Estrelão do Impressionismo, Pierre-Auguste
Renoir é um dos maiores franceses da História, exaltado até de forma chauvinista
por um personagem do filme O Fabuloso Destino
de Amélie Poulain. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente
meus.
Acima, Nu no Sol. A luz do Sol entra sensualmente pelas folhas das
árvores, numa tarde de temperatura agradável, e a modelo parece estar muito à
vontade em sua simples nudez. Seus seios são voluptuosos, deliciosos como fruta
madura no pé. A magia do Impressionismo toma conta do quadro, com pinceladas
afoitas, dando movimento à cena. Pelo corpo da modelo vemos algumas “manchas”
de luz solar direta, banhando sua pele alva, imaculada. A modelo veste uma
pulseira e um anel, denotando ser rica, e não uma simples prostituta que tem
que se prostituir para não passar fome. A pulseira dourada brilha como o Sol,
seduzindo o espectador a entrar no quadro e beijar a modelo. Seus olhos e
cabelos são negros, imprevisíveis e misteriosos, contrastando com esta cena
diurna. A modelo está um pouco ruborizada, com bochechas róseas e saudáveis,
esbanjando Vida. Podemos ouvir o canto dos passarinhos ao redor, num silêncio
bucólico. A modelo está cercada de vegetação, como se a própria modelo fosse
uma planta ou uma flor neste jardim, entrosando-se profundamente com a
vegetação ao seu redor, como a sexy vilã Hera Venenosa, arquiinimiga de Batman.
A modelo não olha para o espectador, mas está distraída por algo que foge ao
quadro. A modelo parece estar psicologicamente distante, um tanto entediada com
a função de posar. Seu anel brilha singular, fazendo metáfora com a
preciosidade dos grandes talentos, dos grandes mestres como Renoir. A modelo
tem um ventre abundante, digno de dançarinas da Dança do Ventre, como nas formas
abundantes de Marilyn Monroe, a qual não se parecia com o padrão de beleza das
modelos atuais: anoréxicas e subnutridas. A modelo é uma mesa farta de
galeteria, na alegria de receber amigos em volta de uma mesa generosa, sem
tratar o alimento como uma preciosidade, mas como uma necessidade. Os cabelos
da modelo estão desgrenhados, desajeitados por uma brisa que varre a cena e
provoca um delicioso farfalhar de folhas. É uma tarde quente de verão, e
podemos ouvir as cigarras cantando sob o calor. Um pouco tímida, a modelo tapa
seu sexo, provocando ainda mais o espectador. Talvez seja a primeira vez em que
a modelo posa, num desconforto de principiante. A modelo e a vegetação são um
só corpo, na sensualidade da integração universal, num único caminho, um único
Tao – a sensualidade precisamente reside nesta interconexão, num Renoir que
viveu muitos anos antes da Internet. A pele da modelo é clara e delicada, numa
fragilidade de um caule de flor. Ainda assim, a modelo se impõe impiedosamente,
arrastando tudo e todos consigo. Fascinante como uma musa, a modelo tem seios
liquidiscentes, orgânicos, frágeis e fluidios, como um córrego de água, sempre
fluindo, sempre nutrindo terras de um vale de videiras. Os seios são a Mãe
provedora, como no busto sensual de uma Iemanjá, sempre nutrindo, sempre dando
pesca farta aos pescadores, sempre generosa como uma mamma italiana fazendo
polenta para a família. As folhas acariciam suavemente a pele da modelo, num
quadro de prazer, de bem estar, de sedutora preguiça. Os seios parecem se
movimentar, como sinos em pêndulo, como numa dança em torno de uma fogueira.
Estes seios são naturais, e não de artificial silicone; não de fake news – notícias falsas. Tao é o
natural.
Acima, O Almoço dos Barqueiros. Este é um dos quadros mais célebres de
toda a carreira de Renoir. Pessoas jovens, bonitas e vibrantes reúnem-se com
jovial alegria. Vemos uma mesa muito farta, com bons vinhos e uvas, na alegria
de Baco: no vinho está a verdade, ou seja, o vinho traz alegria e libera a voz.
