Volto a falar sobre obras de Mara De Carli que foram
indicadas ao Prêmio PIPA 2017 do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. As
análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Um,
xilogravuras de 0,50m x 0,35m (cada quadro) / 2,60m (para série em parede). Ano
de 2016. Como eu já disse anteriormente, são como códigos de barra em produtos;
como resultado de um exame de DNA na busca de cada artista por identidade e
diferenciação, do modo como qualquer ser humano quer se diferenciar e se
destacar. É uma porta giratória em pleno movimento, controlando entradas e
saídas, regulamentando o movimento, regrando a sociedade, nunca deixando alguém
de fora, sempre agregando. É um código binário, emitindo sinais em Código Morse, no piscar
das estrelas à noite, na charmosa simplicidade do preto & branco. Aqui,
alguns quadros são simétricos; outros, não, tendo em Mara uma testadora de
possibilidades, numa imaginação inesgotável, sempre sabendo dar ritmo e
criatividade ao frio “carimbo” xilográfico. Mara é uma exploradora de
possibilidades. A repetitividade é insuportável para um artista, qualquer
artista, porque, se não há reinvenção, as pessoas passam a desinteressar-se do
artista. E isso serve para qualquer nível. Na música pop mundial, por exemplo,
existe uma pessoa artista, cujo nome não mencionarei, a qual não soube
sobreviver aos anos 80, e está passado o resto de seus dias cantando o mesmo
velho repertório. É claro que grandes canções imortais merecem ser tocadas,
mas, no meio disso tudo, tem que haver material novo na praça. O frio código de
barra identifica o produto, o cidadão, num código numérico, como em um campo de
concentração, e nomes transformam-se em números. É a questão da igualdade
democrática, sendo que o voto de um cidadão não tem peso maior ou menor do que
o do voto de outro cidadão. É a contradição da igualdade: somos iguais e, ao
mesmo tempo, temos que ser diferentes. O artista jamais vai querer ser apenas
um tijolo indistinto em uma parece de tijolos indistintos. Portanto, apesar da
igualdade ser necessária, ela deve ser moderada, nunca resultando em sistemas
ditatoriais, no qual o artista torna-se escravo de uma ideologia, obrigado a
produzir Arte sob o zelo incessante do Estado. Mara gosta de trabalhar, como eu
já disse, com linhas retas, trazendo quadrados e retângulos. São como onda
sonoras propagando-se no espaço aberto, ou como ondas de luz, que viajam muitos
anos-luz para chegar à retina dos seres humanos. Minha querida avó Nelly,
falecida em 1992, era professora aposentada e poetisa, e em um de seus poemas
ela disse que as estrelas coruscando no céu noturno são os artistas e poetas
falecidos que, do céu, emitem em Código Morse suas poesias, vivendo para sempre. O
sonho do artista é encontrar essa dimensão de eternidade, envolvendo o mundo. E
por que o título Um? Porque esses dez
quadros formam um só organismo, um só sistema, com variações para o mesmo
princípio xilográfico. É como se o DNA tivesse sido desmembrando em dez
frações, sendo que a união das frações traz todo o código genético de um ser
vivo. É Um, porque cada ser humano é especial, é um filho de Deus, e este é o
poder único e máximo, regendo e unificando um universo tão diversificado e
plural, com cada filho sendo único, inequiparável, original, com sua suma
identidade espiritual. Num sistema livre e democrático, somos todos iguais e
diferentes. É como uma impressão digital, e cada quadro aqui não tem igual,
pois, se o tivesse, este Um seria tão
monótono. É por isso que a criatividade é importante, pois o ser criativo
diferencia-se, como Mara aqui, sempre honrando a diversidade. Hoje, por
exemplo, na rua em Caxias, vi duas moças muçulmanas, e o respeito é a base de
qualquer democracia. Essas formas de Mara remetem à racionalidade, ao
pensamento lógico, técnico, numa artista no mais completo controle técnico da
xilogravura. É como uma porção de cerâmica mole pronta para ser transformada.
A seguir, falarei de cada quadro individualmente, na
seguinte ordem: começo pelo quadro à esquerda superior, seguindo na mesma reta
até a direita superior, depois partindo pela esquerda inferior à direita
inferior, enumerando os quadros entre 1 e 10.
1) É um jogo de tênis ou pingue-pongue, com ritmo de
movimento, com uma bola indo de um lado ao outro, remetendo a um antiquíssimo
videogame dos anos 80, no qual uma bola debatia-se entre dois retângulos móveis
na laterais da tela. Um retângulo está fugindo do outro, na dilaceração entre
opostos. É como uma mola sendo esticada ao máximo, abrangendo dimensões,
fazendo um esforço. O retângulo da direta movimenta-se para sair do quadro, enquanto
o da esquerda está imóvel, sendo abandonado, como num casal se separando, ou
como num casal que, morando junto, cada um tem que ter o seu cantinho no lar, o
seu território, o seu reino. Mas, ainda assim, mesmo nessa polarização, os
retângulos formam um conjunto, um casal, e os retângulos fininhos no meio do
quadro são como uma prole, uma ninhada, em um pai e uma mãe desdobrando em
quinze para dar conta das demandas de um lar.
