e tudo descamba para uma orgia caótica, com animais agitados e furiosos, e tudo está um parque de luxúria e pecado, cometendo os Pecados Capitais, como num parque de diversões insano; no terceiro, na psicose, caos total, com tudo envolto em sombra, em destruição, em danos e má sorte, e a perda de controle atinge o ápice, num quadro no qual pouco resta da vida em civilização. De modo que, se colocarmos o tomo ordeiro ao lado do tomo caótico, vemos um contraste imenso, abismal e claro, de modo que o tomo semicaótico da neurose faz um perfeito intermédio entre saúde e doença. Nas metas de Mara temos uma progressão cronológica, em estágios distintos, e o Id, Ego e Superego convivem, indo do inconsciente ao consciente e ao pensamento moral e ético, nas três instâncias psíquicas. Se suprimirmos a meta intermediária, vemos um contraste entre a casa de palha e a casa de tijolos. A fria razão da ordem impõe-se em sua importância, libertando o Ego e domando o Id. As metas são a mesma meta, só que em situações diferentes. São os macacos que não falam, nem escutam e nem ouvem, na Santíssima Trindade, que funciona como um sistema. É uma artista explorando variações, muitas variações, numa prova de criatividade. E por que “meta”? Porque o objetivo do artista é criar e trazer algo novo, na meta de conquistar o mundo e ser reconhecido, o suficiente para chamar a atenção do MAM. Aqui, as metas, com contraste entre claro e escuro, são claras, definidas e simples, e mesmo a mais tortuosa desordem aqui tem princípio geométrico retangular, numa espécie de “tortuosidade reta”.

Acima, Meta I. Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Vemos relativa fragilidade, mas relativa estabilidade também. É como uma frágil janela em uma casa que está sendo demolida ou simplesmente numa casa que está sofrendo desgaste e erosão pela passagem do tempo. É uma espécie de Mondrian orgânico, no qual as linhas até são retas, mas estão dispostas de forma não reta. São como um jogo de dominó, no qual a queda de apenas uma peça já é o suficiente para causar comoção e estrago, numa reação em cadeia. Há uma espécie de cola branca que gruda os longos retângulos uns nos outros, numa brecha, uma lacuna, uma interrupção, e as peças não estão totalmente coladas, dando uma vazão, como um rio que divide duas cidades, estabelecendo referência e respeito – daqui para cá, é meu terreno; de cá para lá, é o teu. É como um Estreito de Gibraltar, aberto, diz a lenda, pela força do semideus Hércules, como um Canal de Suez, artificialidade que une oceanos, poupando navios de darem enormes voltas continentais. É como o Mar Vermelho, que divide África de Ásia, nos cruéis e autoritários egípcios que morreram afogados ao tentarem recapturar os escravos judeus. São brechas pelas quais a artista observa o mundo, estabelecendo fechaduras e espiando, no prazer de voyeur. É uma criança brincando de Lego, construindo, destruindo, e construindo novamente, como em castelos de areia, fadados para a danação, para a natural destruição. O artista quer cristalizar este momento, como numa tecla Pause-Still do controle remoto. São teclas de controle remoto, que traduzem a vontade, o desejo de onde o artista quer chegar, de como o artista quer ser lembrado pelas pessoas. É um trabalho de formiguinha, que constrói lentamente o formigueiro e, quando este é destruído, a formiguinha, pacientemente, retoma o labor, numa desistindo, persistente. São gavetas de um armário caótico, desestruturado, ruindo e dançando a dança da morte. Havia uma cola colando as peças, mas a cola mostrou-se ineficiente e fraca, fazendo com que tudo possa ruir, desaparecendo. São folhas de papel, de santinhos de campanha eleitoral, levados pelo vento, desaparecendo da memória, abarrotando as ruas de sujeira eleitoral, no eleitor brasileiro, que tem o desejo de colocar os políticos no lixo, desaprovando amplamente um presidente. Esses delgados retângulos negros estão ao sabor do vento, deliciando-se em sua passividade, deixando tudo a cargo do tempo e do vento, entregando-se num confortável berço. Os quadrados estão competindo uns com os outros, esbarrando em atrito uns com os outros, lutando para obter a atenção do espectador. Os quadrados não são exatamente equiláteros, pois têm ângulos não retos, desejando um dia, talvez um dia, ser redondos, sem arestas, como na deliciosa água uterina, reconfortante e quentinha, acolhedora. O espectador pode quase soprar esta xilo, fazendo com que tudo fique bagunçado. Mara bagunça para depois arrumar, e arruma para depois bagunçar, na ânsia do ser humano: se estou na cidade, quero ir ao campo; se estou no campo, quero ir para a cidade. O ser humano nunca está satisfeito, e Mara retrata essa inerente insatisfação: se o cabelo está crespo, quero alisar; se está liso, quero encrespar. É uma caixa de tesouros recém-aberta, revelando nada dentro, absolutamente nada, zombando dos ambiciosos e egoístas, entregando a estes nada mais do que ar. O tesouro do artista não pertence à vida mundana e material, mas a um mundo onde há desapego. Um marceneiro quer vir aqui e realocar as peças, fabricando um armário funcional e sano, dando dignidade a este armário caótico. Os quadrados são ocos, revelando o fundo, transmitindo a felicidade de quem se esvazia de vaidades e arrogâncias. E as frestinhas até revelam-se eficientes, respirando. É um jogo-da-velha vazio, sem jogo, sem público, sem competidores, esperando para ser preenchido pela percepção do espectador. São como paralelepípedos indispostos, carregados pelo impiedoso fluxo de carros em uma rua movimentada, como eram certa vez absolutamente todas as ruas de Caxias do Sul, num quadro de nostalgia, de vontade em se manter em uma saudosa época, num passado perfeito que, na verdade, nunca foi tão perfeito assim. Falta aqui uma boa cola, um link, uma “matéria escura” que mantém o cosmos unido de modo invisível, do modo como o artista busca pelo invisível, pelo não palpável. A escada em caracol do NAVI desdobra-se como uma cadeia de DNA, o qual, decodificado, é despido de mistérios, rendendo-se à ordem de linhas retas, à fria razão.

