quarta-feira, 30 de maio de 2018

Fritando na Arte



É interessante observar que nos autorretratos de Frida, ela nunca aparece sorrindo, sem esboçar o menor sorriso, mostrando como era séria em relação à própria carreira, catarseando uma falta de alegria e um sentimento de privação – é o poder terapêutico da Arte, tanto para artista quanto para espectador. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Eu e Meus Papagaios. Os papagaios são a fertilidade da mente de Frida, animais que representam, por outro lado, a fertilidade da própria Mãe Natureza, numa criatividade infindável. Os papagaios cercam Frida com afeição, fazendo-lhe companhia, expulsando o sentimento de solidão e isolamento, no modo como é benéfica a relação do Ser Humano com bichinhos de estimação. Aqui, Frida fuma discretamente, deixando o cigarro repousar em uma das mãos. São os pequenos prazeres da Vida, como tomar um cálice de vinho observando o pôr do sol. Sua camisa branca clama por Paz, e quer Paz para produzir, para trabalhar, no modo como um artista se encontra dentro de si mesmo, e nunca fora. Aliás, este é o problema do Ser Humano – querer se encontrar fora de si, e não dentro. Frida era feliz porque era produtiva, amando trabalhar. Frida fita o espectador, num olhar “monalisístico”, enigmático, e não podemos ver o que ela pensa. A “monocelha” é o sentimento de continuidade, sem abismos interruptórios, sem pontes destruídas, mas construídas, unindo o indivíduo dentro de si mesmo e colocando este mesmo indivíduo a serviço do Mundo. O cigarro queima lentamente, no ritmo de Frida, em um atelier no qual o tempo cronológico é nada, e o tempo psíquico é tudo, na capacidade das grandes mentes em se esquecer do dia-a-dia e ater-se ao essencial atemporal, como num Albert Einstein, que tinha que perguntar aos outros qual dia da semana era. Temos uma Frida amorosa, e ela nunca chega a se apoderar dos papagaios, deixando-os livres para ir e vir, no poder libertador do Amor, do afeto desapegado, nunca obsessivo. Frida tem alguns anéis, que são a carga do corpo encarnatório, pois, como diz o ditado: “Vão-se os anéis; ficam os dedos”. Frida sabe que cedo ou tarde deixará a Terra, e tem que decidir, sem muita demora, o que quer fazer da Vida, ou como quer contribuir para o Mundo ao redor. O buço de Frida é o desapego às vaidades mundanas, importando somente o que reina na mente da pessoa. O buço, imitando o bigode, é o lado masculino de Frita, seu Yang, sua força produtiva que vem agressiva e acaba se impondo ao Mundo, pois, como se diz na gíria vulgar, é o “botando o pau na mesa”. Uma artista que mostrou a que veio. Aqui, seu pescoço é rijo e elegante, jovem e belo, e é um pilar forte, que sustenta uma cabeça de intelecto descomunal, numa artista que soube se expressar da forma como podia, como acreditava ser válido. Frida ostenta um penteado, arrumado com disciplina, sem um fio de cabelo fora do lugar. O penteado é a disciplina e o garbo de Frida, que colocava em sua arte o que acreditava ser pertinente, encontrando estilo próprio. O penteado é o cérebro, a mente, a caixola da qual saíram todos esses papagaios férteis, ricos, coloridos. Este quadro é uma celebração da Vida, da graciosidade dos seres inventados por Tao, a força una que dotou Frida de um talento tão emblemático, mostrando até onde pode ir uma simples mulher de um país pobre e subdesenvolvido. As penas dos papagaios são roupas maravilhosas, majestosas como as roupas de árvores em uma floresta, com vida pulsando por seiva e sangue, na liquidiscência de dota de vida os seres. As aves aqui têm seus bicos agressivos, competitivos, na inevitável concorrência entre artistas, mas, em contrapartida, no modo como cada um tem que aprender a ter estilo próprio. A orelha de Frida ouve as aves, e podemos ouvir os papagaios falando, repetindo suas falas decoradas, como se estivessem debochando do espectador, num Frida irreverente e divertida, apesar de tão séria e disciplinada, do modo como Leonardo da Vinci soube se manter jovial e bem-humorado até o leito de Morte.


Acima, Quatro Habitantes do México. O esqueleto é a Morte, que nos espera, sempre. É a finitude inevitável; a decadência do corpo carnal, no sentido de que, no final, todos perdemos nossos charmes, numa Frida fatalista, realista, a qual quase desencarnou num grave acidente automobilístico, tendo encarado a Morte de frente. A matriarca obesa é a fartura, uma farta mesa de jantar, nutrindo tudo e todos ao seu redor. É a Mãe Terra feita de argila, de terra, das entranhas das quais a Vida veio e para onde vai no Desencarne, ou seja, no encontro ao esqueleto aqui, numa faculdade de Medicina, como no cadáver de um mendigo, que acaba servindo à Ciência, encontrando dignidade só ao Desencarne. Ao lado da matrona, uma criança sentada, inocente, mal sabendo interpretar o que há ao seu redor, estando sob os cuidados da matriarca, aprendendo as lições do Mundo à sua volta, na sua doce inocência, querendo apenas brincar, no fator infantil de cada ser humano adulto, que conserva uma parte criança, querendo sempre obter prazer ao brincar, no sentido de que todos brincamos de ser espíritos elevados, nossos irmãos que já passaram por muitas experiências psíquicas, espirituais, na hierarquia espiritual: os maiores cuidam dos menores. Na extrema esquerda, um homem de bigode, todo interligado por fios, veias e artérias, na vida em Sociedade, a qual é toda interligada por veios e ruas, ligando os habitantes de uma mesma cidade, de um mesmo organismo, ligando com o sangue, o líquido essencial da Vida, nutrindo cada ator que participa do sistema, na interligação primordial: somos todos atores da mesma peça de teatro. O chão aqui é terroso, simples, básico, no plano orgânico que gerou todos os seres, na Mãe Terra unindo seus filhos, numa salada de diversidade, a qual liga pessoas tão diferentes mas, ainda assim, pessoas irmãs, na questão da individualidade, em que cada pessoa é um caso em especial, no modo como Tao nunca cria um ser idêntico ao outro, respeitando as individualidades. Um pouco mais ao fundo, um homem de palha monta um burrico de palha, no labor artesanal, no modo como as mãos humanas produzem coisas novas, exclusivas, como numa Frida que, através de suas mãos, convida-nos a entrar em sua mente criativa, trazendo-nos às entranhas de sua criação. O conjunto de palha é o talento artesanal, feito por mãos sempre produtivas. Mais ao fundo, uma praça com construções simples, sem afetações pretensiosas, numa praça simples, com portas e janelas, no modo como o Ser Humano é um grande artesão, sempre criando, a modelo de Tao, o Uno, que sempre está imaginando. O céu está nebuloso, imprevisível, misterioso, e não sabemos o que estas nuvens nos reservam. É o imprevisível, no modo como o indivíduo jamais sabe exatamente como as coisas vão acontecer em sua vida, e isso é um propósito, pois, se soubéssemos, não o aconteceria. Bem ao fundo na cena vemos dois picos afiados e agressivos, como nas agulhas de dor que maltrataram Frida em seu acidente, no poder abrasivo de pirâmides, ou como na ponta de um pincel, o máximo instrumento de trabalho desta mulher genial. Aqui, os seios da mulher de barro são generosos, como numa matriarca recebendo seus filhos em casa, servindo o centro da mesa com uma farta travessa de alimento, recebendo todos com prazer e hospitalidade. Estes habitantes mexicanos são diversificados, muitos diferentes uns dos outros, na celebração da diversidade, num painel colorido de diferenças. O esqueleto é o que sobra depois de uma refeição, depois de leões devorarem um búfalo. É o resto, o finito. E a sombra desses personagens neste quadro projetam-se no chão, projetando a sombra da dúvida – o que é a Vida? Qual seu propósito? Por que nascemos e morremos? O ar circula ventilando por esta praça e por essas casas, por seus vãos de janelas e portas, unificando o Universo com essa força invisível, esse Tao, transportando a Vida pelas marés dos tempos, como tempos aqui neste quadro: Nascimento, Plenitude e Morte.