É uma cena de celebração e flerte. É um dia ensolarado, como a juventude
dourada de uma colônia espiritual, na Dimensão Metafísica, onde todos somos
jovens e eternos. A toalha branca da mesa é a paz, a brandura, a limpeza, a
beleza. É um lugar e um momento onde não há espaço para mágoas ou tristezas,
como um bom grupo de amigos, no qual todos se divertem igualmente. As moças são
elegantes, com chapéus aprumados, mulheres que fazem questão de se arrumar para
ir a uma festa, mostrando ter autoestima, autoamor. O vinho tem papel
importante na cena, trazendo cor e perfume, alimentando a alma. É um dia
quente, e dois rapazes estão de camisa regata, com os braços à mostra, querendo
mostrar seu vigor às moças. Um dos rapazes, à direita, está informalmente
sentado, mostrando simplicidade e despretensão, numa pose alternativa, de um
Renoir alternativo, imaginativo. Uma das moças, à esquerda, está beijando um
cachorrinho, sendo o bicho alvo de amor. O cachorrinho é a afeição, o carinho,
num quadro onde o flerte tem, por trás de tudo, a necessidade de Amor. Quase ao
centro, em uma pose sensual, uma moça repousa a mão sob o próprio queixo, numa
pose de alguém que está curtindo o momento e aproveitando a festa. Podemos
ouvir conversas animadas e gargalhadas, em uma festa divertida e prazerosa.
Mais um pouco à direita, uma moça toma um cálice de vinho. O vinho é a
declaração de amor de Renoir à França, país que desenvolve vinhos de excelência
mundial, sendo sinônimo de qualidade, trazendo orgulho nacional, no modo como o
próprio Renoir se tornou um astro nacional francês. Apenas um dos homens na
cena não usa chapéu, acessório que é sinônimo de elegância, sendo, em pleno
século XXI, um tanto subestimado e fora de uso. É a alegria e a beleza de uma
vindima, com agricultores cantando juntos enquanto colhem dos parreirais os
preciosos frutos dos vinhedos. A magia das vindimas está na união, quando todos
se unem em torno da uva. Aqui, a mesa
está charmosamente desarrumada, num apelo informal e acolhedor, rústico. Nesta
festa não há espaço para a sisudez ordeira, a qual não combina com uma festa,
mas com um escritório. Aqui, Renoir encontra prazer no trabalho, misturando
sisudez com diversão. O toldo acima é a proteção da Mão Divina, abençoando seus
filhos e amando os mesmos, como Aton abençoando Aquenaton. O toldo é o carinho
do Lar, num lugar onde a pessoa goza de grande identidade, sabendo muito bem a
que lugar a mesma pessoa pertence. É um momento de intensa interação social, e
cada minuto é precioso com esses encontros e flertes, num momento em que a Vida
em Sociedade revela o seu lado feminino, festivo, como uma Rainha da Festa da
Uva, mulher madura como a uva madura, num arquétipo feminino, belo. Renoir
mostra maestria na constituição do vidro dos copos e garrafas, usando sutis
pinceladas em branco para obter o efeito cristalino, transparente. As uvas são
a Vida, deliciosa Vida, sempre brotando e germinando, sempre provendo sangue ao
organismo, no jogo sedutor do vampiro, ávido por sangue. Os chapéus na cena são
o telhado do Lar, protegendo da chuva, numa cena tão veranil. Ao fundo de tudo,
a Mãe Natureza, a vegetação, envolvendo todos com a seiva fluindo por suas
veias, sempre respirando e vivendo. A moça quase ao centro, debruçada, sente a
Vida fluir, deliciando-se com este simples momento de relacionamento. Olhando
para ela, um homem está de costas para o espectador; o homem é o próprio Renoir,
como um Hitchcock pintor, nunca querendo tomar espaço na cena, sempre
observando invisivelmente, nunca querendo aparecer como um showman, um exibido.
Acima, O Camarote. Uma dama absolutamente arrumada e elegante assiste a um
espetáculo. Ela usa joias e vestes nobres, com uma delicada flor no cabelo,
símbolo de feminilidade. Sua pele é alva, quase fantasmagórica, e seus brincos
parecem balançar suavemente. Podemos ouvir uma soprano em performance no palco.
A dama veste luvas brancas, pertinentes em um evento de gala e excepcional.
