quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Impiedoso Piet




Na minha faculdade, a querida professora Lisiane solicitou um trabalho sobre Piet Mondrian, da escola De Styl, um grande movimento estético. Naquela época, eu não fazia ideia de quem era o artista. Aliei-me com um colega, também artista – músico –, e fizemos um ótimo trabalho, buscando compreender as linhas e traços de Mondrian, e soubemos navegar como dupla, entendendo um ao outro. Foi com esse trabalho que me lembrei de uma linha de cosméticos para cabelo Studio Line, nos anos 80, se não me engano da marca Lorèal de Paris, e o slogan era: Studio Line esculpe seus cabelos à sua moda. Na campanha publicitária, a alusão a Mondrian era explícita, mostrando um artista inspirado, transgressor, com trabalhos que permanecem atuais em plena Era Digital, sendo Piet de uma época em que o Século XX ainda respirava resquícios do XIX. Mondrian esnobou o Art Déco, tendência da época, sendo esta uma moda, uma vogue, uma onda. Certa vez vi um documentário do qual não me esqueci: Mondrian pegou uma prostituta e a levou a seu atelier, para que a moça fizesse o trabalho dela, e quando a prostituta entrou no estúdio e viu todos aqueles quadros com linhas retas, tão desprovidos de sensualidade e insinuação, a garota de programa disse a Mondrian: Não podemos transar aqui dentro. As análises semióticas as seguir são inteiramente minhas.

Acima, Broadway Boogie Woogie, de 1942. O ritmo frenético de uma grande metrópole. Não há curvas, mas esquinas pontiagudas. Lembra muito o videogame Pac Man, dos anos 80, em que um boneco comilão tinha que comer o máximo de lanches possível, sempre fugindo de fantasmas letais. É um sistema lógico, racional, como um organismo, só que nunca orgânico. São como tripas digerindo lentamente a comida, processando, transformando, no sentido de que, segundo a Dialética, tudo é processo, ou seja, há infinitude, como Espiritismo diz que Deus é o infinito. É o trânsito frenético de carros apressados, cuidando de problemas, em inevitáveis engarrafamentos truncados, difíceis, no modo como a prostituta não se sentia relaxada – linhas tensas são as de Mondrian. O pacífico fundo branco traz leveza, limpeza e tranquilidade, frente à pressa cotidiana. O branco está alheio ao resto, como num universo branco sem fim. É como a bandeira da rendição, clamando por quietude, por sossego, visto que Mondrian passou pelo período da II Guerra Mundial e os horrores desta. A Arte quer paz. O fundo branco é a luz de dias melhores, sem tanta violência, tanta estupidez, tanto sofrimento. É a resposta de Piet a tanto belicismo, tanta desarmonia. O branco traz luz, iluminando o faminto Pac Man, como um Mondrian faminto e insaciável, com a ambição de ser um grande artista, de ser célebre, de ser original. É como um vitral de igreja, colorido, lindo, iluminador, trazendo clareza a fatos obscuros, como o negror da Guerra. A cor preta do luto bélico é absolutamente esquecida aqui, ignorada, desprezada. Aqui, quer-se luz, bondade e paz, muita paz. Esses carros trafegando por essas ruas o fazem pacificamente, sem chances para acidentes automobilísticos, numa cidade perfeita, sem crime, com cores e alegria. O amarelo traz o ouro, a riqueza, a prosperidade de ruas limpas e amplas, abrigando o progresso, clamando por concórdia em um mundo onde há tanta discórdia. Mondrian é absolutamente assimétrico, sempre, rejeitando a “chatice” clássica da simetria, do culto à perfeição óbvia. Mondrian traz equilíbrio inusitado, complexo. Há pequenos quadrados e grandes quadrados, sem ser uma cidade perfeitamente quadriculada, com quadras absolutamente iguais em tamanho e, disposição monótona. As pitadas de azul e vermelho trazem a alegria cromática, frente à morte nos campos de concentração, aos horrores nazistas. Os espaços em branco são sensuais lacunas, dúvidas enigmáticas, sustentando o quadro e, ainda assim, desaparecendo, fazendo das cores restantes as estrelas dessa obra. Aqui, temos diversidade: retângulos de várias dimensões e quadrados variados, num ritmo divertido, quase infantil. Vemos um Mondrian cândido, inocente em sua atitude em trazer algo novo, fora dos padrões clássicos