Acima, Autorretrato com Macaco e Papagaio. A “monocelha” de Frida é o caminho da Vida, a rota existencial, e cada pessoa tem que encontrar seu próprio caminho, tendo que ser autodidata. As cores aqui são vibrantes, tropicais, numa Frida sedenta por alegria, por felicidade, querendo se subtrair de um mundo tão difícil e doloroso, no momento glorioso do reencontro com a Dimensão Metafísica, com o âmbito mental, no qual a única diferença que existe é a personalidade de cada pessoa, precisando haver respeito mútuo – Tao nunca faz um filho idêntico ao outro. Aqui, temos uma Frida enrubescida, quase tímida, como se estivesse tímida em relação aos inúmeros olhares de inúmeros espectadores, num desejo de, por mais que alcance sucesso mundano, preservar a si mesma, no modo como a pessoa precisa entender como é gostoso o conforto de estar em casa, deixando o Mundo ficar lá fora. As tranças desta Frida entremeiam-se como serpentes na cabeça de Medusa, e a serpente é símbolo de liquidiscência e fertilidade, sempre sinuosa, sempre insinuante, no modo como o espectador vira uma estátua deslumbrada com a obra de Frida, e esta olha o espectador, transformando-o em pedra, mostrando o poder da Arte em tocar as pessoas que tenham o mínimo de sensibilidade. Essas tranças são cobras amazônicas entremeadas em pleno coito, na força da Natureza em incentivar o coito, essencial à preservação de uma espécie. Ao fundo, várias folhagens frondosas, sempre brotando, numa imaginação de Frida, sempre criando, revelando-se esforçada em não se repetir, apesar de que sua própria face, em tantos autorretratos, permaneça mais ou menos a mesma, sempre olhando séria para o espectador, variando apenas no penteado e na roupa. É claro que Frida não quer entediar o espectador. Essas folhagens parecem um trigal, alimentando o Universo, como uma mãe zelosa, sempre nutrindo o ninho, os filhotes, na logomarca da Nestlé: uma mãe pássaro alimentando os filhotes no ninho, como no apelo mercadológico do sabão Omo, o qual, em uma pesquisa acadêmica que fiz há anos, apela para o conceito da “supermãe”, daquela mãe absolutamente zelosa, que deixa a casa toda em ordem, lavando com Omo as roupas que seus filhos tanto sujam, zelando pelo bom funcionamento do Lar. O trigal é a fonte de alimento, num Brasil que simplesmente não funciona sem seus caminhoneiros, que transportam as riquezas do Oiapoque ao Chuí, como veias que alimentam de Oxigênio um organismo. As folhagens, aqui, são a fertilidade de um solo, nos mistérios da Vida: o que faz um pulmão respirar? Aqui, o macaco é a base de referência, no sentido de que somos todos símios racionais, e Frida mostra ser racional, sempre dando provas contundentes de inteligência, que é o maior legado que um ser humano pode deixar no Mundo, como Jesus Cristo o fez. O macaco é o afeto, o bichinho de estimação, no modo como os mamíferos nascem tão dependentes das próprias mães, na teta primordial, que nutre uma ninhada, talvez numa fêmea desejando ser mãe. O papagaio é a liberdade alada, libertando a mente de um artista, no prazer da criação, no modo como Tao é feliz, sempre elaborando, sempre pensando, pois pensamento é tudo; matéria, nada. O macaco e o papagaio vivem em harmonia, apesar de serem tão diferentes um do outro, e essa convivência é a chave para a Vida em Sociedade, na qual o limite de cada um tem que ser respeitado e resguardado. Aqui, Frida tem um pescoço forte, numa pessoa que teve que tirar força do fundo da alma para sobreviver, para superar dores e percalços. Frida é forte. A Fauna e a Flora, aqui, abraçam Frida, cercando esta de Vida, de ar respirando, e esses três seres animados formam um triângulo sinérgico, tendo em Frida o agente criativo que coloca elementos claros na tela, sempre expressando com clareza o que quer dizer, e este é o segredo do sucesso de Frida: expressar com clareza, como num Luis Fernando Verissimo, o qual já declarou em entrevista que escrever com destreza é escrever com clareza, com simplicidade. Cada pessoa tem que descobrir sua própria simplicidade, e Frida o soube descobrir.


Acima, Natureza Morta com Papagaio e Frutas. O pássaro está encantado com tanto alimento, tanta fartura, numa cornucópia, numa imaginação rica, representando um país tão pobre. O pássaro se alimenta, encontrando alento espiritual, como um artista completamente à vontade em seu próprio atelier, pois feliz é aquele que encontra propósito na Vida. Esta tela é uma lição de Natureza Morta, como nas lições típicas de cursos de Belas Artes, nas quais o aluno tem que saber apreender – isso mesmo, com dois “es”. A laranja ao centro está cortada, mostrando toda a sua beleza interior, numa pessoa que, antes de ser cortada, era subestimada, revelando, assim, como é por dentro, como é na Realidade. A laranja sofreu um golpe agressivo de uma faca, do modo como foram as dores de Frida em uma cama. A laranja exibe sementes, que germinam no solo, na Mente Humana, nos mistérios da reprodução, da Vida. Estas cores, tão ricas neste quadro, são a alegria da Diversidade, em um Mundo tão pluralista, em que as diferenças, infelizmente, causam conflitos e guerras, pois erra e é narcisista aquele que acha que todos têm de ser como aquele. São esferas de um mesmo sistema solar, filhos que giram em torno do astro rei, sempre agregando uma família por meio das forças gravitacionais, em vários anéis concêntricos, numa melodia harmônica que rege um mesmo grupo, fazendo este ser coeso, no talento dos grandes líderes em unir um povo. As frutas são células de um mesmo organismo, orquestradas para reger um só corpo, no modo como cada indivíduo tem seu papel nesse grande organismo, que é o Mundo. A melancia cortada é uma lua, sempre girando em torno de uma planeta, sempre influenciando as marés e os ciclos menstruais, sempre enigmática na forma rítmica, nesta dança, como eram divertidas as vinhetas do seriado Third Rock From the Sun, nas quais esferas como planetas e luas dançavam divertidamente. A melancia é um sorriso generoso, na satisfação de um estômago cheio, na sensação de saciez, de estar orgulhoso de algo, no modo como qualquer ser humano tem que se apegar a algo, ficando orgulhoso desse algo – é a necessidade do labor, como dizem os espíritas, segundo os quais, na Dimensão Metafísica, não há desemprego, mas trabalho para todos, e trabalhos bons, que exigem da mente do espírito, como eu conversava certa vez com um amigo: todos têm que colocar a cabeça para funcionar, pois, se não, o indivíduo vira um “burro de carga”, sem sofisticação, sem vida intelectual, sem pensamento. Na melancia, vemos sementes, mas vemos também lacunas, buracos, que são os momentos complicados da vida, momentos duros, que não trazem muitas rosas nem muito perfume, mas que acabam fazendo um bem fenomenal ao indivíduo, e com Frida não foi diferente. O interior da melancia é como um formigueiro, repleto de vida, de labor incessante, com cada formiga tendo sua própria função no organismo maior, no modo como o artista, muitas vezes, tem dificuldade em saber qual é seu papel no Mundo – é um labirinto, e é assim para qualquer um, sendo artista ou não. Temos, aqui, uma fruteira de uma rainha, muito farta e fina, como numa roupa elegante, que traz autoestima a quem a veste. O interior da laranja cortada traz listras, como barras em uma cela de prisão, e cada um tem que decidir o que fazer nessa cela, como em um filme célebre sobre a prisão de Alcatraz, no qual o presidiário fica obcecado em fugir. Mas, na Vida, não há como fugir. Portando, tudo tem que ser encarado.


