Nesta postagem termino as análises de todas as obras de Mara
De Carli que foram indicadas ao Prêmio PIPA 2017 do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro. Mara é uma artista de criatividade infinita. As duas primeiras
obras aqui analisadas são em forma de livros, nos quais numerosas páginas
mostram a versatilidade da artista, a qual disponibiliza luvas ao espectador
para preservar assim a integridade das frágeis páginas. É um convite para uma
interação, pois, ao folhear os livros, o espectador entra no mundo de Mara, a
qual mergulha em criatividade pulsante, profunda. Falando em livros, estes têm
páginas tão numerosas que fica difícil analisar todas as xilos de Mara.
Portanto, ater-me-ei a analisar apenas o que é mostrado nas imagens a seguir. As
análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Adagio,
xilogravura / livro de artista do ano de 2016. Medidas: 0,47m x 0,36m (fechado)
/ 0,96m x 0,36m (aberto). Falo primeiro sobre a figura da esquerda e, depois,
da direita.
1) As duas grandes torres do Congresso em Brasília,
desafiando as alturas, numa cidade em crescimento, desfiando limites, crescendo
falicamente, rasgando os céus, numa artista sempre testando os próprios
limites. A grande linha horizontal é o horizonte vasto, quase infinito, num
universo tão grande, mas tão grande, que fica impossível apreendê-lo em sua
totalidade titânica. A linha horizontal supera as verticais, trazendo os pés
para o chão, para a realidade da força gravitacional. Horizontal e vertical
encontram-se, beijam-se, desfiando-se, tentando ver qual das duas é mais
suntuosa. A verticalidade divide entre esquerda e direita; a horizontalidade,
entre alto e baixo. A vertical perfura a horizontal, desvirginando-a,
violando-a, estuprando-a, no prazer da violação. Nas torres, há a divisão entre
passado e futuro, sendo que o presente é a delgada, mínima linha entre as
torres negras. Aqui, a simetria é completa, numa Mara meticulosa, caprichosa,
cuidadosa, sempre preocupada em ter precisão milimétrica, nunca pecando com
irregularidades. É uma borboleta abrindo asas e voando livre pela imaginação do
pensamento artístico, plainando pelas possibilidades geométricas. É uma antena
de TV ou Rádio, captando sinais, transmitindo informações, tornando comuns as
informações entre as pessoas que captam os sinais dos meios de Comunicação
Social. É uma estrada interrompida, talvez por um acidente ou um deslize de
terra, trazendo transtorno para o viajante, o qual desejava ter uma viagem
tranquila, rezando para a Nossa Senhora da Boa Viagem em uma estação
rodoviária. Um avião alçando voo e abrindo asas para cruzar os céus, do modo
como Brasília, foi desenhada no formato de um avião. As linhas negras brotam
como a contradição de um alvo dia, de um céu muito claro, trazendo raios para o
Palácio da Alvorada, despertando o Presidente da República para mais um dia de
trabalho e dedicação, tudo em nome da nação, que elegeu seu mandatário pelo
voto democrático. Mara viaja um pouco pelos traços de Oscar Niemeyer, e busca
leveza em meio a linhas retilíneas, racionais, tensas. A linha horizontal é um
grande estrada federal, que corta o país em sua dignidade, a dignidade de
servir às demandas do ir-e-vir da Economia Brasileira, no transporte de riquezas
pelos quatro cantos do país, numa terra cortada por vias que visam servir a
essa insaciável demanda do corpo social. As linhas verticais são duas vias que
tramitam em sentidos contrários, levando e trazendo comida, materiais de
construção e outras mercadorias, numa demanda que nunca cessa, que nunca está
satisfeita, num país em eterno crescimento, sempre buscando mais. De cabeça
para baixo, é uma mesa com um pilar duplo central, num restaurante, servindo à
capital necessidade de alimentação. É como um sacarrolha, com suas asas prontas
para abrir um bom vinho, delicioso, irresistível, no romance tradicional e poético
da rolha de cortiça. É uma libélula ou um beijaflor, com asas em movimento
