quarta-feira, 2 de maio de 2018

Bonsoir, Renoir



Estrelão do Impressionismo, Pierre-Auguste Renoir é um dos maiores franceses da História, exaltado até de forma chauvinista por um personagem do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Nu no Sol. A luz do Sol entra sensualmente pelas folhas das árvores, numa tarde de temperatura agradável, e a modelo parece estar muito à vontade em sua simples nudez. Seus seios são voluptuosos, deliciosos como fruta madura no pé. A magia do Impressionismo toma conta do quadro, com pinceladas afoitas, dando movimento à cena. Pelo corpo da modelo vemos algumas “manchas” de luz solar direta, banhando sua pele alva, imaculada. A modelo veste uma pulseira e um anel, denotando ser rica, e não uma simples prostituta que tem que se prostituir para não passar fome. A pulseira dourada brilha como o Sol, seduzindo o espectador a entrar no quadro e beijar a modelo. Seus olhos e cabelos são negros, imprevisíveis e misteriosos, contrastando com esta cena diurna. A modelo está um pouco ruborizada, com bochechas róseas e saudáveis, esbanjando Vida. Podemos ouvir o canto dos passarinhos ao redor, num silêncio bucólico. A modelo está cercada de vegetação, como se a própria modelo fosse uma planta ou uma flor neste jardim, entrosando-se profundamente com a vegetação ao seu redor, como a sexy vilã Hera Venenosa, arquiinimiga de Batman. A modelo não olha para o espectador, mas está distraída por algo que foge ao quadro. A modelo parece estar psicologicamente distante, um tanto entediada com a função de posar. Seu anel brilha singular, fazendo metáfora com a preciosidade dos grandes talentos, dos grandes mestres como Renoir. A modelo tem um ventre abundante, digno de dançarinas da Dança do Ventre, como nas formas abundantes de Marilyn Monroe, a qual não se parecia com o padrão de beleza das modelos atuais: anoréxicas e subnutridas. A modelo é uma mesa farta de galeteria, na alegria de receber amigos em volta de uma mesa generosa, sem tratar o alimento como uma preciosidade, mas como uma necessidade. Os cabelos da modelo estão desgrenhados, desajeitados por uma brisa que varre a cena e provoca um delicioso farfalhar de folhas. É uma tarde quente de verão, e podemos ouvir as cigarras cantando sob o calor. Um pouco tímida, a modelo tapa seu sexo, provocando ainda mais o espectador. Talvez seja a primeira vez em que a modelo posa, num desconforto de principiante. A modelo e a vegetação são um só corpo, na sensualidade da integração universal, num único caminho, um único Tao – a sensualidade precisamente reside nesta interconexão, num Renoir que viveu muitos anos antes da Internet. A pele da modelo é clara e delicada, numa fragilidade de um caule de flor. Ainda assim, a modelo se impõe impiedosamente, arrastando tudo e todos consigo. Fascinante como uma musa, a modelo tem seios liquidiscentes, orgânicos, frágeis e fluidios, como um córrego de água, sempre fluindo, sempre nutrindo terras de um vale de videiras. Os seios são a Mãe provedora, como no busto sensual de uma Iemanjá, sempre nutrindo, sempre dando pesca farta aos pescadores, sempre generosa como uma mamma italiana fazendo polenta para a família. As folhas acariciam suavemente a pele da modelo, num quadro de prazer, de bem estar, de sedutora preguiça. Os seios parecem se movimentar, como sinos em pêndulo, como numa dança em torno de uma fogueira. Estes seios são naturais, e não de artificial silicone; não de fake news – notícias falsas. Tao é o natural.