acadêmicos, fora da enfadonha previsibilidade. É como uma cerca, a qual, além da função protetora, é uma obra de arte, em um artista protegendo-se em meio à busca por dignidade artística. Essa “grade” traz delimitação, num Piet conquistando seu próprio espaço no mundo, na vida. A grade traz um aviso: não ultrapasse; respeite, pois você não está em casa. Essas formas todas nesta Broadway parecem dançar como em um musical, mexendo-se, vibrando frente a uma plateia ansiosa por Arte, por momentos sublimes de catarse e renovação, saindo do teatro de alma lavada, como num bom filme libertador, fruto de um artista de talento, muito talento. E por que “Broadway”? É o lugar pulsante onde artistas buscam por sucesso e realização, com muitas peças acontecendo ao mesmo tempo, numa Nova York “louca”, imprevisível, fascinante como lar da Arte. Certamente aqui há uma genial ilusão de ótica, e os pequenos quadrados parecem de fato, estar em movimento, em trânsito. Nada aqui é para sempre, e tudo está em processo infindável de transformação, de aprimoramento, em artistas da Broadway que buscam incessantemente a autossuperação. Esta obra, como tudo em Mondrian, não tem um lado certo para ser exposta, num mundo sem pontos cardeais, no qual nunca há verdades duras e impenetráveis. Mondrian é um sonhador, num pensamento brilhante que nunca é escravo de preconceitos. Esses quadrados são adoráveis, como confetes quadriculados, numa alegria que, apesar de carnavalesca, é também ordeira, juntando Razão e Loucura em um só prato delicioso. Aqui, respira-se aliviado, e a Arte trata de curar o artista (e o espectador). Os quadradinhos azuis trazem o Céu de Brigadeiro, perfeito, sem nuvens de dúvida. Mondrian sabe que está no caminho certo, simples. O Boogie Woogie no título rendeu nos anos 70 um grande hit da Era Disco, e neste quadro temos dança, muito movimento, algo contagiante, carnavalesco. Mondrian é divertido. Aqui, temos luzes de boate, histéricas, errantes, glamorosas. São hieróglifos dançantes, sempre enigmáticos, mas claros em sua função de divertir. É um intestino processando o alimento. Um sistema lógico de processamento de dados. É um esquema em uma mente brilhante.

Acima, Cidade de Nova York I, de 1942. As linhas dançam aqui, nunca estáveis, como numa paradisíaca brisa amena, numa brandura de cidade espiritual, metafísica, longe das vicissitudes da Nova York material, física. É como um kilt escocês, com linhas em orgias paralelas e perpendiculares, beijando-se, encontrando-se, relacionando-se, tocando umas nas outras, encontrando-se pela cidade, nas múltiplas opções desta. Assim como em Broadway Boogie Woogie, o fundo branco sustenta a obra, desaparecendo, sendo subestimado pelas linhas coloridas. Mondrian ama se movimentar entre branco, preto, amarelo, vermelho e azul, com cores sempre definidas, primárias, fáceis, sem nuances cromáticas. É uma candura quase infantil, mas muito adulta, sofisticada. São as grades de uma prisão, de uma encarnação, e por entre as barras vemos um futuro claro, branco, limpo e puro, numa realidade metafísica que espera por quem desencarna. Mas, apesar de serem grades de uma prisão, essas barras trazem um certo contentamento, um consolo, uma promessa de que as encarnações, um dia, acabam, cedo ou tarde. Essas grades parecem dançar divertidamente, mas nuca perdendo a função de aprisionamento, num artista que sabe que a pessoa tem que fazer algo da existência que lhe é colocada nas mãos, e ocupar o tempo que se tem aqui, na prisão. As linhas entrelaçam-se, numa perfeita malha, agasalhando, protegendo. É um tear. Os fios aliam-se e, juntos, formam algo novo. As barras protegem da neve fria lá fora, trazendo acalento, como uma lareira no inverno. A metade inferior do quadro é mais aberta, com mais brechas, mais liberdade e visibilidade. Em outras áreas, o gradeamento é mais intenso, mais implacável, menos permissivo. As linhas vermelhas, como na Linha Vermelha do Rio de Janeiro, são as vias que nutrem o organismo da cidade, transportando sangue e oxigênio ao organismo carioca, sendo aqui veias retilíneas, muito longe da tortuosa constituição venosa orgânica. Mondrian não que linhas tortas; quer