perpétuo, incansável, na luta diária pela sagrada alimentação, pelo sagrado pão
diário;
2) Goleiras de futebol americano, na luta diária e
agressiva pela vida, por um lugar ao Sol, no aspecto bélico de encontrar-se na
vida, pois, como disse Dercy Gonçalves, a vida é luta. É uma versão retilínea
do símbolo da Psicologia, na beleza da busca pela felicidade, na beleza da
vitória sobre os obstáculos, os quais aparecem para ajudar e não para
atrapalhar, pois as crises são positivas. É o adorno religioso egípcio na
cabeça de Ísis, no poder explosivo destruidor do Isis, do modo como uma
supernova estoura, como uma estrela inegável e inignorável – o artista quer
brilhar. Há um magnetismo entre dois pólos opostos, no magnetismo da imaginação
artística, emocional, instintiva, inocente, de modo que Erico Veríssimo, ao ser
questionado porque o nome “Ana Terra”, o escritor disse que escolheu “Ana” por
ser um nome curto e simples. Como me disse um artista plástico que conheci, nunca use a obra contra o artista,
porque, se o usasse, será uma sacanagem, pois ser artista é colocar a cara a
tapa. Portanto, dar um tapa na cara do artista é uma sacanagem. É uma placa de
trânsito debilitada, abandonada, que perdeu sua função de guiar e informar, na
melancolia do depressivo, que não consegue enxergar para si um lugar no mundo,
mergulhando no fundo de um poço, precisando fazer um esforço enorme para se
reerguer. É um prédio de duas torres erguido sobre um pilar frágil, delgado, o
qual tem mais força do que parece ter, sendo subestimando e, assim, podendo surpreender
os que o subestimavam, fazendo com que se redimem. É uma formiguinha trabalhadora,
incansável, sempre construindo, laborando, sempre sendo digna por meio de seu
próprio trabalho, construindo pequenos palácios de terra, com suas veias
intricadas e complexas, num labirinto minúsculo, no qual só as formigas
conseguem se locomover sem se perder. Mara é uma montadora de Lego, sempre
reinventando novos quadros, sempre com o cuidado de não se repetir, do mesmo
modo como cada pessoa tem suas próprias impressões digitais, na identidade
artística, sempre montando e remontando, como castelinhos de areia, fadados
para ser devorados pelas ondas e pelo vento. A impressão que se tem é a de que
Mara brinca com retangulinhos, imaginando novas formas de uso. São vias de uma
cidade entremeando-se, com vias passando por baixo e por cima umas das outras,
como veias e artérias num organismo vivo, sempre pulsando e veiculando sangue
por veios incansáveis. Cada xilo de Mara é nova, e é preciso ter uma boa
memória para ter certeza de que não fez algo que já foi feito por si mesma,
numa verdadeira memória fotográfica, fisionomista, capaz de diferenciar, por
exemplos, chineses, um povo tão homogêneo. É um robô de grandes pernas e
descomunais braços, como uma máquina em uma obra, construindo cidades e
desenvolvendo o mundo, no desenvolvimento da mente artística, tendo no artista
um agente, numa pujança de uma cidade incessante como Caxias do Sul, num parque
industrial invejável, só sendo superado no Brasil por São Paulo. É engraçado o
fato de eu ter recém usado o aspirador de pó no apartamento onde moro, e esta
xilo tem o formato muito semelhante ao porta-refil que traz a poeira par dentro
de um saco de papel descartável, no sentido de que Tao é limpeza, minimalismo,
e Mara é limpa e minimalista, japonesa, disciplinada, rechaçando excessos
gráficos. As xilos dela são como um alfabeto enigmático, estranho,
incompreendido, mas que aprece ter toda uma função de comunicação, numa
linguagem do artista, um ser enigmático, sempre – existe algo mais monótono do
que um artista óbvio e previsível? No mercado fonográfico mundial por exemplo,
só sobrevive quem se reinventa, pois o público nota na hora quando o artista
está com preguiça de fazer algo novo e fresquinho.
Acima, Pas de Bourrée
I e Pas de Bourrée II, xilogravura / 2 livros de artista do ano de 2016.
