Se existe uma artista respeitada em Caxias do Sul, essa
artista é Mara De Carli, nome artístico para Mara De Carli Santos, caxiense de
1954. Desde 1999, Mara preside o NAVI, o Núcleo de Artes Visuais de Caxias do
Sul, instituição que leva a sério a produção artística, jamais sendo um núcleo
que faz da Arte somente uma terapia. Mara está há décadas atuando. Formou-se em
1975 em Desenho e Plástica pela UCS, a Universidade de Caxias do Sul, quando
trabalhou com a orientação de Jailton Moreira, que dá aulas semanais no NAVI
sobre Arte ao redor do mundo. Além de já ter exposto amplamente em Caxias, Mara
já marcou presença por mais de uma vez no MARGS, o Museu de Arte do Rio Grande
do Sul. Já foi mapeada pelo Itaú Cultural, já expôs na II Bienal Internacional
Ceará de Gravura, já expôs na ESPM, a Escola Superior de Propaganda e Marketing
de Porto Alegre, já expôs no Museu do Trabalho de Porto Alegre, já expôs na
Fundação ECARTA de Porto Alegre, já expôs na V Bienal de Gravura de Santo
André, SP, sem falar (novamente) na presença que marcou em muitos movimentos
artísticos e mostras caxienses. No presente ano de 2017, Mara recebeu indicação
ao Prêmio PIPA, promovido seriamente pelo MAM, o Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro, uma prova de que Mara ultrapassa fronteiras. Mara trabalha essencialmente
com xilogravura, e lembro-me claramente de uma excelente e abundante mostra
feita por Mara na Casa de Cultura de Caxias, na qual, além das xilos expostas
nas paredes, havia um caderno com muitas xilos para ser manuseando pelo
espectador, e, para o manuseio, havia luvas para preservar a integridade do
frágil papel. Para quem não sabe, xilogravura é como se fosse um carimbo: o
artista esculpe o clichê e, embebido em tinta, faz variadas obras, explorando
as possibilidades gráficas desse “carimbo”, numa espécie de “esteira industrial
emocional”. Mara revela-se uma artista minuciosa, concentrada, dedicada ao
difícil trabalho de xilo, buscando formas que fazem referência à constituição
natural da madeira, num trabalho de formiguinha, aos poucos, com exemplar
paciência, merecendo o reconhecimento dentro e fora de Caxias. Conheci Mara
quando fui ao NAVI há anos atrás, e lá fui recebido com toda a cordialidade:
além de conversar comigo e servir-me café, as gentis pessoas do NAVI deram-se
de presente um livro que recapitula várias obras que marcaram a passagem de
artistas pelo núcleo. Guardo cuidadosamente o livro. A seguir, faço uma
inocente análise sobre três das doze peças de xilo de Mara que foram ao Prêmio PIPA
2017.
Acima, Dobradiças I,
0,85 x ,70m, 2006. Um morcego com asas abertas, plainando pela escuridão de uma
selva onde há sexo e comida, na instintiva luta pela vida, do mesmo modo como
um artista batalha para se fazer expressivo no mundo, na “selva”. É uma espécie
de Cubismo, e as formas são desdobradas, com cada face sendo exposta, revelando
a totalidade do conjunto, explorando cada possibilidade, cada ângulo. Esta xilo
tem movimento, e as portas parecem abrir e fechar sozinhas, ou ao sabor de uma
sutil brisa. As dobradiças são claras de ser observadas, e dão força ao
conjunto, unindo-o. Não sabemos ao certo o que está fechando e o que está
abrindo, e as portas estão numa dança frenética, espontânea, num ritmo
frenético de carnaval, de bagunça, folia. Podemos ouvir o ranger das peças
nesse movimento, e é como uma infinidade de portas, que levam a diversos destinos,
numa riqueza de opções e caminhos. Realmente, Mara tem paciência de Jó. O
espectador fica imaginando quanto tempo Mara levou para esculpir todas as ranhuras
da xilo, num trabalho até doloroso, imaginando-se de a artista não ficou com as
mãos doloridas, quiçá machucadas. Mara é como a tartaruga na fábula em que esta
vence a veloz lebre, no estilo “devagar e sempre”. Dedicação consome tempo, é
claro, e Mara decidiu no que investir seu tempo. Nesta xilo, as linhas são
tensas e oblíquas, sem espaço para linhas curvilíneas ou “moles”, por assim
dizer, mas as linhas querem apontar para alguma direção, dando sentido a algo,
sentido à vida, como no artista que encontra a si mesmo no dia-a-dia do