Acima, O Almoço dos Barqueiros. Este é um dos quadros mais célebres de toda a carreira de Renoir. Pessoas jovens, bonitas e vibrantes reúnem-se com jovial alegria. Vemos uma mesa muito farta, com bons vinhos e uvas, na alegria de Baco: no vinho está a verdade, ou seja, o vinho traz alegria e libera a voz. É uma cena de celebração e flerte. É um dia ensolarado, como a juventude dourada de uma colônia espiritual, na Dimensão Metafísica, onde todos somos jovens e eternos. A toalha branca da mesa é a paz, a brandura, a limpeza, a beleza. É um lugar e um momento onde não há espaço para mágoas ou tristezas, como um bom grupo de amigos, no qual todos se divertem igualmente. As moças são elegantes, com chapéus aprumados, mulheres que fazem questão de se arrumar para ir a uma festa, mostrando ter autoestima, autoamor. O vinho tem papel importante na cena, trazendo cor e perfume, alimentando a alma. É um dia quente, e dois rapazes estão de camisa regata, com os braços à mostra, querendo mostrar seu vigor às moças. Um dos rapazes, à direita, está informalmente sentado, mostrando simplicidade e despretensão, numa pose alternativa, de um Renoir alternativo, imaginativo. Uma das moças, à esquerda, está beijando um cachorrinho, sendo o bicho alvo de amor. O cachorrinho é a afeição, o carinho, num quadro onde o flerte tem, por trás de tudo, a necessidade de Amor. Quase ao centro, em uma pose sensual, uma moça repousa a mão sob o próprio queixo, numa pose de alguém que está curtindo o momento e aproveitando a festa. Podemos ouvir conversas animadas e gargalhadas, em uma festa divertida e prazerosa. Mais um pouco à direita, uma moça toma um cálice de vinho. O vinho é a declaração de amor de Renoir à França, país que desenvolve vinhos de excelência mundial, sendo sinônimo de qualidade, trazendo orgulho nacional, no modo como o próprio Renoir se tornou um astro nacional francês. Apenas um dos homens na cena não usa chapéu, acessório que é sinônimo de elegância, sendo, em pleno século XXI, um tanto subestimado e fora de uso. É a alegria e a beleza de uma vindima, com agricultores cantando juntos enquanto colhem dos parreirais os preciosos frutos dos vinhedos. A magia das vindimas está na união, quando todos se unem em torno da uva.  Aqui, a mesa está charmosamente desarrumada, num apelo informal e acolhedor, rústico. Nesta festa não há espaço para a sisudez ordeira, a qual não combina com uma festa, mas com um escritório. Aqui, Renoir encontra prazer no trabalho, misturando sisudez com diversão. O toldo acima é a proteção da Mão Divina, abençoando seus filhos e amando os mesmos, como Aton abençoando Aquenaton. O toldo é o carinho do Lar, num lugar onde a pessoa goza de grande identidade, sabendo muito bem a que lugar a mesma pessoa pertence. É um momento de intensa interação social, e cada minuto é precioso com esses encontros e flertes, num momento em que a Vida em Sociedade revela o seu lado feminino, festivo, como uma Rainha da Festa da Uva, mulher madura como a uva madura, num arquétipo feminino, belo. Renoir mostra maestria na constituição do vidro dos copos e garrafas, usando sutis pinceladas em branco para obter o efeito cristalino, transparente. As uvas são a Vida, deliciosa Vida, sempre brotando e germinando, sempre provendo sangue ao organismo, no jogo sedutor do vampiro, ávido por sangue. Os chapéus na cena são o telhado do Lar, protegendo da chuva, numa cena tão veranil. Ao fundo de tudo, a Mãe Natureza, a vegetação, envolvendo todos com a seiva fluindo por suas veias, sempre respirando e vivendo. A moça quase ao centro, debruçada, sente a Vida fluir, deliciando-se com este simples momento de relacionamento. Olhando para ela, um homem está de costas para o espectador; o homem é o próprio Renoir, como um Hitchcock pintor, nunca querendo tomar espaço na cena, sempre observando invisivelmente, nunca querendo aparecer como um showman, um exibido.


