quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Bliguenta!




Numa lembrança muito doce de infância, havia na casa da família Bassanesi, muito amiga de minha família, um grande saco plástico cheio de gibis da Turma da Mônica. Sempre que eu dormir lá, antes de dormir líamos os gibis, e era algo inesgotável, pois os gibis possuíam uma enorme sinergia, e era tudo inesgotável, tudo combinando com tudo, como assistir a Chaves na TV – por mais que eu já tenha visto muitas vezes cada episódio, nunca me canso, e novas risadas sempre surgem. Outras doces lembranças são as piscininhas de plástico da Turma e os lençóis ilustrados nos quais eu dormia, e lembro de um dos lençóis ter ilustração que colocava a Turma no Pelourinho da Bahia.

Atravessando gerações, a Turma da Mônica permanece no imaginário brasileiro, como também o faz o universo de Monteiro Lobato. Quando eu já era crescidinho, lá com meus trinta anos de idade, eu estava num buffet a quilo ao meio-dia lendo um jornal, e quando eu estava na seção de quadrinhos, uma menininha olhou para uma tira e disse para mim: “É a Mônica!”. O criador Maurício de Souza é um visionário, e seu universo de personagens e situações é incomparável, brasileiro, com ambientações em alguma cidade do interior do Brasil, com casas simples e muita grama, com crianças com cerca de sete anos de idade, todas convivendo com suas características inconfundíveis, muitas vezes em brincadeiras simples, como tomar banho de rio. Maurício é um agente da identidade nacional brasileira, como Ziraldo com o Menino Maluquinho, que já saiu da Literatura para o Cinema. MS até tentou lançar a Turma nos EUA, com o título de Monica’s Gang, mas não deu muito certo. Certa vez, ao visitar a Feira do Livro de Porto Alegre, Maurício ficou impressionado com a grandiosidade do evento, principalmente com os títulos infantojuvenis. Atento às oportunidades de Mercado, Maurício já lançou filmes, desenhos animados, livros, brinquedos e parques de diversões, além, é claro, dos originais gibis e edições especiais, como os almanaques, numa visão expansionista. Foi até lançado o coelho de pelúcia de Mônica, o famoso Sansão. MS é empreendedor, sempre explorando possibilidades de mercado, com inúmeras empreitadas, dedicando décadas de estratégias para explorar ao máximo o potencial de mercado. Às vezes MS até coloca-se nos quadrinhos como personagem, numa espécie de Hitchcock dos quadrinhos, numa metalinguagem – criador falando de criador.

É claro que Mônica é o personagem mais forte e marcante, dando nome à Turma. Quando eu era uma criancinha no Maternal, frequentei a escolinha Santa Mônica, e, na fachada da instituição, havia pintada a imagem da personagem de Mauricio, e eu me perguntava: “Por que não existe uma escola chamada Santo Cebolinha?”. De vibrante vestidinho vermelho como Chapeuzinho Vermelho, Mônica tem temperamento explosivo e tem superforça, quase como uma super-heroína, e é faca na bota – dá uma surra em Cebolinha e Cascão quando estes a chamam de gorducha e dentuça. Um dos passatempos preferidos desses dois meninos é dar um nó nas orelhas de Sansão, o coelhinho de pelúcia azul de Mônica, a qual trata de jogar o coelho contra os insultantes, abatendo-os violentamente, ensinando que uma menina pode ser forte e independente. A personagem foi inspirada na filha homônima de Maurício, e é uma pessoa extremamente tímida e reservada, nunca gostando de aparecer em público. A Mônica dos gibis é, de fato, gorducha e dentuça, mas isso não diminui seu carisma. E tem a inocência infantil, quando, por exemplo, foi a um salão de beleza e, tendo os cabelos curtos, pediu ao cabeleireiro que deixasse seu cabelo ficar instantaneamente comprido! Mônica tem um temperamento explosivo, e jamais leva desaforo para casa. Mas Mônica é também feminina, e conquista o público feminino de crianças, apesar de não ser uma Barbie.

