Apaixonei-me por Escher por meio do filme Labirinto – A Magia do Tempo, película
com outro mestre, David Bowie. No filme, a personagem Sarah tem que decifrar um
traiçoeiro labirinto para resgatar seu irmãozinho Toby, raptado pelo tirano Rei
dos Duendes, Senhor do Labirinto. Nos momentos finais da trama, Sarah entra em
uma câmara cheia de escadas, num lugar onde não há Norte, não há referência,
não há centro gravitacional, numa forte perda de referências, de noção. No
quarto de Sarah, aparece sutilmente uma gravura de uma obra de Escher. O
labirinto era essencialmente isso: desnorteamento. Inclusive, já falei sobre a
película aqui no blog, sendo uma de minhas primeiras postagens. Certa vez, em Porto Alegre, adquiri
um livro pequeno sobre Escher, e, na faculdade, quando um colega meu me viu
acessando imagens de Escher, este colega ficou fascinado com o traço mágico do
artista. Em outra oportunidade, há anos, quando eu viajei para a cidade de São
Paulo com minha família em um feriadão de Corpus
Christie, estava ocorrendo uma mostra interativa da obra do desenhista, mas
a fila era tão longa que acabei desistindo, e isso que era feriado na cidade,
com muitas pessoas passando a data fora da cidade, ou seja, São Paulo não pára.
De traço genial, Escher é indiscutivelmente majestoso, como o Rei dos Duendes.
Sua arte nos envolve e permanece um enigma, na inesgotabilidade de um talento
claro, fruto de uma mente paciente e altamente imaginativa. Sua obra tem
movimento, muito movimento, e nos parece que cada um de seus trabalhos é uma
pequena tela de Televisão ou de Cinema – Escher tem algo de cineasta, e viveu
no Século XX, que correspondeu a cem anos marcados pelo surgimento, crescimento
e consolidação da Sétima Arte. E tem mais: podemos quase ouvir sons nos traços
de MC.
As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Dia e Noite,
xilografia, ano de 1938. Como num jogo de xadrez. Escher compreende Yin e Yang,
e nos traz opostos em um delicioso contraste. Sua maestria no domínio das
formas traz-nos uma metamorfose, e as lacunas brancas dão corpo aos pássaros
negros, e viceversa. O artista joga consigo mesmo, tentando conciliar seus
opostos, seus dois lados do cérebro, no sentido de que, na luz, nada mais
natural do que a sombra, como na xilogravura, que funciona por meio do
preenchido e do vazio, criando imagem. Os pássaros estão em movimento, voando
para direções opostas, rasgando o quadro ao meio, catarseando uma Bipolaridade.
Os vales de Escher são todos plantados, agrícolas, produtivos, trazendo
abundância e alimentos para o reino, do modo como Escher aproveita cada
pedacinho do próprio talento, num vale fértil que, de tão vasto, foge à vista.
Temos um céu alvo e um céu mergulhado no negror, no clássico da Broadway Children Will Listen: “Nada é totalmente
negro; nada é totalmente branco”. No sentido de que a pessoa, por mais otimista
que seja, não pode “baixar a guarda” totalmente, sempre trazendo uma pontinha
de agressividade em meio à delicadeza e a feminilidade. O rio sinuoso corta o
vale, abastecendo-o, como um Nilo, a raiz da riqueza egípcia antiga. O rio é
sensual como o galgar de uma serpente, líquida, orgânica, insinuando-se,
trazendo dois rios, cada um em um certo momento. Então os terrenos plantados
transformam-se em
pássaros. Mas, mesmo nesse contraste bipolar, existe uma
genial continuidade entre o “reino branco” e o “reino preto”: a luminosidade
permanece na mesma na cor azulada dos vales férteis, e este azul revela-se
amigo de ambos os lados, como num diplomata, mediando pacientemente entre duas
nações opostas. É impressionante a paciência de Escher em desenhar
meticulosamente, encontrando lugares nos quais as formas moldam-se, numa
compreensão profunda de desenho. A impressão que se tem é a de que o quadro
ficará em paz, e os opostos finalmente se reconciliarão, formando um só corpo,
um só caminho: Tao. Ao espectador são dadas dois caminhos, sendo que os rios
opostos levam ao mesmo destino, e o espectador tem que escolher de que lado do
tabuleiro ficará, jogando e divertindo-se. Escher é divertido, dono de um senso
de humor potente. O tom azulado dá harmonia ao conjunto, na promessa de paz e
de uniformidade, no sonho de um futuro em que opostos se abraçarão. No final
das contas, temos um vale só, como se um espelho “mágico” refletisse o oposto,
estando este espelho bem no meio do quadro. As aves, apesar de ser tão
contrastantes, são irmãs, são filhas do mesmo princípio, e as diferenças
precisam ser respeitadas, em um só útero, uma só mãe. O quadro traz uma vontade
de harmonização, equilíbrio, como um vinho harmonizado com uma comida
pertinente. O rio claro reflete o céu branco; já, o rio negro rende-se à noite.