trabalho, entrando em harmonia com o mundo. As ranhuras que imitam a madeira
também são relativamente tensas, fluindo na mesma direção reta, “obedecendo” À
instrução retilínea das portas. Dá para se ouvir o barulho de portas sendo
abertas e fechadas, nos ruídos de um lar movimentando, cheio de vida e de
coisas acontecendo, como no próprio NAVI, um lugar cheio de movimentos. As
portas unidas são uma tentativa de união, de consenso e de harmonia, querendo
unir o mundo sob a asa do mesmo Deus. As portas são filhos de uma mesma
barriga, e, nesse caso, as dobradiças são esta Mãe, que agrega e une. Como
disse-me a Doutora Kenia Pozenato, minha professora universitária, arte
plástica é combinar elementos e trazer algo novo. Nesse caso, as portas de Mara
eram dissociadas, mas foram reunidas e formaram algo novo. Algumas das portas
são pontiagudas, agressivas como seringas, arranhaceús ou pirâmides, abrasivas,
como espinhos, num recado: mantenha-se distante, ou seja, respeite. A impressão
que se tem é de um origami japonês, como uma frágil folha de papel que pode ser
trabalhada e trazer algo novo, delicado, criativo. Aqui, as arestas não estão
aparadas, e estão esperando por uma apara, que é a vida e os solavancos desta.
Os pequenos círculos de parafusos são singelos e discretos, trazendo as únicas
formas arredondadas neste trabalho, como gotas de leite, no aleitamento materno
desta mãe que une seus filhos em sua barriga, que é o lar. Cada uma das portas
é um filho, uma versão, uma face, uma personalidade.
Acima, Dobradiças II,
0,85 x ,70m, 2006. Neste caso, a Dobradiça
I está com duas portas viradas, na técnica de xilo que explora as
possibilidades quase infinitas de versões de um mesmo carimbo. Aqui, temos um
gesto de recato, de timidez, ou de uma borboleta alçando voo, como uma
borboleta-bruxa, sem cor, atenta ao essencial e sem se importar com
frivolidades estéticas. É como uma roupa sendo dobrada, no conforto de um lar
limpo e organizado, sob o zelo de uma mãe dedicada. São como as capas negras
dos ministros do STF, impondo autoridade. Como a capa de Drácula, insaciável
monstro que quer devorar tudo e todos, sugando o sangue. Aqui, temos um abraço,
um amigo, esvaziando-se de ego e orgulho e lançando-se ao acolhimento amoroso
de um lar. Ao contrário de Dobradiças I,
temos um espaço em branco na parte inferior, um respiro, uma lacuna de
liberdade e vácuo, dando uma chance da obra respirar. Nessa brecha, temos uma
apara discreta, mas não o suficiente para trazer arredondamento e linhas orgânicas.
Mara opera em linhas retas, sem linhas circulares. Na obra UM, que foi ao PIPA, Mara imita as linhas de um teste de DNA, com
pequenos retângulos verticais, como códigos de barra que dão identidade a um
produto, numa artista cheia de identidade. Em outras obras no mesmo prêmio,
Mara adora operar com seus delgados retângulos, construindo formas organizadas
ou esculhambadas, mas nunca redondas ou curvilíneas. Eu até já disse a Mara que
em alguns momentos ela remete a Piet Mondrian. Em Dobradiças
II, temos um recuo tímido, um autotolhimento, e a
exuberância aqui está um pouco “castrada”, resumida, nunca desenvolvendo-se
completamente, num charme comedido, minimalista. Mara nos faz imaginar as
diversas versões que a mesma xilo pode gerar. É como na estrutura de uma casa,
ou de células epiteliais, unidas, que formam a pele. São como ruelas confusas
de uma cidade medieval, labiríntica, ludibriosa, difícil, tendo que ser
pacientemente decifrada. As portas aqui dobram-se, parecendo dobrar o papel na
qual estão impressas, revelando-se a fragilidade do papel, da vida, do corpo
humano. Nas obras de Mara, não temos norte ou sul, e as obras podem ficar
expostas em qualquer posição, nunca obrigando o espectador a ver algo de um
modo intransponível. Nesta xilo, vemos um recuo, fazendo-nos imaginar em um
terceiro momento, em que as portas estarão ainda mais fechadas e recatadas, até
nada mais sobrar. As portas, apesar de unidas como nos estados da União, estão
separadas por claras linhas, tendo nas dobradiças pontes, contatos
diplomáticos, num diálogo entre galhos da mesma árvore, que vêm do mesmo
tronco-pai.