Acima, Árvore da Esperança, Permaneça Forte. O quadro é um manifesto, com Frida segurando palavras de estímulo, como ter esperança e ser forte, no modo como a própria artista passou por maus bocados após um acidente. A Frida deitada na cama de hospital está ferida, injuriada, sangrando e sofrendo, e está alheia ao mundo ao seu redor, resignada com a própria cruz que carrega nesta cama branca, da cor da Esperança e da Paz. A Frida de vermelho é a Frida metafísica, zelando pelo corpo carnal que sangra e sofre, e esta Frida é a sobrevivência do espírito à morte do corpo carnal, no modo como se imagina que o Desencarne de Frida foi tranquilo, numa pessoa que cumpriu sua missão na Terra e voltou para o Lar Primordial, para uma bela cidade espiritual. O Sol e a Lua são as forças opostas que regem o universo, e essas duas Fridas são carne e alma, uma sendo parte da outra. A Lua, na noite, é o percalço, o mistério existencial, no túnel negro em que Frida mergulhou ao ter, milagrosamente, sobrevivido a um acidente que poderia tranquilamente ter abreviado a vida da artista. Neste quadro temos o poder terapêutico da Arte, numa Frida que transformou lágrimas em inspiração, no poder catártico, podendo expressar toda a dor que sentiu. A Frida deitada está em um casulo de transformação, pois a Vida não tem sentido se não tiver vicissitudes, pois, se é para não enfrentar desafio algum, é melhor que a pessoa nem encarne. As rodas desta cama são a roda da Vida, nos altos e baixos de uma vida, no enorme desafio que foi para Frida sobreviver a evento tão doloroso e fazer do limão uma limonada, convertendo a dor a seu favor. A Frida desperta é a borboleta, no anjo lindo em que a artista se tornou ao desencarnar. É a Ressurreição de Jesus, na sobrevivência da mente à morte do corpo físico. A Frida vermelha segura aparatos médicos, numa cena de libertação, numa vaga memória de como foi o acidente, no modo como, provavelmente, Jesus sequer se lembra de ter sido crucificado, na doce libertação psíquica. Ao fundo, vemos terrenos irregulares, como abismos, na sensação da pessoa deprimida, que se sente como se estivesse em queda livre em um abismo sem fim. E Frida foi ao Inferno e voltou para contar a história. O Sol e a Lua são os olhos da artista, sempre observando o Universo, olhando para si mesma em uma cama de hospital, entre a Vida e a Morte, tendo que tirar força do fundo da alma, no poder positivo das crises, as quais, sendo naturalmente positivas, assinalam um ponto de renovação da vida da pessoa. O vestido vermelho e o arranjo rubro na cabeça de Frida entram em harmonia cromática com o sangue das profundas feridas de Frida, feridas as quais, finalmente, saram frente ao trabalho desta artista plástica tão marcante e célebre, já tendo tido uma cinebiografia a seu respeito. As duas bolas são como ovários, testículos, e são a totalidade do universo, no modo como a Vida tem noites e dias; tem doce e tem amargo. Os abismos são como rugas ou cicatrizes, que contam uma história, uma trajetória, e são os terrenos irregulares existenciais, numa Frida que teve que tomar muito cuidado para não cair em tais abismos, conservando a mente lúcida e as mãos produtivas, pois pobre daquele que nada faz da Vida. As duas esferas fazem amor entre si, gerando os filhos do Universo, e as bolas, juntas, formam Tao, a fonte inesgotável de Vida e Criação, numa artista que, como tal, teve que “imitar” Tao, produzindo Arte. A Frida sangrando é um Jesus na cruz, perguntando ao Pai por que este o abandonou, num momento áspero. São os momentos que exigem muita força da pessoa, e ter esperança ajuda na fortificação do espírito. Na esquerda, uma Frida sofrida e desarrumada; na direita, uma Frida impecável, no modo como o espírito nada sofre com as feridas na carne, no sentido de sobreviver a uma verdadeira hecatombe nuclear. E sobreviver é tudo, sempre tocando a Vida para frente. Frida viu em seus dias e noites como os percalços exigem força da pessoa, e absolutamente ninguém está acima dessa lei existencial: a vida sem obstáculos seria maçante demais, sem significado. A Vida exigiu de Frida garbo olímpico, vencendo sobre o Mal.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Gostando de Gustav



É interessante observar como o Feminino encanta Gustav Klimt, o qual, por sua vez, encanta-nos. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Retrato de Fritza Riedler. Uma parte do vestido de Fritza parece ser feita de olhos, como se o Universo estivesse a observar a dama pintada. Suas mãos são recatadas e delicadas, repousando sobre o colo. Os olhos do vestido são como mariscos à beira-mar, alimentando-se e lutando pela Vida. São os olhos do Mundo, observando Klimt, do modo como qualquer Arte precisa ser observada; do contrário, morre. Os olhos são como bocas de uma ninhada, querendo ser alimentadas, numa incessante fome que um artista tem por fazer Arte, por produzir, por contribuir para o Mundo, por exercer um papel digno e específico, por desejar, simplesmente, marcar época – este é o poder da Arte. Os olhos são como poros na pele, sempre respirando, sempre lutando para sobreviver, no sentido de que todos temos que virar páginas, sejam estas doces ou amargas. Os olhos são como peixes num bando numeroso, onde uns protegem os outros, numa verdadeira irmandade, pois há segurança em numerosidade. A dama dá um sorriso quase imperceptível, deixando os lábios ligeiramente entreabertos, como se não quisesse que algo lhe entrasse pela boca, preservando-se. A dama tem um rosto nem jovem, nem velho, num limiar interessante de meia idade. Sua pele é clara como seu vestido, e juntos formam um só organismo, numa Fritza confortável dentro de si mesma, conformada com o fato de que, na Vida, não se pode ter tudo. É uma dama contentada e muito bem comportada, com a paciência para posar para um artista. Suas bochechas coradas contrastam com a pele alva, trazendo um pouco de calor, de informalidade. Seu vestido é feito de muitos babados, e não é exatamente um vestido clean, nem muito simples. É um traje complexo que traz um certo peso sobre a modelo, a qual tem que carregar o traje como se fosse uma sobrecarga existencial – cada um carrega a si mesmo; cada um tem que se erguer por si mesmo; cada um tem que aprender por si mesmo. Atrás da cabeça da modelo, vemos formas que parecem ser complexos vitrais de igreja, com suas cores mágicas entrando no ambiente, encantando com sua pluralidade cromática e festiva – é a Rosa Mística de Maria. O plano de fundo, em geral, tem sutis ares de Mondrian, com retângulo e quadrados de linhas retas e tensas, compondo um cenário altamente assimétrico. O diálogo entre artistas é altamente natural e inevitável, e uns “bebem do sangue” dos outros, numa rede infinita de aprimoramento e crescimento, do modo como este é o propósito mor da Vida: o progresso moral. Na parede rubra, Klimt, em suas riquezas minuciosas, tem um ar indecifravelmente místico, trazendo algo de religioso para a própria obra, e esta parede tem pequenos quadrados, que são subconjuntos que foram conjuntos maiores, numa relação de hierarquia, como numa família, na qual o irmão mais velho “governa” o mais novo. Mas abaixo no quadro, vemos uma tarja negra, respaldando algo que parece ser uma tomada elétrica, no poder “elétrico” da Criação, quando o artista traz uma energia elétrica à obra, energizando as percepções do espectador. Aos pés do vestido da dama, dois losangos que boiam no interminável Oceano, como dois olhos que observam o Mundo e Criação Divina, como Tao, que observa tudo, em infinito poder de Criação. O artista é isso – um discípulo de Tao, buscando “imitar” o Criador Primordial, aprendendo com este. Os inúmeros olhos aqui compõem um tesouro, como a caixa-forte do Tio Patinhas, nadando em seu infindável tesouro, como no tesouro descomunal de um dragão de Tolkien. Os olhos são células de um só corpo, como os olhos do espectador, os quais, mesmo depois de tanto tempo, continuam observando as obras de artistas marcantes e inesquecíveis, pois um artista nada é sem espectadores.


