quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Mago




Apaixonei-me por Escher por meio do filme Labirinto – A Magia do Tempo, película com outro mestre, David Bowie. No filme, a personagem Sarah tem que decifrar um traiçoeiro labirinto para resgatar seu irmãozinho Toby, raptado pelo tirano Rei dos Duendes, Senhor do Labirinto. Nos momentos finais da trama, Sarah entra em uma câmara cheia de escadas, num lugar onde não há Norte, não há referência, não há centro gravitacional, numa forte perda de referências, de noção. No quarto de Sarah, aparece sutilmente uma gravura de uma obra de Escher. O labirinto era essencialmente isso: desnorteamento. Inclusive, já falei sobre a película aqui no blog, sendo uma de minhas primeiras postagens. Certa vez, em Porto Alegre, adquiri um livro pequeno sobre Escher, e, na faculdade, quando um colega meu me viu acessando imagens de Escher, este colega ficou fascinado com o traço mágico do artista. Em outra oportunidade, há anos, quando eu viajei para a cidade de São Paulo com minha família em um feriadão de Corpus Christie, estava ocorrendo uma mostra interativa da obra do desenhista, mas a fila era tão longa que acabei desistindo, e isso que era feriado na cidade, com muitas pessoas passando a data fora da cidade, ou seja, São Paulo não pára. De traço genial, Escher é indiscutivelmente majestoso, como o Rei dos Duendes. Sua arte nos envolve e permanece um enigma, na inesgotabilidade de um talento claro, fruto de uma mente paciente e altamente imaginativa. Sua obra tem movimento, muito movimento, e nos parece que cada um de seus trabalhos é uma pequena tela de Televisão ou de Cinema – Escher tem algo de cineasta, e viveu no Século XX, que correspondeu a cem anos marcados pelo surgimento, crescimento e consolidação da Sétima Arte. E tem mais: podemos quase ouvir sons nos traços de MC.

As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Dia e Noite, xilografia, ano de 1938. Como num jogo de xadrez. Escher compreende Yin e Yang, e nos traz opostos em um delicioso contraste. Sua maestria no domínio das formas traz-nos uma metamorfose, e as lacunas brancas dão corpo aos pássaros negros, e viceversa. O artista joga consigo mesmo, tentando conciliar seus opostos, seus dois lados do cérebro, no sentido de que, na luz, nada mais natural do que a sombra, como na xilogravura, que funciona por meio do preenchido e do vazio, criando imagem. Os pássaros estão em movimento, voando para direções opostas, rasgando o quadro ao meio, catarseando uma Bipolaridade. Os vales de Escher são todos plantados, agrícolas, produtivos, trazendo abundância e alimentos para o reino, do modo como Escher aproveita cada pedacinho do próprio talento, num vale fértil que, de tão vasto, foge à vista. Temos um céu alvo e um céu mergulhado no negror, no clássico da Broadway Children Will Listen: “Nada é totalmente negro; nada é totalmente branco”. No sentido de que a pessoa, por mais otimista que seja, não pode “baixar a guarda” totalmente, sempre trazendo uma pontinha de agressividade em meio à delicadeza e a feminilidade. O rio sinuoso corta o vale, abastecendo-o, como um Nilo, a raiz da riqueza egípcia antiga. O rio é sensual como o galgar de uma serpente, líquida, orgânica, insinuando-se, trazendo dois rios, cada um em um certo momento. Então os terrenos plantados transformam-se em pássaros. Mas, mesmo nesse contraste bipolar, existe uma genial continuidade entre o “reino branco” e o “reino preto”: a luminosidade permanece na mesma na cor azulada dos vales férteis, e este azul revela-se amigo de ambos os lados, como num diplomata, mediando pacientemente entre duas nações opostas. É impressionante a paciência de Escher em desenhar meticulosamente, encontrando lugares nos quais as formas moldam-se, numa compreensão profunda de desenho. A impressão que se tem é a de que o quadro ficará em paz, e os opostos finalmente se reconciliarão, formando um só corpo, um só caminho: Tao. Ao espectador são dadas dois caminhos, sendo que os rios opostos levam ao mesmo destino, e o espectador tem que escolher de que lado do tabuleiro ficará, jogando e divertindo-se. Escher é divertido, dono de um senso de humor potente. O tom azulado dá harmonia ao conjunto, na promessa de paz e de uniformidade, no sonho de um futuro em que opostos se abraçarão. No final das contas, temos um vale só, como se um espelho “mágico” refletisse o oposto, estando este espelho bem no meio do quadro. As aves, apesar de ser tão contrastantes, são irmãs, são filhas do mesmo princípio, e as diferenças precisam ser respeitadas, em um só útero, uma só mãe. O quadro traz uma vontade de harmonização, equilíbrio, como um vinho harmonizado com uma comida pertinente. O rio claro reflete o céu branco; já, o rio negro rende-se à noite. E os conjuntos arquitetônicos, como uma cidadezinha, são iluminados pela luz externa na esquerda e, na direita, a luz vem de dentro das casas. As pontes são promessas de união, de diálogo diplomático, na paciência de um conciliador. Escher tem muita calma ao desenhar e projetar, muita calma e disciplina, encontrando lacunas pertinentes para fazer do negativo o positivo e viceversa, sempre brincando com o olho do espectador, lançando charadas. É a ironia de Escher. São como dois reinos vizinhos, duas casas reais, unidas pelo casamento entre um representante de cada casa, produzindo uma linhagem em comum, uma promessa de paz em meio a um mundo tão heterogêneo. É o globo terrestre, intercalando os lados da esfera entre dia e noite, entre inverno e verão. Preto & branco são um só. Podemos ouvir o som de pios e de asas batendo, na liberdade do ar livre, e as águas correm caudalosas e ruidosas. Este trabalho me faz recordar de uma obra que vi certa vez em Porto Alegre, com dois quadros: um coberto por um véu branco; o outro, preto. Este última me deu um curioso medo, mas essa sensação só foi possível por causa da base de comparação, de relatividade. É como diz Tao: se você diz que algo é belo, é porque você conhece o oposto, que é feio.