Aqui, o espetáculo não está no palco, mas sim nesta dama. Ela pouco parece se
importar com o que ocorre no palco, como se soubesse que ela mesma é a mulher
mais maravilhosa da noite. Ela olha ligeiramente ao lado do espectador, sem
flertar com este. Seus lábios são cor de rubi, viçosos, vibrantes, loucos por
um beijo, por uma noite de romance. Seu busto é generoso, farto, como de uma
fêmea lactante, esbanjando vida, explodindo em fartura. Seu vestido
contrasta entre claro e escuro, em elegantes listras. Seus olhos são de um azul
profundo, e, aqui, a luz expande-se uniformemente, de forma difusa, e não
podemos ver muitas sombras no rosto da dama. Ao fundo, em segundo plano, quase
apagado, coadjuvante, vemos um homem que parece estar cochilando, um tanto
entediado com o espetáculo, pouco se importando com este. Talvez tenha sido a
dama que o convidou para o programa, e ele aceitou por ela, e não pelo
espetáculo em si. O
homem também está elegante e podemos vê-lo de luva. O homem sério é o respaldo
masculino, a base, o pilar, e está, naquela noite, com a responsabilidade de
acompanhar a dama, buscando-a em casa e trazendo-a de volta, talvez com o voto
de confiança dos pais da moça. Esta cena tem uma ironia, pois junta tradição
com vanguarda: no palco, sentimos que há uma ópera ou balé frutos de cultura
erudita, tradicional, acadêmica; ao mesmo tempo, é um quadro impressionista, de
vanguarda, no choque que ocorreu entre tradição e inovação, assim como a
moderna pirâmide do Louvre, um museu riquíssimo em Arte Acadêmica. O
sorriso da dama é extremamente suave, quase imperceptível, desafiando o
espectador a detectá-lo, num Renoir envolto em nuances, em sugestões, tão
frequentes no Impressionismo. Podemos sentir o perfume floral da dama, e o homem
parece hipnotizado, adormecido, enfeitiçado. Resta saber o tempo que a dama
demorou para se aprumar, pois, para uma mulher, a diversão não começa quando a
mulher chega no evento ou festa, mas começa já no ritual de aprumação em casa.
Acima, O Passeio. É um quadro erótico, em que feminino e masculino se
entrelaçam poeticamente. A mulher elegante e bela é “fraca e incapaz”, de forma
erótica, é claro. Talvez ela esteja simplesmente fingindo que é fraca, tudo para inspirar o cavalheiro a conferir-lhe
tratamento de dama, visto que a dama tem que ter uma posição passiva, pois, se
impuser o tratamento de dama, deixa de ser dama – o homem tem que se sentir
encorajado e inspirado. A mulher carrega seu majestoso vestido pelo bosque, e o
homem estende-lhe a mão par auxiliá-la a caminhar. É claro que a estrela do
quadro é a mulher, e o homem está contentado com um papel implícito. O homem
tem vestes discretas e escuras, sóbrias. A mulher tem receio de sujar seu
vestido no bosque, e o homem pouco se importa se ele mesmo vai se sujar ou não.
O próprio bosque tem vestes majestosas, impressas com pacientes pinceladas
impressionistas, parecendo competir com o vestido da mulher para ver quem é
mais deslumbrante. Aqui, a mulher e o bosque fundem-se, formando um só corpo. É
a sedução da Natureza, nos mistérios femininos, hipnotizando o homem aqui,
estando este totalmente inspirado a tratar a dama como tal – é um jogo de
sedução entre fraco e forte. O rosto do homem está quase encoberto pela sombra
do chapéu, e não podemos ver as feições. O homem pouco se importa com isso,
pois não intenciona aparecer mais do que a mulher, majestosa como uma noive em
entrada triunfal na Igreja. Temos aqui, praticamente, uma cena de casamento, em
que a noiva, em sensual atraso, finalmente entra de branco num templo,
acompanhada do pai, que é o Yang. O chapéu da mulher também é elegante, e remete
à reprise que o Canal Viva está fazendo na novela dos anos 80 Sinhá Moça, com Lucélia Santos no papel
título. A sinhá é isso: pura feminilidade, mas é um personagem, e não uma
pessoa, pois, no mundo real, cada pessoa tem que desenvolver, individualmente,
seus próprios lados feminino e masculino. Mas, mesmo assim, este quadro é
sedutor. Renoir tem um fascínio sobre o Feminino, retratando mulheres muito
sedutoras e, ao mesmo tempo, puras. As mãos da mulher, aqui, são bem frágeis,
como um caule de flor, inspirando os cuidados do homem seduzido. Como diz Tao,
forte é fraco; fraco é forte. Existe toda uma força na passividade, na
languidez e na preguiça, pois, como disse Luis Fernando Verissimo, as grandes
obras da Humanidade resultaram da preguiça do Ser Humano. Dois exemplos: a roda,
no sentido de fulano ter preguiça de coisas carregar nos braços; o telefone, no
sentido de fulano ter preguiça de ir à casa do beltrano para conversar com
este.
