Quando me formei na faculdade,
ganhei um cheque presente que me dava direito a um livro de tantos reais. Fui à
livraria e decidi levar um excelente livro chamado “Palácio Piratini –
História, Arquitetura e Arte na Sede do Governo do Rio Grande do Sul”, com
material sobre a sede neoclássica em estilo francês do governo gaúcho, em Porto Alegre, em um
local nobre – ao lado da Catedral e em frente à Praça da Matriz, com o Theatro
São Pedro e a Assembleia Legislativa como vizinhos, sendo que perto dali há o
belo Solar Palmeiro, que faz parte do conjunto de prédios históricos
portoalegrenses aristocráticos no Centro da capital. O livro, rico em textos
trilíngues – em português, espanhol e inglês – e fotos, foi feito com a Lei Federal
de Incentivo à Cultura. A nota de orelha é da então governadora Yeda Crusius,
no ano de 2007, num projeto também respaldado pelo ex-governador Germano Rigotto. Pessoas de minha família são amigas do ex-governador Olívio Dutra, e
foram jantar no Piratini em uma recepção privada quando o petista era
governador, no endereço mais fino de Porto Alegre.
O termo “piratini” é em tupi guarani e significa “peixe
barulhento”, fazendo referência ao povoado de Piratini, que foi sede do governo
gaúcho durante a Revolução Farroupilha – o palácio assim passa a se chamar após
decreto do governador Ildo Meneghetti em 1955. Há visitas guiadas em certas
partes do palácio para quem quiser conhecer. Uma parte formidável do palácio é
o Galpão Crioulo, decorado com o tosco (porém acolhedor) estilo gauchesco, onde
o governador recebe pessoas para um bom churrasco com chimarrão. No galpão, que
contrasta profundamente com o neoclássico francês predominante do Piratini, há
um enorme mapa estadual com todos os municípios gaúchos demarcados. O “mini
CTG” palaciano certamente é o setor preferido do governador José Ivo Sartori,
um homem de origem simples e uma pessoa que não dá bola para luxos, pois diz o
Taoismo: “O bom líder até pode viver em grandes palácios, mas não se importa
com o requinte destes”, e diz também: “A maior parte das pessoas deslumbra-se
com os palácios mas ignora os campos”, e existe algo mais gaúcho do que amar a
vida ao ar livre? Tenho uma linhagem em comum com a família Triches de Caxias
do Sul, clã ao qual pertence o governador Euclides Triches, que governou nos
anos 1970. E o RS é conhecido pelo fato de que nenhum governador gaúcho até
hoje reelegeu-se, mesmo os lendários líderes como Leonel Brizola – em frente ao
prédio onde veraneio, em Capão da Canoa, há uma placa em homenagem a Brizola,
chamado de “veranista emérito”. Já tive a oportunidade de trabalhar com um
descendente do governador Flores da Cunha. E uma pessoa de minha família foi
colega no Ensino Médio do governador Pedro Simon, em Caxias do Sul.
Uma pequena cronologia do Palácio
Piratini:
1789 – Inaugurado o Palácio de
Barro, primeira sede do Governo, em claro estilo português colonial.
1896 – O palácio é demolido para dar
lugar ao novo palácio, sob as ordens do governador Júlio de Castilhos. Em 1901, a obra é embargada.
1909 – O projeto atual é demolido
para dar lugar ao prédio atual, de autoria do arquiteto francês Maurice Gras.
Em 1910, a
obra está em pleno vapor.
1911 – O cimento teve que vir da
Inglaterra e, depois, da França. A areia foi extraída do Lago Guaíba, em Porto Alegre mesmo.
1912 – Mais material importado da
França: calcário e estuque.
1913 – O governador Borges de Medeiros passa a liderar a obra.
1914 – Com a I Guerra Mundial, as
importações intercontinentais ficam difíceis, e a obra é paralisada. Borges
decide consolidar a obra em regime de empreitada.