Acima, Relatividade, litografia, ano de 1953. Aqui, o mais divertido é observar que podemos ver o quadro de qualquer lado, com Escher nos convidando a nos deliciar com essa ironia, essa brincadeira. O título, é claro, diz isso, no sentido de que o Norte pode estar em qualquer lugar ou posição, num quadro que gira intermitentemente, como um disco de vinil ou um CD, na grande invenção que foi a Roda. Aqui parece um formigueiro, com formigas caminhando em todas as direções, desafiando a Lei da Gravidade. Os bonecos são impessoais, sem rosto, anônimos, obedecendo a uma lei que reduz tudo a uma média, um padrão, ao contrário do modo como um artista odeia ser apenas mais um. Escher opera bem a questão da luz, iluminando seus quadros com tons de cinza e com alguns aspectos em branco. A impressão que se tem é justamente o desenho estar iluminado, com vãos claros que saltam do quadro e iluminam como se houvesse lâmpadas no quadro. Cada “boneco” está fazendo uma coisa diferente, ocupados com o seu dia a dia e indiferentes aos negócios alheios. Cada ser aqui está centrado no próprio umbigo. Uns carregam coisas; outros simplesmente caminham; outros estão acompanhados, e vemos um casal caminhando e outro almoçando, e podemos delinear a diferença de gênero porque os bonecos femininos usam saias. Aqui, temos harmonia, e ouvimos os passos cruzando o labirinto de escadas. Escher diverte-se com a falta de centro gravitacional, e brinca com as percepções espaciais do espectador. Suas escadas são meticulosamente desenhadas, perfeitamente retas, na precisão de um arquiteto – Escher tem alma de arquiteto. As portas, arcos e janelas são romanos, arredondados, contrastando com as escadas retilíneas. Imagina-se o quanto de tempo e dedicação Escher teve para fazer cada uma de suas obras, numa dedicação inegável e clara. Há vasos de plantas e há árvores, enfeitando a cena, num Escher que ama a vida em ar livre, na libertação do outdoor. Eu tenho uma sugestão para quem lê esta postagem: grave esta imagem em seu computador e, então, no programa de edição de imagens, vá girando este quadro, sendo isso muito divertido, pois em cada ângulo o quadro muda radicalmente. As escadas são presentes, mas não aprisionam a cena, deixando vãos livres para que o trânsito flua harmonicamente. É uma sala multifacetada, arejada, e nenhum dos ângulos de observação está totalmente certo ou errado. Sente-se uma suave corrente de ar, e tudo aqui flui com o ar circulando saudavelmente. Os arcos distribuem a luz, e não há espaço aqui para pensamentos sombrios e escuros. Um garçom equilibra uma bandeja com um copo e uma garrafa de vinho, provavelmente servindo o casal que almoça na mesa acima. Neste quadro há labor e vida, e nada fica parado ou atravancado. Há fluidez. Os barulhos de pés caminhando, subindo e descendo escadas, misturam-se uns com os outros, numa casa onde há muita vida, muito propósito, apesar do quadro não dizer exatamente qual é o Norte da cena. Escher é um conciliador, e abrange a acolhe diferentes pontos de vista, como em uma Democracia, nunca sendo um ditador cruel que impõe com violência e estupidez alguma doutrina, ideologia ou ponto de vista. Aqui, vemos diversidade e, repito, é uma cena divertida. São os labirintos de uma colmeia, e cada “abelha” tem sua função e sua dignidade, no sentido de que, quem não tem propósito, desaparece. Respira-se um ar muito puro, como nos ares de liberdade democrática. Escher tem uma mente que enxerga contradições, entendendo que tudo traz em sai a sua própria contradição, do modo como o Norte é Sul, e viceversa. As escadas são veias e artérias, cuidando da circulação de oxigênio e nutrientes pelo organismo, num pulsas incessante de vida. Outro boneco carrega um balde ou vaso, cuidando de alguma tarefa delegada, na sensualidade do vazio, do vago, que tem uso e dignidade servindo para conter algo importante, como água. Aqui, não podemos sentenciar, e temos que aceitar a infinita contradição entre os opostos. Tudo é processo, e as sentenças têm prazo de validade. Vemos aqui árvores vivas, frondosas, trazendo vida e beleza. No filme Labirinto, a personagem Sarah sobe e desce as escadas, perturbada com a falta de noção, de direção. São os labirintos da mente, expostos e debatidos em sessões de psicoterapia. Escher tem uma monumental paciência, debruçado incondicionalmente sobre a própria obra, amando-a. O casal caminhando são Adão e Eva no Éden, no paraíso anterior à serpente e à infame maçã. Aqui, há um pedido por paz e conciliação, harmonizando pontos de vista tão heterogêneos e singulares, na ambição democrática de paz e entendimento.

