quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Elegância Aristocrática



Eliseu Visconti foi um importante pintor do Brasil entre os séculos XIX e XX, num traço fino, sofisticado, de técnica admirável. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Autorretrato. Aqui, o artista tem um olhar incerto, debruçando-se sobre sua própria existência, e nada mais natural do que a dúvida existencial, pois ninguém sabe tudo, e a Vida se desdobra de formas misteriosas e um tanto imprevisíveis. O artista olha de igual para igual nos olhos do espectador, e convida este a saborear essa dúvida que é tão humana. Sua expressão é extremamente séria, sem esboçar um mínimo sorriso, num Narciso que se afogou no próprio reflexo, mergulhando em dúvida, no Narcisismo se revelando uma cegueira, uma castração mental. É um homem belo, na flor da idade, dedicando sua juventude ao labor. Tem um corpo belo e torneado, numa roupa de pouco recato, informal, no modo como um artista se sente em casa dentro de seu próprio atelier. Seus pincéis pontiagudos se revelam extensões de seus dedos, como num guitarrista que, de tanto tocar, acaba tendo no instrumento uma extensão de seu próprio corpo, numa relação de intimidade e proximidade, ao contrário de pessoas arredias, que têm medo de intimidade, nunca deixando alguém chegar perto demais. É um escudo que protege um coração frágil. Aqui, temos um Wolverine, o célebre personagem mutante, que tem garras absolutamente afiadas e agressivas, num aviso muito nítido: não mexa com Wolverine, o mutante mais popular do universo de X-Men. Aqui, os pincéis são como espinhos na coroa de INRI, e os espinhos existenciais, na sua inevitabilidade, revelam-se, testando a coragem e a força do indivíduo, nesta senhora chamada Vida, que está sempre com a missão de nos deixar mais humildes, mais com os pés no chão – a Vida é um exercício de curvatura, e, quem se curva, sobrevive. E Visconti sabe que as páginas têm que ser viradas, sempre, seja uma página doce, seja uma página amarga. A camisa de regata é o espírito esportivo, aventureiro, do modo como é responsabilidade da grande estrela o ato de revolucionar, na missão mais nobre da Arte – dar a matiz de um tempo, de um momento, no que Tao chama de “mestres do momento”. O corpo atlético e o espírito trabalhador, elaborador, sempre praticando e deixando a mente na mais completa forma, colocando os neurônios para trabalhar, fazendo aquilo que nos faz humanos metafísicos – pensar. Sua mão é forte e segura os pincéis com força, numa pessoa em total controle sobre sua própria trajetória, num artista que brilha por si só, sem precisar de “cadeiras de rodas”, numa prova de independência, num Mundo que está sempre testando a força dos indivíduos. Sequer vemos fios brancos na barba e no cabelo, numa imagem de juventude, de desejo fervoroso por fazer Arte e ser reconhecido por isso, no sentido de que a pessoa mais “calejada” é mais ponderada, pois sabe dos perigos na “estrada”. É o ímpeto das Juventude. Ao fundo, vemos um belo dia de Sol com nuvens “de algodão”, e um muro cinza, com uma cerca rubra, separa o artista do mundo lá fora, no ambiente de paz e isolamento temporário que deve haver num atelier, num momento em que o artista tem que se desplugar ao máximo do Mundo, dialogando consigo mesmo no exercício naturalmente solitário que é o de criação. Na extrema direita, outro braço, também segurando um pincel espinhoso, mas este braço está mais reservado, retirado e tímido – é o “estar em casa”, recolhido, nunca querendo se expor desnecessariamente, na sabedoria tímida das pessoas reservadas, como se estas soubessem que cruzam um rio caudaloso, de forte correnteza. Do mesmo modo, uma face de Visconti está iluminada; a outra, na penumbra. São as faces social e pessoal, num discernimento entre o que pode e o que não pode ser feito dentro ou fora de casa. É a face escura da Lua, sempre retirada e indecifrável. E qualquer pessoa, artista ou não, tem que ter momentos de retiro.