Acima, Retrato de Adele Bloch-Bauer II. Adele está elegante, retilínea e ereta, numa espécie de “mulher falo”, como num obelisco, que é símbolo da verdade e do nascer de um novo dia, trazendo renovação. Seu chapéu negro é descomunal, enorme, e é uma janela para uma noite escura, num quarto escuro, numa boa noite de sono, num momento bem dormido. Adele usa uma extensa echarpe, que vai de seus ombros até seus pés, como uma anaconda voraz, devorando qualquer ser vivo que lhe apareça. É o curso do Rio Amazonas, sinuoso como uma serpente líquida, caminhando sensualmente pelos ritmos aquosos da existência, nos inevitáveis altos e baixos das ondas da Vida. Não há qualquer sorriso no rosto de Adele, mas um rosto bem sério, um tanto prostrado e triste, talvez depressivo, numa pessoa que passou por uma grande desilusão existencial, mergulhando num mar de dor e tristeza, sem poder se comunicar com o Mundo ao seu redor. Os olhos de Adele estão “puxados” para baixo, lacrimosos, e a modelo aqui é consideravelmente simétrica, com exceção da posição das mãos, que quebram um tanto desta simetria. Suas mãos parecem procurar algo, procurar um propósito na Vida, um norte, um sentido, no sentido de que todos precisam se encontrar por si mesmos, na grande escola da Vida. Este chapelão é a fértil mente de Klimt, explodindo de tantas ideias, de tanta imaginação, ameaçando explodir num orgasmo de genialidade. O traje de Adele tem cores discretas, na discrição da própria modelo, como se esta soubesse que é interessante (e necessário) ser um “camaleão” e ser discreto e “invisível”. No busto de Adele vemos três botões, que são o Cinturão de Órion, num céu estrelado que fascina a Humanidade, nos mistérios dos mares cósmicos, na sopa primordial que trouxe a Vida ao planeta: o que são Deus e o Universo que Ele criou? Por que Ele o criou? Qual o sentido de estarmos aqui? Já, o pano de fundo deste quadro é mais colorido e festivo, enquanto Adele não é muito feminina, mas séria e reverente. Na porção superior do fundo, vemos cavalos correndo, portando paladinos cavaleiros, na aventura que é a Vida, o trote do Tempo, que avança rápido e traz o inevitável Desencarne, a Redenção. Os cavalos são atléticos, olímpicos e graciosos, na elegância de um dos bichos mais graciosos da Natureza. Na porção mediana do fundo, uma base verde campestre, no perfume da Vida ao ar livre, na fertilidade floral de uma estação agradável. Aqui, as flores trazem a feminilidade que tanto falta faz a Adele. Aos pés de Adele, um tapete que traz formas fluidias, com linhas retorcidas, numa espécie de apelo oriental, no modo como o Ser Humano, de forma universal, toma as flores como símbolos de beleza e feminilidade. Este fundo, mais uma vez, como eu já disse nesta mesma postagem, traz um pouco de Mondrian, com sua valsa entre retângulos e quadrados assimétricos. Na esquerda superior do quadro, uma estrutura que parece ser uma casa, no modo como a referência de Lar é capital à Humanidade, no modo como a Dimensão Metafísica é o lar primordial, de onde viemos e para onde voltaremos. E isso é universal. A casa representa o conforto, o bem estar, o ser bem recebido e compreendido, do modo como a Humanidade demorou séculos para se dar conta da importância de Jesus Cristo e compreender o legado deste homem. As flores trazem o perfume, do modo como as especiarias orientais encantaram a Europa, com o aroma irresistível de cravo e canela, num jogo de sedução entre tradicional e exótico. E Adele permanece incólume, intocada. É uma torre forte, que jamais vai se curvar como a Torre de Pisa. Aqui, o Feminino busca o Masculino, e Adele luta para ter, dentro de si, ambas as forças opostas que regem o Universo, no modo como um cantor, por exemplo, tem que ser tanto homem de negócios e homem artista, sendo um negociador, no completo controle da própria carreira, quanto um artista, uma pessoa sensível, que precisa conservar sua própria integridade artística, buscando ser sensível e original – duas faces para uma moeda só, que é Tao.


Acima, As Três Idades da Mulher. Por que a senhora idosa está tão envergonhada? Seria por causa da nudez? Ela tapa o próprio rosto com a mão e com os cabelos. E por que a idosa está num nível acima da mulher jovem? Essa elevação é a sabedoria e a ponderação que a idade traz, no sentido de que a idade, aos poucos, vai libertando a pessoa, trazendo um ponto de vista mais abrangente ao indivíduo. É uma troca: o corpo envelhece e a mente se fortalece. O seio da idosa está caído, mostrando uma vida de trabalho e dedicação, como uma antepassada me disse antes de morrer, mostrando as próprias mãos e dizendo: “Estas mãos foram úteis ao Mundo, pois, com elas, lavei, limpei, passei, cozinhei e costurei”. E a Vida é isso – ser útil ao Mundo ao redor. O ventre da idosa parece estar grávido, numa silhueta marcante. Seus ombros estão cansados e suas mãos denunciam a idade, ao contrário dos pés, que não apresentam muitos sinais de idade. E por que tanta vergonha, minha senhora? O envelhecimento é natural na Natureza; os ciclos são naturais, como uma Lua, que cresce, envelhece e morre, renascendo depois, do modo como o Renascimento espera por esta idosa, no milagre do Desencarne, quando a pessoa não só rejuvenesce, como também vive para sempre jovem. Talvez seja este o sentido deste quadro de Klimt: a idosa morre e renasce como o bebê aqui. O bebê está em um sono profundo e indestrutível, como acontece em casos de espíritos que desencarnam e dormem por muitos dias, até o despertar na Dimensão Metafísica. O bebê é o retorno ao útero, à Casa Primordial, aos braços da Virgem Santíssima, ou, para o egípcio antigo, aos braços de Ísis, a Mãe Iluminada. A mulher jovem, aqui, abraça profundamente o bebê, em puro ato de amor. Ela repousa sua bochecha sobre a cabecinha da filha, e ambas parecem estar dormentes, descansando, num ser humano que aceita seus próprios limites, nunca querendo obter da Vida aquilo que não pode obter, pois, já ouvi dizer, aquele que aceita que não se pode ter tudo, tem Paz. Aqui, a nudez é orgânica, natural, sem vestígios de sensualidade, num bebê nu em pleno conforto da barriga primordial. Um dos seios da mulher está à mostra, lactante, abundante como uma mãe gata que amamenta uma ninhada inteira, dando tudo de si para os filhos, para o Mundo, e esta mãe de Klimt cria a filha para o Mundo. No pano de fundo superior, uma grande tarja negra, num negror noturno intenso, imprevisível, no sentido de que temos fé no Desencarne mas, ao mesmo tempo, não temos provas frias e científicas sobre a dimensão acima, num grande desafio de fé. Há também ao fundo muitos tons terrosos, no modo como a Terra gera seus filhos na água e no ar, sempre gerando como uma mãe generosa. Também vemos, em muitas partes do quadro, muitos círculos, que são o formato orgânico da Vida, num Tao desprovido de arestas, num Tao perfeito em tudo o que faz, no modo como que, como Deus faz, o Homem não faz tão bem feito, numa relação de hierarquia universal: os mais morais regem os menos morais, e o sentido existencial reside no aprimoramento moral. Um véu muito fino envolve a mulher e o bebê, e é um véu transparente, leve, como a Verdade, que revela tudo em sua nudez autêntica. Aos pés da mãe vemos também muitos triângulos, que fazem menção às três fases da Vida aqui retratadas: Nascimento, Plenitude e Morte, no modo como esta idosa morrerá e renascerá como o próprio bebê no quadro, nos ciclos da Vida e do Meio Ambiente. Há uma sinergia entre as três figuras humanas aqui retratadas, e, na verdade, essas três são uma pessoa só, numa mensagem de autoamor e autorrespeito, pois, aquele que se ama, se preserva. Flores parecem adornar o cabelo desta Mãe, que é a Mãe Natureza, sempre respirando, sempre nutrindo, no modo como, às vezes, tudo do que uma pessoa precisa é de ar nos próprios pulmões, podendo apreciar a Vida de modo simples e contentado, no sentido de que, aquele que não se contenta, sofre.