Acima, Queda d’Água, litografia, ano de 1961. Pura ilusão de ótica. O espectador é vítima de uma peça travessa, e Escher faz para cima o que é para baixo, e viceversa. A água que cai move o moinho, disso temos certeza. Só que o que era para cair sobe, num ciclo intermitente, no enigma de Escher: quem veio antes – o ovo ou a galinha? Uma pequena mulher estende pacientemente a roupa no varal, sem se dar conta da mágica das águas, na demanda do dia a dia de um lar, com tarefas a serem desempenhadas, do mesmo modo como labora Escher, pacientemente, nunca com pressa de mostrar a que veio. No topo das duas grandes torres, formas geométricas complexas, e uma delas traz um formato de cruz, abençoando as águas, transformando-as em benta, numa pureza enigmática escheriana, fruto de uma mente doce e inofensiva, do mesmo modo como sua obra desperta a doçura natural do espectador, fazendo com que este abra sua própria mente à Arte, deliciando-se com as contradições naturais do universo. Bem abaixo no quadro, um homem contempla calmamente as águas, como se um espectador tivesse sido “raptado” e levado para dentro da cena. Esse é um Escher contemplador, sempre observando e reproduzindo em seu traço impecável. Escher abraça as contradições, nunca as odiando, como se soubesse que são frutos do senso de humor de Deus, um grande piadista. O homem observador depara-se com a grandiosidade da cena, e Escher é grandioso em suas cenas, numa alma de diretor de cinema, de realizador de grandes películas. Abaixo à esquerda, um exótico jardim, com plantas diferentes, curiosas, alimentadas pela água misteriosa da fonte que cai e sobe, desafiando parâmetros de referência espacial. Ao fundo, um vale em degradê, com etapas bem definidas, truncadas, claramente marcadas pelas diferenças de nível, do modo com a água cede à gravidade e ruma para o ponto mais baixo, Tao, o destino uno. As águas seguem infinitamente fluindo, como numa reciclagem de lixo seco, sempre reaproveitando e renovando, no ciclo natural da vida, do modo como, no Planeta Terra, as águas estão em constante renovação, pois a Terra não recebe água do espaço. Portanto, e reciclagem planetária é o motor que rege a vida na esfera. Escher entende esse princípio de renovação eterna, e traz para seu próprio traço essas leis inevitáveis que regem a matéria, a dimensão material. É como numa estação espacial, na qual a urina dos astronautas é convertida em água potável, pois não há condições de se transportar água par ao espaço. Então, a bosta de animal fertiliza a terra. Aqui, a cena é muito tranquila, num plácido momento de labor e contemplação, e podemos sentir uma leve brisa, amena, num quadro que basta a si mesmo. É claro que Escher tem uma veia de arquiteto, de projetista, trazendo-nos quadros que poderiam ser convertidos em plantas arquitetônicas, só que num artista que sempre brinca com as percepções, aproveitando da tendência do olho humano enxergar um aspecto de cada vez: vejo a água subindo e, depois, vejo a água descendo. É como se o artista estivesse construindo tijolo por tijolo, fazendo com que enxerguemos não um quadro, mas uma cena movimentada de fato, fazendo-nos esquecer de que é apenas uma obra de desenho. Aqui, não uma fonte de água, e a água renova a si mesma. Escher é assim, exótico, um artista que simplesmente não morreu, como todo grande artista. No pano de fundo, várias árvores, como na sensualidade de oliveiras que geram a azeitona, numa sexy cena de uma tarde silenciosa, num ponto onde há dois princípios: contemplação e trabalho. Pobre é o homem que só trabalha; pobre é o homem que só contempla. Então Yin e Yang unem-se num só vale, num só curso d’água, e o artista encontra a si mesmo, harmonizando-se com o universo a seu redor.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Um Livro Aberto




Nesta postagem termino as análises de todas as obras de Mara De Carli que foram indicadas ao Prêmio PIPA 2017 do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Mara é uma artista de criatividade infinita. As duas primeiras obras aqui analisadas são em forma de livros, nos quais numerosas páginas mostram a versatilidade da artista, a qual disponibiliza luvas ao espectador para preservar assim a integridade das frágeis páginas. É um convite para uma interação, pois, ao folhear os livros, o espectador entra no mundo de Mara, a qual mergulha em criatividade pulsante, profunda. Falando em livros, estes têm páginas tão numerosas que fica difícil analisar todas as xilos de Mara. Portanto, ater-me-ei a analisar apenas o que é mostrado nas imagens a seguir. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Adagio, xilogravura / livro de artista do ano de 2016. Medidas: 0,47m x 0,36m (fechado) / 0,96m x 0,36m (aberto). Falo primeiro sobre a figura da esquerda e, depois, da direita.

1) As duas grandes torres do Congresso em Brasília, desafiando as alturas, numa cidade em crescimento, desfiando limites, crescendo falicamente, rasgando os céus, numa artista sempre testando os próprios limites. A grande linha horizontal é o horizonte vasto, quase infinito, num universo tão grande, mas tão grande, que fica impossível apreendê-lo em sua totalidade titânica. A linha horizontal supera as verticais, trazendo os pés para o chão, para a realidade da força gravitacional. Horizontal e vertical encontram-se, beijam-se, desfiando-se, tentando ver qual das duas é mais suntuosa. A verticalidade divide entre esquerda e direita; a horizontalidade, entre alto e baixo. A vertical perfura a horizontal, desvirginando-a, violando-a, estuprando-a, no prazer da violação. Nas torres, há a divisão entre passado e futuro, sendo que o presente é a delgada, mínima linha entre as torres negras. Aqui, a simetria é completa, numa Mara meticulosa, caprichosa, cuidadosa, sempre preocupada em ter precisão milimétrica, nunca pecando com irregularidades. É uma borboleta abrindo asas e voando livre pela imaginação do pensamento artístico, plainando pelas possibilidades geométricas. É uma antena de TV ou Rádio, captando sinais, transmitindo informações, tornando comuns as informações entre as pessoas que captam os sinais dos meios de Comunicação Social. É uma estrada interrompida, talvez por um acidente ou um deslize de terra, trazendo transtorno para o viajante, o qual desejava ter uma viagem tranquila, rezando para a Nossa Senhora da Boa Viagem em uma estação rodoviária. Um avião alçando voo e abrindo asas para cruzar os céus, do modo como Brasília, foi desenhada no formato de um avião. As linhas negras brotam como a contradição de um alvo dia, de um céu muito claro, trazendo raios para o Palácio da Alvorada, despertando o Presidente da República para mais um dia de trabalho e dedicação, tudo em nome da nação, que elegeu seu mandatário pelo voto democrático. Mara viaja um pouco pelos traços de Oscar Niemeyer, e busca leveza em meio a linhas retilíneas, racionais, tensas. A linha horizontal é um grande estrada federal, que corta o país em sua dignidade, a dignidade de servir às demandas do ir-e-vir da Economia Brasileira, no transporte de riquezas pelos quatro cantos do país, numa terra cortada por vias que visam servir a essa insaciável demanda do corpo social. As linhas verticais são duas vias que tramitam em sentidos contrários, levando e trazendo comida, materiais de construção e outras mercadorias, numa demanda que nunca cessa, que nunca está satisfeita, num país em eterno crescimento, sempre buscando mais. De cabeça para baixo, é uma mesa com um pilar duplo central, num restaurante, servindo à capital necessidade de alimentação. É como um sacarrolha, com suas asas prontas para abrir um bom vinho, delicioso, irresistível, no romance tradicional e poético da rolha de cortiça. É uma libélula ou um beijaflor, com asas em movimento perpétuo, incansável, na luta diária pela sagrada alimentação, pelo sagrado pão diário;