E os conjuntos arquitetônicos, como uma cidadezinha, são iluminados pela luz
externa na esquerda e, na direita, a luz vem de dentro das casas. As pontes são
promessas de união, de diálogo diplomático, na paciência de um conciliador.
Escher tem muita calma ao desenhar e projetar, muita calma e disciplina, encontrando
lacunas pertinentes para fazer do negativo o positivo e viceversa, sempre
brincando com o olho do espectador, lançando charadas. É a ironia de Escher.
São como dois reinos vizinhos, duas casas reais, unidas pelo casamento entre um
representante de cada casa, produzindo uma linhagem em comum, uma promessa de
paz em meio a um mundo tão heterogêneo. É o globo terrestre, intercalando os
lados da esfera entre dia e noite, entre inverno e verão. Preto & branco
são um só. Podemos ouvir o som de pios e de asas batendo, na liberdade do ar
livre, e as águas correm caudalosas e ruidosas. Este trabalho me faz recordar
de uma obra que vi certa vez em
Porto Alegre, com dois quadros: um coberto por um véu branco;
o outro, preto. Este última me deu um curioso medo, mas essa sensação só foi
possível por causa da base de comparação, de relatividade. É como diz Tao: se
você diz que algo é belo, é porque
você conhece o oposto, que é feio.
Acima, Relatividade,
litografia, ano de 1953. Aqui, o mais divertido é observar que podemos ver o
quadro de qualquer lado, com Escher nos convidando a nos deliciar com essa
ironia, essa brincadeira. O título, é claro, diz isso, no sentido de que o
Norte pode estar em qualquer lugar ou posição, num quadro que gira
intermitentemente, como um disco de vinil ou um CD, na grande invenção que foi
a Roda. Aqui parece um formigueiro, com formigas caminhando em todas as
direções, desafiando a Lei da Gravidade. Os bonecos são impessoais, sem rosto,
anônimos, obedecendo a uma lei que reduz tudo a uma média, um padrão, ao
contrário do modo como um artista odeia ser apenas mais um. Escher opera bem a
questão da luz, iluminando seus quadros com tons de cinza e com alguns aspectos
em branco. A
impressão que se tem é justamente o desenho estar iluminado, com vãos claros
que saltam do quadro e iluminam como se houvesse lâmpadas no quadro. Cada
“boneco” está fazendo uma coisa diferente, ocupados com o seu dia a dia e
indiferentes aos negócios alheios. Cada ser aqui está centrado no próprio
umbigo. Uns carregam coisas; outros simplesmente caminham; outros estão
acompanhados, e vemos um casal caminhando e outro almoçando, e podemos delinear
a diferença de gênero porque os bonecos femininos usam saias. Aqui, temos
harmonia, e ouvimos os passos cruzando o labirinto de escadas. Escher
diverte-se com a falta de centro gravitacional, e brinca com as percepções
espaciais do espectador. Suas escadas são meticulosamente desenhadas,
perfeitamente retas, na precisão de um arquiteto – Escher tem alma de
arquiteto. As portas, arcos e janelas são romanos, arredondados, contrastando
com as escadas retilíneas. Imagina-se o quanto de tempo e dedicação Escher teve
para fazer cada uma de suas obras, numa dedicação inegável e clara. Há vasos de
plantas e há árvores, enfeitando a cena, num Escher que ama a vida em ar livre,
na libertação do outdoor. Eu tenho uma sugestão para quem lê esta postagem:
grave esta imagem em seu computador e, então, no programa de edição de imagens,
vá girando este quadro, sendo isso muito divertido, pois em cada ângulo o
quadro muda radicalmente. As escadas são presentes, mas não aprisionam a cena,
deixando vãos livres para que o trânsito flua harmonicamente. É uma sala
multifacetada, arejada, e nenhum dos ângulos de observação está totalmente
certo ou errado. Sente-se uma suave corrente de ar, e tudo aqui flui com o ar
circulando saudavelmente. Os arcos distribuem a luz, e não há espaço aqui para
pensamentos sombrios e escuros. Um garçom equilibra uma bandeja com um copo e
uma garrafa de vinho, provavelmente servindo o casal que almoça na mesa acima.
Neste quadro há labor e vida, e nada fica parado ou atravancado. Há fluidez. Os
barulhos de pés caminhando, subindo e descendo escadas, misturam-se uns com os
outros, numa casa onde há muita vida, muito propósito, apesar do quadro não
dizer exatamente qual é o Norte da cena. Escher é um conciliador, e abrange a
acolhe diferentes pontos de vista, como em uma Democracia,
nunca sendo um ditador cruel que impõe com violência e estupidez alguma
doutrina, ideologia ou ponto de vista. Aqui, vemos diversidade e, repito, é uma
cena divertida. São os labirintos de uma colmeia, e cada “abelha” tem sua
função e sua dignidade, no sentido de que, quem não tem propósito, desaparece.