Acima, Dama com Leque. Este quadro exala perfume, Primavera, o Renascer da Vida. O leque é o frescor de um dia ameno e agradável. A dama é sexy, e seu ombro está exposto numa provocação, num requinte de uma mulher que sabe ser sexy sem ser vulgar. No plano de fundo, a Natureza em sua beleza exuberante, e podemos ouvir o canto dos pássaros e ouvir o farfalhar que o vento causa sobre a vegetação ondulante, exuberante em suas flores desabrochando, clamando por Vida. O fundo amarelo é a preciosidade dourada da Vida, e os elementos deste quadro são verdadeiros tesouros, culminando com a joia maior, que é a dama, como uma dama de baralho, com seu emblemático Q, de “rainha” em inglês, num frágil pescoço de Nefertiti, sustentando um rosto altivo e um cabelo que sugere elevação mental, inteligência. Sim, temos aqui uma Nefertiti pós moderna, relida, refeita em vestes que se juntam ao plano de fundo, fazendo com que tudo vibre na mesma direção, no mesmo prazer de viver, na festa da Vida que é a estação das flores, como azaleias que rompem em cor, anunciando o fim do Inverno, o fim da reclusão, chamando todos os seres vivos para a prazerosa reprodução, tanto vegetais quanto animais, como disse certa vez Dercy Gonçalves: Deus coloca o “tesão” nos seres vivos porque, sem o tesão, ninguém faria filhos, a as flores não exalariam o pólen reprodutivo, e a Vida acabaria, no sentido de que Deus não pode ter vergonha de algo que Ele próprio inventou. A dama tem o exato sorriso da célebre rainha egípcia, numa alegria contida, discreta, mas numa feição de satisfação, de ponderação e equilíbrio mental, num quadro de “sisudez alegre”. Seus olhos estão fixos no horizonte, como se tivesse uma visão de lince, enxergando muitos e muitos quilômetros adiante, guiando o seu próprio povo na luz de Tao, que é a visão eterna que tudo abrange. Mas, ao contrário da consorte antiga, esta dama tem bochechas bem róseas, entrando em harmonia cromática com os seus lábios, num rubor que traz o calor de um animal em pleno cio, querendo sair para o Mundo para se reproduzir, no instinto de perpetuação da espécie. E a Primavera é isto: preservação das espécies. Esta Nefertiti de Klimt traz um penteado que, em seu volume, dá a impressão da dama ter um cérebro descomunal, assim como é o efeito da coroa imperial sobre a cabeça da egípcia: uma extensão do cérebro, conotando superioridade intelectual, do modo como o célebre mestre Tatata Pimentel chamava de elite os alunos cuja inteligência respeitava. Esta dama é uma mulher de elite, exalando classe, e não tem um pingo mínimo de vulgaridade ou indiscrição, apesar de exibir tão provocantemente a própria pele. Os seres vivos ao fundo são nobres, no modo como Tao coloca sobre os seres um pouco da classe que o mesmo Tao tem, como numa rainha da Festa da Uva, a qual, antes de qualquer atributo, tem que ter classe. Os pássaros aqui parecem ser pavões, exibindo orgulhosamente suas penas coloridas, na dança exuberante em que machos se exibem para conquistar as fêmeas, no objetivo de gerar prole. Aqui, podemos ver o leque se movimentar, abanando suavemente, juntando-se à brisa natural no ar, unindo os seres vivos na necessidade comum de água e oxigênio. O leque conota charme aristocrático, polido. Cachos de cabelos caem sobre o rosto como uma cascata, ou como uma trepadeira, na insinuação da Natureza, a qual vem chegando discretamente e, no fim das contas, acaba conquistando tudo e todos ao seu redor. O decote desta dama é atrevido, numa mulher “louca” para se libertar desta função tão decorativa, encontrando no decote ousado uma válvula de escape para arrebatar tudo e todos, assim como o fez Nefertiti, que era a mais importante das esposas dentro do harém do faraó, numa dama que quer tudo na base do “tudo ou nada”: ou ela é a maioral, ou prefere nada ser. Este decote remete ao ousado (porém classudo) vestido de Gisele Bündchen no mais recente Met Gala, numa peça que esconde e revela, num jogo entre certo e errado, numa pura provocação feita por quem sabe o que faz.