Acima, Frestas, 1,10
x 0,85 m,
2010. Arranhacéus em uma grande metrópole, concorrendo como árvores concorrendo
por um lugar ao Sol, na inerente competitividade da vida, da competitividade
entre artistas, de irmão versus irmão.
Várias versões de um mesmo prédio, num clichê de esteira industrial, como na
Pop ARt de Andy Warhol, nas diversas Marilyns multicoloridas, só que, aqui com
Mara, não há registro cromático vibrante ou alegre, mas a sobriedade e a discrição
do preto e branco. Mara não abre mão do clássico contraste barroco “claro e
escuro”, num registro binário: a resposta é “sim” ou “não” simplesmente, numa
mente atenta ao essencial, ao vital, liderando os artistas do NAVI. São como
listras em pistas de asfalto, numa cidade vibrante, alimentando vias com carros
e mais carros, nos inevitáveis engarrafamentos de fim de dia útil, num estresse
retangular, cheio de quinas e vicissitudes. São como tábuas fabricadas em uma
madeireira, sugando da natureza a fibra essencial da árvore, trazendo uma
pujança industrial que fabrica papel, o essencial papel, no sentido de “papel”
como o de um ator, que tenta se encontrar no personagem e ficar confortável
dentro deste, como um jeans velho, familiar, confortável, desprovido de
pretensões ou frivolidades, mas no acolhimento de um lar. As ranhuras de Mara
trazem uma textura, uma estampa, uma essência, um problema de abundância versus simplicidade, pois, se as
ranhuras revelam-se complexas, as formas dessas xilos são extremamente fáceis
de se ver. Os prédios de Caxias do Sul erguem-se rijos e desafiadores,
desafiando o parque industrial paulista, numa cidade que foi fruto de uma
reforma agrária, reforma esta que deu certo. O prédio fálico é o sucesso, o
êxito, a obviedade do poder econômico. Mara quer encontrar um lugar nesse mundo
tão impessoal e frio, tão ganancioso, ambicioso, brilhante. Qualquer artista
tenta se encontrar no mundo, em meio a um ambiente nem sempre sensível ao que o
artista tem a dizer. Essas árvores guerreiras são os artistas buscando um canal
de expressão, tentando decifrar enigmas existenciais – quem sou eu? São portas
que se abrem em diversas direções, trazendo opções, liberdade de escolha, no
livre arbítrio do espírito: Joãozinho vai para onde Joãozinho quer ir, como na
forma do feng shui de dispor sofás numa sala: os sofás têm que estar dispostos
em forma de “u”, com a entrada virada para fora, no sentido de que entra quem
quer; sai quem quer. Podemos aqui, pelas mãos de Mara, sentir o delicioso
cheiro de madeira nova, numa marcenaria, no barulho das serras trabalhando, na
poeira da serragem, no honesto labor. Os falos conversam entre si, numa reunião
de cavalheiros. Aqui, a cor branca tem duas funções: diferenciar os falos e
mostrar a textura das laboriosas ranhuras de Mara, como um gato arranhando um
móvel de madeira, na sensualidade felina. É o retângulo de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, escandalizando macacos, trazendo
civilização, estética, sofisticação, progresso, dando um empurrãozinho. As
linhas retas são o raciocínio, como na ração de um animal: só há o essencial,
como na limpeza de Tao, perguntando o que é melhor: uma casa limpa ou uma casa
suja? Mara nos traz pureza. Podemos perceber o formato de tronos, símbolos de
poder, no poder transformador da Arte, da catarse, dos vômitos espirituais. São
como reis de reinos vizinhos, conversando entre si de forma pacífica e cordial,
primando pela paz entre reinos. Lembram também cachimbos em posição vertical,
ereta, almejando os sonhos que estão nas nuvens, na fumaça do tabaco, como na
personagem sonhadora de Teresa, de José Clemente Pozenato, uma personagem de
alma artística, contemplando o céu da noite e as estrelas, perguntando-se sobre
os segredos do universo, apaixonando-se por um homem citadino, sofisticado,
talvez faltando a Teresa ter os pés no chão, como a discreta Pierina. Nestas
formas retilíneas de Mara, as formas competem entre si, e o que uma tem de alta
e magra, a outra tem de baixa e gorda, numa compensação assimétrica, numa
equação. As formas mais delgadas são os dias úteis, difíceis; as mais
volumosas, são os momentos de merecido descanso, obrigatório descanso, do modo
como o imigrante italiano só não trabalhava no domingo porque a religião não
permitia. Aqui, o vertical vende o horizontal, e a torre arrogante revela-se
impiedosa, autossuficiente, alheia às misérias do mundo. Os vidros reluzentes
refletem a radiação solar, refratando, rebatendo como um jogo de tênis, do
mesmo modo como jogaram um sapato no então presidente George W. Bush. No NAVI,
há um escada em caracol, e Mara traz um contraste, numa xilo sem espaço para as
curvas de caracol, para a tortuosidade de caminhos confusos. Mara quer clareza.