Medidas: 0,22m x 0,22m (fechado) / 1,12m x 0,22m (aberto). Ater-me-ei às xilos
mais visíveis, expostas. Sinais de “igual” em uma equação, no cálculo emocional
artístico, do modo como o autor deste blog odiava Física e Matemática no
colégio, tendo repetido de ano por causas dessas disciplinas. São dois blocos
residenciais iguais; dois gêmeos se desenvolvendo dentro da mesma barriga,
sempre compartilhando do espaço, desde sempre. O artista é uma gestante, dando
à luz nos momentos redentores que são as catarses, no vômito saudável da Arte,
a qual tem o poder de curar a vida em Sociedade, gerando debate acalorado,
gerando intelectualidade, do modo como nos faz tristes e prostrados o recente
episódio de censura artística em Porto
Alegre. As catarses têm poder avassalador,
e tentar freá-las é inútil – o artista não pode ser julgado moralmente, como
num sistema ditatório, que é mentalmente castrador. Não deve ter sido a vida dos
artistas durante o Regime Militar do Brasil. Aqui, os sinais evocam a Igualdade
da Revolução Francesa, no sistema democrático no qual todos os cidadãos valem o
mesmo peso, desprezando as classes sociais, as diferenças de etnia e raça, o
gênero, a sexualidade, a religião etc. É um afaça de dois gumes, pois, numa
ditadura, os cidadãos são iguais no sentido de serem indistintos tijolos numa
parede impessoal – a Ditadura é uma cópia grosseira da Democracia. Todas a
xilos de Mara são iguais em dignidade, só que cada uma tem sua personalidade, o
seu direito de ir e vir, a sua identidade única e inconfundível, como na riqueza
da galeria de personagens construída por Chico Anysio, com personagens tão
distintos que fica impossível dizer que um é semelhante a outro – ser artista é
ser mãe de muitos filhos, com cada filho sendo especial. São duas vias na
Avenida Paulista, amplas, desenvolvidas, alimentando a urbe com estressantes (e
inevitáveis) congestionamentos de veículos, como já ocorre em Caxias do Sul.
Marcas de pneu no asfalto, numa pessoa deixando sua marca no mundo, para depois
desencarnar e voltar para casa. Um carro que freou bruscamente, tomando
cuidado, dirigindo cautelosamente, sempre atento, como se estivesse em areia
movediça. São as tradicionais listras nos uniformes da Adidas, convidando ao ar
livre, à vida, pois, já ouvi dizer, o nervo da Arte é a vida – censurar é
morte. As frágeis páginas translúcidas de Mara convidam à delicadeza, e é um
pedido: seja gentil ao folhear estes livros, pois o que é frágil vence o que é
bruto. As páginas de Mara são leves, autênticas em sua transparência, nunca tentando
esconder, nunca tendo vergonha, nunca se autocensurando – a censura é inimiga
da Arte; é anti-Arte. Uma pessoa que respeito disse-me que a Festa da Uva de
Caxias do Sul é um ato de saúde coletiva, e assim é a Arte: saúde, como num
brinde entre amigos exclamando Saúde.
São dois olhos robóticos atentos, racionais, desprovidos de sofrimento,
encontrando prazer na atividade de criar. Os quatro retângulos são
quadrigêmeos, esperando pelo apoteótico momento de nascimento, de sair de casa
e enfrentar o mundo lá fora, na inevitável vicissitude da encarnação. Mara é a
completa negação do clichê industrial, sabendo que a repetição é monótona e
desinteressante, sendo a criatividade o grande trunfo artístico, na vitória do
humano sobre o desumano. Há uma divisão entre planos – um inferior e outro
superior, como pavimentos em um estacionamento, dando conta da demanda urbana
por vagas de estacionamento, numa frota em constante e irrefreável crescimento,
do modo como o artista vai criando sempre, tendo que, cedo ou tarde, “desovar”.
São quatro falos organizados, como viaturas de polícia, guardando corpo social,
zelando pela segurança dos cidadãos de bem. Zelar pela Arte é amar o pensamento
humano, no sentido psicológico de que Saúde é um conceito indecifrável, do modo
como Tao é indecifrável, distanciando-se dos decifráveis e detectáveis padrões
comportamentais patológicos.
Acima, Fouetté, xilogravura
do ano de 2016. Medidas: 0,63m x 0,53m (cada quadro) / 2,60m x 1,10m (para
série em parede). Aqui, Piet Mondrian é observável, mas Mara não o copia
descaradamente, pois é inaceitável e insuportável para um artista imitar outro
artista, repudiando trilhar caminhos já trilhados. Há pequenos respiros de
quadrados brancos entre as extremidades dos delgados retângulos negros e outros
nem tão delgados. São “esqueletos” de prédios em obras, com a essência
estrutural já declarada e delineada, esperando pela “carne”, ou seja, o
cimento, os tijolos e demais materiais. É o processo de construção de um
artista, que age com paciência e vai desenvolvendo, numa gestação da alma. São
como aranhas retilíneas, movimentando-se por uma casa cheia de teias, num
verdadeiro lar aracnídeo, com pequenos bichinhos tomando o respectivo lugar, no
ditado cada macaco no seu galho. Cada
“aranha” tem seu lar, sua teia, sua casa, e os limites de vizinhança são
amplamente respeitados, e nunca vemos um invadindo o território da outra, como
nações pacíficas, que só entrarão em guerra se provocadas, como na tensão entre
EUA e Coreia do Norte. São labirintos intrincados, como no filme O Iluminado, nos meandros patológicos de
um surto psicótico irrefreável, como numa cilada, na aranha que tece a teia e
espera pacientemente por uma mosca desavisada, como no monstro terrível Laracna
de O Senhor dos Anéis, um ser sempre
faminto, insaciável, que vive para devorar o mundo, no terror destrutivo das
tensões entre pessoas e países. É a “dura” linguagem binária, sem espaço para
arco-íris nem para borboletas multicoloridas, na paixão de Mara pelo preto
& branco, na disposição clássica dos contrastes, na elegância das teclas de
um piano.
