Na minha faculdade, a querida professora Lisiane solicitou
um trabalho sobre Piet Mondrian, da escola De Styl, um grande movimento
estético. Naquela época, eu não fazia ideia de quem era o artista. Aliei-me com
um colega, também artista – músico –, e fizemos um ótimo trabalho, buscando
compreender as linhas e traços de Mondrian, e soubemos navegar como dupla,
entendendo um ao outro. Foi com esse trabalho que me lembrei de uma linha de
cosméticos para cabelo Studio Line, nos anos 80, se não me engano da marca
Lorèal de Paris, e o slogan era: Studio
Line esculpe seus cabelos à sua moda. Na campanha publicitária, a alusão a
Mondrian era explícita, mostrando um artista inspirado, transgressor, com
trabalhos que permanecem atuais em plena Era
Digital, sendo Piet de uma época em que o Século XX ainda respirava
resquícios do XIX. Mondrian esnobou o Art Déco, tendência da época, sendo esta uma
moda, uma vogue, uma onda. Certa vez vi um documentário do qual não me esqueci:
Mondrian pegou uma prostituta e a levou a seu atelier, para que a moça fizesse
o trabalho dela, e quando a prostituta entrou no estúdio e viu todos aqueles
quadros com linhas retas, tão desprovidos de sensualidade e insinuação, a
garota de programa disse a Mondrian: Não
podemos transar aqui dentro. As análises semióticas as seguir são
inteiramente minhas.
Acima, Broadway
Boogie Woogie, de 1942. O ritmo frenético de uma grande metrópole. Não há
curvas, mas esquinas pontiagudas. Lembra muito o videogame Pac Man, dos anos
80, em que um boneco comilão tinha que comer o máximo de lanches possível,
sempre fugindo de fantasmas letais. É um sistema lógico, racional, como um
organismo, só que nunca orgânico. São como tripas digerindo lentamente a
comida, processando, transformando, no sentido de que, segundo a Dialética,
tudo é processo, ou seja, há infinitude, como Espiritismo diz que Deus é o
infinito. É o trânsito frenético de carros apressados, cuidando de problemas,
em inevitáveis engarrafamentos truncados, difíceis, no modo como a prostituta
não se sentia relaxada – linhas tensas são as de Mondrian. O pacífico fundo
branco traz leveza, limpeza e tranquilidade, frente à pressa cotidiana. O
branco está alheio ao resto, como num universo branco sem fim. É como a
bandeira da rendição, clamando por quietude, por sossego, visto que Mondrian
passou pelo período da II Guerra Mundial e os horrores desta. A Arte quer paz.
O fundo branco é a luz de dias melhores, sem tanta violência, tanta estupidez,
tanto sofrimento. É a resposta de Piet a tanto belicismo, tanta desarmonia. O
branco traz luz, iluminando o faminto Pac Man, como um Mondrian faminto e
insaciável, com a ambição de ser um grande artista, de ser célebre, de ser
original. É como um vitral de igreja, colorido, lindo, iluminador, trazendo
clareza a fatos obscuros, como o negror da Guerra. A cor preta do luto bélico é
absolutamente esquecida aqui, ignorada, desprezada. Aqui, quer-se luz, bondade
e paz, muita paz. Esses carros trafegando por essas ruas o fazem pacificamente,
sem chances para acidentes automobilísticos, numa cidade perfeita, sem crime,
com cores e alegria. O amarelo traz o ouro, a riqueza, a prosperidade de ruas
limpas e amplas, abrigando o progresso, clamando por concórdia em um mundo onde
há tanta discórdia. Mondrian é absolutamente assimétrico, sempre, rejeitando a
“chatice” clássica da simetria, do culto à perfeição óbvia. Mondrian traz
equilíbrio inusitado, complexo. Há pequenos quadrados e grandes quadrados, sem
ser uma cidade perfeitamente quadriculada, com quadras absolutamente iguais em
tamanho e, disposição monótona. As pitadas de azul e vermelho trazem a alegria
cromática, frente à morte nos campos de concentração, aos horrores nazistas. Os
espaços em branco são sensuais lacunas, dúvidas enigmáticas, sustentando o
quadro e, ainda assim, desaparecendo, fazendo das cores restantes as estrelas
dessa obra. Aqui, temos diversidade: retângulos de várias dimensões e quadrados
variados, num ritmo divertido, quase infantil. Vemos um Mondrian cândido,
inocente em sua atitude em trazer algo novo, fora dos padrões clássicos
acadêmicos, fora da enfadonha previsibilidade. É como uma cerca, a qual, além