Cebolinha chama-se assim por ter apenas cinco fios de cabelo sobre a cabeça, lembrando uma raiz de cebolinha. Os fios pontiagudos do personagem são de um desenho agressivo, sempre desafiando Mônica e a supremacia desta. Politicamente incorreto, Cebolinha fala “elado”, ou seja, errado, sempre trocando os erres (Rs) pelos eles (Ls). Assim, se Cebolinha quer falar “a raia errou”, fala “a laia elou”, só que Maurício sempre escreve os erros em negrito, para dizer à criança que aquilo não é o modo certo de se falar. Cebolinha tem um cachorrinho curiosamente enigmático, o Floquinho. Enigmático porque o leitor nunca fica sabendo onde é a cabeça e onde é o rabo do bicho, um dilema amplamente explorado por Maurício. Cebolinha e Cascão estão sempre bolando planos contra Mônica, e sempre acabam mal, apanhando da dentucinha. Cebolinha é a cara do pai, que também tem poucos cabelos, dando à criança a noção de herança genética, e de como muito pode ser transmitido geneticamente. Os “espetos” de Cebolinha são a competitividade agressiva de Maurício, que sabe que o mercado de gibis infantis é concorrido.

Cascão não é um personagem extremamente original, pois há, no desenho norte-americano de Snoopy e Charlie Brown, um menino bem sujinho que deixa poeira por onde passa. Mas vamos perdoar Maurício e dar-lhe uma licença de inspiração. Apesar de carismático, Cascão mostra às crianças que é necessário tomar banho e ser limpo. Cascão, é claro, tem hidrofobia, e fica apavorado quando ameaça chover. O desleixo de Cascão nos traz uma despreocupação de Maurício, que tem uma saudável preguiça, atendo-se só ao essencial.

A glutona Magali nunca está satisfeita, e nada mais natural do que o seu gato de estimação ter nome de comida – Mingau. Magali tem uma fome insaciável, igual à fome de seu criador, que está sempre explorando possibilidades. Maurício projetou algo de si em Magali, pois tudo o que o criador faz, vem do mesmo criador.

A Turma do Penadinho é de uma candura incrível, e, apesar de ter personagens como assombrações – fantasma, vampiro, lobisomem – e das tramas se passarem em um cemitério, está a quilômetros de assustar as crianças. Penadinho é o lado negro de Maurício, um lado sombrio, mas doce ainda assim. Maurício tem o dom de se comunicar bem com as crianças, como uma Xuxa Meneghel, já analisada neste mesmo blog.

O personagem brasileiríssimo Chico Bento, muito mais brasileiro do que Zé Carioca da Disney, é um caipira da gema, provavelmente vivendo em Minas Gerais. Sua namorada é a doce Rosinha, e o Chico adora subir em goiabeiras e catar o fruto para consumo próprio, ensinando as crianças a ter uma alimentação saudável. As brincadeiras mais simples são as melhores, e Chico convida as crianças a brincadeiras simples como subir em uma árvore. É a pacata vida do Interior. Chico é um Maurício saudoso, com doces lembranças de uma infância simples, como o célebre trenó Rosebud, do clássico filme Cidadão Kane – um homem que, apesar de ter tido tantas glórias e dinheiro, gostava mesmo era de seus tempos de infância, quando a vida era mais simples, como brincar na neve. Há algo maravilhoso nas crianças, que é a inocência frente às picuinhas do mundo dos adultos. Por exemplo: três meninos brincando nos anos 80. Um diz querer ser Super-Homem; o segundo, Homem-Aranha; o terceiro, He-Man. Os meninos absolutamente ignoram o fato de Super-Homem ser da DC Comics, de Homem-Aranha ser da Marvel e de He-Man ser da Mattel, companhias que concorrem entre si pelo mercado. Tudo o que os meninos querem é brincar de super-heróis. O próprio Espiritismo diz que os adultos devem olhar para as crianças e aprender com estas. Jesus disse: “Vinde a mim as criancinhas, pois é delas o Reino dos Céus”. Pureza.