Acima, Gioventù. Este quadro seria digno da mostra ultrapolêmica Queermuseum, pois escandalizaria com uma menina jovem demais para posar nua. Não se trata de uma mulher crescida, com traços maduros. É como uma fruta verde, jovem demais para ser colhida do pé. Os olhos da menina são extremamente densos, negros, imprevisíveis, sem espaço para o branco dos olhos. Seu olhar é um mistério. Seu cabelo encaracolado está preso elegantemente, numa modelo que se arrumou para posar. Seus seios estão ainda subdesenvolvidos, dando uma ideia da beleza que irá aflorar quando a menina se tornar mulher. Da cintura para baixo, a menina veste um véu extremamente fino e transparente, volátil, delicado como deve ser a Feminilidade. É um tecido fino, aristocrático, numa moça que aparenta ser de fina estirpe. Será que é de fato? Uma de suas mãos repousa sobre o próprio colo, tapando o sexo, num Visconti recatado demais para pintar uma genitália que, provavelmente, sequer pelos ainda tem. É como uma Vênus de Botticelli tapando o próprio sexo, na contradição entre recato e provocação, estando um dentro do outro. É um ser delicado, parecendo ser feito de porcelana, de fina porcelana, sujeito a se quebrar em qualquer descuido. A menina parece estar por um fio. Outra de suas mãos brinca com uma mecha do cabelo encaracolado, numa modelo que não parece direito o que fazer no momento da pose. Sua sensualidade reside nessa hesitação, nesse recato. Apesar de ser um ser frágil, seu pescoço é forte como um pilar, e sua pele tem coloração uniforme, com exceção das bochechas coradas, talvez numa timidez enrubescida, ou num sinal de saúde, de boa disposição, pois a Saúde é bela. Sua boca está corada, ardente, e esboça um sorriso mínimo e discreto, e está quase séria, num Visconti atento a detalhes. Seu rosto simétrico é plácido. Seus dedos são delicados, de uma menina bem cuidada, que foi criada cheia de privilégios, sem ter que pegar em ferramentas agrárias ou que lavar e torcer roupa. Não são mãos calejadas. Será que os pais desta menina autorizaram de fato esta pose nua? A beleza da menina entra em harmonia com a beleza da cena natural ao redor, com um bosque denso e plácido, cheio de Vida, e podemos ouvir o canto dos pássaros, com tudo girando ao redor da menina, a estrela do quadro. Ela está ladeada por vários pássaros brancos, que representam a Liberdade que um artista tem que ter para criar. São as asas dos anjos, que representam a liberdade de um espírito que não mais está encarnado, no desejo de um artista de se libertar e produzir da forma mais pura e autêntica possível – os artistas sofrem se inseridos em sistemas ditatoriais opressores censores. Os pássaros são uma espécie de côrte, de séquito, como damas de companhia da menina, a qual está inserida em um contexto social de privilégio, tendo para si pessoas que façam grande parte do trabalho – a menina tem casa, comida e roupa lavada. Difícil imaginar vida mais enfadonha do que vida de princesa, como uma Grace Kelly, que acabou seus dias fazendo arranjos de flores secas, sem vida, sem ânimo. Aqui, os olhos negros entram em contraste frente a uma pele tão branca e delicada. O bosque é de um verde profundo, e é como uma sofisticada sala de estar, num ambiente acolhedor que nos convida a desfruta do prazer de sentar e conversar. É uma autêntica e fina sala de estar, espaço para polidez e delicadeza, sem as agressividades do “mundo lá fora”. Aqui, a agressividade fica por conta dos bicos das aves, e estão ali para proteger a menina, como grades em forma de lanças, num contexto em que a Sociedade, simplesmente, não cobra da Mulher o desenvolvimento da agressividade – esta é opcional à Mulher, quando, na verdade, todos temos que desenvolver um pequeno toque agressivo, como dizem os psicólogos.