2) Goleiras de futebol americano, na luta diária e agressiva pela vida, por um lugar ao Sol, no aspecto bélico de encontrar-se na vida, pois, como disse Dercy Gonçalves, a vida é luta. É uma versão retilínea do símbolo da Psicologia, na beleza da busca pela felicidade, na beleza da vitória sobre os obstáculos, os quais aparecem para ajudar e não para atrapalhar, pois as crises são positivas. É o adorno religioso egípcio na cabeça de Ísis, no poder explosivo destruidor do Isis, do modo como uma supernova estoura, como uma estrela inegável e inignorável – o artista quer brilhar. Há um magnetismo entre dois pólos opostos, no magnetismo da imaginação artística, emocional, instintiva, inocente, de modo que Erico Veríssimo, ao ser questionado porque o nome “Ana Terra”, o escritor disse que escolheu “Ana” por ser um nome curto e simples. Como me disse um artista plástico que conheci, nunca use a obra contra o artista, porque, se o usasse, será uma sacanagem, pois ser artista é colocar a cara a tapa. Portanto, dar um tapa na cara do artista é uma sacanagem. É uma placa de trânsito debilitada, abandonada, que perdeu sua função de guiar e informar, na melancolia do depressivo, que não consegue enxergar para si um lugar no mundo, mergulhando no fundo de um poço, precisando fazer um esforço enorme para se reerguer. É um prédio de duas torres erguido sobre um pilar frágil, delgado, o qual tem mais força do que parece ter, sendo subestimando e, assim, podendo surpreender os que o subestimavam, fazendo com que se redimem. É uma formiguinha trabalhadora, incansável, sempre construindo, laborando, sempre sendo digna por meio de seu próprio trabalho, construindo pequenos palácios de terra, com suas veias intricadas e complexas, num labirinto minúsculo, no qual só as formigas conseguem se locomover sem se perder. Mara é uma montadora de Lego, sempre reinventando novos quadros, sempre com o cuidado de não se repetir, do mesmo modo como cada pessoa tem suas próprias impressões digitais, na identidade artística, sempre montando e remontando, como castelinhos de areia, fadados para ser devorados pelas ondas e pelo vento. A impressão que se tem é a de que Mara brinca com retangulinhos, imaginando novas formas de uso. São vias de uma cidade entremeando-se, com vias passando por baixo e por cima umas das outras, como veias e artérias num organismo vivo, sempre pulsando e veiculando sangue por veios incansáveis. Cada xilo de Mara é nova, e é preciso ter uma boa memória para ter certeza de que não fez algo que já foi feito por si mesma, numa verdadeira memória fotográfica, fisionomista, capaz de diferenciar, por exemplos, chineses, um povo tão homogêneo. É um robô de grandes pernas e descomunais braços, como uma máquina em uma obra, construindo cidades e desenvolvendo o mundo, no desenvolvimento da mente artística, tendo no artista um agente, numa pujança de uma cidade incessante como Caxias do Sul, num parque industrial invejável, só sendo superado no Brasil por São Paulo. É engraçado o fato de eu ter recém usado o aspirador de pó no apartamento onde moro, e esta xilo tem o formato muito semelhante ao porta-refil que traz a poeira par dentro de um saco de papel descartável, no sentido de que Tao é limpeza, minimalismo, e Mara é limpa e minimalista, japonesa, disciplinada, rechaçando excessos gráficos. As xilos dela são como um alfabeto enigmático, estranho, incompreendido, mas que aprece ter toda uma função de comunicação, numa linguagem do artista, um ser enigmático, sempre – existe algo mais monótono do que um artista óbvio e previsível? No mercado fonográfico mundial por exemplo, só sobrevive quem se reinventa, pois o público nota na hora quando o artista está com preguiça de fazer algo novo e fresquinho.