1918 – A fachada do prédio ganha
suas feições finais.
1919 – Material elétrico, lustres e
demais iluminações são comprados.
1920 – É feita a decoração das cinco
salas principais.
1921 – Borges inaugura o palácio,
sem festa, apesar de algumas partes do local ainda não terem sido finalizadas.
1923 – Borges assina, no palácio, a
paz da Revolução de 1923, revolução esta que foi um episódio que dividiu os
gaúchos.
1928 – Finalmente finalizado em sua
totalidade, o palácio abriga o governador Getúlio Vargas.
1930 – A revolução daquele ano une
os gaúchos e leva Getúlio à Presidência da República.
1951 – Aldo Locatelli é contratado
para pintar murais no palácio, trabalho finalizado em 1955.
1961 – No movimento da Legalidade,
em quinze dias de tensão, o governador Brizola apoia a posse de Jango como
Presidente da República.
1971 – Inaugurado o Galpão Crioulo
do palácio.
1972 – O palácio passa a receber
visitas guiadas.
1986 – O palácio é tombado
Patrimônio Histórico e Artístico do Rio Grande do Sul.
1988 – Restauração das pinturas de
Aldo Locatelli.
2000 – Desta vez, o palácio é
tombado Patrimônio Histórico e Artístico do Brasil.
2006 – Finalização do trabalho de
restauração das fachadas, iniciado em 2001.
O prédio é um museu por si só:
lustres, mármores, estatuetas, tapetes, painéis, cortinas, antiguidades e
móveis, com muitos desses itens sendo presentes de reis e chefes de estado. O
livro, que foi seguido de uma exposição itinerante, é dividido em quatro partes,
com um autor para cada, pessoas de reconhecido destaque em suas respectivas
áreas de atuação:
Capítulo 1
Autor: Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e ex-secretário de Cultura do RS
Título: “Um Palácio Feito de Dramas, Angústia, Esperas e
Requinte”
Na ilustração desta
postagem, o painel de Aldo Locatelli chamado “Formação Etnográfica do RS”.
Um gaúcho cavalga majestosamente em um cavalo vigoroso. Um índio com uma lança
com as Missões atrás. Uma mãe amamenta o filho. Um fogo de chão aquece uma
chaleira para o mate, bebido por um gaúcho pilchado. Homens fazem a colheita do
trigo. Bois puxam uma carroça. No canto direito superior, colonos vindo ocupar
sua terras. Uma grande antena moderna de eletricidade, mostrando o progresso em
meio à tradição – Locatelli gosta de dar pitadas inusitadas em seus trabalhos.
As cores são predominantemente neutras – não há cores berrantes. Todos os
elementos fazem parte da mesma “dança” no painel. Já, no painel vertical “A
Agricultura e a Pecuária amparando a unidade familiar”, Aldo mostra uma mãe
acolhendo os filhos, com a bandeira do Rio Grande do Sul tremulando ao centro
e, acima, uma cavalaria furiosa. Dois homens ladeiam a bandeira – um é gaúcho pilchado;
o outro, um trabalhador, com um martelo na mão. Embaixo, uma menininha segura
um pássaro nas mãos e, ao seu lado, um pássaro voa livre, como no desejo do
gaúcho de liberdade na Guerra dos Farrapos.
No pátio interno, o grupo de esculturas “A Primavera”, de Paul Landowski. Uma mulher nua ao centro representa a estação do ano, e é cercada
de flores, lembrando um pouco a Vênus de Sandro Botticelli. À direita carneiros
em meio ao pasto e, à esquerda, criancinhas pequenas e gordinhas como símbolo
de fertilidade feminina.
Assis Brasil narra momentos de Vargas no palácio, e também
o episódio da Legalidade, no qual o Piratini foi o epicentro – interessante
observar que os militares ambicionaram o poder desde a renúncia de Jânio, e o
golpe de 1964 não foi uma total surpresa.