Respira-se um ar muito puro, como nos ares de liberdade democrática. Escher tem
uma mente que enxerga contradições, entendendo que tudo traz em sai a sua
própria contradição, do modo como o Norte é Sul, e viceversa. As escadas são
veias e artérias, cuidando da circulação de oxigênio e nutrientes pelo organismo,
num pulsas incessante de vida. Outro boneco carrega um balde ou vaso, cuidando
de alguma tarefa delegada, na sensualidade do vazio, do vago, que tem uso e
dignidade servindo para conter algo importante, como água. Aqui, não podemos
sentenciar, e temos que aceitar a infinita contradição entre os opostos. Tudo é
processo, e as sentenças têm prazo de validade. Vemos aqui árvores vivas,
frondosas, trazendo vida e beleza. No filme Labirinto,
a personagem Sarah sobe e desce as escadas, perturbada com a falta de noção, de
direção. São os labirintos da mente, expostos e debatidos em sessões de
psicoterapia. Escher tem uma monumental paciência, debruçado incondicionalmente
sobre a própria obra, amando-a. O casal caminhando são Adão e Eva no Éden, no
paraíso anterior à serpente e à infame maçã. Aqui, há um pedido por paz e
conciliação, harmonizando pontos de vista tão heterogêneos e singulares, na
ambição democrática de paz e entendimento.
Acima, Queda d’Água,
litografia, ano de 1961. Pura ilusão de ótica. O espectador é vítima de uma
peça travessa, e Escher faz para cima o que é para baixo, e viceversa. A água
que cai move o moinho, disso temos certeza. Só que o que era para cair sobe,
num ciclo intermitente, no enigma de Escher: quem veio antes – o ovo ou a
galinha? Uma pequena mulher estende pacientemente a roupa no varal, sem se dar
conta da mágica das águas, na demanda do dia a dia de um lar, com tarefas a
serem desempenhadas, do mesmo modo como labora Escher, pacientemente, nunca com
pressa de mostrar a que veio. No topo das duas grandes torres, formas
geométricas complexas, e uma delas traz um formato de cruz, abençoando as águas,
transformando-as em benta, numa pureza enigmática escheriana, fruto de uma
mente doce e inofensiva, do mesmo modo como sua obra desperta a doçura natural
do espectador, fazendo com que este abra sua própria mente à Arte,
deliciando-se com as contradições naturais do universo. Bem abaixo no quadro,
um homem contempla calmamente as águas, como se um espectador tivesse sido
“raptado” e levado para dentro da cena. Esse é um Escher contemplador, sempre
observando e reproduzindo em seu traço impecável. Escher abraça as
contradições, nunca as odiando, como se soubesse que são frutos do senso de humor
de Deus, um grande piadista. O homem observador depara-se com a grandiosidade
da cena, e Escher é grandioso em suas cenas, numa alma de diretor de cinema, de
realizador de grandes películas. Abaixo à esquerda, um exótico jardim, com
plantas diferentes, curiosas, alimentadas pela água misteriosa da fonte que cai
e sobe, desafiando parâmetros de referência espacial. Ao fundo, um vale em
degradê, com etapas bem definidas, truncadas, claramente marcadas pelas
diferenças de nível, do modo com a água cede à gravidade e ruma para o ponto
mais baixo, Tao, o destino uno. As águas seguem infinitamente fluindo, como
numa reciclagem de lixo seco, sempre reaproveitando e renovando, no ciclo
natural da vida, do modo como, no Planeta Terra, as águas estão em constante
renovação, pois a Terra não recebe água do espaço. Portanto, e reciclagem
planetária é o motor que rege a vida na esfera. Escher entende esse princípio
de renovação eterna, e traz para seu próprio traço essas leis inevitáveis que
regem a matéria, a dimensão material. É como numa estação espacial, na qual a
urina dos astronautas é convertida em água potável, pois não há condições de se
transportar água par ao espaço. Então, a bosta de animal fertiliza a terra. Aqui,
a cena é muito tranquila, num plácido momento de labor e contemplação, e
podemos sentir uma leve brisa, amena, num quadro que basta a si mesmo. É claro
que Escher tem uma veia de arquiteto, de projetista, trazendo-nos quadros que
poderiam ser convertidos em plantas arquitetônicas, só que num artista que sempre
brinca com as percepções, aproveitando da tendência do olho humano enxergar um
aspecto de cada vez: vejo a água subindo e, depois, vejo a água descendo. É
como se o artista estivesse construindo tijolo por tijolo, fazendo com que enxerguemos
não um quadro, mas uma cena movimentada de fato, fazendo-nos esquecer de que é
apenas uma obra de desenho. Aqui, não uma fonte de água, e a água renova a si
mesma. Escher é assim, exótico, um artista que simplesmente não morreu, como
todo grande artista. No pano de fundo, várias árvores, como na sensualidade de
oliveiras que geram a azeitona, numa sexy cena de uma tarde silenciosa, num
ponto onde há dois princípios: contemplação e trabalho. Pobre é o homem que só
trabalha; pobre é o homem que só contempla. Então Yin e Yang unem-se num só
vale, num só curso d’água, e o artista encontra a si mesmo, harmonizando-se com
o universo a seu redor.