Acima, Jardim de Luxemburgo. Um claro diálogo com o Impressionismo, e um certo Eurocentrismo, tendo na Europa o epicentro do Mundo Civilizado. É um belo dia de Sol, e pessoas elegantes passeiam e curtem esta praça tão bem cuidada e decorada, numa ideia de como devem ser os lugares metafísicos, onde reina a Paz. Podemos ouvir o canto de pássaros, e o clept-clept de cavalos conduzindo carruagens para cá e para lá. As cadeiras e os bancos são o momento de descanso, de retiro, numa pessoa que, simplesmente, quer curtir a Vida, sem tanta preocupação em produzir e produzir, mas querendo contemplar, um pouco, o Mundo ao redor, no olho do artista, que precisa desse momento de contemplação para, depois, sentar, trabalhar e produzir, e é inadmissível para um artista não ter momentos de contemplação, como numa mentalidade workaholic, na qual o indivíduo deve apenas trabalhar – a Vida não tem sentido sem uma certa “vagabundagem”, como é própria das grandes cidades a predileção por Vida Cultural, rechaçando a mentalidade do “vá carpir um lote” e rejeitando a ausência de Vida Intelectual. A mulher em primeiro plano está glamorosa, arrumada, elegante, com um delicado vestido branco, com luvas combinando com a cor. Seu chapéu é exuberante e exótico, numa mulher preocupada em não sair em público se não estiver completamente aprumada, revelando uma personalidade sensível, artística, no desejo das socialites em se tornar artistas. A mulher repousa sob uma sombra de árvore, e carrega uma sombrinha ampla. A sombrinha é o retiro, a pessoa reservada, que se protege ao máximo dos danos que podem causar os sinais auspiciosos da Vida. O cabo da sombrinha é reto e fálico, numa face racional da mulher exuberante, no desenvolvimento do pensamento prático, um pensamento tão importante para o dia a dia. A mulher olha para o espectador e sorri suavemente, num momento de descanso e prazer, convidando o espectador para se sentar e conversar, no modo como um artista se torna anfitrião da própria arte, convidando o espectador a olhar pelos olhos desse mesmo artista, num ato de compartilhamento e compreensão, e feliz do artista que é bem compreendido. Mais ao fundo no quadro, vemos altivas estátuas, que representam a austeridade e a dignidade de grandes pessoas, de grandes mentes, na felicidade que preenche o coração da pessoa respeitada, na nobreza das mentes que se fizeram compreender, pois Entendimento é Amor, ou seja, qualquer artista quer ser compreendido, amado e respeitado – é um grande desafio, quiçá o maior desafio da Vida. A bolsa da mulher de branco repousa enganchada na cadeira. A bolsa é vermelha, e representa a feminilidade, na cor rubra do interior uterino, nos mistérios que trazem Vida ao Mundo, na responsabilidade feminina em gerar a Vida dentro de si – é uma responsabilidade ritualística, no que é socialmente imposto à Mulher em geral, como numa recente notícia internacional, que narrou como uma cadelinha foi forçada, como uma escrava, a ter uma ninhada atrás da outra, para ser ganho dinheiro na venda de filhotes. Logo atrás, vemos uma mulher de vermelho, cabisbaixa, sangrando, um tanto triste e deprimida – é a frustração, a prostração depressiva, numa pessoa que não se sente muito bem compreendida pelo Mundo. Apesar de também estar aprumada, a mulher rubra está em segundo plano, ofuscada pela exuberante dona de branco. É a face triste de um artista, que sente como muito duro o desafio de ser amado pelo Mundo, ao mesmo tempo em que a busca por popularidade pode degradar a integridade artística do artista – é um dilema. Um pouco mais ao fundo, vemos um senhor sentado – é a face laboriosa do trabalho, a pitadinha decisiva de agressividade que deve gotejar sobre a mente do artista, pois uma mente objetivada, norteada, sofre menos. Aqui, a mulher rubra sofre um tanto, e pergunta ao senhor o que ela mesma deve fazer para sair de tamanha fossa existencial. Acima do senhor vemos flores rubras, gotejando o sangue, o fluido essencial da Vida, tão ambicionado por vampiros psíquicos, desejando sugar a criatividade de outrem. Uma brisa leve e suave toma conta do quadro, e podemos sentir em nossas faces tal fluxo brando de ar, deixando a Arte invadir nossos pulmões psíquicos, e a Arte, então, revela-se vital como ar, ignorando aqueles que consideram Arte uma frescura evitável. Aqui, vemos uma cidade vibrante e, ao mesmo tempo, plácida. E a mulher de branco sente este prazer, convidando-nos a sentar.