Na mesa dos governadores, uma relíquia de antiquário – um aparelho
de telefone antigo, todo restaurado. No chão da sala, um tapete multicolorido
feito pela fábrica Rheingantz, da cidade de Rio Grande. O pátio interno e a
calçada na rua em pedras portuguesas. O Sol esgueira-se pelas janelas do
palácio. Lustres de cristal assinalam a sofisticação dos espaços. Colunas
neoclássicas impecavelmente preservadas. Portas em ricos entalhes na madeira.
Com forte veia de romancista, Assis Brasil narra História e
festas.
Capítulo 2
Autor: Paulo Raymundo Gasparotto, jornalista
Título do Capítulo: “Apogeu de Cultura e Requinte”
Gasparotto frequenta o palácio desde
os anos 1960, o que lhe dá intimidade para falar sobre o lugar e lhe faz
afirmar que o prédio emana luxo e poder. Gasparotto fala das intervenções de
algumas primeiras damas no palácio, como uma fonte no jardim instalada por Neda
Triches. Em festas em comemoração à Revolução Farroupilha, a primeira dama
Neusa Canabarro exigiu como traje a pilcha, com o fato de Collares ter sido o
primeiro (e único) governador negro do RS.
Um piano para saraus no Salão dos Espelhos, iluminado por
um lustre de muitos cristais. Escadarias desdobram-se em uma “dança”. Um tapete
vermelho cobrindo os degraus dá o tom de “ala vip”, como a cor vermelha na
bandeira do RS, como o sangue derramado na Revolução Farroupilha, episódio que
Assis Brasil chama de “tragédia fundadora do RS”. Uma mini estátua do Laçador feita
por Antônio Caringi. Ornamentações em gesso nas paredes e tetos, dignas de
paços parisienses. Finos vasos de porcelana. O portão de ferro de entrada para
carros, com o brasão do estado. No Salão de Banquetes, prataria da indústria
Eberle, de Caxias do Sul.
Capítulo 3
Autor: Günther Weimer, arquiteto
Título do Capítulo: “A Arquitetura do Palácio Piratini”
Por intermédio do cônsul francês, o
arquiteto francês Maurice Gras foi apresentado ao governador Carlos Barbosa
Gonçalves em 1909, e isso justifica o estilo arquitetônico do Piratini. Gras
dividiu o prédio em duas alas – a residencial e a representativa. É claro que,
na época, as condições de sanitários eram precárias. O bloco representativo é
em imponente frente à Praça da Matriz. O pátio interno tem exuberante vegetação,
um oásis em meio ao ritmo agitado do Centro de Porto Alegre. Weimer mostra-nos
três painéis de Locatelli no teto, retratando a lenda do Negrinho do Pastoreio,
com, por exemplo, cavalos oníricos despontando de uma vela acesa em honra ao
personagem lendário.
Capítulo 4
Autor: Luiz Eduardo Robinson Achutti, fotógrafo e
antropólogo
Título do Capítulo: “Palácio Piratini - Imagens”
Ao longo de meses, Achutti recebeu carta branca e percorreu
as dependências do palácio, produzindo um capítulo essencialmente de imagens e,
é claro, o restante das fotos no livro, num trabalho que cheira a competência.
Em um clique, o equilíbrio entre a luz externa e a luz interna da ala de
visitas guiadas, com o vaivém de pessoas em meio ao salão suntuoso. Uma janela
emoldura o ilustre vizinho – a Catedral. Uma claraboia ilumina uma escada em caracol. Júlio de
Castilhos imortalizado em um busto de bronze, parecendo zelar pelo palácio.
Achutti flagra detalhes do palácio que passam despercebidos a outrem, e essa
atenção aos detalhes, ao olhar inusitado, revela um tesouro, um lugar que é legado
ao povo gaúcho. Um orgulho.