Acima, O Camarote. Uma dama absolutamente arrumada e elegante assiste a um espetáculo. Ela usa joias e vestes nobres, com uma delicada flor no cabelo, símbolo de feminilidade. Sua pele é alva, quase fantasmagórica, e seus brincos parecem balançar suavemente. Podemos ouvir uma soprano em performance no palco. A dama veste luvas brancas, pertinentes em um evento de gala e excepcional. Aqui, o espetáculo não está no palco, mas sim nesta dama. Ela pouco parece se importar com o que ocorre no palco, como se soubesse que ela mesma é a mulher mais maravilhosa da noite. Ela olha ligeiramente ao lado do espectador, sem flertar com este. Seus lábios são cor de rubi, viçosos, vibrantes, loucos por um beijo, por uma noite de romance. Seu busto é generoso, farto, como de uma fêmea lactante, esbanjando vida, explodindo em fartura. Seu vestido contrasta entre claro e escuro, em elegantes listras. Seus olhos são de um azul profundo, e, aqui, a luz expande-se uniformemente, de forma difusa, e não podemos ver muitas sombras no rosto da dama. Ao fundo, em segundo plano, quase apagado, coadjuvante, vemos um homem que parece estar cochilando, um tanto entediado com o espetáculo, pouco se importando com este. Talvez tenha sido a dama que o convidou para o programa, e ele aceitou por ela, e não pelo espetáculo em si. O homem também está elegante e podemos vê-lo de luva. O homem sério é o respaldo masculino, a base, o pilar, e está, naquela noite, com a responsabilidade de acompanhar a dama, buscando-a em casa e trazendo-a de volta, talvez com o voto de confiança dos pais da moça. Esta cena tem uma ironia, pois junta tradição com vanguarda: no palco, sentimos que há uma ópera ou balé frutos de cultura erudita, tradicional, acadêmica; ao mesmo tempo, é um quadro impressionista, de vanguarda, no choque que ocorreu entre tradição e inovação, assim como a moderna pirâmide do Louvre, um museu riquíssimo em Arte Acadêmica. O sorriso da dama é extremamente suave, quase imperceptível, desafiando o espectador a detectá-lo, num Renoir envolto em nuances, em sugestões, tão frequentes no Impressionismo. Podemos sentir o perfume floral da dama, e o homem parece hipnotizado, adormecido, enfeitiçado. Resta saber o tempo que a dama demorou para se aprumar, pois, para uma mulher, a diversão não começa quando a mulher chega no evento ou festa, mas começa já no ritual de aprumação em casa.


Acima, O Passeio. É um quadro erótico, em que feminino e masculino se entrelaçam poeticamente. A mulher elegante e bela é “fraca e incapaz”, de forma erótica, é claro. Talvez ela esteja simplesmente fingindo que é fraca, tudo para inspirar o cavalheiro a conferir-lhe tratamento de dama, visto que a dama tem que ter uma posição passiva, pois, se impuser o tratamento de dama, deixa de ser dama – o homem tem que se sentir encorajado e inspirado. A mulher carrega seu majestoso vestido pelo bosque, e o homem estende-lhe a mão par auxiliá-la a caminhar. É claro que a estrela do quadro é a mulher, e o homem está contentado com um papel implícito. O homem tem vestes discretas e escuras, sóbrias. A mulher tem receio de sujar seu vestido no bosque, e o homem pouco se importa se ele mesmo vai se sujar ou não. O próprio bosque tem vestes majestosas, impressas com pacientes pinceladas impressionistas, parecendo competir com o vestido da mulher para ver quem é mais deslumbrante. Aqui, a mulher e o bosque fundem-se, formando um só corpo. É a sedução da Natureza, nos mistérios femininos, hipnotizando o homem aqui, estando este totalmente inspirado a tratar a dama como tal – é um jogo de sedução entre fraco e forte. O rosto do homem está quase encoberto pela sombra do chapéu, e não podemos ver as feições. O homem pouco se importa com isso, pois não intenciona aparecer mais do que a mulher, majestosa como uma noive em entrada triunfal na Igreja. Temos aqui, praticamente, uma cena de casamento, em que a noiva, em sensual atraso, finalmente entra de branco num templo, acompanhada do pai, que é o Yang. O chapéu da mulher também é elegante, e remete à reprise que o Canal Viva está fazendo na novela dos anos 80 Sinhá Moça, com Lucélia Santos no papel título. A sinhá é isso: pura feminilidade, mas é um personagem, e não uma pessoa, pois, no mundo real, cada pessoa tem que desenvolver, individualmente, seus próprios lados feminino e masculino. Mas, mesmo assim, este quadro é sedutor. Renoir tem um fascínio sobre o Feminino, retratando mulheres muito sedutoras e, ao mesmo tempo, puras. As mãos da mulher, aqui, são bem frágeis, como um caule de flor, inspirando os cuidados do homem seduzido. Como diz Tao, forte é fraco; fraco é forte. Existe toda uma força na passividade, na languidez e na preguiça, pois, como disse Luis Fernando Verissimo, as grandes obras da Humanidade resultaram da preguiça do Ser Humano. Dois exemplos: a roda, no sentido de fulano ter preguiça de coisas carregar nos braços; o telefone, no sentido de fulano ter preguiça de ir à casa do beltrano para conversar com este.