da função protetora, é uma obra de arte, em um artista protegendo-se em meio à
busca por dignidade artística. Essa “grade” traz delimitação, num Piet
conquistando seu próprio espaço no mundo, na vida. A grade traz um aviso: não
ultrapasse; respeite, pois você não está em casa. Essas formas
todas nesta Broadway parecem dançar como em um musical, mexendo-se, vibrando
frente a uma plateia ansiosa por Arte, por momentos sublimes de catarse e
renovação, saindo do teatro de alma lavada, como num bom filme libertador,
fruto de um artista de talento, muito talento. E por que “Broadway”? É o lugar
pulsante onde artistas buscam por sucesso e realização, com muitas peças
acontecendo ao mesmo tempo, numa Nova York “louca”, imprevisível, fascinante
como lar da Arte. Certamente aqui há uma genial ilusão de ótica, e os pequenos
quadrados parecem de fato, estar em movimento, em trânsito. Nada aqui
é para sempre, e tudo está em processo infindável de transformação, de
aprimoramento, em artistas da Broadway que buscam incessantemente a
autossuperação. Esta obra, como tudo em Mondrian, não tem um lado certo para
ser exposta, num mundo sem pontos cardeais, no qual nunca há verdades duras e
impenetráveis. Mondrian é um sonhador, num pensamento brilhante que nunca é
escravo de preconceitos. Esses quadrados são adoráveis, como confetes
quadriculados, numa alegria que, apesar de carnavalesca, é também ordeira,
juntando Razão e Loucura em um só prato delicioso. Aqui, respira-se aliviado, e
a Arte trata de curar o artista (e o espectador). Os quadradinhos azuis trazem
o Céu de Brigadeiro, perfeito, sem nuvens de dúvida. Mondrian sabe que está no
caminho certo, simples. O Boogie Woogie
no título rendeu nos anos 70 um grande hit da Era Disco, e neste quadro temos
dança, muito movimento, algo contagiante, carnavalesco. Mondrian é divertido.
Aqui, temos luzes de boate, histéricas, errantes, glamorosas. São hieróglifos
dançantes, sempre enigmáticos, mas claros em sua função de divertir. É um
intestino processando o alimento. Um sistema lógico de processamento de dados.
É um esquema em uma mente brilhante.
Acima, Cidade de Nova
York I, de 1942. As linhas dançam aqui, nunca estáveis, como numa paradisíaca
brisa amena, numa brandura de cidade espiritual, metafísica, longe das
vicissitudes da Nova York material, física. É como um kilt escocês, com linhas
em orgias paralelas e perpendiculares, beijando-se, encontrando-se,
relacionando-se, tocando umas nas outras, encontrando-se pela cidade, nas
múltiplas opções desta. Assim como em Broadway Boogie Woogie, o fundo branco sustenta a
obra, desaparecendo, sendo subestimado pelas linhas coloridas. Mondrian ama se
movimentar entre branco, preto, amarelo, vermelho e azul, com cores sempre
definidas, primárias, fáceis, sem nuances cromáticas. É uma candura quase
infantil, mas muito adulta, sofisticada. São as grades de uma prisão, de uma
encarnação, e por entre as barras vemos um futuro claro, branco, limpo e puro,
numa realidade metafísica que espera por quem desencarna. Mas, apesar de serem
grades de uma prisão, essas barras trazem um certo contentamento, um consolo,
uma promessa de que as encarnações, um dia, acabam, cedo ou tarde. Essas grades
parecem dançar divertidamente, mas nuca perdendo a função de aprisionamento,
num artista que sabe que a pessoa tem que fazer algo da existência que lhe é
colocada nas mãos, e ocupar o tempo que se tem aqui, na prisão. As linhas
entrelaçam-se, numa perfeita malha, agasalhando, protegendo. É um tear. Os fios
aliam-se e, juntos, formam algo novo. As barras protegem da neve fria lá fora,
trazendo acalento, como uma lareira no inverno. A metade inferior do quadro é
mais aberta, com mais brechas, mais liberdade e visibilidade. Em outras áreas,
o gradeamento é mais intenso, mais implacável, menos permissivo. As linhas vermelhas,
como na Linha Vermelha do Rio de Janeiro, são as vias que nutrem o organismo da
cidade, transportando sangue e oxigênio ao organismo carioca, sendo aqui veias
retilíneas, muito longe da tortuosa constituição venosa orgânica. Mondrian não
que linhas tortas; quer objetividade; que ir direto ao ponto, da forma mais