Acima, Pas de Bourrée I e Pas de Bourrée II, xilogravura / 2 livros de artista do ano de 2016. Medidas: 0,22m x 0,22m (fechado) / 1,12m x 0,22m (aberto). Ater-me-ei às xilos mais visíveis, expostas. Sinais de “igual” em uma equação, no cálculo emocional artístico, do modo como o autor deste blog odiava Física e Matemática no colégio, tendo repetido de ano por causas dessas disciplinas. São dois blocos residenciais iguais; dois gêmeos se desenvolvendo dentro da mesma barriga, sempre compartilhando do espaço, desde sempre. O artista é uma gestante, dando à luz nos momentos redentores que são as catarses, no vômito saudável da Arte, a qual tem o poder de curar a vida em Sociedade, gerando debate acalorado, gerando intelectualidade, do modo como nos faz tristes e prostrados o recente episódio de censura artística em Porto Alegre. As catarses têm poder avassalador, e tentar freá-las é inútil – o artista não pode ser julgado moralmente, como num sistema ditatório, que é mentalmente castrador. Não deve ter sido a vida dos artistas durante o Regime Militar do Brasil. Aqui, os sinais evocam a Igualdade da Revolução Francesa, no sistema democrático no qual todos os cidadãos valem o mesmo peso, desprezando as classes sociais, as diferenças de etnia e raça, o gênero, a sexualidade, a religião etc. É um afaça de dois gumes, pois, numa ditadura, os cidadãos são iguais no sentido de serem indistintos tijolos numa parede impessoal – a Ditadura é uma cópia grosseira da Democracia. Todas a xilos de Mara são iguais em dignidade, só que cada uma tem sua personalidade, o seu direito de ir e vir, a sua identidade única e inconfundível, como na riqueza da galeria de personagens construída por Chico Anysio, com personagens tão distintos que fica impossível dizer que um é semelhante a outro – ser artista é ser mãe de muitos filhos, com cada filho sendo especial. São duas vias na Avenida Paulista, amplas, desenvolvidas, alimentando a urbe com estressantes (e inevitáveis) congestionamentos de veículos, como já ocorre em Caxias do Sul. Marcas de pneu no asfalto, numa pessoa deixando sua marca no mundo, para depois desencarnar e voltar para casa. Um carro que freou bruscamente, tomando cuidado, dirigindo cautelosamente, sempre atento, como se estivesse em areia movediça. São as tradicionais listras nos uniformes da Adidas, convidando ao ar livre, à vida, pois, já ouvi dizer, o nervo da Arte é a vida – censurar é morte. As frágeis páginas translúcidas de Mara convidam à delicadeza, e é um pedido: seja gentil ao folhear estes livros, pois o que é frágil vence o que é bruto. As páginas de Mara são leves, autênticas em sua transparência, nunca tentando esconder, nunca tendo vergonha, nunca se autocensurando – a censura é inimiga da Arte; é anti-Arte. Uma pessoa que respeito disse-me que a Festa da Uva de Caxias do Sul é um ato de saúde coletiva, e assim é a Arte: saúde, como num brinde entre amigos exclamando Saúde. São dois olhos robóticos atentos, racionais, desprovidos de sofrimento, encontrando prazer na atividade de criar. Os quatro retângulos são quadrigêmeos, esperando pelo apoteótico momento de nascimento, de sair de casa e enfrentar o mundo lá fora, na inevitável vicissitude da encarnação. Mara é a completa negação do clichê industrial, sabendo que a repetição é monótona e desinteressante, sendo a criatividade o grande trunfo artístico, na vitória do humano sobre o desumano. Há uma divisão entre planos – um inferior e outro superior, como pavimentos em um estacionamento, dando conta da demanda urbana por vagas de estacionamento, numa frota em constante e irrefreável crescimento, do modo como o artista vai criando sempre, tendo que, cedo ou tarde, “desovar”. São quatro falos organizados, como viaturas de polícia, guardando corpo social, zelando pela segurança dos cidadãos de bem. Zelar pela Arte é amar o pensamento humano, no sentido psicológico de que Saúde é um conceito indecifrável, do modo como Tao é indecifrável, distanciando-se dos decifráveis e detectáveis padrões comportamentais patológicos.

Acima, Fouetté, xilogravura do ano de 2016. Medidas: 0,63m x 0,53m (cada quadro) / 2,60m x 1,10m (para série em parede). Aqui, Piet Mondrian é observável, mas Mara não o copia descaradamente, pois é inaceitável e insuportável para um artista imitar outro artista, repudiando trilhar caminhos já trilhados. Há pequenos respiros de quadrados brancos entre as extremidades dos delgados retângulos negros e outros nem tão delgados. São “esqueletos” de prédios em obras, com a essência estrutural já declarada e delineada, esperando pela “carne”, ou seja, o cimento, os tijolos e demais materiais. É o processo de construção de um artista, que age com paciência e vai desenvolvendo, numa gestação da alma. São como aranhas retilíneas, movimentando-se por uma casa cheia de teias, num verdadeiro lar aracnídeo, com pequenos bichinhos tomando o respectivo lugar, no ditado cada macaco no seu galho. Cada “aranha” tem seu lar, sua teia, sua casa, e os limites de vizinhança são amplamente respeitados, e nunca vemos um invadindo o território da outra, como nações pacíficas, que só entrarão em guerra se provocadas, como na tensão entre EUA e Coreia do Norte. São labirintos intrincados, como no filme O Iluminado, nos meandros patológicos de um surto psicótico irrefreável, como numa cilada, na aranha que tece a teia e espera pacientemente por uma mosca desavisada, como no monstro terrível Laracna de O Senhor dos Anéis, um ser sempre faminto, insaciável, que vive para devorar o mundo, no terror destrutivo das tensões entre pessoas e países. É a “dura” linguagem binária, sem espaço para arco-íris nem para borboletas multicoloridas, na paixão de Mara pelo preto & branco, na disposição clássica dos contrastes, na elegância das teclas de um piano.

A seguir, falarei de cada quadro individualmente, na seguinte ordem: começo pelo quadro à esquerda superior, seguindo na mesma reta até a direita superior, depois partindo pela esquerda inferior à direita inferior, enumerando os quadros de 1 a 8.