Acima, Meta II. Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Aqui, quase perfeição e quase estabilidade, numa Mara quase arquiteta. São os quarteirões de uma cidade não tão apolínea, não tão perfeita, numa fragilidade que faz as estruturas balançar ao vento, anunciando uma chuva, uma mudança de tempo, um próximo passo em um processo infinito – permanente transformação. É um jogo de xadrez preguiçoso, querendo render-se à fluidez. Aqui, como em Meta I, há tênues lacunas entre os longos retângulos, como elegante cigarro, o qual, em certa época, era sinônimo de sofisticação e charme. São as estruturas de um prédio não muito firme, mas relativamente resistente, em comparação às duas metas restantes de Mara. É uma cidade fluidia, confortável, na qual as arestas, cedo ou tarde, serão aparadas. É uma promessa de uma cidade melhor, não tão dura e difícil. Parece que Mara consideraria monótona uma estrutura perfeitinha; consideraria óbvio e pouco interessante, visto que qualquer artista quer se diferenciar e não ser uma máquina de fotocópia. São folhas de papel recém-saídas da máquina de fabricação, ou da impressora, abastecendo a vida em sociedade, a qual, cada vez mais, pensa em poupar recursos florestais, inserindo-se na Era da Informática. É como uma tradicional rolha de cortiça de vinhos, a qual vem sendo substituída pela prática tampa rosca. A tortuosidade aqui desafia os ângulos perfeitamente retos das margens da base branca. São caixas empilhadas, numa pilha que não se revela tão resistente assim, começando a ameaçar a ruir, mas não ainda ruindo. São tijolos de vidro, que possibilitam a passagem da luz, iluminando ambientes que seriam escuros com tijolos tradicionais. Assim, a luz, ao ter entrada permitida, exerce sua função, do modo como o artista se encontra existencialmente e passa a produzir para o mundo. É um quebracabeça linear, óbvio, mas ainda assim misterioso, pois não sabemos qual peça deve vir depois da outra, formando um conjunto que é um esqueleto, esperando para ser preenchido por concreto, aço e vidro; por carne e sangue. É uma base essencial, um projeto, algo esperando para ser realizado e consolidado, como Elizabeth I consolidou a religião de seu próprio pai. Há o formato de duas cruzes, uma em cima da outra, em uma cidade tão católica como Caxias do Sul. Apesar do artista não ser obrigatoriamente religioso, esse mesmo artista pode ser influenciado, fazendo seu próprio registro de fé, mesmo não tendo intenções diretas ou conscientes. É como um sorriso branco, com linhas definidas que separam o dentes, estabelecendo limites entre vizinhos, na vida em sociedade, embasada pelo respeito, do modo como o artista trabalha para obter tal respeito, obtendo assim um papel na vida em sociedade. É uma folha de papel setorizada, compartimentada, com um dia após o outro; um ano após o outro. São gavetas que organizam a mente, colocando cada objeto psíquico em seu devido lugar. A Arte é uma forma de organização mental, de saúde. A Arte é essencial na vida em sociedade. São teclas de um teclado de computador, onde cada dígito tem uma função para que um texto seja redigido e transmitido. São cubos de gelo que vêm refrescar em um dia cálido, congeladinhos no portagelo do freezer. Cada cubo em seu lugar, numa harmonia. São várias bandeirinhas brancas clamando por paz em uma guerra, agitadas em uma manhã alva e pacífica. Esta é a peça mais estável das três metas de Mara analisadas aqui neste blog. Esses retângulos negros de Mara trazem um pouquinho de Mondrian, só que sem cores e sem linhas extremamente retas. É uma criança brincando de empilhar cubinhos de madeira, e, aqui, a estrutura ainda não caiu, mas está a um passo de ruir – bastam apenas alguns cubinhos mais, numa criança brincando para aprender os limites, as bordas divisórias da vida e sociedade. É um painel digital pronto para expressar letras e números, servindo ao mundo na tarefa de transmitir, como um médium espírita, que é um “telefonista”. São as folhas em branco esperando por preenchimento na sessão mediúnica, entregando cartas a mães angustiadas, que perderam os filhos.