Acima, Rosa e Azul. Este quadro é uma das relíquias e orgulhos do Museu de Arte de São Paulo, e eu pude vê-lo no museu citado. Inclusive, uma moça ao meu lado disse a um amigo: “Eu não acredito que estou em frente a um Renoir”. Parecem as menininhas fantasmas de O Iluminado, tomando conta do museu, como nos filmes de Uma Noite no Museu, em que tudo no museu ganha vida quando chega a noite. E os grandes artistas dão vida às próprias obras. São meninas de famílias ricas, com poder aquisitivo para encomendar um trabalho de Renoir, uma prova de que o artista gozou de sucesso antes de morrer, o que é uma dádiva. As meninas estão trajadas para uma festa, vestindo o melhor de seu guarda roupa. Elas estão comportadas e calmas, algo impossível no comportamento de crianças pequenas. Estão de mãos dadas em expressão de carinho, quando todos sabemos que não é bem assim em qualquer famílias, com brigas inevitáveis de vez em quando. Renoir soube, em cada pincelada, reconstituir o complexo tecido dos vestidos, com uma textura muito rica e complexa, num trabalho de muita paciência, caindo nas graças impressionistas. São infantes com ares de realeza, num mundo de privilégios e exclusividades, na ascensão burguesa pós-Revolução Francesa, quando o Direito Monárquico entra em colapso e a Burguesia Francesa ascende vitoriosa, na Democracia Moderna. Este quadro é um quadro de vitória, de privilégio.  Há uma relação de interdependência, pois uma está de pé e a outra está sentada: a em pé é a Razão, a tensão atenta, o lado matemático da mente, sempre atento, sempre responsável; a sentada é a Loucura, a feminilidade, relaxada, dormente, buscando um lugar para chamar de lar. A cor rosa remete ao feminino, ao carnal, ao orgânico; a azul, ao pensamento, ao Céu, à abstração, ao racional e ao sisudo. Temos um Renoir dividido entre Razão e Loucura, nas duas faces de uma mesma moeda, sendo uma face a contradição da outra – na Luz, nada mais natural do que a Sombra. A faixa azul na menininha em pé é de um sofisticado brilho acetinado, transmitindo requinte, numa cena fina, chic. O sorriso delas é contido e discreto, suave, nunca mostrando os dentes. Seus cabelos estão devidamente aprumados e limpos, num dia especial, de festa. Ambas estão com as melenas atadas por laços, mesmo que estes apareçam discretamente no quadro. O laço é a Mente contendo e controlando o Corpo, na vitória da ponderação racional. Os laços são a disciplina de um Renoir dedicado, laborioso, pois quem não trabalha, não se expressa. Cada menininha está aprumada de forma cromaticamente harmoniosa: uma está quase todas em tons de rosa; a outra, de azul. Seus sapatinhos são novos, estreando em dia de festa, e a criança percebe quando está em uma ocasião especial, em dia de festa. As festas são acontecimentos de saúde mental coletiva, pois as festas unem os Seres Humanos em torno do que é celebrado. A pele das meninas é bem clara, intocada pelo Sol. O tapete aos seus pés é o privilégio social, o luxo exclusivo. É o respaldo de pais atenciosos, que fazem de tudo pelas filhas, amando-as e sustentando-as. É uma cena interiorizada, enclausurada, e não uma cena ao ar livre. Laços, cintos e fitas são as rédeas sobre um cavalo revolto e rebelde. O laço é o contentamento, como água, que desce ao nível mais inferior, precisando aceitar onde ela mesma está. Quem está contente, está bem; quem não se aceita, está mal. Aqui, as mãos dadas são a união que deve haver entre a Humanidade, mas em um Mundo em que a desunião é tão comum e abundante. As menininhas parecem ser feitas de porcelana, numa cena sofisticada, inspirando etiqueta, boa educação e discrição, num Renoir que entrega um trabalho competente e digno de respeito e admiração, provando, no osso, que é um bom artista. Como disse Silvio Santos: “Quem não tem competência, não se estabelece”. Como disse a intelectual caxiense Cleodes Piazza Ribeiro: “O que quer que faça, faça bem feito. Só isso”.

Um comentário:

  1. Gostei demais de tuas leituras do Renoir. Continue a nos brindar com estas preciosidades. Arnoldo.

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