1) Um catavento em ciclos ao vento, apontando para todos os pontos cardeais, no sopro de vida na encarnação de um artista, o qual tem que decidir o que fazer da vida. É a roda econômica de uma cidade pujante como Caxias do Sul, em um dia-a-dia atribulado e movimentado, nas demandas de um mundo sedento por Arte, sempre querendo novidades, sempre sedento pelos novos movimentos de um artista. É um ciclo de estações do ano, tendo em Caxias uma cidade com as estações do ano relativamente nítidas e diferentes umas das outras, com as azaleias coloridas, as ondas de calor e as chuvas de verão, as folhas morrendo nas árvores e as frentes frias avassaladoras que flagelam a Serra Gaúcha e Catarinense. É o ciclo de um dia, com o despertar, o almoço e o sono no fim da jornada;

2) Duas letras A grudadas, compartilhando uma parede, como dois vizinhos de porta, convivendo em harmonia, um com a chave reserva da casa do outro, numa relação de confiança. É a letra oficial do alfabeto, nos princípios de criação artística, tendo o artista critérios próprios para criar, como é em Mara a retilinidade bicromática;

3) Aqui, os As estão centralizados, no centro do interesse do quadro, dividindo perfeitamente a cena entre esquerda e direita. É quase uma Cruz de Malta, símbolo dos guerreiros cristãos, como no peito de He-Man. São duas pessoas unidas, do modo como o artista quer se unir ao mundo mas, ao mesmo tempo, não se deixar descaracterizar;

4) Repetição do quadro 1, e os ciclos dos ventos continua, ventilando este conjunto de quadros, trazendo vida e circulação de ar, por pulmões e coração, na essencialidade da vida;

5) Conjunto altamente assimétrico. O lado esquerdo do quadro está alvo, com a estrutura negra recolhendo-se com castidade para o lado direito, buscando discrição, sem querer ser a estrela de algo. O prédio está em pleno labor de construção, no galgar econômico de uma cidade em constante crescimento e reinvenção, apesar do peso da tradição ser tão considerável. Os retângulos menos delgados formam uma cruz perfeita, nos princípios religiosos de uma cidade que nasceu católica apostólica romana, na busca de Jesus por identidade, por destaque, por fama, por respeito;

6) Esta estrutura também está recatada, recolhida e tímida, em sutil assimetria. O grande e grosso retângulo ao centro é o sustentáculo, como um patriarca, que mantém uma família unida, como em almoços de domingo e feriados, como na obrigatória reunião familiar na noite de Natal. As listras em kilt estabelecem contatos, ligações telefônicas, ligando as pessoas em meio aos avanços tecnológicos. A pujança das cidades é sedutora e inspiradora, e o artista quer fazer parte disso tudo;

7) Outro conjunto quase simétrico, também recatado, como numa movimentada ponte de dois pavimentos, no ir-e-vir de embarcações que precisam passar pelo marco, no ritmo frenético de malhas viárias, nos preços milionários de grandes obras de infraestrutura;

8) Aqui, a simetria retorna triunfante. Ao centro, uma letra T, que sobe e desce conforme as necessidades de tráfego, tirando daqui e colocando dali, sempre em demanda de fluxo, como no fluxo de ideias da mente artística. O T é de tempo, tráfego, trânsito, numa letra de desenho simétrico, como uma via grande ramificando-se em vias menores e coadjuvantes, alimentando todo o organismo com sangue e oxigênio.

Foi um prazer para mim falar em quatro postagens sobre Mara De Carli. Que venham mais trabalhos dessa artista de mão cheia!

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Diferenciar a Igualdade




Volto a falar sobre obras de Mara De Carli que foram indicadas ao Prêmio PIPA 2017 do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Um, xilogravuras de 0,50m x 0,35m (cada quadro) / 2,60m (para série em parede). Ano de 2016. Como eu já disse anteriormente, são como códigos de barra em produtos; como resultado de um exame de DNA na busca de cada artista por identidade e diferenciação, do modo como qualquer ser humano quer se diferenciar e se destacar. É uma porta giratória em pleno movimento, controlando entradas e saídas, regulamentando o movimento, regrando a sociedade, nunca deixando alguém de fora, sempre agregando. É um código binário, emitindo sinais em Código Morse, no piscar das estrelas à noite, na charmosa simplicidade do preto & branco. Aqui, alguns quadros são simétricos; outros, não, tendo em Mara uma testadora de possibilidades, numa imaginação inesgotável, sempre sabendo dar ritmo e criatividade ao frio “carimbo” xilográfico. Mara é uma exploradora de possibilidades. A repetitividade é insuportável para um artista, qualquer artista, porque, se não há reinvenção, as pessoas passam a desinteressar-se do artista. E isso serve para qualquer nível. Na música pop mundial, por exemplo, existe uma pessoa artista, cujo nome não mencionarei, a qual não soube sobreviver aos anos 80, e está passado o resto de seus dias cantando o mesmo velho repertório. É claro que grandes canções imortais merecem ser tocadas, mas, no meio disso tudo, tem que haver material novo na praça. O frio código de barra identifica o produto, o cidadão, num código numérico, como em um campo de concentração, e nomes transformam-se em números. É a questão da igualdade democrática, sendo que o voto de um cidadão não tem peso maior ou menor do que o do voto de outro cidadão. É a contradição da igualdade: somos iguais e, ao mesmo tempo, temos que ser diferentes. O artista jamais vai querer ser apenas um tijolo indistinto em uma parece de tijolos indistintos. Portanto, apesar da igualdade ser necessária, ela deve ser moderada, nunca resultando em sistemas ditatoriais, no qual o artista torna-se escravo de uma ideologia, obrigado a produzir Arte sob o zelo incessante do Estado. Mara gosta de trabalhar, como eu já disse, com linhas retas, trazendo quadrados e retângulos. São como onda sonoras propagando-se no espaço aberto, ou como ondas de luz, que viajam muitos anos-luz para chegar à retina dos seres humanos. Minha querida avó Nelly, falecida em 1992, era professora aposentada e poetisa, e em um de seus poemas ela disse que as estrelas coruscando no céu noturno são os artistas e poetas falecidos que, do céu, emitem em Código Morse suas poesias, vivendo para sempre. O sonho do artista é encontrar essa dimensão de eternidade, envolvendo o mundo. E por que o título Um? Porque esses dez quadros formam um só organismo, um só sistema, com variações para o mesmo princípio xilográfico. É como se o DNA tivesse sido desmembrando em dez frações, sendo que a união das frações traz todo o código genético de um ser vivo. É Um, porque cada ser humano é especial, é um filho de Deus, e este é o poder único e máximo, regendo e unificando um universo tão diversificado e plural, com cada filho sendo único, inequiparável, original, com sua suma identidade espiritual. Num sistema livre e democrático, somos todos iguais e diferentes. É como uma impressão digital, e cada quadro aqui não tem igual, pois, se o tivesse, este Um seria tão monótono. É por isso que a criatividade é importante, pois o ser criativo diferencia-se, como Mara aqui, sempre honrando a diversidade. Hoje, por exemplo, na rua em Caxias, vi duas moças muçulmanas, e o respeito é a base de qualquer democracia. Essas formas de Mara remetem à racionalidade, ao pensamento lógico, técnico, numa artista no mais completo controle técnico da xilogravura. É como uma porção de cerâmica mole pronta para ser transformada.