A seguir, falarei de cada quadro individualmente, na
seguinte ordem: começo pelo quadro à esquerda superior, seguindo na mesma reta
até a direita superior, depois partindo pela esquerda inferior à direita
inferior, enumerando os quadros de 1
a 8.
1) Um catavento em ciclos ao vento, apontando para todos os
pontos cardeais, no sopro de vida na encarnação de um artista, o qual tem que
decidir o que fazer da vida. É a roda econômica de uma cidade pujante como
Caxias do Sul, em um dia-a-dia atribulado e movimentado, nas demandas de um
mundo sedento por Arte, sempre querendo novidades, sempre sedento pelos novos
movimentos de um artista. É um ciclo de estações do ano, tendo em Caxias uma
cidade com as estações do ano relativamente nítidas e diferentes umas das
outras, com as azaleias coloridas, as ondas de calor e as chuvas de verão, as
folhas morrendo nas árvores e as frentes frias avassaladoras que flagelam a Serra
Gaúcha e Catarinense. É o ciclo de um dia, com o despertar, o almoço e o sono
no fim da jornada;
2) Duas letras A grudadas, compartilhando uma parede, como
dois vizinhos de porta, convivendo em harmonia, um com a chave reserva da casa
do outro, numa relação de confiança. É a letra oficial do alfabeto, nos
princípios de criação artística, tendo o artista critérios próprios para criar,
como é em Mara a retilinidade bicromática;
3) Aqui, os As estão centralizados, no centro do interesse
do quadro, dividindo perfeitamente a cena entre esquerda e direita. É quase uma
Cruz de Malta, símbolo dos guerreiros cristãos, como no peito de He-Man. São
duas pessoas unidas, do modo como o artista quer se unir ao mundo mas, ao mesmo
tempo, não se deixar descaracterizar;
4) Repetição do quadro 1, e os ciclos dos ventos continua,
ventilando este conjunto de quadros, trazendo vida e circulação de ar, por
pulmões e coração, na essencialidade da vida;
5) Conjunto altamente assimétrico. O lado esquerdo do
quadro está alvo, com a estrutura negra recolhendo-se com castidade para o lado
direito, buscando discrição, sem querer ser a estrela de algo. O prédio está em
pleno labor de construção, no galgar econômico de uma cidade em constante
crescimento e reinvenção, apesar do peso da tradição ser tão considerável. Os
retângulos menos delgados formam uma cruz perfeita, nos princípios religiosos
de uma cidade que nasceu católica apostólica romana, na busca de Jesus por
identidade, por destaque, por fama, por respeito;
6) Esta estrutura também está recatada, recolhida e tímida,
em sutil assimetria. O grande e grosso retângulo ao centro é o sustentáculo,
como um patriarca, que mantém uma família unida, como em almoços de domingo e
feriados, como na obrigatória reunião familiar na noite de Natal. As listras em
kilt estabelecem contatos, ligações telefônicas, ligando as pessoas em meio aos
avanços tecnológicos. A pujança das cidades é sedutora e inspiradora, e o
artista quer fazer parte disso tudo;
7) Outro conjunto quase simétrico, também recatado, como
numa movimentada ponte de dois pavimentos, no ir-e-vir de embarcações que
precisam passar pelo marco, no ritmo frenético de malhas viárias, nos preços
milionários de grandes obras de infraestrutura;
8) Aqui, a simetria retorna triunfante. Ao centro, uma
letra T, que sobe e desce conforme as necessidades de tráfego, tirando daqui e
colocando dali, sempre em demanda de fluxo, como no fluxo de ideias da mente
artística. O T é de tempo, tráfego, trânsito, numa letra de desenho simétrico,
como uma via grande ramificando-se em vias menores e coadjuvantes, alimentando
todo o organismo com sangue e oxigênio.
Foi um prazer para mim falar em quatro postagens sobre Mara
De Carli. Que venham mais trabalhos dessa artista de mão cheia!
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