Acima, Meta III. Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Mara se dá ao luxo de fazer uma bagunça. Aqui, não há comprometimento ordeiro. Há carnaval e diversão, até confusão, com muitos foliões em êxtase. É uma suástica bagunçada, desmoralizada, na vitória da Vida sobre a Morte, rechaçando as ditaduras opressoras. Parece que, a princípio, esses “palitos” estavam organizados, mas, depois, alguém veio e os soprou, trazendo um formidável caos. É a casa de palha do porquinho sendo destruída, como eu já disse nesta mesma postagem. É uma aranha negra morta, esmagada, exterminada por um aracnofóbico aterrorizado. A aranha ainda luta pela vida, mas há pouco a se fazer. O animal luta pela vida até o fim, com esperança de superar os ferimentos mortais. É como um texto embaralhado, com as letras avançando umas contra as outras, compondo um texto enigmático, sem sentido, sem significado, pois a clareza, aqui, está debilitada. É um canto de uma marcenaria com tábuas jogadas aleatoriamente, retalhos inúteis, lixo. Mas a madeira ainda pode ser aproveitada para fazer fogo e uma lareira. É um menino que, jogando bola, atingiu uma janela e a estilhaçou, como numa memória de minha infância, na qual cortei minha própria palma da mão em um vidro de janela. Mara sabe que o registro preto & branco é charmoso, e traz aqui ausência das cores do arcoíris. São setas caóticas, apontando para todos os lados, confundindo o motorista, do mesmo que, ao entrar em um teatro para ver uma peça, uma moça do elenco disse: “Estou aqui para desinformar e não para informar”. O poder da Arte reside nesse desinteresse – quanto menos Ego, melhor. Os palitos negros de Mara formam uma variedade de polígonos, sem padrão repetitivo. Parece que a artista estava jogando aquele jogo dos palitinhos, pegou um punhado deles e os jogou na tela. Não parece que Mara trabalhou; parece que ela se divertiu. As xilogravuras fazem com que o artista teste inúmeras possibilidades, sempre explorando terrenos ainda não trilhados. É como se um monstro tivesse chegado na cidade e tivesse destruído-a, no caos depois de um terremoto, ou um tsunami, ou um furação etc. A vida em sociedade está afetada, e há muito trabalho pela frente para a reconstrução de lares e vidas. Como disse Barbra em um concerto: “Será que sempre precisamos de uma catástrofe para lembrarmos de que somos apenas pessoas que precisam de pessoas?”. É como uma linguagem obscura, nunca antes vista no mundo, emitindo recados ainda misteriosos. Como eu já disse, Mara não é muito fã de formas arredondadas, e, se há alguma onda tortuosa, esta mesma onda é composta de linhas retas em posições oblíquas. É uma casa bagunçada, que precisa de uma boa organização, como na casa caótica de um acumulador compulsivo, com pilhas e pilhas de objetos que não do chão ao teto, mal podendo a pessoa circular por dentro da casa, num lar insalubre e confuso, muito distante de Tao, que é limpeza. Nessas três metas de Mara, há a bagunça inicial, o andamento intermediário da faxina e, por fim, o fim da limpeza, num lar com pouquíssima sujeira remanescente, na quase perfeição da vida. São como as janelas do NAVI, inundando de luz o trabalho do artista. É um labirinto confuso, sem centro, num enigma existencial: onde estou? É como um chão riscado pela incessante passagem de pessoas caminhando sobre ele, nos vestígios de um longo tempo de uso. É um ninho de minhocas retas, ou fios de espaguete retos, colocados na panela com água quente, amolecendo após, rendendo-se à água fervente. São as estruturas remanescentes de uma casa arrasada por um tufão, trazendo desolação. É uma cidade que não foi planejada por um urbanista, com ruelas intrincadas de cidadelas medievais, cujas vias foram se formando ao longo dos séculos, tornando-se confusas para um turista, que não conhece a cidade. São degraus desordenados, numa escada a qual não parece levar a algum lugar. Vemos nessas três metas uma evolução, uma passagem de tempo, um crescimento, num artista que muda e cresce a cada criação deste mesmo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Iberê e o Guaíba




Na saudosa Porto Alegre, há um dos principais prédios da cidade, a Fundação Iberê Camargo, cujo nome homenageia este grande artista plástico que foi IC (1914 – 1994). O prédio é de um talento arquitetônico primoroso, com uma vista ímpar para o Lago Guaíba, com direito a uma charmosa cafeteria, na vocação portoalegrense em relação a cafeterias “portenhas”, num pôr-do-sol que é cartão postal da cidade. Além do vasto acervo do próprio Iberê, a casa oferece outras mostras, abrilhantando essa Porto Alegre que tanto valoriza a Cultura. Já visitei a Fundação várias vezes, e fica sempre na boca um gostinho de “quero mais”. Iberê foi amigo íntimo do célebre mestre Tatata Pimentel, até usando este como modelo para pintar. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas. Inclusive, meu professor Tatata deu-me aulas de semiótica na PUCRS em 1996.

Acima, Ciclista, óleo sobre tela de 1988. Parece que IC previu a implantação de ciclovias na cidade. O ciclista segue despreocupado e tranquilo, com linhas ondulantes que dão movimento aqui. Há basicamente azul-marinho e branco, mas o branco aqui está discreto e comedido, mas empenhando um papel essencial, pois, já ouvi dizer, não existe papel pequeno – existe ator pequeno. Há pedaços em que o artista misturou azul com branco, revelando um tom intermediário, num bom gosto cromático. Os olhos do ciclista estão bem atentos, esbugalhados, vigilantes, e sua boca aberta transmite a ideia de prazer e bem estar com a atividade física. IC nunca se contenta com traços definidos e certos, mas com uma dualidade de traços, trazendo a certeza da incerteza, em pinceladas hesitantes, numa influência do Impressionismo, no qual borrões incertos dão uma noção nítida em contradição, libertando a Arte da função retratista. IC não é um retratista. As pernas do ciclista pedalam candidamente, com calma para curtir as ruas da cidade. Os tons mais severos de azul escuro trazem a sobriedade, e o ciclista, apesar de estar apreciando o mundo à sua volta, está atento, com a noção de responsabilidade, sabendo que precisa guiar a bike com zelo ou, senão, poderá se acidentar e se machucar, quiçá morrer. O ciclista aqui é um adulto. Suas costas estão curvas, calejadas pela atividade ciclística. Ele está um pouco cansado, como um artista cansado com o mundo à sua volta, pois apesar de haver Filosofia, esta não muda o mundo, e este é uma esfera imutável. As grandes rodas da bici são como dois grandes olhos, sempre em movimento, sempre em mutação, num filósofo que cresce em meio a um mundo que não muda. Há aqui discretas pinceladas de outros tons, como tons de um marrom avermelhado e amarelado, talvez na paixão pelo já citado crepúsculo portoalegrense à beira do Guaíba. Se Iberê amou POA, esta