2) Aqui, total simetria, e polarização, com o grande
quadrado ao centro, ladeado por dois retângulos. Centralização, num pensamento
(con)centrado. É como uma rainha da Festa da Uva ladeada por duas princesas, num
apelo clássico e tradicional, num equilíbrio fácil de ser observado. O
arquiteto Oscar Niemeyer produzia muito de simetria, buscando um equilíbrio
mais implícito. É uma fechadura simétrica, guardando um segredo, esperando pela
chave fálica para a fechadura ser deflorada e devastada, no apelo erótico da
junção de opostos – Yin e Yang formando um só corpo. É um enigma sendo
decifrado, como decifrar hieróglifos. São três pistas na estrada, com a pista
central maior sendo para o uso de ônibus, na demanda do trânsito de uma grande
cidade.
3) Cortinas balançando em meio a uma agradável brisa de
verão, como na tela de fundo de telejornais do canal Globonews, como na cena
inicial de Il Gatopardo, com cortinas
sensuais balançando do tórrido sol veranil italiano, na sensualidade frutífera
das vindimas, na celebração da vida, da doçura inebriante, do trabalho gerando
resultados. É uma marca de pneus no asfalto, numa via calejada, já muito usada,
do modo como o artista deixa marcas no caminho que trilha, deixando um legado
para o mundo. É uma fila desordenada, tensa, bagunçada, como num engarrafamento
de trânsito, no caos de fim de dia em uma cidade pulsante, em vias nas quais os
veículos passam por contagotas, chegando no ponto da gota d’água, no limite.
4) Aqui, o quadrado pede mais espaço, espraiando-se e
comprimindo os retângulos aos seus lados, como uma grande porta sendo aberta,
como no extinto programa Porta da
Esperança do SBT, na esperança de alguém querendo ser reconhecido. O
quadrado central está quase sozinho, protagonista, egoísta, querendo ter todas
as atenções para si, querendo roubar o espetáculo, roubar a cena, num ego de
estrelismo, como na narcisista Piggy de Os
Muppets, um personagem absolutamente megalomaníaco o qual apaixona-se
exatamente por um personagem modesto, discreto e despretensioso, que é Caco, o
Sapo, na junção de opostos. O quadrado quer expulsar tudo e todos,
apoderando-se do mundo.
5) Aqui, duas classes debatem-se: retângulos mais gordinhos
contra retângulos mais magrinhos, em linhas sempre verticais no conjunto Um. São como cigarros mais delgados e
charutos mais grossos, havendo aqui diferenciação, e podemos ver muito
claramente quem é quem, não restando dúvidas. São vistas aéreas de ruas e
avenidas, sendo algumas vias maiores e mais utilizadas do que outras, havendo
aqui uma hierarquia: vias mais atribuladas são mais amplas, enquanto as vias
menos trilhadas são menos expressivas e mais pacíficas.
6) O espaçoso quadrado central está de volta, e aqui, de
fato, está praticamente como protagonista do quadro, ladeado por dois
retângulos bem fininhos, quase invisíveis. Aqui, o plano de protagonismo está
praticamente concretizado. Ninguém pode com este quadrado, como um ator
egocêntrico que se acha, simplesmente, o centro do universo, levando os
aplausos ao nível do seu próprio monstruoso Ego. Os retângulos fininhos são uma
mera moldura, num modesto papel mínimo, como na relação entre cidades capitais
e cidades do interior, em um mesmo estado federativo. Mas é graças aos
retângulos fininhos que percebemos o portentoso quadrado, num jogo de contraste,
onde os opostos, como Yin e Yang, abraçam um ao outro. Talvez, sem os
retângulos finos, não perceberíamos a presença do quadrado, numa relatividade.
7) Os retângulos aqui são quase iguais em espessura, havendo
uma diferenciação sutil, sem grandes alardes. São teclas de um piano, como no
doce piano de Diana Krall, uma das maiores jazzistas do Mundo. É um sorriso
metálico, como uma boca de robô, expressando os códigos binários do pensamento
racional, numa construção técnica de um espírito. Na mortificação espiritual
pregada pelo o Espiritismo: mortifique-se e terás paz, sem ilusões, sem pensar
em bobagens. É a elegância do preto & branco.
8) Aqui, há também uma diferenciação mínima entre os
retângulos. São cinco portas, com a central sendo um pouco maior, e cada porta
leva a um destino, um lugar, forçando o indivíduo a fazer escolhas, e definir
rumos de vida, pois, disse-me uma grande amiga psicóloga, a vida é feita de escolhas. Dá para perceber que a porta central é
a mais usada, mas isso não tira a dignidade das portas mais estreitas. Outra
interpretação é sob a luz do Taoismo: o grande caminho, o caminho central, é
fácil de ser detectado, mas, infelizmente, as pessoas são sempre seduzidas por
portas secundárias, as quais a nada levam.
9) Lápis e canetas cuidadosamente, neuroticamente
organizados, numa tentativa de impor ordem a um mundo tão caótico e aguerrido.
