quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Um Livro Aberto




Nesta postagem termino as análises de todas as obras de Mara De Carli que foram indicadas ao Prêmio PIPA 2017 do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Mara é uma artista de criatividade infinita. As duas primeiras obras aqui analisadas são em forma de livros, nos quais numerosas páginas mostram a versatilidade da artista, a qual disponibiliza luvas ao espectador para preservar assim a integridade das frágeis páginas. É um convite para uma interação, pois, ao folhear os livros, o espectador entra no mundo de Mara, a qual mergulha em criatividade pulsante, profunda. Falando em livros, estes têm páginas tão numerosas que fica difícil analisar todas as xilos de Mara. Portanto, ater-me-ei a analisar apenas o que é mostrado nas imagens a seguir. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Adagio, xilogravura / livro de artista do ano de 2016. Medidas: 0,47m x 0,36m (fechado) / 0,96m x 0,36m (aberto). Falo primeiro sobre a figura da esquerda e, depois, da direita.

1) As duas grandes torres do Congresso em Brasília, desafiando as alturas, numa cidade em crescimento, desfiando limites, crescendo falicamente, rasgando os céus, numa artista sempre testando os próprios limites. A grande linha horizontal é o horizonte vasto, quase infinito, num universo tão grande, mas tão grande, que fica impossível apreendê-lo em sua totalidade titânica. A linha horizontal supera as verticais, trazendo os pés para o chão, para a realidade da força gravitacional. Horizontal e vertical encontram-se, beijam-se, desfiando-se, tentando ver qual das duas é mais suntuosa. A verticalidade divide entre esquerda e direita; a horizontalidade, entre alto e baixo. A vertical perfura a horizontal, desvirginando-a, violando-a, estuprando-a, no prazer da violação. Nas torres, há a divisão entre passado e futuro, sendo que o presente é a delgada, mínima linha entre as torres negras. Aqui, a simetria é completa, numa Mara meticulosa, caprichosa, cuidadosa, sempre preocupada em ter precisão milimétrica, nunca pecando com irregularidades. É uma borboleta abrindo asas e voando livre pela imaginação do pensamento artístico, plainando pelas possibilidades geométricas. É uma antena de TV ou Rádio, captando sinais, transmitindo informações, tornando comuns as informações entre as pessoas que captam os sinais dos meios de Comunicação Social. É uma estrada interrompida, talvez por um acidente ou um deslize de terra, trazendo transtorno para o viajante, o qual desejava ter uma viagem tranquila, rezando para a Nossa Senhora da Boa Viagem em uma estação rodoviária. Um avião alçando voo e abrindo asas para cruzar os céus, do modo como Brasília, foi desenhada no formato de um avião. As linhas negras brotam como a contradição de um alvo dia, de um céu muito claro, trazendo raios para o Palácio da Alvorada, despertando o Presidente da República para mais um dia de trabalho e dedicação, tudo em nome da nação, que elegeu seu mandatário pelo voto democrático. Mara viaja um pouco pelos traços de Oscar Niemeyer, e busca leveza em meio a linhas retilíneas, racionais, tensas. A linha horizontal é um grande estrada federal, que corta o país em sua dignidade, a dignidade de servir às demandas do ir-e-vir da Economia Brasileira, no transporte de riquezas pelos quatro cantos do país, numa terra cortada por vias que visam servir a essa insaciável demanda do corpo social. As linhas verticais são duas vias que tramitam em sentidos contrários, levando e trazendo comida, materiais de construção e outras mercadorias, numa demanda que nunca cessa, que nunca está satisfeita, num país em eterno crescimento, sempre buscando mais. De cabeça para baixo, é uma mesa com um pilar duplo central, num restaurante, servindo à capital necessidade de alimentação. É como um sacarrolha, com suas asas prontas para abrir um bom vinho, delicioso, irresistível, no romance tradicional e poético da rolha de cortiça. É uma libélula ou um beijaflor, com asas em movimento perpétuo, incansável, na luta diária pela sagrada alimentação, pelo sagrado pão diário;