retribuiu todo esse amor, homenageando o artista. Os vigorosos braços do ciclista estão firmes e conscientes da necessidade de segurança, num artista em controle de sua própria mente, sabendo por onde pedala, e o guidão é o controle sobre a vida, sobre o destino. Vemos um Iberê em controle de si mesmo, e a bicicleta está domada como um cavalo manso, obediente, num artista disciplinado, rumando pela avenida da vida, com olhos muito atentos, olhando para os próximos passos, sempre pedalando e trilhando. O corpo está relaxado, e aqui podemos observar um autorretrato, uma selfie, como se diz hoje em dia. O artista coloca em sua obra uma espécie de “impressão digital”, doando-se à Arte, revelando-se uma mente, aliando-se a outra mente brilhante que foi a de Tatata – nada mais natural do que dois excepcionais tornarem-se amigos. Colocando esta obra de cabeça para baixo, vemos na totalidade desta tela um vulto de rosto, com as rodas sendo os olhos e o restante sendo um rosto, numa expressão perplexa, vigilante, surpresa com o fato de a vida ser tão inesgotável. As linhas ondulantes são o vento passando, levando embora o que não é essencial, limpando a vida do ciclista. As mesmas linhas são também as águas do Guaíba, sempre fluindo, banhando uma cidade que se ergueu por essas águas. Iberê pedala tranquilamente, curtindo a manhã de um belo sábado. Apesar de suas costas terem um aspecto cansado, suas pernas pedalam pelo tempo, e podemos até ouvir o barulhinho de bicicleta sendo pedalada. Pedalar é como trilhar a vida, havendo aqui uma metalinguagem: pedalante falando de pedalante. O ciclista tem uma magreza elegante, queimando calorias. Os pedais estão confusos, indiscerníveis, misturando aos pés do ciclista e formando um só organismo, do modo como o guiador mistura-se com o equipamento, acostumando-se perfeitamente à atividade, num artista que se misturou com suas próprias telas.


Acima, Fantasmagoria III, óleo sobre tela de 1987. O título anuncia três fantasmas. Os três convivem pacificamente. Dois estão de frente e o terceiro está de lado. Temos um predomínio de azul metálico, quase cinza, na dureza de um mundo materialista e industrial, numa existência que se depara com tanta vicissitude. Os fantasmas têm rostos de caveira, vazios, mortos e corroídos. No fantasma da extrema esquerda, vemos uma mulher, com alguns fios de cabelo moreno, e vemos um seio lindo mais abaixo, num minucioso trabalho de Iberê, revelando uma forma monumental, provando o talento do mestre. O seio é perfeito, moldado entre luz e sombra, como uma pirâmide na aurora ou crepúsculo, revelando relevo. Ela parece usar uma capa de plástico transparente, revelando a nudez. Seus olhos estão um pouco tristes, caidinhos, talvez pela obra de alguma paixão malcorrespondida. Seus braços estão flexionados, talvez para ajeitar a roupa. Seu corpo é esguio e suas pernas são ossudas e frágeis, ameaçando quebrar a qualquer momento, mas sabendo sustentar o corpo. Já, o fantasma do meio está em pose com os braços atrás da cabeça, explicitamente posando para Iberê. Os ágeis traços em seus olhos mostram com clareza dois olhos negros que olham para o lado, talvez para o fantasma da esquerda, numa dependência afetiva que traz sofrimento, pois a fantasma da esquerda não nota a presença do companheiro ao lado. O fantasma do centro está um tanto agoniado, sentindo o peso da paixão. Seu corpo é forte, e no centro dele vemos um grande botão redondo, talvez de um traje. O botão é central, primordial, fruto de uma vida centrada, pés no chão. O botão está praticamente no centro da tela. Mais abaixo, há uma forma que lembra um pênis flácido, de tamanho descomunal, remetendo à fertilidade de uma mente laboriosa. O pênis é como uma seta que aponta para o chão, para a base, para a referência, num princípio fálico de direção, num artista que dirige a sua própria obra. Aqui, não há desejo sexual, pois não há ereção. E o botão ao centro é como o centro de uma galáxia ou de um sistema solar, no qual a estrela arrasta tudo e todos consigo por uma força gravitacional inevitável e fortíssima, num artista centrado no trabalho, na felicidade de quem se encontra na vida. O pênis traz o tom masculino para o quadro, fazendo par com o seio da fantasma da esquerda. O seio repleto de leite é a amamentação, a alimentação, no cuidado materno que IC tem com o próprio labor, nutrindo este, dedicando-se numa lenta gestação e, por fim, dando à luz, na catarse do artista. Já, o fantasma da extrema direita está menos explícito, mais reservado, num artista reservado e discreto na vida real. O fantasma da direita tem um corpo esguio, e está na posição de lado, ao contrário dos fantasmas restantes, que estão de frente para Iberê. O fantasma da direita está com um braço flexionado como se estivesse pedindo uma esmola, com um olho negro, escuro, sem esperança, nunca podendo ver, numa cegueira da alma, num pessimismo existencial. O da direita quer chamar a atenção dos outros fantasmas, talvez pedindo por uma participação maior na obra. A reserva do da direita está sedenta por um papel protagonista. Num quadro geral, são como uma linha de produtos da mesma marca, uma família. Aqui, os traços brancos são essenciais para vermos as formas, num IC sempre com traços incertos e trêmulos, rechaçando a definição gráfica. Há traços delgados de um azul mais vivo, mas esperançoso, como num longínquo Céu de Brigadeiro, numa promessa distante de vida, ressuscitando os fantasmas e dando-lhes uma nova vida. Vemos uma brilhante combinação entre esses tons de azul, num IC possuidor de bom gosto, na busca catársica por limpeza e beleza essencial, mínima. São três cabeças pensantes, que funcionam em grupo, em frações distintas de um mesmo self, de um mesmo ser humano. Os traços brancos são como fios de barbante, errantes, indecisos, procurando tecer algo visível e palpável. É como se córregos de alvejante tivesses cruzado a tela, alvejando veias, tendo papel imprescindível no traço retrativo. No fantasma da direita vemos um mamilo e algumas marcas de osso de costela, numa desnutrição a qual o artista busca evitar, fugindo do bloqueio mental, na inatividade artística. O mamilo masculino conversa com o mamilo feminino, juntando Yin e Yang e formando um corpo só, assexuado, puro, espiritual. E o pênis serve como régua medidora, regulamentando e impondo ordem a um Iberê cheio de traços afoitos e indecisos, deliciosamente indisciplinados. Do modo como o botão une as duas partes de um mesmo casaco, agasalhando e protegendo o artista, o qual tem uma missão de atormentar e libertar o mundo. Vemos um Iberê sonhador. E por que “fantasmas”? São como espíritos desencarnados, livres da dureza material, da luta pelo pão de cada dia. Mas esses espíritos estão se dando conta de que a vida continua e de que o pão continua a ser, de alguma forma, essencial.