A seguir, falarei de cada quadro individualmente, na seguinte ordem: começo pelo quadro à esquerda superior, seguindo na mesma reta até a direita superior, depois partindo pela esquerda inferior à direita inferior, enumerando os quadros entre 1 e 10.

1) É um jogo de tênis ou pingue-pongue, com ritmo de movimento, com uma bola indo de um lado ao outro, remetendo a um antiquíssimo videogame dos anos 80, no qual uma bola debatia-se entre dois retângulos móveis na laterais da tela. Um retângulo está fugindo do outro, na dilaceração entre opostos. É como uma mola sendo esticada ao máximo, abrangendo dimensões, fazendo um esforço. O retângulo da direta movimenta-se para sair do quadro, enquanto o da esquerda está imóvel, sendo abandonado, como num casal se separando, ou como num casal que, morando junto, cada um tem que ter o seu cantinho no lar, o seu território, o seu reino. Mas, ainda assim, mesmo nessa polarização, os retângulos formam um conjunto, um casal, e os retângulos fininhos no meio do quadro são como uma prole, uma ninhada, em um pai e uma mãe desdobrando em quinze para dar conta das demandas de um lar.

2) Aqui, total simetria, e polarização, com o grande quadrado ao centro, ladeado por dois retângulos. Centralização, num pensamento (con)centrado. É como uma rainha da Festa da Uva ladeada por duas princesas, num apelo clássico e tradicional, num equilíbrio fácil de ser observado. O arquiteto Oscar Niemeyer produzia muito de simetria, buscando um equilíbrio mais implícito. É uma fechadura simétrica, guardando um segredo, esperando pela chave fálica para a fechadura ser deflorada e devastada, no apelo erótico da junção de opostos – Yin e Yang formando um só corpo. É um enigma sendo decifrado, como decifrar hieróglifos. São três pistas na estrada, com a pista central maior sendo para o uso de ônibus, na demanda do trânsito de uma grande cidade.

3) Cortinas balançando em meio a uma agradável brisa de verão, como na tela de fundo de telejornais do canal Globonews, como na cena inicial de Il Gatopardo, com cortinas sensuais balançando do tórrido sol veranil italiano, na sensualidade frutífera das vindimas, na celebração da vida, da doçura inebriante, do trabalho gerando resultados. É uma marca de pneus no asfalto, numa via calejada, já muito usada, do modo como o artista deixa marcas no caminho que trilha, deixando um legado para o mundo. É uma fila desordenada, tensa, bagunçada, como num engarrafamento de trânsito, no caos de fim de dia em uma cidade pulsante, em vias nas quais os veículos passam por contagotas, chegando no ponto da gota d’água, no limite.

4) Aqui, o quadrado pede mais espaço, espraiando-se e comprimindo os retângulos aos seus lados, como uma grande porta sendo aberta, como no extinto programa Porta da Esperança do SBT, na esperança de alguém querendo ser reconhecido. O quadrado central está quase sozinho, protagonista, egoísta, querendo ter todas as atenções para si, querendo roubar o espetáculo, roubar a cena, num ego de estrelismo, como na narcisista Piggy de Os Muppets, um personagem absolutamente megalomaníaco o qual apaixona-se exatamente por um personagem modesto, discreto e despretensioso, que é Caco, o Sapo, na junção de opostos. O quadrado quer expulsar tudo e todos, apoderando-se do mundo.

5) Aqui, duas classes debatem-se: retângulos mais gordinhos contra retângulos mais magrinhos, em linhas sempre verticais no conjunto Um. São como cigarros mais delgados e charutos mais grossos, havendo aqui diferenciação, e podemos ver muito claramente quem é quem, não restando dúvidas. São vistas aéreas de ruas e avenidas, sendo algumas vias maiores e mais utilizadas do que outras, havendo aqui uma hierarquia: vias mais atribuladas são mais amplas, enquanto as vias menos trilhadas são menos expressivas e mais pacíficas.

6) O espaçoso quadrado central está de volta, e aqui, de fato, está praticamente como protagonista do quadro, ladeado por dois retângulos bem fininhos, quase invisíveis. Aqui, o plano de protagonismo está praticamente concretizado. Ninguém pode com este quadrado, como um ator egocêntrico que se acha, simplesmente, o centro do universo, levando os aplausos ao nível do seu próprio monstruoso Ego. Os retângulos fininhos são uma mera moldura, num modesto papel mínimo, como na relação entre cidades capitais e cidades do interior, em um mesmo estado federativo. Mas é graças aos retângulos fininhos que percebemos o portentoso quadrado, num jogo de contraste, onde os opostos, como Yin e Yang, abraçam um ao outro. Talvez, sem os retângulos finos, não perceberíamos a presença do quadrado, numa relatividade.

7) Os retângulos aqui são quase iguais em espessura, havendo uma diferenciação sutil, sem grandes alardes. São teclas de um piano, como no doce piano de Diana Krall, uma das maiores jazzistas do Mundo. É um sorriso metálico, como uma boca de robô, expressando os códigos binários do pensamento racional, numa construção técnica de um espírito. Na mortificação espiritual pregada pelo o Espiritismo: mortifique-se e terás paz, sem ilusões, sem pensar em bobagens. É a elegância do preto & branco.