As formas nessa xilo são cada integrante do NAVI – cada um com suas
particularidades. Há um convívio harmônico, e as formas respeitam o espaço umas
das outras, nunca havendo invasão ou insinuação. Há um vaivém frenético, com
cada um cuidando de seu próprio dia, de seus assuntos. Na extremidade esquerda,
vemos uma tirinha bem magrinha, a mais magra de todas, um tanto rejeitada,
desprezada, colocada de lado, meio apagada, humilde em sua pequenez. Esta
tirinha é a forma mais humilde de todas nessa xilo. A tirinha é, na verdade, o sustentáculo,
sempre subestimada, sempre invisível, sempre essencial como o coração batendo.
A tirinha rege porque se coloca em último lugar. Aqui, além de imponência,
temos uma certa fragilidade, e esses prédios ameaçam cair em meio à primeira
brisa que soprar, pois a arrogância precede a queda. E a tirinha permanece ali,
quietinha em seu modesto canto, apenas observando, nunca tomando parte nessa
fogueira das vaidades, nesses egos em uma coluna social, nesse concurso de
beleza no qual uma participante quer devorar as tripas da outra. A tirinha é a
humildade de Jesus: nesses milênios de História da Humanidade, inúmeros egos
inflaram e caíram, mas o Menino permanece, discretinho, sempre subestimado,
quase invisível. Aqui, Mara nos traz teclas de um piano, degraus de uma escada
irregular, na trilha sonora de uma vida, uma experiência. Esta xilo é como uma
partitura, esperando para ser interpretada, tirada do papel, transformada em Arte. São como portas
abrindo e fechando ruidosamente em um dia de ventania, de caos, de desordem, de
discórdia, ou como bailarinos devidamente organizados e ensaiados, imitando o
caos, catarseando este. Virando esta xilo no sentido vertical, vemos uma
estratificação, como classes sociais, catalogando e separando os cidadãos em
níveis de poder aquisitivo. É como uma fatia de bolo, que revela seu interior ao
ser cortado. São como cortes premeditados em uma esteira industrial, talvez
cortando peças para automóveis, para equipamentos eletrônicos etc. É como um
código misterioso, no desafio de se decifrar hieróglifos. É como uma janela de
vidro refletindo Sol em diversas direções, como numa dança de luzes. Pode ser a
vista aérea de um condomínio, no limite tenso entre lotes, entre a propriedade
de um e a propriedade de outro, na busca por privacidade. Pode ser um tecido
puído, gasto, digno de ser descartado, maculado por anos de uso. Virando esta
xilo de cabeça para baixo, há formas que lembram uma estilização de perfis de
rostos humanos, como na busca por individualidade entre quadrigêmeos, numa
“ninhada” onde a similaridade é uma bênção e uma maldição. E as tiras servem
como limites, delimitações entre esses irmãos, linhas divisórias que primam
pela identidade de cada um. Por mais que se amem uns aos outros, não são
iguais. São como pássaros tensos, de pescoço rijo e atento, visualizando o
inimigo predador, sendo as tiras como movimento da água pela qual caminham os
pássaros, fazendo com que as vibrações toquem um irmão no outro.
Mara é uma verdadeira representante da Arte junto ao povo
de Caxias do Sul.
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