Acima, Casas em Unterach no Attersee. Um vilarejo no qual reside a Paz, num Klimt sedento por Paz e sossego. As casas são coloridas e alegres, estruturas nas quais moram pessoas que têm intenções modestas em relação à Vida: viver com tranquilidade. Um límpido rio corre na porção inferior do quadro, e a água é muito pura, num Klimt puro e desprovido de ambições mundanas. Podemos ouvir o barulho reconfortante da água fluindo, num córrego onde não há um sinal de poluição ou sujeira. As casas se fundem com a vegetação, numa vizinhança arborizada, de jardins bem cuidados e amados. As janelas estão abertas, num artista aberto para o Mundo, deixando-se influenciar e, desse modo, influenciando outrem, numa troca de sensibilidades. Aqui, uma brisa gostosa paira, e podemos ouvir um galo cantando no pátio de uma dessas residências acolhedoras. É um quadro que clama por Paz Mundial, pela dissolução da Guerra, a qual só traz fome e destruição. As casas têm chaminés, espalhando o odor de madeira queimada pela vizinhança em dias de frio e umidade. Esta é a sensação de estar em Paz: viver num lugar sem pretensões, sem as vaidades que tanto Mal trazem a qualquer ser humano. A casa mais vermelha é o sangue de irmãos, que corre em comum pelas veias de todos nós, e não é uma bobagem quando um padre diz que temos que nos amar como irmãos. A casa vermelha traz calor, e traz um Klimt que aceita sua própria humanidade, como na cor de carne dos bordéis, lugares em que o ser humano aceita a sua própria sexualidade, nunca reprimindo esta. Trata-se de uma colina, com construções e vias que correm de cima a baixo, e, no fundo de tudo, em último lugar, o rio, que corre pelos vales, e este rio é Tao, o qual, sempre subestimado, sempre em último lugar, rege a vida de todos os moradores deste vilarejo, os quais são regidos por esta força gravitacional, que coloca o mais importante em uma posição aparentemente desimportante, no sentido de Tao ser invisível, e não podemos dizer como Ele é, nem como Ele pensa. Neste quadro, a água tem este papel importante, no fluido primordial de onde surgiu toda a Vida, para depois esta se expandir por seres vivos que vivem fora d’água. Na beira do rio, uma casinha pequena e modesta, a mais pobre do vilarejo, a mais subestimada, não tão suntuosa e corpulenta como as demais residências aqui, e esta casinha modesta é precisamente a qual rege todo o vilarejo, tendo em Tao a humildade eterna. Aqui, o Ser Humano vive em harmonia com o Meio Ambiente, e o espectador é tentado e sonhar em viver em um lugar tão plácido, tão desprovido das vicissitudes das vaidades humanas, pois o Mundo é de quem NÃO se considera dono deste mesmo Mundo. Klimt se aproxima do “não querer”, do “não ambicionar”, podendo, assim, produzir em paz e ter um dia a dia proveitoso e prazeroso, nunca tendo no trabalho um sinônimo de sofrimento ou privação, mas de propósito. Ao lado do rio vemos uma estradinha cinzenta, que é o limite necessário para que o respeito guie a Vida em Sociedade, no limite que existe entre o “eu” e o “outro”, respeitando, aqui, a propriedade alheia. Aqui, temos uma técnica impecável, num Klimt capaz de reproduzir um rio espelhado, como num espelho existencial, no qual o Ser Humano se olha e se julga, podendo observar com clareza a sua própria trajetória existencial, pois Tao pergunta: O que é mais importante – a sua Imagem ou a sua Alma? Claro que é a Alma, mas o Ser Humano é eternamente obcecado pela Imagem, obtendo, desse modo, infelicidade e ambição, num jogo de vaidades que cobra um preço alto, preço este que é a Alma, a qual é escravizada pela Arrogância.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Pintando um Clima com Klimt



Tenho lembranças do Ensino Médio, em que minha professora de Educação Artística exaltou a obra de Gustav Klimt, o qual resolveu opor-se aos velhos moldes acadêmicos, tornando-se inovador. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Árvore da Vida. Temos aqui um pouco de psicodelia, muito tempo antes da onda Flower Power dos anos 60. São linhas divertidas e lúdicas. A Árvore da Vida se espalha por todos os lados, dominando o quadro, mostrando ter força titânica – a Força da Vida. Vemos um pássaro pousado em um galho, e podemos ouvir seu canto delicado, num bálsamo para os ouvidos. Por toda a árvore, várias flores cinzentas, e discretas, com uma forma exótica, e não sabemos o porquê delas serem assim. Também vemos pelos galhos formas que parecem ser coroas, na coroação das Forças da Natureza, impondo-se na Vida em Sociedade, cobrando um preço caro aos que não se submetem a tal força. São como sensuais ramos de videiras, curvilíneas, envolvendo-se em tudo o que é encontrado pelo caminho, como uma hera que se alastra e domina tudo ao seu redor, impondo-se monarquicamente, no modo como o Homo Sapiens encontra na Natureza a inspiração para tecer seus mitos, como deuses que representam os trovões, as chuvas, o Sol, a Lua, as Estrelas, os animais, a vegetação etc. O tronco é forte, e tem competência de sustentação, no modo como o indivíduo tem que se fazer forte para enfrentar os solavancos da Vida. Na extrema esquerda, uma mulher amarga olha invejosa para um casal que se beija na extrema direita. O casal está tão apaixonado que formam um só ser, e envolvem-se num abraço doce de pura entrega, de rendição, do modo como o Amor pode invadir as vidas das pessoas, trazendo alto reconforto existencial. É um casal num momento romântico, no mesmo amor com o qual a árvore forte se espalha, cobrindo campos e vestindo florestas, dando a estas roupas maravilhosas, deslumbrantes, do modo como esta árvore simboliza a majestade da vida ao ar livre, opondo-se aos palácios construídos pelo Homem, palácios que são meras cópias grotescas da Obra Divina, da concepção de Tao. A mulher invejosa tem uma longa cabeleira, e olha fixa para o casal. A invejosa nada pode fazer para interromper o bembom dos pombinhos, e ferve em seu próprio ódio, apesar de ser bela. Como diz uma frase de caminhão: “Não me inveje, trabalhe”. Ou seja, não inveje; procure seu próprio amor. Tanto o casal quanto a mulher solteira vestem roupas ricas em detalhes, e formas geométricas fundem-se com multicores. Temos em Klimt elementos ricos de grafia, num artista debruçado e empenhado em enriquecer quadros. Aqui, temos uma verdadeira declaração ecológica, e a Natureza se revela em suas flores, animais e minerais, como conchinhas à beiramar, como galáxias inúmeras jogadas sobre o misterioso pano preto do Universo – o que existe depois do Infinito? O que é a Eternidade? Tao é isso – muito poder, só que um poder que se alastra com amor, e não com ambição. Bem ao fundo no quadro, um dia claro, convidativo, trazendo clareza de ideias, contrastando com os galhos escuros da árvore. No vestido da mulher solteira, um triângulo com um olho onisciente, sempre observando seus filhos. É o olho de Tao, sempre vigiando a Criação, no modo como a Arte quer ser esse olho que tudo comporta, que tudo observa, trazendo um olhar abrangente e rico sobre tudo e todos, sobre a Arte, sobre o Ser Humano. No vestido da solteira, triângulos de pontas agressivas e amargas, no termo “levar tudo a ponta de faca”. Já, as vestes do casal in love têm formas arredondadas e orgânicas, carinhosas, fluidias. Mais abaixo no casal, um desenho que lembra histórias em quadrinhos, num Piet Mondrian empenhado em seus quadrados e retângulos. Nada mais natural do que artista influenciar artista, pois estes se comunicam em uma linguagem que ambos amam e compreendem.