2) Goleiras de futebol americano, na luta diária e agressiva pela vida, por um lugar ao Sol, no aspecto bélico de encontrar-se na vida, pois, como disse Dercy Gonçalves, a vida é luta. É uma versão retilínea do símbolo da Psicologia, na beleza da busca pela felicidade, na beleza da vitória sobre os obstáculos, os quais aparecem para ajudar e não para atrapalhar, pois as crises são positivas. É o adorno religioso egípcio na cabeça de Ísis, no poder explosivo destruidor do Isis, do modo como uma supernova estoura, como uma estrela inegável e inignorável – o artista quer brilhar. Há um magnetismo entre dois pólos opostos, no magnetismo da imaginação artística, emocional, instintiva, inocente, de modo que Erico Veríssimo, ao ser questionado porque o nome “Ana Terra”, o escritor disse que escolheu “Ana” por ser um nome curto e simples. Como me disse um artista plástico que conheci, nunca use a obra contra o artista, porque, se o usasse, será uma sacanagem, pois ser artista é colocar a cara a tapa. Portanto, dar um tapa na cara do artista é uma sacanagem. É uma placa de trânsito debilitada, abandonada, que perdeu sua função de guiar e informar, na melancolia do depressivo, que não consegue enxergar para si um lugar no mundo, mergulhando no fundo de um poço, precisando fazer um esforço enorme para se reerguer. É um prédio de duas torres erguido sobre um pilar frágil, delgado, o qual tem mais força do que parece ter, sendo subestimando e, assim, podendo surpreender os que o subestimavam, fazendo com que se redimem. É uma formiguinha trabalhadora, incansável, sempre construindo, laborando, sempre sendo digna por meio de seu próprio trabalho, construindo pequenos palácios de terra, com suas veias intricadas e complexas, num labirinto minúsculo, no qual só as formigas conseguem se locomover sem se perder. Mara é uma montadora de Lego, sempre reinventando novos quadros, sempre com o cuidado de não se repetir, do mesmo modo como cada pessoa tem suas próprias impressões digitais, na identidade artística, sempre montando e remontando, como castelinhos de areia, fadados para ser devorados pelas ondas e pelo vento. A impressão que se tem é a de que Mara brinca com retangulinhos, imaginando novas formas de uso. São vias de uma cidade entremeando-se, com vias passando por baixo e por cima umas das outras, como veias e artérias num organismo vivo, sempre pulsando e veiculando sangue por veios incansáveis. Cada xilo de Mara é nova, e é preciso ter uma boa memória para ter certeza de que não fez algo que já foi feito por si mesma, numa verdadeira memória fotográfica, fisionomista, capaz de diferenciar, por exemplos, chineses, um povo tão homogêneo. É um robô de grandes pernas e descomunais braços, como uma máquina em uma obra, construindo cidades e desenvolvendo o mundo, no desenvolvimento da mente artística, tendo no artista um agente, numa pujança de uma cidade incessante como Caxias do Sul, num parque industrial invejável, só sendo superado no Brasil por São Paulo. É engraçado o fato de eu ter recém usado o aspirador de pó no apartamento onde moro, e esta xilo tem o formato muito semelhante ao porta-refil que traz a poeira par dentro de um saco de papel descartável, no sentido de que Tao é limpeza, minimalismo, e Mara é limpa e minimalista, japonesa, disciplinada, rechaçando excessos gráficos. As xilos dela são como um alfabeto enigmático, estranho, incompreendido, mas que aprece ter toda uma função de comunicação, numa linguagem do artista, um ser enigmático, sempre – existe algo mais monótono do que um artista óbvio e previsível? No mercado fonográfico mundial por exemplo, só sobrevive quem se reinventa, pois o público nota na hora quando o artista está com preguiça de fazer algo novo e fresquinho.