prática. Mondrian tenta trazer a liquidiscência em uma versão tensa, quadricular,
retangular. Não há espaço para água aqui, nem para formas vaporosas
insinuantes. É como um ordeiro teclado de computador, com teclas ao alcance do
toque. As brechas brancas respiram, como num tecido que alivia a transpiração,
deixando o vapor do suor passar e evaporar. Trânsito, vida, mas sem curvas,
numa “racionalização do irracional”. As vias desta grande cidade vibram na
cidade que nunca dorme, sem dormência nem relaxamento. E as linhas estão umas
na frente das outras como nas linhas de metrô, que, embaixo da terra,
entrelaçam-se com as vias a céu aberto, com muitas paradas e conexões, num
corpo que não pára. Aqui, a latitude e longitude beijam-se, em coordenadas
racionais, localizadoras, classificatórias. São cordas que buscam conter,
amarrar um pacote indomável, revoltoso. Essas linhas buscam conter o
irracional, o animalesco, trazendo brios e racionalidade, controle. É um grande
presente de Natal, embrulhadíssimo, protegido, a salvo. Linhas ansiosas na
tarefa de localizar e classificar, dinâmicas, ágeis.
Acima, Composição com
Vermelho, Amarelo e Azul, de 1930. Temos elegância em Mondrian. O preto e o
branco são a parte sisuda, simples, como um pai e uma mãe impondo ordem em um
lar bagunçado por crianças levadas. Só que as linhas negras não são todas da
mesma espessura, trazendo desigualdade social, ou a desigualdade entre gêneros,
do modo como o Mercado de Trabalho paga melhor um homem do que uma mulher em um
mesmo trabalho. Há algo de minimalismo japonês, numa casa dividida por cômodos
assimétricos, pois, repito, Mondrian odeia simetria. O artista acha mais
interessantes desafios gráficos. Aqui, temos o predomínio do vermelho, dos
laços de sangue, de um sensual batom feminino, num apelo como uma mulher de
vermelho, portadora de uma beleza eterna, da juventude imortal, cercada por uma
exuberante hera, viva. O amarelo está modesto e recolhido, como um Sol se
pondo, morrendo lenta e melancolicamente, prometendo voltar no dia seguinte.
Aqui, o Sol nasce quadrado, como numa prisão, numa encarnação, num artista
tentando entender por que o mundo é como é, tão duro. Já, o azul aparece mais,
como numa vista por uma janela em um dia aberto, bonito e limpo. Quer-se aqui
ver um céu aberto, saudável, inspirador, do modo que, às vezes, tudo o que a
pessoa tem que fazer para ser feliz é simplesmente respirar o ar de um dia
puro. É impressionante como Mondrian permanece atual, imortal. Suas linhas
elegantes não envelhecem, sempre horizontais e verticais, prevendo o advento da
Era Digital. Mondrian segue inspirando artistas, publicitários e designers
gráficos. Volta e meia deparo-me com alguma peça gráfica que faz menção direta
ou indireta a Mondrian. No meu trabalho de faculdade eu disse que as
disposições gráficas de Mondrian são como Histórias em Quadrinhos, numa disposição
dinâmica e assimétrica de cada quadrinho, trazendo movimento e diversão,
evitando o tedioso ranço. As HQs brotam no Século XX, e a vanguarda de Mondrian
adquire a cara de sua época, passando por duas grandes guerras e renascendo
após. Os retângulos brancos são as necessárias lacunas de respiro, entrando
nessa dança truncada, com quinas, com arestas nunca aparadas. As tarjas pretas
de luto trazem o mistério, a sobriedade, tornando-se impeditivas,
transformando-se em obstáculos, como nas horrendas formas da suástica nazista,
num Mondrian que testemunhou o momento bélico mundial. Mondrian faz da Arte um
protesto, um manifesto contra a caretice, revelando-se jovial e irreverente,
características fundamentais num artista. As ditaduras significam prisões para
a mente artística, fazendo-nos imaginar como foi difícil a vida artística
brasileira durante a Ditadura Militar. Essas vias negras, do mesmo modo que
chegam, vão embora, e o Sol renasce após o negror. Mondrian ultrapassa eras e
traz a esperança de que a Arte deve salvar o mundo. No título desta postagem, a
impetuosidade aludida é como Mondrian age sem pena das convenções
aprisionadoras, num ímpeto de ganhar o Mundo. E até hoje Mondrian alfineta
deliciosamente nossas mentes.