Acima, Esperança I. Já ouvi dizer que a Vida é o nervo da Arte. Aqui, a Vida cresce e se desenvolve, dando perspectivas a uma mulher grávida. É a mente fértil, sempre tendo ideias. O bebê está prestes a nascer, e a bela mulher olha para o espectador. Do modo como Angelina Jolie foi uma grávida estonteante, e já ouvi dizer que toda mulher grávida é bela. É um quadro vertical como um arranhacéu, e a mulher está de lado exatamente para exibir a silhueta. Ela está gerando Mundo, como na cena final de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, no Homem voltando ao útero, ao lar, na Lei do Eterno Retorno. A mulher é ruiva e pálida, bem nórdica, e seus cabelos e seu púbis formam um só organismo, na sensualidade da continuidade, da integração, do modo como os seres humanos estão todos unidos no Campo das Ideias, no Plano Metafísico, o Lar para o qual temos que retornar sempre, assim que desencarnamos. A mulher tem delicadas flores brancas no cabelo, simbolizando a delicadeza e o reconforto do Yin, a face feminina da Vida, do modo como dia o próprio Taoismo: “Entenda e força do Yang, mas seja mais Yin dentro de você mesmo”. Atrás dessa imagem iluminada de Vida e concepção, temos um quadro sombrio, com boas doses de preto, que é o Mistério Existencial. Logo atrás da cabeça da mulher vemos uma caveira, que representa a Morte, a inevitável Morte, como uma bombarrelógio, que está prestes a estourar, sem sabermos quando o estouro vai se dar exatamente. A Morte ronda a Vida, mas, neste quadro, a Vida vence, e a Maternidade segue como símbolo de Amor e Virtude, como um lar tem que ter Virtude, educando exemplarmente seus próprios filhos. Numa porção do quadro vemos uma onda azulada, no cheiro sensual do Oceano, na Mãe Primordial, sempre atraindo seus filhos para a fluidez prazerosa. Na porção superior do quadro, vemos outras faces fantasmagóricas, feias e agourentas, rondando a mulher grávida, mas nunca envolvendo esta completamente. Há no quadro uma batalha pela Vida, do modo como um artista tem que lutar na labuta para vencer com a dignidade do próprio trabalho. É claro que a mulher está em primeiro plano, e sua luz contrasta com o fundo sombrio, nas bases comparativas da Vida: quando digo que algo é belo, é porque sei o oposto, que é feio e maléfico. Quando digo que fulano é um querido amigo, é porque, por outro lado, tenho outros amigos não tão queridos. Os seios da mulher não são muito fartos nem lactantes, talvez simbolizando um período de vacas magras, de privação, de necessidade, sendo tudo vencido e superado pelo bebê que está prestes a conhecer a Luz, no trauma do nascimento: eu estava tão bem ali dentro – por que tive que sair? Os cabelos ondulantes da mulher são os córregos da Natureza, numa vida sempre fluindo numa estrada, nunca parando, nunca se estagnando, como me disse um ente querido: “Estou em empurrando a Vida para a Vida não me empurrar”. Aqui, não sabemos quem é o pai, como se fosse A Imaculada Conceição, num ser que veio ao Mundo sem ter que ser submetido às Leis da Natureza, nas quais o Sexo é inevitável para a perpetuação de uma espécie. No Plano Metafísico, no Plano da Ideias, somos todos imaculados. Aqui no quadro, temos uma Virgem Maria reinventada, sem o repúdio conservador antinudez. Seu corpo é puro como leite, como o Capitão Rodrigo de Erico Veríssimo, um personagem deflorando uma moça nórdica, no prazer da violação de terras virgens. Aqui, Luz e Escuridão duelam, e o Bem acaba prosperando e se impondo. O mamilo da mulher é também rubro, na cor ígnea dos cabelos da Rainha Virgem da Inglaterra, na cor do sangue nobre que flui pelas veias psíquicas de cada um de nós. As flores nos cabelos são a força silvestre de uma Primavera ao ar livre, na liberdade de pulmões cheios de ar, na vida que pulsa na cidade do Rio de Janeiro, palco onde Bem e Mal duelam, como diz em uma canção: “Cidade Maravilha, purgatório da Beleza e do Caos”. A alva mulher parece não conhecer o Sol, como uma imaculada pele de bebê, que se gerou numa barriga sem saber o que é a Luz. Podemos ouvir o choro deste bebê, que está prestes a sair de sua zona de conforto e encarar o Mundo. A Vida é a Esperança de uma dimensão melhor.


Acima, Judit I. Temos uma mulher cheia de verve e ousadia. Ela é como uma “puta velha”, termo carinhoso usado por um publicitário que conheci, quando este se referia a pessoas de décadas de atuação, pessoas estas conhecidas por todos. Jovem, porém experiente, Judit é insinuante, lasciva, e parece estar à vontade estando nua, com um seio exposto e outro seio tapado por um véu translúcido, na paixão de Klimt pelo nu feminino, muitas vezes chocando quem é partidário de nus clássicos, mais sutis. Judit está envolta em ouro, em riqueza. No pescoço, usa uma coleira, catarseando o sentimento de possessão, no qual um homem possui uma mulher, fazendo desta uma escrava, no jogo de sedução em que dominado vira dominador, e viceversa. É uma ironia. A coleira é uma joia cara, talvez presente de um admirador rico, assim como a modelo é querida do artista, inspirando este. A coleira fortalece o pescoço, trazendo uma mulher forte, com uma grande estrada existencial cumprida, mas com ainda muito chão por vir, numa Judit forte e irreverente, passando a impressão de adorar fazer piadas e de falar bobagens. Ela é brincalhona, quebrando rígidos sisos acadêmicos, pois, como diz Tao, o duro e inflexível acaba se quebrando perante o mole e o sensual. E aqui temos uma Judit forte como um obelisco, mas feminina em toda a sua irreverência lúdica. O colar aqui tem várias pedras acopladas, como um tapete de flores silvestres na Primavera, nos encantos labirínticos femininos, hipnotizando Klimt e, por consequência, hipnotizando o espectador. Judit tem uma irreverência gigantesca, e passa a impressão de ser um colosso de dez metros de altura, e não uma frágil mulher, frágil como um caule de flor, havendo aqui força na fraqueza, e o fluidio e sensual acaba vencendo o cruel e o inflexível. Judit aqui tem muito jogo de cintura, e quebra as durezas do Mundo, trazendo um perfume novo, nas últimas novidades de Paris, a qual, já me disseram, é uma cidade maravilhosa, e talvez um dia eu visite a urbe. As vestes de Judit são dignas de uma princesa egípcia. É um tecido vaporoso e delicado, fino, revelando e, ao mesmo tempo, ocultando, num jogo provocador de escondesconde. Os dentes da modelo brilham pela luz do atelier de Klimt, e os lábios rubros ardem como fogo, numa boca que se abre e, ao mesmo tempo, nada deixa entrar, num paradoxo provocador, como se Judit soubesse direitinho como enfeitiçar e provocar. Os mamilos e o umbigo formam um triângulo, cujo centro é este corpo nu, o estômago, na digestão de fases da Vida. Judit quer se esconder e, também, quer se revelar – enquanto um seio está descoberto, o outro tenta se ocultar. O seio encoberto, como nuvens em um dia nebuloso, é o recato e a vergonha, numa Europa que, apesar de ser um cultura que celebra a beleza do nu, tem algumas heranças medievais de conservadorismo, num artista querendo buscar um ponto de harmonia e concordância, que é o umbigo, o centro. As vestes de Judit e o plano de fundo também têm detalhes em ouro, numa ironia: usando o ouro de fato, Klimt brilha como ouro, em um talento precioso – valor falando de valor. Os seios de Judit estão no auge de sua beleza e juventude, e eles são macios, agradáveis de ser apalpados. O plano de fundo tem formações vegetais, como numa densa floresta dourada, com suas folhas exuberantes, tropicais, nos mistérios da Vida – de onde vem tudo isso? Judit adquire aqui um papel decisivo, posando como a autora de tudo o que floresce aqui, tornando-se uma espécie de mentora, quase mandando em Klimt, fazendo deste um escravo de sua vontade. Mas é uma escravidão doce, irresistível, e o espectador quer, de boa vontade, submeter-se às vontades desta diva são estonteante. Podemos ouvir um gemido de Judit, e até uma risada contida, mas não uma risada de boca escancarada, mas uma risada sutil, rindo daqueles que acham que podem definir a própria Judit. São os mistérios telúricos do Jazz. Os cabelos dela são fartos e negros, imprevisíveis, como uma floresta negra à noite, sem luz alguma. É o mistério de Judit – o que será que ela quer dizer?