Acima, Pas de Bourrée I e Pas de Bourrée II, xilogravura / 2 livros de artista do ano de 2016. Medidas: 0,22m x 0,22m (fechado) / 1,12m x 0,22m (aberto). Ater-me-ei às xilos mais visíveis, expostas. Sinais de “igual” em uma equação, no cálculo emocional artístico, do modo como o autor deste blog odiava Física e Matemática no colégio, tendo repetido de ano por causas dessas disciplinas. São dois blocos residenciais iguais; dois gêmeos se desenvolvendo dentro da mesma barriga, sempre compartilhando do espaço, desde sempre. O artista é uma gestante, dando à luz nos momentos redentores que são as catarses, no vômito saudável da Arte, a qual tem o poder de curar a vida em Sociedade, gerando debate acalorado, gerando intelectualidade, do modo como nos faz tristes e prostrados o recente episódio de censura artística em Porto Alegre. As catarses têm poder avassalador, e tentar freá-las é inútil – o artista não pode ser julgado moralmente, como num sistema ditatório, que é mentalmente castrador. Não deve ter sido a vida dos artistas durante o Regime Militar do Brasil. Aqui, os sinais evocam a Igualdade da Revolução Francesa, no sistema democrático no qual todos os cidadãos valem o mesmo peso, desprezando as classes sociais, as diferenças de etnia e raça, o gênero, a sexualidade, a religião etc. É um afaça de dois gumes, pois, numa ditadura, os cidadãos são iguais no sentido de serem indistintos tijolos numa parede impessoal – a Ditadura é uma cópia grosseira da Democracia. Todas a xilos de Mara são iguais em dignidade, só que cada uma tem sua personalidade, o seu direito de ir e vir, a sua identidade única e inconfundível, como na riqueza da galeria de personagens construída por Chico Anysio, com personagens tão distintos que fica impossível dizer que um é semelhante a outro – ser artista é ser mãe de muitos filhos, com cada filho sendo especial. São duas vias na Avenida Paulista, amplas, desenvolvidas, alimentando a urbe com estressantes (e inevitáveis) congestionamentos de veículos, como já ocorre em Caxias do Sul. Marcas de pneu no asfalto, numa pessoa deixando sua marca no mundo, para depois desencarnar e voltar para casa. Um carro que freou bruscamente, tomando cuidado, dirigindo cautelosamente, sempre atento, como se estivesse em areia movediça. São as tradicionais listras nos uniformes da Adidas, convidando ao ar livre, à vida, pois, já ouvi dizer, o nervo da Arte é a vida – censurar é morte. As frágeis páginas translúcidas de Mara convidam à delicadeza, e é um pedido: seja gentil ao folhear estes livros, pois o que é frágil vence o que é bruto. As páginas de Mara são leves, autênticas em sua transparência, nunca tentando esconder, nunca tendo vergonha, nunca se autocensurando – a censura é inimiga da Arte; é anti-Arte. Uma pessoa que respeito disse-me que a Festa da Uva de Caxias do Sul é um ato de saúde coletiva, e assim é a Arte: saúde, como num brinde entre amigos exclamando Saúde. São dois olhos robóticos atentos, racionais, desprovidos de sofrimento, encontrando prazer na atividade de criar. Os quatro retângulos são quadrigêmeos, esperando pelo apoteótico momento de nascimento, de sair de casa e enfrentar o mundo lá fora, na inevitável vicissitude da encarnação. Mara é a completa negação do clichê industrial, sabendo que a repetição é monótona e desinteressante, sendo a criatividade o grande trunfo artístico, na vitória do humano sobre o desumano. Há uma divisão entre planos – um inferior e outro superior, como pavimentos em um estacionamento, dando conta da demanda urbana por vagas de estacionamento, numa frota em constante e irrefreável crescimento, do modo como o artista vai criando sempre, tendo que, cedo ou tarde, “desovar”. São quatro falos organizados, como viaturas de polícia, guardando corpo social, zelando pela segurança dos cidadãos de bem. Zelar pela Arte é amar o pensamento humano, no sentido psicológico de que Saúde é um conceito indecifrável, do modo como Tao é indecifrável, distanciando-se dos decifráveis e detectáveis padrões comportamentais patológicos.

Acima, Fouetté, xilogravura do ano de 2016. Medidas: 0,63m x 0,53m (cada quadro) / 2,60m x 1,10m (para série em parede). Aqui, Piet Mondrian é observável, mas Mara não o copia descaradamente, pois é inaceitável e insuportável para um artista imitar outro artista, repudiando trilhar caminhos já trilhados. Há pequenos respiros de quadrados brancos entre as extremidades dos delgados retângulos negros e outros nem tão delgados. São “esqueletos” de prédios em obras, com a essência estrutural já declarada e delineada, esperando pela “carne”, ou seja, o cimento, os tijolos e demais materiais. É o processo de construção de um artista, que age com paciência e vai desenvolvendo, numa gestação da alma. São como aranhas retilíneas, movimentando-se por uma casa cheia de teias, num verdadeiro lar aracnídeo, com pequenos bichinhos tomando o respectivo lugar, no ditado cada macaco no seu galho. Cada “aranha” tem seu lar, sua teia, sua casa, e os limites de vizinhança são amplamente respeitados, e nunca vemos um invadindo o território da outra, como nações pacíficas, que só entrarão em guerra se provocadas, como na tensão entre EUA e Coreia do Norte. São labirintos intrincados, como no filme O Iluminado, nos meandros patológicos de um surto psicótico irrefreável, como numa cilada, na aranha que tece a teia e espera pacientemente por uma mosca desavisada, como no monstro terrível Laracna de O Senhor dos Anéis, um ser sempre faminto, insaciável, que vive para devorar o mundo, no terror destrutivo das tensões entre pessoas e países. É a “dura” linguagem binária, sem espaço para arco-íris nem para borboletas multicoloridas, na paixão de Mara pelo preto & branco, na disposição clássica dos contrastes, na elegância das teclas de um piano.