objetividade; que ir direto ao ponto, da forma mais prática. Mondrian tenta trazer a liquidiscência em uma versão tensa, quadricular, retangular. Não há espaço para água aqui, nem para formas vaporosas insinuantes. É como um ordeiro teclado de computador, com teclas ao alcance do toque. As brechas brancas respiram, como num tecido que alivia a transpiração, deixando o vapor do suor passar e evaporar. Trânsito, vida, mas sem curvas, numa “racionalização do irracional”. As vias desta grande cidade vibram na cidade que nunca dorme, sem dormência nem relaxamento. E as linhas estão umas na frente das outras como nas linhas de metrô, que, embaixo da terra, entrelaçam-se com as vias a céu aberto, com muitas paradas e conexões, num corpo que não pára. Aqui, a latitude e longitude beijam-se, em coordenadas racionais, localizadoras, classificatórias. São cordas que buscam conter, amarrar um pacote indomável, revoltoso. Essas linhas buscam conter o irracional, o animalesco, trazendo brios e racionalidade, controle. É um grande presente de Natal, embrulhadíssimo, protegido, a salvo. Linhas ansiosas na tarefa de localizar e classificar, dinâmicas, ágeis.

Acima, Composição com Vermelho, Amarelo e Azul, de 1930. Temos elegância em Mondrian. O preto e o branco são a parte sisuda, simples, como um pai e uma mãe impondo ordem em um lar bagunçado por crianças levadas. Só que as linhas negras não são todas da mesma espessura, trazendo desigualdade social, ou a desigualdade entre gêneros, do modo como o Mercado de Trabalho paga melhor um homem do que uma mulher em um mesmo trabalho. Há algo de minimalismo japonês, numa casa dividida por cômodos assimétricos, pois, repito, Mondrian odeia simetria. O artista acha mais interessantes desafios gráficos. Aqui, temos o predomínio do vermelho, dos laços de sangue, de um sensual batom feminino, num apelo como uma mulher de vermelho, portadora de uma beleza eterna, da juventude imortal, cercada por uma exuberante hera, viva. O amarelo está modesto e recolhido, como um Sol se pondo, morrendo lenta e melancolicamente, prometendo voltar no dia seguinte. Aqui, o Sol nasce quadrado, como numa prisão, numa encarnação, num artista tentando entender por que o mundo é como é, tão duro. Já, o azul aparece mais, como numa vista por uma janela em um dia aberto, bonito e limpo. Quer-se aqui ver um céu aberto, saudável, inspirador, do modo que, às vezes, tudo o que a pessoa tem que fazer para ser feliz é simplesmente respirar o ar de um dia puro. É impressionante como Mondrian permanece atual, imortal. Suas linhas elegantes não envelhecem, sempre horizontais e verticais, prevendo o advento da Era Digital. Mondrian segue inspirando artistas, publicitários e designers gráficos. Volta e meia deparo-me com alguma peça gráfica que faz menção direta ou indireta a Mondrian. No meu trabalho de faculdade eu disse que as disposições gráficas de Mondrian são como Histórias em Quadrinhos, numa disposição dinâmica e assimétrica de cada quadrinho, trazendo movimento e diversão, evitando o tedioso ranço. As HQs brotam no Século XX, e a vanguarda de Mondrian adquire a cara de sua época, passando por duas grandes guerras e renascendo após. Os retângulos brancos são as necessárias lacunas de respiro, entrando nessa dança truncada, com quinas, com arestas nunca aparadas. As tarjas pretas de luto trazem o mistério, a sobriedade, tornando-se impeditivas, transformando-se em obstáculos, como nas horrendas formas da suástica nazista, num Mondrian que testemunhou o momento bélico mundial. Mondrian faz da Arte um protesto, um manifesto contra a caretice, revelando-se jovial e irreverente, características fundamentais num artista. As ditaduras significam prisões para a mente artística, fazendo-nos imaginar como foi difícil a vida artística brasileira durante a Ditadura Militar. Essas vias negras, do mesmo modo que chegam, vão embora, e o Sol renasce após o negror. Mondrian ultrapassa eras e traz a esperança de que a Arte deve salvar o mundo. No título desta postagem, a impetuosidade aludida é como Mondrian age sem pena das convenções aprisionadoras, num ímpeto de ganhar o Mundo. E até hoje Mondrian alfineta deliciosamente nossas mentes.