Acima, Maternidade. O encanto de ser mãe, mas com vicissitudes, pois já ouvi de uma mãe: “Dá trabalho, mas vale a pena”. Em um parque praticamente deserto, a mãe se sente a vontade para amamentar filho, e parece ser um quente dia de verão ensolarado, pois o menininho está nu da cintura para baixo, numa forma de querubim, mas sabemos que crianças não são só doçura angelical, pois um infante dá bastante trabalho com seus choros e demandas. A mãe deixa que o filho se sirva a vontade, e está calma, sabendo que o Tempo passa lentamente. É uma cena parisiense, e parece que os franceses não condenam uma mulher que amamenta em público, algo que, provavelmente, no Brasil daquela época, fosse considerado vergonhoso. As árvores parecem alfaces, no sentido de nutrição, alimentação, no modo como um artista se alimenta da própria obra, sempre buscando inevitáveis referências em outros artistas. A nudez do menino não choca, pois os franceses lidam de forma muito natural em relação à nudez, numa cidade que abriga acervos tão maravilhosos de Arte. O pescoço da mãe é forte, como numa casa forte, que abriga as crianças, poupando estas de tempestades e de frio. Ela olha zelosa para o filho, e remete-nos ao prazer de “mamar” numa caixinha de leite condensado, num momento de prazer que é a alimentação. A mãe dá tudo de si ao filho, como me lembro de uma cachorrinha que tive, a qual, após parir e começar a aleitar os filhotes, esta cachorrinha começou a ficar desnutrida, tal a doação de leite que ela fazia para suas crias. Ser mãe é fazer de tudo pelo filho, visando o bem deste, algo que faz forte metáfora com o modo como Tao “aleita” seus filhos, como na poderosa imagem da mãe zelosa e refinada que é Nossa Senhora, em metáforas que buscam fazer com que o Ser Humano entenda Tao. Aqui, vemos um carrinho de bebê, que é o conforto uterino, num lugar onde o feto se sente absolutamente em casa, no trauma que é o nascimento, quando o indivíduo se sente desligado de algo que lhe dava pleno prazer. As rodinhas do carrinho são a passagem do Tempo, numa criança que, rapidamente, tornar-se-á adolescente, apesar de uma mãe sempre ver um bebê no próprio filho, por mais que este filho cresça e amadureça. Podemos ouvir o farfalhar das folhas nas árvores, numa cena plácida e quieta, na quietude de um lar onde deve haver silêncio, para não acordar o bebê. Na extrema direita do quadro, uma filha já mais crescidinha, e esta sente que já não é mais o bebê da casa, tendo que dar espaço no berço para seu irmãozinho. A menina crescidinha é o desenvolvimento do siso, do juízo, da responsabilidade, e a menina tem que ajudar a criar o irmãozinho, tornando-se uma extensão do amor materno. É uma imposição de tarefa, e é claro que há um pequeno ciúme, tendo a menina invejando todos os cuidados ao redor do bebê. Sobre uma cadeira simples, repousa um chapéu – é o retiro, o repouso do lar, num momento de descontração, como numa família jantando ao redor de uma mesa. É o relaxamento, numa mãe que precisa relaxar pacientemente até que o leite seque e a mãe precise descansar de tarefa tão árdua, tarefa que exige tanto da Mulher. A menina brinca com brinquedinhos, no modo como a criança se desenvolve cognitivamente através das brincadeiras, do modo como um artista “brinca” em seu próprio atelier, obtendo prazer no processo de criação, apesar de ser necessário o desenvolvimento de disciplina. Mais ao fundo, uma estátua num pedestal – é a dignidade austera de uma mãe, tendo esta desempenhando um papel fundamental na perpetuação da Vida Humana no Mundo. A sombra projetada pelas árvores é o resguardo, no teto de um lar, lar este que tem a obrigação de fornecer um ambiente seguro.