A seguir, falarei de cada quadro individualmente, na seguinte ordem: começo pelo quadro à esquerda superior, seguindo na mesma reta até a direita superior, depois partindo pela esquerda inferior à direita inferior, enumerando os quadros de 1 a 8.

1) Um catavento em ciclos ao vento, apontando para todos os pontos cardeais, no sopro de vida na encarnação de um artista, o qual tem que decidir o que fazer da vida. É a roda econômica de uma cidade pujante como Caxias do Sul, em um dia-a-dia atribulado e movimentado, nas demandas de um mundo sedento por Arte, sempre querendo novidades, sempre sedento pelos novos movimentos de um artista. É um ciclo de estações do ano, tendo em Caxias uma cidade com as estações do ano relativamente nítidas e diferentes umas das outras, com as azaleias coloridas, as ondas de calor e as chuvas de verão, as folhas morrendo nas árvores e as frentes frias avassaladoras que flagelam a Serra Gaúcha e Catarinense. É o ciclo de um dia, com o despertar, o almoço e o sono no fim da jornada;

2) Duas letras A grudadas, compartilhando uma parede, como dois vizinhos de porta, convivendo em harmonia, um com a chave reserva da casa do outro, numa relação de confiança. É a letra oficial do alfabeto, nos princípios de criação artística, tendo o artista critérios próprios para criar, como é em Mara a retilinidade bicromática;

3) Aqui, os As estão centralizados, no centro do interesse do quadro, dividindo perfeitamente a cena entre esquerda e direita. É quase uma Cruz de Malta, símbolo dos guerreiros cristãos, como no peito de He-Man. São duas pessoas unidas, do modo como o artista quer se unir ao mundo mas, ao mesmo tempo, não se deixar descaracterizar;

4) Repetição do quadro 1, e os ciclos dos ventos continua, ventilando este conjunto de quadros, trazendo vida e circulação de ar, por pulmões e coração, na essencialidade da vida;

5) Conjunto altamente assimétrico. O lado esquerdo do quadro está alvo, com a estrutura negra recolhendo-se com castidade para o lado direito, buscando discrição, sem querer ser a estrela de algo. O prédio está em pleno labor de construção, no galgar econômico de uma cidade em constante crescimento e reinvenção, apesar do peso da tradição ser tão considerável. Os retângulos menos delgados formam uma cruz perfeita, nos princípios religiosos de uma cidade que nasceu católica apostólica romana, na busca de Jesus por identidade, por destaque, por fama, por respeito;

6) Esta estrutura também está recatada, recolhida e tímida, em sutil assimetria. O grande e grosso retângulo ao centro é o sustentáculo, como um patriarca, que mantém uma família unida, como em almoços de domingo e feriados, como na obrigatória reunião familiar na noite de Natal. As listras em kilt estabelecem contatos, ligações telefônicas, ligando as pessoas em meio aos avanços tecnológicos. A pujança das cidades é sedutora e inspiradora, e o artista quer fazer parte disso tudo;

7) Outro conjunto quase simétrico, também recatado, como numa movimentada ponte de dois pavimentos, no ir-e-vir de embarcações que precisam passar pelo marco, no ritmo frenético de malhas viárias, nos preços milionários de grandes obras de infraestrutura;

8) Aqui, a simetria retorna triunfante. Ao centro, uma letra T, que sobe e desce conforme as necessidades de tráfego, tirando daqui e colocando dali, sempre em demanda de fluxo, como no fluxo de ideias da mente artística. O T é de tempo, tráfego, trânsito, numa letra de desenho simétrico, como uma via grande ramificando-se em vias menores e coadjuvantes, alimentando todo o organismo com sangue e oxigênio.

Foi um prazer para mim falar em quatro postagens sobre Mara De Carli. Que venham mais trabalhos dessa artista de mão cheia!

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