Com suas catarses, seus vômitos artísticos, o artista quer paz para poder
produzir e pensar. O atelier do artista é o seu porto seguro, seu canto, seu
reino, no qual a quietude reina para fazer do silêncio e da paz a sua argila
mole. São as janelas de uma mesma casa, só que cada uma com uma função
diferente, sendo umas mais amplas e outras menos, como numa delgada fenestração
de banheiro. Cada um com sua função, no sentido da trilogia Matrix alegar que, quem não tem função,
é “deletado”. E o artista quer encontrar essa função.
10) Aqui, a assimetria volta, enigmática. Temos três níveis
de espessura: magro, intermediário e gordo, como no quadro 3, numa pluralidade
na qual os elementos convivem. O retângulo gordinho está meio solitário,
esquecido, enquanto há mais ação no lado esquerdo do quadro, mais diálogo. É
uma casa moderna, de linhas retas, racionais e simples, como na arquitetura de
casas modernistas dos anos 20, as quais seguem sendo extremamente vanguardistas
quase cem anos depois de sua construção. É o poder da simplicidade, na qual
menos é mais. Forte é fraco, fraco é
forte, diz Tao. O retângulo fininho está “prisioneiro” dos retângulos intermediários,
enquanto o gordo, apesar de solitário, está livre. Há a tentativa de preservar
e proteger o fininho, o qual é frágil e inexperiente, ladeado por pais
protetores.
Acima, Corrediças,
xilogravuras de 0,50m x 0,70 (cada quadro) / 1,30m (para série em parede). Mara
nos traz movimento, com corrediças de portas, ou janelas, ou gavetas, num
abre-e-fecha incessante, na demanda de uma casa ou escritório. Mara teve muita
criatividade para dar movimento a simples retângulos delgados pretos, trazendo
uma releitura geométrica – o bom artista pensa de forma diferente dos outros
seres humanos, imaginando possibilidades. Essas formas são como bolhas de
sabão, só que quadriculadas, com bolhas em um banho de espuma em uma majestosa
banheira, parafraseando Rita Lee: Que tal
nós dois numa banheira de espuma? Mara tem uma veia arquitetônica, e essas
obras parecem ter sido imaginadas como um projeto de casa, planejando o
aproveitamento do espaço original, desbravando o vazio e preenchendo-o. É muito
sensual o vazio de gavetas desocupadas, numa espécie de buraco negro, trazendo
tudo e todos consigo, como num furacão que recentemente passou pelos EUA, de
modo que o objetivo do artista é fazer o chão tremer, rechaçando o anonimato,
aniquilando este. Parece um projeto de designer de móveis, com móveis
planejados, sob medida, na dignidade do móvel, que é ser útil. São janelas de
computador, numa demanda digital, com vários arquivos abertos ao mesmo tempo,
carregando a memória. São engrenagens industriais, fabricando coisas, no ritmo
desenfreado na Revolução Industrial, na esteira do clichê, clichê este
rejeitado pelo artista. São engrenagens de um veículo automotor, produzindo
velocidade e desempenho, dando conta da ambição humana de sempre fazer mais e
melhor. Cartas de baralho dispostas na mesa, no modo como o jogador não pode
demonstrar emoções ao jogo, para não entregar o jogo ao oponente. Várias
janelas abertas e fechadas, na dignidade de seu vazio, que deixa a luz e o ar
entrar. São os arquivos da mente, sempre catalogando, às vezes equivocando-se,
tendo lapsos de memória, no modo como a mente é um armário cheio de gavetinhas,
dentro das quais a pessoa coloca o que quiser. São os porões do inconsciente,
cheio de assuntos dolorosos e espinhosos, na tendência humana de preferir
deixar a dor aprisionada, para que a dor não incomode, como no processo de
psicoterapia, no qual o terapeuta ajuda o paciente a desenterrar traumas e
vencer estes. Fantasmas desenterrados. São fantasmas levitando, ascendendo e
descendendo, no vaivém de uma casa cheia de crianças. É um idioma enigmático,
estranho, desconhecido, desafiando o tradutor, durando em seu enigma linguístico.
Uma estampa original, racional, pois, como eu já disse, é difícil ver Mara em
linhas curvilíneas e orgânicas. Mara gosta do truncado retilíneo. É como uma
criança criativa, que brinca de montar castelos com quadradinhos de madeira,
atiçando a imaginação. O artista é como uma criança brincando e testando
limites, buscando compreender o que é bom e o que é mau, para que, assim,
adquira o discernimento adulto. O prazer de sentir o cheiro de madeira nova em
um móvel recém-comprado, no odor de serragem. São a vista externa de janelas em
um prédio, mas num prédio de arquitetura vanguardista, corajosa, incomum,
estranha, arquitetura na qual não há padrões comuns de disposição de
fenestrações, subvertendo a ordem previsível. O artista é um furacão o qual não
foi previsto, sempre surpreendendo. São pedaços de casas boiando nas águas de
uma grande enchente, mas a enchente aqui é ordeira, retilínea. Cada um dos dois
quadros aqui são janelas, são dois olhos abertos, observando o cosmos,
explorando, nos dois lados do cérebro: Yin e Yang.
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