Acima, Composição com
Vermelho, Amarelo e Azul, de 1935. Estruturas de um ambicioso prédio sendo
construído, numa Nova York desvairada, que se desenvolve vertiginosamente.
Estruturas que moldam a construção, do mesmo modo como o artista vai projetando
e moldando uma obra, seja obra de construção civil, seja obra artística, numa
metalinguagem: construção falando de construção, labor falando de labor. A
demanda de construção agita o Mercado, e tem uma demanda tremenda por cimento e
outros materiais, aquecendo o Mercado e a Economia, desenvolvendo uma nação. As
estruturas negras contrastam com o céu aberto, dando asas à imaginação. É como
um teclado louco de computador, numa época em que o chuá da tecnologia eram as
máquinas de datilografar. O visionário Mondrian antecipa uma era, no boom da
tecnologia, no uso da fria razão das máquinas, como na guerra entre humanos e
máquinas na trilogia Matrix, numa
trama em que a inteligência artificial foge do controle humano. E aqui temos
uma perfeita trama têxtil, num maquinário pujante que fabrica roupas sem parar,
atendendo à demanda do povo americano, o povo consumidor. As cores aqui
aparecem de forma coadjuvante, deixando o protagonismo para o preto e branco. É
como um quebracabeça. É um papel rasgado que foi remontado, pedaço por pedaço,
pacientemente, pois, uma grande artista que conheci, disse-me que o segredo é
ter paciência para se produzir Arte. E temos um Mondrian paciente, construindo
aos poucos, sempre atento à limpeza das formas e à simplicidade gráfica,
acreditando que menos é mais. Mondrian adquiriu uma identidade inconfundível,
original. Temos aqui uma forte compartimentação, uma divisão entre partes,
entre cômodos, entre células, com muita organização, num armário onde cada
coisa tem seu lugar, num artista no total controle de sua própria obra. Aqui é
difícil limpar com um pano, pois as esquinas são numerosas, sem curvas que
facilitariam o trabalho de limpeza. Mondrian é um construtor de vitrais de
igreja, convidando a luz para entrar durante o dia e sair durante a noite, num
gosto por cores, e dificilmente fazendo obras só em preto e branco. Recordo-me
em meu trabalho da faculdade, quando retirei na Biblioteca um livro sobre Piet,
e havia uma obra com o mesmo estilo de linhas aqui, em preto e branco, e só
havia um discreto toque de cor, com um pequeno quadrado azul, impedindo a
ausência cromática. A cor é o otimismo frente aos horrores das guerras, como
numa Carmen Miranda, que alegrava o mundo em exuberantes musicais, num momento
em que este mesmo mundo sofria com a II Guerra. O ser humano precisa de
esperança, para nunca perder totalmente a candura infantil. E Mondrian consegue
este trabalho de equilíbrio entre adulto e infantil. Temos aqui uma rede, numa
época em que a Internet sequer era Ficção Científica. Mondrian antecipa um
mundo conectado, tenso, no qual todos estão, de alguma forma, incluídos. E Mondrian
encontra um modo de se conectar com o mundo. É um irregular tabuleiro de xadrez,
dançante, onde há sempre movimento. As linhas de Mondrian saltam vivas,
brincalhonas, pregando peças de ilusão de ótica. Aqui há um mundo “quadrado” no
qual as pessoas se conectam, na delícia que é estar online, numa época de
tecnologia analógica, repito, em que o fator digital estava bem distante da
realidade. Aqui há lotes de variados tamanhos, para todas as classes sociais,
num mundo em que cada um vive como pode. São as relações entre classes sociais.
Aqui, as cores são exceção, um privilégio para quem tem o dom de observar as
cores que a vida oferece. Aqui, o comum, o trivial, é o preto e o branco, cuja
junção traz o tom cinzento, num dia nublado de incerteza, onde estamos entre o
Inferno negro e o Céu branco.
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