Falando em Céu, o personagem Anjinho é, de fato, um anjo com cabelos loiros encaracolados e olhos azuis, e dorme numa nuvenzinha. Anjinho é o Maurício sonhador, sempre em uma nuvem de idealizações e projetos, sonhos de uma vida inteira. Podemos ter a certeza de que, neste exato momento, Maurício está matutando algo, inventando, projetando, fazendo com que seus personagens sejam seus próprios melhores amigos, e amigos das crianças, é claro – toda criança que fazer parte da Turma da Mônica, com personagens que saltam do papel para a mente da criança, tornando uma delícia a tarefa de ler, preparando o terreno para que as crianças tornem-se adultos apaixonados por ficção e livros.

Jotalhão é um elefante verde que, além dos quadrinhos, é o “garoto-propaganda” da marca Elefante de molhos de tomate, mais um indício do talento de Marketing de Maurício. Jotalhão é o peso do talento de Maurício, esmagador. E há os personagens adultos, como Tina e Rolo. Tina é uma linda mulher de cabelo escorrido, e Rolo assim chama-se por ter barba e cabelos abundantes e encaracolados, da cor azul. Tem ainda um personagem de cujo nome não lembro, mas é um personagem divertidamente louco, que subverte as leis da lógica, mostrando um lado “caótico” de Maurício, numa bagunça muito positiva, despojada, numa criatividade pulsante.

Mônica também já ilustrou uma marca de maçãs, incutindo as crianças a uma alimentação saudável, ao vermos também Magali gostar muito de frutas. Sem falar que diariamente nos jornais há as tirinhas cômicas da Turma, muitas vezes reforçando as características de cada personagem. Maurício também já lançou gibis para o público que já não é mais criança, mostrando os personagens já adolescentes.

Se o Brasil fosse um país rico, certamente haveria um equivalente brasileiro da Disneylândia, promovendo o universo de personagens de Maurício, um gênio que vai deixar no mundo um legado inestimável, brasileiro. Nada mais natural do que a Turma da Mônica não ter caído no gosto ianque.

É claro que Maurício sabe que a reinvenção é necessária, e é preciso explorar, a cada minuto, novas situações e enredos, como, por exemplo, colocar os computadores e a Internet nos quadrinhos da Turma. Os gibis em geral convidam a criança ao gostoso hábito de ler, fazendo esta identificar-se com os personagens, projetando partes de si no universo de Maurício, um cartunista de mão cheíssima que, muito provavelmente, conta com toda uma equipe de redatores e desenhistas, tendo que tudo passar pelo crivo de Maurício. Mônica e seus amiguinhos são um ato de saúde mental infantil, enriquecendo a cultura de massa brasileira e fazendo com que a Turma seja um espelho no qual a criança olha a si mesma. Do mesmo modo que o universo de Disney sobreviveu à morte de seu pai Walt, a Turma da Mônica permanecerá no caldeirão brasileiro no qual nasceu. Quem sabe, um dia, nasça um suntuoso parque temático, cheio de brinquedos e lojas vendendo artigos da Turma. Sonhar não custa. Na realidade brasileira, Maurício faz o que pode, revelando-se um sonhador com os pés no chão.

Resta sabermos como foi a infância de Maurício, e dos porquês dele ter feito tudo o que fez em relação à Turma da Mônica. Deve ter sido uma infância feliz, ao ponto de Maurício sempre conservar em si um lado criança, como o gênio Leonardo da Vinci, que, mesmo envelhecido, nunca perdeu a jovialidade e a irreverência. Maurício é um homem que nunca quer deixar de ser criança, amando as crianças e sendo amado por estas. E adultos como eu nunca querem deixar de ter um lado criança.

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