Acima, Nuda Veritas. A nudez é a exposição da Verdade. Nunca vou me esquecer de uma psicóloga que, ao atender os pacientes, vestia uma camiseta na qual estavam pintados seios e vulva, numa mensagem clara: além de ser psicóloga, ela era uma mulher. Eu ficava imaginando se a psicóloga saia na Rua vestindo aquela camiseta! Neste quadro, não há definições, e a modelo parece estar atrás de um vidro de boxe de banho, como se estivesse fora de foco, na sensualidade do ritual do banho perfumado. A mulher segura um objeto que parece ser uma lupa. A lupa é o olhar artístico sobre o nu, equilibrando-se numa linha tênue: é o sexy sem ser vulgar. É uma mulher voluptuosa, com uma cintura fina e quadris largos, nas curvas da Mãe Terra, na magia geológica das formas da Natureza. Os seios, umbigo e vulva estão bem desfocados, nunca artista não muito interessado em formas definitivas. A lupa é o olhar sobre o Feminino; é a curiosidade científica sobre os mistérios do Universo. O cabelo rubro arde como fogo, e flores brancas, talvez margaridas, decoram os fios, compondo um bosque paradisíaco, em que a Vida brota em todas as estações do ano, nunca havendo períodos depressivos de um inverso gélido e silencioso. Ao redor desses cabelos vemos borboletas furtivas, polinizando o bosque, e ouvimos o pio de passarinhos contentes, que encontram prazer na Vida. Os cabelos quase cobrem os seios, e vulva e cabelos formam um só ser, unificando a concepção de Eva. A modelo tem um olhar duro, pétreo, como se estivesse altamente mortificada e desiludida, atendo-se somente ao verdadeiro, ao autêntico. Na metade superior do pano de fundo, vemos as linhas psicodélicas tão adoradas por Klimt, em formas divertidas, que fazem da Natureza uma grande festa; na metade inferior do quadro, ondas, também curvilíneas, de um azul vibrante, como o Mar que envolve Iemanjá, a Mãe dos Navegantes. Temos aqui uma Iemanjá moderna, reinventada, e o seu umbigo é o centro gravitacional, ao redor do qual tudo gira, num artista querendo centrar-se em sua própria arte e em seu próprio labor. E o Mundo não pertence àqueles que encontram a si mesmos? As bochechas da modelo são rubras, como se ela estivesse envergonhada por aparecer nua perante tantos e tantos espectadores. Neste quadro, o curvilíneo acaba se impondo, subvertendo linhas retas e rijas – é a vitória da vagina sobre o pênis, que é o pincel. A boca vermelha da modelo está sutilmente aberta, revelando apenas um pouco dos dentes frontais. Temos aqui uma espécie de Eva transgressora, misoginamente responsável pela expulsão do Homem do Paraíso. A lupa parece ser uma bola de cristal, como se Eva quisesse ver o que acontecerá se morder a infame maçã, que é o pomo da discórdia. Tudo neste quadro respira num ritmo só, numa relação de continuidade entre os seres vivos. As flores são a fertilidade mental, sempre inventando coisas originais. A lupa é o olhar frio e científico, procurando encontrar Lógica na Loucura. A lupa tem o formato de Globo Terrestre, e Eva segura o Mundo nas mãos, adquirindo papel decisivo e definitivo no destino da Humanidade. Nesse sentido, a Mulher é protagonista, enquanto o Homem é mero observador, num jogo de sedução no qual não sabemos ao certo quem é o quê. Podemos sentir o cheiro de Mar, como uma mãe chamando seus filhos de volta para casa, no fascínio da imensidão oceânica, força natural glorificada no filme Titanic. As mulheres de Klimt são assim, titânicas; são Giocondas indecifráveis, pois o qual de que se pode falar não é o verdadeiro qual.


Acima, O Beijo. É claro que temos aqui um Klimt romântico, que sabe que o Amor é lindo. O homem envolve a mulher e a protege, numa relação erótica de interdependência. Nas vestes do homem predominam formas quadradas e retangulares, racionais, truncadas; nas da mulher, temos basicamente círculos, como planetas girando em torno da mesma estrela mãe, no Sol dourado. A mulher está de joelhos, como se estivesse rendida, conquistada. Seus pés e parte das pernas estão nus, de fora do traje, revelando o prazer simples de se sentir em casa. Aos pés dos amantes, uma relva muito florida e colorida, numa alegria primaveril, numa verdadeira festa da Vida, pois Klimt vê uma relação de continuidade entre os elementos de sua obra, sempre trazendo unidade. Os braços e mãos dos amantes se entrelaçam, como se fosse um enlace na Igreja, jurando fidelidade, jurando estar sempre um ao lado do outro, num juramento que é feito perante o Mundo, no altar, e este Mundo é representado pelos convidados do casamento, que testemunham a união, na crença religiosa de que o que Deus une, o Homem não separa, num Henrique VIII que desafiou o todo poderoso Vaticano, num monarca resolvendo se casar com várias mulheres, quase compondo um harém. Só que aqui, nesta cena, não há luxúria, nem poligamia, mas uma jura de amor eterno, que é eterno enquanto dura, não importando aqui o registro cronológico, e sim a qualidade do tempo que os amantes passam juntos, pois, cedo ou tarde, no desencarne, como diz o padre, a Morte os separa. Portanto, deve-se curtir o momento. Os cabelos de ambos os amantes estão enfeitados com Flora, na alegria sensual primaveril, quando a Vida renasce, ressuscita, trazendo toda a sua bela lascividade, na festa da reprodução, do coito, do fazer bebês. A mulher está com a boca e bochechas rubras, talvez envergonhada e, mesmo assim, excitada, e seus olhos estão fechados, como se estivesse dentro de um delicioso sonho erótico, num indecente prazer, perturbado pela culpa moralista. Aqui, não temos culpa, mas entrega, num momento de Amor verdadeiro – um se coloca nos braços do outro. O fundo dourado entra em harmonia cromática com o resto da composição pictórica. O traje do homem, apesar de ser mais masculino, tem também algumas curvas psicodélicas, como se ele estivesse se rendendo à namorada, às curvas da companheira. Temos aqui um retrato de companheirismo, do mesmo modo como o artista é companheiro de si mesmo, colocando na tela elementos de sua própria psique, dialogando consigo mesmo, em saudáveis momentos de solidão – todos precisamos de um pouco de reserva, de “egoísmo”. E, neste casal, existe respeito de um para com o outro, pois, apesar de estarem tão intensamente juntos, não são um só ser, e, do mesmo modo como agora se beijam e se unem, passam alguns momentos solitários, como numa casa, em que cada um tem que ter o seu cantinho, o seu pequeno reino. O homem beija calidamente o rosto da mulher, numa cena de alta intimidade, com um se abrindo para o outro. São como Yin e Yang, os quais, apesar de se complementarem, são também autônomos, pois nenhum relacionamento sobrevive à sobrecarga, ao apego doentio, ao possessivo. Temos aqui um Klimt extremamente paciente e minucioso, pintando cada pequena forma geométrica, debruçando por várias horas e dias sobre uma obra, amando a si mesmo como os amantes se amam. Temos aqui uma chuva de ouro, em que a felicidade é encontrada por duas pessoas que, finalmente, podem dizer o que é amar, adquirindo uma experiência de vida que mudará suas vidas para sempre. Os pés descalços da mulher são a simplicidade de estar em casa, sem as pressões do Mundo lá fora, dentro de um lar cheio de Yin, com o Yang lá fora protegendo o Feminino.