8) Aqui, há também uma diferenciação mínima entre os retângulos. São cinco portas, com a central sendo um pouco maior, e cada porta leva a um destino, um lugar, forçando o indivíduo a fazer escolhas, e definir rumos de vida, pois, disse-me uma grande amiga psicóloga, a vida é feita de escolhas. Dá para perceber que a porta central é a mais usada, mas isso não tira a dignidade das portas mais estreitas. Outra interpretação é sob a luz do Taoismo: o grande caminho, o caminho central, é fácil de ser detectado, mas, infelizmente, as pessoas são sempre seduzidas por portas secundárias, as quais a nada levam.

9) Lápis e canetas cuidadosamente, neuroticamente organizados, numa tentativa de impor ordem a um mundo tão caótico e aguerrido. Com suas catarses, seus vômitos artísticos, o artista quer paz para poder produzir e pensar. O atelier do artista é o seu porto seguro, seu canto, seu reino, no qual a quietude reina para fazer do silêncio e da paz a sua argila mole. São as janelas de uma mesma casa, só que cada uma com uma função diferente, sendo umas mais amplas e outras menos, como numa delgada fenestração de banheiro. Cada um com sua função, no sentido da trilogia Matrix alegar que, quem não tem função, é “deletado”. E o artista quer encontrar essa função.

10) Aqui, a assimetria volta, enigmática. Temos três níveis de espessura: magro, intermediário e gordo, como no quadro 3, numa pluralidade na qual os elementos convivem. O retângulo gordinho está meio solitário, esquecido, enquanto há mais ação no lado esquerdo do quadro, mais diálogo. É uma casa moderna, de linhas retas, racionais e simples, como na arquitetura de casas modernistas dos anos 20, as quais seguem sendo extremamente vanguardistas quase cem anos depois de sua construção. É o poder da simplicidade, na qual menos é mais. Forte é fraco, fraco é forte, diz Tao. O retângulo fininho está “prisioneiro” dos retângulos intermediários, enquanto o gordo, apesar de solitário, está livre. Há a tentativa de preservar e proteger o fininho, o qual é frágil e inexperiente, ladeado por pais protetores.

Acima, Corrediças, xilogravuras de 0,50m x 0,70 (cada quadro) / 1,30m (para série em parede). Mara nos traz movimento, com corrediças de portas, ou janelas, ou gavetas, num abre-e-fecha incessante, na demanda de uma casa ou escritório. Mara teve muita criatividade para dar movimento a simples retângulos delgados pretos, trazendo uma releitura geométrica – o bom artista pensa de forma diferente dos outros seres humanos, imaginando possibilidades. Essas formas são como bolhas de sabão, só que quadriculadas, com bolhas em um banho de espuma em uma majestosa banheira, parafraseando Rita Lee: Que tal nós dois numa banheira de espuma? Mara tem uma veia arquitetônica, e essas obras parecem ter sido imaginadas como um projeto de casa, planejando o aproveitamento do espaço original, desbravando o vazio e preenchendo-o. É muito sensual o vazio de gavetas desocupadas, numa espécie de buraco negro, trazendo tudo e todos consigo, como num furacão que recentemente passou pelos EUA, de modo que o objetivo do artista é fazer o chão tremer, rechaçando o anonimato, aniquilando este. Parece um projeto de designer de móveis, com móveis planejados, sob medida, na dignidade do móvel, que é ser útil. São janelas de computador, numa demanda digital, com vários arquivos abertos ao mesmo tempo, carregando a memória. São engrenagens industriais, fabricando coisas, no ritmo desenfreado na Revolução Industrial, na esteira do clichê, clichê este rejeitado pelo artista. São engrenagens de um veículo automotor, produzindo velocidade e desempenho, dando conta da ambição humana de sempre fazer mais e melhor. Cartas de baralho dispostas na mesa, no modo como o jogador não pode demonstrar emoções ao jogo, para não entregar o jogo ao oponente. Várias janelas abertas e fechadas, na dignidade de seu vazio, que deixa a luz e o ar entrar. São os arquivos da mente, sempre catalogando, às vezes equivocando-se, tendo lapsos de memória, no modo como a mente é um armário cheio de gavetinhas, dentro das quais a pessoa coloca o que quiser. São os porões do inconsciente, cheio de assuntos dolorosos e espinhosos, na tendência humana de preferir deixar a dor aprisionada, para que a dor não incomode, como no processo de psicoterapia, no qual o terapeuta ajuda o paciente a desenterrar traumas e vencer estes. Fantasmas desenterrados. São fantasmas levitando, ascendendo e descendendo, no vaivém de uma casa cheia de crianças. É um idioma enigmático, estranho, desconhecido, desafiando o tradutor, durando em seu enigma linguístico. Uma estampa original, racional, pois, como eu já disse, é difícil ver Mara em linhas curvilíneas e orgânicas. Mara gosta do truncado retilíneo. É como uma criança criativa, que brinca de montar castelos com quadradinhos de madeira, atiçando a imaginação. O artista é como uma criança brincando e testando limites, buscando compreender o que é bom e o que é mau, para que, assim, adquira o discernimento adulto. O prazer de sentir o cheiro de madeira nova em um móvel recém-comprado, no odor de serragem. São a vista externa de janelas em um prédio, mas num prédio de arquitetura vanguardista, corajosa, incomum, estranha, arquitetura na qual não há padrões comuns de disposição de fenestrações, subvertendo a ordem previsível. O artista é um furacão o qual não foi previsto, sempre surpreendendo. São pedaços de casas boiando nas águas de uma grande enchente, mas a enchente aqui é ordeira, retilínea. Cada um dos dois quadros aqui são janelas, são dois olhos abertos, observando o cosmos, explorando, nos dois lados do cérebro: Yin e Yang.