Acima, No Vento e na Terra, óleo sobre tela de 1991. Voltamos a ver aqui a paixão e o fascínio de IC por bicicletas, no prazer de pedalar e passear pela vida. Há um contraste entre o céu alvo e a terra bordô. É um dia nublado de incertezas, numa existência envolta em mistério. A bicicleta está estática, sem uso, sem movimento. Suas linhas negras quase se fundem com a terra escura, uma terra pessimista, sombria, que pouco consola. É uma terra árida, onde nada prospera. O menino, em tom discreto de azul, está caído, quiçá morto, talvez tendo caído da bicicleta e machucado-se gravemente. O menino está em primeiro plano, e seus olhos fechados sugerem aquilo que é inconsciente, aquilo que não é trazido à luz do dia. O título da tela sugere que há vento na cena, e talvez a linha tortuosa do horizonte possa ilustrar o vento, num ar que talvez não mais exista nos pulmões do menino. O menino está carente e abandonado, catarseando um sentimento de solidão e desamparo. O menino é como um feto, crescendo lentamente em um útero, como no feto no final de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, numa Humanidade que tem tanto por vir, tanto por fazer, tanto por descobrir, que a Humanidade é ultrajovem – é um feto que sequer nasceu. O menino é o cansaço e o retorno à terra, às raízes, rendendo-se à implacável Lei da Gravidade. É um dia frio, sem muito reconforto. O céu é quase cromaticamente puro, com discretas nuvens coadjuvantes, quase apagadas. Ao fundo no horizonte, vemos uma forma rubra que parece ser uma fogueira ardendo, talvez numa festa de São João. A fogueira arde majestosamente, trazendo um pouco de consolo a uma cena tão desamparadora. A fogueira tem o formato de uma mão com o dedo indicador apontando para cima, para o céu, para a origem divina de todos nós, para Tao, que é o Pai (ou a Mãe) Celestial. O menino sonha, e ainda não despertou para fazer esses mesmos sonhos tornarem-se reais. É um Iberê sonhador, inspirado, querendo ser diferente, marcante, pois não há algo pior para um artista do que ser mais um numa multidão de massa indistinta. As mãos do menino parecem acariciar a terra, declarando amor por esta. É um Iberê que ama Porto Alegre e, por consequência, recebe a retribuição desse amor. A bicicleta está misteriosamente em pé mesmo não estando sendo montada por um ciclista. A bici é o equilíbrio, a sensatez, a harmonia de uma mente que precisa produzir para se sentir bem, para se sentir socialmente contribuinte. O menino está nu como um feto. E por que nu? A ausência de roupas é a crueza autêntica, a verdade dura, sem maquiagens. Do lado esquerdo da fogueira, uma cruz, talvez a que matou Jesus, na dor do sacrifício, na dor inevitável da vida. Jesus ali não está mais crucificado, e está morto e enterrado, ressuscitando após. Do lado direito da fogueira, uma forma que parece ser um estádio, com a grande boca aberta voltada para cima, recebendo, congregando torcedores ao redor de um só time, unindo, harmonizando. Parece ser também uma montanha russa, vertiginosa, excitante, do modo como um artista feliz é aquele que encontra diversão em fazer o que faz. Os altos e baixos da montanha russa são as águas da existência, as quais estão hora por cima, hora por baixo, como na água uterina, que abriga e nutre o bebê, como na deliciosa sensação de liquidiscência da pessoa que tem o que o Espiritismo chama de “Experiência Extracorporal”. É o retorno ao útero, à origem, à Imaculada Conceição. O menino está em paz, relaxado, confortável sobre a terra que o recebe de braços abertos. O menino foge da aridez do terreno, e este não é muito acolhedor, passando a ideia de frio intenso, sem abrigo, sem agasalho, sem consolo, num dia de inverno. O menino tem a esperança de ver e viver uma vida melhor, caindo inconsciente e entregando-se à gravidade. Apesar de um céu claro, a tela tem uma predominância sombria, e a bicicleta está esperando para ser montada novamente, esperando o menino acordar do sono. O mundo espera pelo menino, o qual ainda não está pronto, estando ainda muito imaturo, muito “verde”, ou, nesse caso, azul. As mãos e os pés do menino são frágeis, com as de um feto, como numa fotografia de ultrassom, a qual “invade” o útero e traz ao mundo imagens de quem sequer nasceu. Alguns traços em branco no rosto do menino entram em harmonia com o céu branco, assinalando o vínculo indestrutível que a Humanidade tem com o que Cristo chama de “Reino dos Céus”, na lei do eterno retorno, como no final de 2001..., quando o homem velho torna-se feto novamente e retorna ao seu chão, à sua referência divina e inabalável. O menino está retornando, depois de uma viagem cansativa. Os pés do menino estão cansados, clamando por uma pausa. É como na vinheta de abertura da série cômica Mr. Bean, na qual Bean é parido por uma luz que vem do céu. O menino foi parido, e ainda precisa de muitos cuidados. É como se o menino tivesse sentido o impacto da queda, no trauma do bebê que é “expulso” do útero que o fez e o acolheu, num acolhimento incondicional. O menino precisa tomar um banho e ir para o berço na Maternidade. Ele sequer abriu os olhos. E tem sono, muito sono.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Impiedoso Piet