Acima, Rosa e Azul. Este quadro é uma das relíquias e orgulhos do Museu de
Arte de São Paulo, e eu pude vê-lo no museu citado. Inclusive, uma moça ao meu
lado disse a um amigo: “Eu não acredito que estou em frente a um Renoir”.
Parecem as menininhas fantasmas de O
Iluminado, tomando conta do museu, como nos filmes de Uma Noite no Museu, em que tudo no museu ganha vida quando chega a
noite. E os grandes artistas dão vida às próprias obras. São meninas de
famílias ricas, com poder aquisitivo para encomendar um trabalho de Renoir, uma
prova de que o artista gozou de sucesso antes de morrer, o que é uma dádiva. As
meninas estão trajadas para uma festa, vestindo o melhor de seu guarda roupa.
Elas estão comportadas e calmas, algo impossível no comportamento de crianças
pequenas. Estão de mãos dadas em expressão de carinho, quando todos sabemos que
não é bem assim em qualquer famílias, com brigas inevitáveis de vez em quando. Renoir
soube, em cada pincelada, reconstituir o complexo tecido dos vestidos, com uma
textura muito rica e complexa, num trabalho de muita paciência, caindo nas
graças impressionistas. São infantes com ares de realeza, num mundo de privilégios
e exclusividades, na ascensão burguesa pós-Revolução Francesa, quando o Direito
Monárquico entra em colapso e a Burguesia Francesa ascende vitoriosa, na
Democracia Moderna. Este quadro é um quadro de vitória, de privilégio. Há uma relação de interdependência, pois uma
está de pé e a outra está sentada: a em pé é a Razão, a tensão atenta, o lado
matemático da mente, sempre atento, sempre responsável; a sentada é a Loucura,
a feminilidade, relaxada, dormente, buscando um lugar para chamar de lar. A cor
rosa remete ao feminino, ao carnal, ao orgânico; a azul, ao pensamento, ao Céu,
à abstração, ao racional e ao sisudo. Temos um Renoir dividido entre Razão e
Loucura, nas duas faces de uma mesma moeda, sendo uma face a contradição da
outra – na Luz, nada mais natural do que a Sombra. A faixa azul na menininha em
pé é de um sofisticado brilho acetinado, transmitindo requinte, numa cena fina,
chic. O sorriso delas é contido e discreto, suave, nunca mostrando os dentes.
Seus cabelos estão devidamente aprumados e limpos, num dia especial, de festa.
Ambas estão com as melenas atadas por laços, mesmo que estes apareçam
discretamente no quadro. O laço é a Mente contendo e controlando o Corpo, na
vitória da ponderação racional. Os laços são a disciplina de um Renoir
dedicado, laborioso, pois quem não trabalha, não se expressa. Cada menininha
está aprumada de forma cromaticamente harmoniosa: uma está quase todas em tons
de rosa; a outra, de azul. Seus sapatinhos são novos, estreando em dia de
festa, e a criança percebe quando está em uma ocasião especial, em dia de
festa. As festas são acontecimentos de saúde mental coletiva, pois as festas
unem os Seres Humanos em torno do que é celebrado. A pele das meninas é bem
clara, intocada pelo Sol. O tapete aos seus pés é o privilégio social, o luxo
exclusivo. É o respaldo de pais atenciosos, que fazem de tudo pelas filhas,
amando-as e sustentando-as. É uma cena interiorizada, enclausurada, e não uma
cena ao ar livre. Laços, cintos e fitas são as rédeas sobre um cavalo revolto e
rebelde. O laço é o contentamento, como água, que desce ao nível mais inferior,
precisando aceitar onde ela mesma está. Quem está contente, está bem; quem não
se aceita, está mal. Aqui, as mãos dadas são a união que deve haver entre a
Humanidade, mas em um Mundo
em que a desunião é tão comum e abundante. As menininhas parecem ser feitas de
porcelana, numa cena sofisticada, inspirando etiqueta, boa educação e
discrição, num Renoir que entrega um trabalho competente e digno de respeito e
admiração, provando, no osso, que é
um bom artista. Como disse Silvio Santos: “Quem não tem competência, não se
estabelece”. Como disse a intelectual caxiense Cleodes Piazza Ribeiro: “O que
quer que faça, faça bem feito. Só isso”.
Gostei demais de tuas leituras do Renoir. Continue a nos brindar com estas preciosidades. Arnoldo.
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