Acima, Composição com Vermelho, Amarelo e Azul, de 1935. Estruturas de um ambicioso prédio sendo construído, numa Nova York desvairada, que se desenvolve vertiginosamente. Estruturas que moldam a construção, do mesmo modo como o artista vai projetando e moldando uma obra, seja obra de construção civil, seja obra artística, numa metalinguagem: construção falando de construção, labor falando de labor. A demanda de construção agita o Mercado, e tem uma demanda tremenda por cimento e outros materiais, aquecendo o Mercado e a Economia, desenvolvendo uma nação. As estruturas negras contrastam com o céu aberto, dando asas à imaginação. É como um teclado louco de computador, numa época em que o chuá da tecnologia eram as máquinas de datilografar. O visionário Mondrian antecipa uma era, no boom da tecnologia, no uso da fria razão das máquinas, como na guerra entre humanos e máquinas na trilogia Matrix, numa trama em que a inteligência artificial foge do controle humano. E aqui temos uma perfeita trama têxtil, num maquinário pujante que fabrica roupas sem parar, atendendo à demanda do povo americano, o povo consumidor. As cores aqui aparecem de forma coadjuvante, deixando o protagonismo para o preto e branco. É como um quebracabeça. É um papel rasgado que foi remontado, pedaço por pedaço, pacientemente, pois, uma grande artista que conheci, disse-me que o segredo é ter paciência para se produzir Arte. E temos um Mondrian paciente, construindo aos poucos, sempre atento à limpeza das formas e à simplicidade gráfica, acreditando que menos é mais. Mondrian adquiriu uma identidade inconfundível, original. Temos aqui uma forte compartimentação, uma divisão entre partes, entre cômodos, entre células, com muita organização, num armário onde cada coisa tem seu lugar, num artista no total controle de sua própria obra. Aqui é difícil limpar com um pano, pois as esquinas são numerosas, sem curvas que facilitariam o trabalho de limpeza. Mondrian é um construtor de vitrais de igreja, convidando a luz para entrar durante o dia e sair durante a noite, num gosto por cores, e dificilmente fazendo obras só em preto e branco. Recordo-me em meu trabalho da faculdade, quando retirei na Biblioteca um livro sobre Piet, e havia uma obra com o mesmo estilo de linhas aqui, em preto e branco, e só havia um discreto toque de cor, com um pequeno quadrado azul, impedindo a ausência cromática. A cor é o otimismo frente aos horrores das guerras, como numa Carmen Miranda, que alegrava o mundo em exuberantes musicais, num momento em que este mesmo mundo sofria com a II Guerra. O ser humano precisa de esperança, para nunca perder totalmente a candura infantil. E Mondrian consegue este trabalho de equilíbrio entre adulto e infantil. Temos aqui uma rede, numa época em que a Internet sequer era Ficção Científica. Mondrian antecipa um mundo conectado, tenso, no qual todos estão, de alguma forma, incluídos. E Mondrian encontra um modo de se conectar com o mundo. É um irregular tabuleiro de xadrez, dançante, onde há sempre movimento. As linhas de Mondrian saltam vivas, brincalhonas, pregando peças de ilusão de ótica. Aqui há um mundo “quadrado” no qual as pessoas se conectam, na delícia que é estar online, numa época de tecnologia analógica, repito, em que o fator digital estava bem distante da realidade. Aqui há lotes de variados tamanhos, para todas as classes sociais, num mundo em que cada um vive como pode. São as relações entre classes sociais. Aqui, as cores são exceção, um privilégio para quem tem o dom de observar as cores que a vida oferece. Aqui, o comum, o trivial, é o preto e o branco, cuja junção traz o tom cinzento, num dia nublado de incerteza, onde estamos entre o Inferno negro e o Céu branco.

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