Na minha faculdade, a querida professora Lisiane solicitou um trabalho sobre Piet Mondrian, da escola De Styl, um grande movimento estético. Naquela época, eu não fazia ideia de quem era o artista. Aliei-me com um colega, também artista – músico –, e fizemos um ótimo trabalho, buscando compreender as linhas e traços de Mondrian, e soubemos navegar como dupla, entendendo um ao outro. Foi com esse trabalho que me lembrei de uma linha de cosméticos para cabelo Studio Line, nos anos 80, se não me engano da marca Lorèal de Paris, e o slogan era: Studio Line esculpe seus cabelos à sua moda. Na campanha publicitária, a alusão a Mondrian era explícita, mostrando um artista inspirado, transgressor, com trabalhos que permanecem atuais em plena Era Digital, sendo Piet de uma época em que o Século XX ainda respirava resquícios do XIX. Mondrian esnobou o Art Déco, tendência da época, sendo esta uma moda, uma vogue, uma onda. Certa vez vi um documentário do qual não me esqueci: Mondrian pegou uma prostituta e a levou a seu atelier, para que a moça fizesse o trabalho dela, e quando a prostituta entrou no estúdio e viu todos aqueles quadros com linhas retas, tão desprovidos de sensualidade e insinuação, a garota de programa disse a Mondrian: Não podemos transar aqui dentro. As análises semióticas as seguir são inteiramente minhas.

Acima, Broadway Boogie Woogie, de 1942. O ritmo frenético de uma grande metrópole. Não há curvas, mas esquinas pontiagudas. Lembra muito o videogame Pac Man, dos anos 80, em que um boneco comilão tinha que comer o máximo de lanches possível, sempre fugindo de fantasmas letais. É um sistema lógico, racional, como um organismo, só que nunca orgânico. São como tripas digerindo lentamente a comida, processando, transformando, no sentido de que, segundo a Dialética, tudo é processo, ou seja, há infinitude, como Espiritismo diz que Deus é o infinito. É o trânsito frenético de carros apressados, cuidando de problemas, em inevitáveis engarrafamentos truncados, difíceis, no modo como a prostituta não se sentia relaxada – linhas tensas são as de Mondrian. O pacífico fundo branco traz leveza, limpeza e tranquilidade, frente à pressa cotidiana. O branco está alheio ao resto, como num universo branco sem fim. É como a bandeira da rendição, clamando por quietude, por sossego, visto que Mondrian passou pelo período da II Guerra Mundial e os horrores desta. A Arte quer paz. O fundo branco é a luz de dias melhores, sem tanta violência, tanta estupidez, tanto sofrimento. É a resposta de Piet a tanto belicismo, tanta desarmonia. O branco traz luz, iluminando o faminto Pac Man, como um Mondrian faminto e insaciável, com a ambição de ser um grande artista, de ser célebre, de ser original. É como um vitral de igreja, colorido, lindo, iluminador, trazendo clareza a fatos obscuros, como o negror da Guerra. A cor preta do luto bélico é absolutamente esquecida aqui, ignorada, desprezada. Aqui, quer-se luz, bondade e paz, muita paz. Esses carros trafegando por essas ruas o fazem pacificamente, sem chances para acidentes automobilísticos, numa cidade perfeita, sem crime, com cores e alegria. O amarelo traz o ouro, a riqueza, a prosperidade de ruas limpas e amplas, abrigando o progresso, clamando por concórdia em um mundo onde há tanta discórdia. Mondrian é absolutamente assimétrico, sempre, rejeitando a “chatice” clássica da simetria, do culto à perfeição óbvia. Mondrian traz equilíbrio inusitado, complexo. Há pequenos quadrados e grandes quadrados, sem ser uma cidade perfeitamente quadriculada, com quadras absolutamente iguais em tamanho e, disposição monótona. As pitadas de azul e vermelho trazem a alegria cromática, frente à morte nos campos de concentração, aos horrores nazistas. Os espaços em branco são sensuais lacunas, dúvidas enigmáticas, sustentando o quadro e, ainda assim, desaparecendo, fazendo das cores restantes as estrelas dessa obra. Aqui, temos diversidade: retângulos de várias dimensões e quadrados variados, num ritmo divertido, quase infantil. Vemos um Mondrian cândido, inocente em sua atitude em trazer algo novo, fora dos padrões clássicos acadêmicos, fora da enfadonha previsibilidade. É como uma cerca, a qual, além da função protetora, é uma obra de arte, em um artista protegendo-se em meio à busca por dignidade artística. Essa “grade” traz delimitação, num Piet conquistando seu próprio espaço no mundo, na vida. A grade traz um aviso: não ultrapasse; respeite, pois você não está em casa. Essas formas todas nesta Broadway parecem dançar como em um musical, mexendo-se, vibrando frente a uma plateia ansiosa por Arte, por momentos sublimes de catarse e renovação, saindo do teatro de alma lavada, como num bom filme libertador, fruto de um artista de talento, muito talento. E por que “Broadway”? É o lugar pulsante onde artistas buscam por sucesso e realização, com muitas peças acontecendo ao mesmo tempo, numa Nova York “louca”, imprevisível, fascinante como lar da Arte. Certamente aqui há uma genial ilusão de ótica, e os pequenos quadrados parecem de fato, estar em movimento, em trânsito. Nada aqui é para sempre, e tudo está em processo infindável de transformação, de aprimoramento, em artistas da Broadway que buscam incessantemente a autossuperação. Esta obra, como tudo em Mondrian, não tem um lado certo para ser exposta, num mundo sem pontos cardeais, no qual nunca há verdades duras e impenetráveis. Mondrian é um sonhador, num pensamento brilhante que nunca é escravo de preconceitos. Esses quadrados são adoráveis, como confetes quadriculados, numa alegria que, apesar de carnavalesca, é também ordeira, juntando Razão e Loucura em um só prato delicioso. Aqui, respira-se aliviado, e a Arte trata de curar o artista (e o espectador). Os quadradinhos azuis trazem o Céu de Brigadeiro, perfeito, sem nuvens de dúvida. Mondrian sabe que está no caminho certo, simples. O Boogie Woogie no título rendeu nos anos 70 um grande hit da Era Disco, e neste quadro temos dança, muito movimento, algo contagiante, carnavalesco. Mondrian é divertido. Aqui, temos luzes de boate, histéricas, errantes, glamorosas. São hieróglifos dançantes, sempre enigmáticos, mas claros em sua função de divertir. É um intestino processando o alimento. Um sistema lógico de processamento de dados. É um esquema em uma mente brilhante.

Acima, Cidade de Nova York I, de 1942. As linhas dançam aqui, nunca estáveis, como numa paradisíaca brisa amena, numa brandura de cidade espiritual, metafísica, longe das vicissitudes da Nova York material, física. É como um kilt escocês, com linhas em orgias paralelas e perpendiculares, beijando-se, encontrando-se, relacionando-se, tocando umas nas outras, encontrando-se pela cidade, nas múltiplas opções desta. Assim como em Broadway Boogie Woogie, o fundo branco sustenta a obra, desaparecendo, sendo subestimado pelas linhas coloridas. Mondrian ama se movimentar entre branco, preto, amarelo, vermelho e azul, com cores sempre definidas, primárias, fáceis, sem nuances cromáticas. É uma candura quase infantil, mas muito adulta, sofisticada. São as grades de uma prisão, de uma encarnação, e por entre as barras vemos um futuro claro, branco, limpo e puro, numa realidade metafísica que espera por quem desencarna. Mas, apesar de serem grades de uma prisão, essas barras trazem um certo contentamento, um consolo, uma promessa de que as encarnações, um dia, acabam, cedo ou tarde. Essas grades parecem dançar divertidamente, mas nuca perdendo a função de aprisionamento, num artista que sabe que a pessoa tem que fazer algo da existência que lhe é colocada nas mãos, e ocupar o tempo que se tem aqui, na prisão. As linhas entrelaçam-se, numa perfeita malha, agasalhando, protegendo. É um tear. Os fios aliam-se e, juntos, formam algo novo. As barras protegem da neve fria lá fora, trazendo acalento, como uma lareira no inverno. A metade inferior do quadro é mais aberta, com mais brechas, mais liberdade e visibilidade. Em outras áreas, o gradeamento é mais intenso, mais implacável, menos permissivo. As linhas vermelhas, como na Linha Vermelha do Rio de Janeiro, são as vias que nutrem o organismo da cidade, transportando sangue e oxigênio ao organismo carioca, sendo aqui veias retilíneas, muito longe da tortuosa constituição venosa orgânica. Mondrian não que linhas tortas; quer objetividade; que ir direto ao ponto, da forma mais prática. Mondrian tenta trazer a liquidiscência em uma versão tensa, quadricular, retangular. Não há espaço para água aqui, nem para formas vaporosas insinuantes. É como um ordeiro teclado de computador, com teclas ao alcance do toque. As brechas brancas respiram, como num tecido que alivia a transpiração, deixando o vapor do suor passar e evaporar. Trânsito, vida, mas sem curvas, numa “racionalização do irracional”. As vias desta grande cidade vibram na cidade que nunca dorme, sem dormência nem relaxamento. E as linhas estão umas na frente das outras como nas linhas de metrô, que, embaixo da terra, entrelaçam-se com as vias a céu aberto, com muitas paradas e conexões, num corpo que não pára. Aqui, a latitude e longitude beijam-se, em coordenadas racionais, localizadoras, classificatórias. São cordas que buscam conter, amarrar um pacote indomável, revoltoso. Essas linhas buscam conter o irracional, o animalesco, trazendo brios e racionalidade, controle. É um grande presente de Natal, embrulhadíssimo, protegido, a salvo. Linhas ansiosas na tarefa de localizar e classificar, dinâmicas, ágeis.

Acima, Composição com Vermelho, Amarelo e Azul, de 1930. Temos elegância em Mondrian. O preto e o branco são a parte sisuda, simples, como um pai e uma mãe impondo ordem em um lar bagunçado por crianças levadas. Só que as linhas negras não são todas da mesma espessura, trazendo desigualdade social, ou a desigualdade entre gêneros, do modo como o Mercado de Trabalho paga melhor um homem do que uma mulher em um mesmo trabalho. Há algo de minimalismo japonês, numa casa dividida por cômodos assimétricos, pois, repito, Mondrian odeia simetria. O artista acha mais interessantes desafios gráficos. Aqui, temos o predomínio do vermelho, dos laços de sangue, de um sensual batom feminino, num apelo como uma mulher de vermelho, portadora de uma beleza eterna, da juventude imortal, cercada por uma exuberante hera, viva. O amarelo está modesto e recolhido, como um Sol se pondo, morrendo lenta e melancolicamente, prometendo voltar no dia seguinte. Aqui, o Sol nasce quadrado, como numa prisão, numa encarnação, num artista tentando entender por que o mundo é como é, tão duro. Já, o azul aparece mais, como numa vista por uma janela em um dia aberto, bonito e limpo. Quer-se aqui ver um céu aberto, saudável, inspirador, do modo que, às vezes, tudo o que a pessoa tem que fazer para ser feliz é simplesmente respirar o ar de um dia puro. É impressionante como Mondrian permanece atual, imortal. Suas linhas elegantes não envelhecem, sempre horizontais e verticais, prevendo o advento da Era Digital. Mondrian segue inspirando artistas, publicitários e designers gráficos. Volta e meia deparo-me com alguma peça gráfica que faz menção direta ou indireta a Mondrian. No meu trabalho de faculdade eu disse que as disposições gráficas de Mondrian são como Histórias em Quadrinhos, numa disposição dinâmica e assimétrica de cada quadrinho, trazendo movimento e diversão, evitando o tedioso ranço. As HQs brotam no Século XX, e a vanguarda de Mondrian adquire a cara de sua época, passando por duas grandes guerras e renascendo após. Os retângulos brancos são as necessárias lacunas de respiro, entrando nessa dança truncada, com quinas, com arestas nunca aparadas. As tarjas pretas de luto trazem o mistério, a sobriedade, tornando-se impeditivas, transformando-se em obstáculos, como nas horrendas formas da suástica nazista, num Mondrian que testemunhou o momento bélico mundial. Mondrian faz da Arte um protesto, um manifesto contra a caretice, revelando-se jovial e irreverente, características fundamentais num artista. As ditaduras significam prisões para a mente artística, fazendo-nos imaginar como foi difícil a vida artística brasileira durante a Ditadura Militar. Essas vias negras, do mesmo modo que chegam, vão embora, e o Sol renasce após o negror. Mondrian ultrapassa eras e traz a esperança de que a Arte deve salvar o mundo. No título desta postagem, a impetuosidade aludida é como Mondrian age sem pena das convenções aprisionadoras, num ímpeto de ganhar o Mundo. E até hoje Mondrian alfineta deliciosamente nossas mentes.

Acima, Composição com Vermelho, Amarelo e Azul, de 1935. Estruturas de um ambicioso prédio sendo construído, numa Nova York desvairada, que se desenvolve vertiginosamente. Estruturas que moldam a construção, do mesmo modo como o artista vai projetando e moldando uma obra, seja obra de construção civil, seja obra artística, numa metalinguagem: construção falando de construção, labor falando de labor. A demanda de construção agita o Mercado, e tem uma demanda tremenda por cimento e outros materiais, aquecendo o Mercado e a Economia, desenvolvendo uma nação. As estruturas negras contrastam com o céu aberto, dando asas à imaginação. É como um teclado louco de computador, numa época em que o chuá da tecnologia eram as máquinas de datilografar. O visionário Mondrian antecipa uma era, no boom da tecnologia, no uso da fria razão das máquinas, como na guerra entre humanos e máquinas na trilogia Matrix, numa trama em que a inteligência artificial foge do controle humano. E aqui temos uma perfeita trama têxtil, num maquinário pujante que fabrica roupas sem parar, atendendo à demanda do povo americano, o povo consumidor. As cores aqui aparecem de forma coadjuvante, deixando o protagonismo para o preto e branco. É como um quebracabeça. É um papel rasgado que foi remontado, pedaço por pedaço, pacientemente, pois, uma grande artista que conheci, disse-me que o segredo é ter paciência para se produzir Arte. E temos um Mondrian paciente, construindo aos poucos, sempre atento à limpeza das formas e à simplicidade gráfica, acreditando que menos é mais. Mondrian adquiriu uma identidade inconfundível, original. Temos aqui uma forte compartimentação, uma divisão entre partes, entre cômodos, entre células, com muita organização, num armário onde cada coisa tem seu lugar, num artista no total controle de sua própria obra. Aqui é difícil limpar com um pano, pois as esquinas são numerosas, sem curvas que facilitariam o trabalho de limpeza. Mondrian é um construtor de vitrais de igreja, convidando a luz para entrar durante o dia e sair durante a noite, num gosto por cores, e dificilmente fazendo obras só em preto e branco. Recordo-me em meu trabalho da faculdade, quando retirei na Biblioteca um livro sobre Piet, e havia uma obra com o mesmo estilo de linhas aqui, em preto e branco, e só havia um discreto toque de cor, com um pequeno quadrado azul, impedindo a ausência cromática. A cor é o otimismo frente aos horrores das guerras, como numa Carmen Miranda, que alegrava o mundo em exuberantes musicais, num momento em que este mesmo mundo sofria com a II Guerra. O ser humano precisa de esperança, para nunca perder totalmente a candura infantil. E Mondrian consegue este trabalho de equilíbrio entre adulto e infantil. Temos aqui uma rede, numa época em que a Internet sequer era Ficção Científica. Mondrian antecipa um mundo conectado, tenso, no qual todos estão, de alguma forma, incluídos. E Mondrian encontra um modo de se conectar com o mundo. É um irregular tabuleiro de xadrez, dançante, onde há sempre movimento. As linhas de Mondrian saltam vivas, brincalhonas, pregando peças de ilusão de ótica. Aqui há um mundo “quadrado” no qual as pessoas se conectam, na delícia que é estar online, numa época de tecnologia analógica, repito, em que o fator digital estava bem distante da realidade. Aqui há lotes de variados tamanhos, para todas as classes sociais, num mundo em que cada um vive como pode. São as relações entre classes sociais. Aqui, as cores são exceção, um privilégio para quem tem o dom de observar as cores que a vida oferece. Aqui, o comum, o trivial, é o preto e o branco, cuja junção traz o tom cinzento, num dia nublado de incerteza, onde estamos entre o Inferno negro e o Céu branco.