Acima, Meu Filho Tobias aos Seis Meses. Um quadro produzido com muito Amor. O bebezinho está desperto, revirando-se no berço, no modo como um bebê é absolutamente vulnerável e dependente de cuidados, num ato de completa entrega, confiando piamente nos pais zelosos. O berço tem lençóis suavemente perfumados, e podemos ouvir o bebê na sua fala primitiva, tentando se expressar, e podemos ouvir os inevitáveis choros, que tomam conta de uma casa na qual há bebês. Trazer um filho ao Mundo é uma responsabilidade enorme, num pai que, “na marra”, teve que aprender a ser pai. Tobias é adorável, e sua beleza é de um bebê aristocrático, filho de uma rainha. Seus grandes olhos negros estão bem abertos, num ser que está começando a observar o Mundo em volta, buscando crescer e se relacionar com este Mundo, no grande desafio que é uma encarnação – o bebê deixou para trás suas vidas passadas, e agora começa a encarar uma nova encarnação, um novo obstáculo a ser vencido com garbo e galhardia. O papai Visconti cerca Tobias de Amor, visando preparar o filho para essa travessia complicada que é a Vida. Há uma luz suave sobre o berço, provavelmente uma luz de velas, e não um raio potente de sol incidindo diretamente sobre Tobias – é a proteção do Lar, um espaço que visa a máxima proteção e resguardo. Um dos pés do bebê está calçado; o outro, nu. O pé calçado é a Vida Pública, no indivíduo saindo vestido de casa para encarar uma jornada de trabalho e uma série de relacionamentos sociais durante o dia, no aspecto Yang da Vida, na vida na firma, no trabalho, no atelier, num pai que sai de casa para trabalhar, para ganhar um salário e sustentar seu lar, na árdua tarefa de um pai que tem a obrigação de nada deixar faltar dentro de casa, como comida. É o encargo da Paternidade. Já, o pé descalço de Tobias é o conforto do Lar, da intimidade, de uma pessoa dentro de casa, absolutamente à vontade, sem se preocupar se está vestido adequadamente ou se o cabelo está penteado, num momento de descontração com familiares e amigos íntimos, numa roda de conversa descontraída, bebendo drinques, falando piadas e rindo. São os dois aspectos da Vida, num teor binário – dentro de casa; fora de casa. E Tobias está sendo criado para ser homem feito, maduro, adulto, e dar continuidade no Mundo à Raça Humana, colocando no Mundo filhos. Temos um Eliseu Visconti que está começando a sentir toda essa carga de responsabilidade, de obrigação, num homem cuja Vida nunca mais será a mesma, num ato de transformação irrecuável – um pai será sempre um pai, por mais que um dia Tobias se torne adultos e dê netos a Eliseu. A camisolinha de Tobias está recuada, retratando um pequeno ser que ainda não se deu conta dos preconceitos do Mundo, no modo como a Sociedade, quando o indivíduo nasce, trata este de forma preconceituosa, pois, se é menino, algo dele é esperado; se é menina, outra coisa é esperada, na eterna cisão da Humanidade entre Homens e Mulheres, no pesadelo encarnatório, no qual, nessa prisão, os Seres Humanos estão constantemente sendo desunidos, algo que contaria Tao, que é o Pai de todos, de todinhos. Tobias está sendo criado como um reizinho, cercado de privilégios e mimos. Suas mãozinhas querem agarrar algo, começando a interagir com o Mundo, num novo desafio, uma nova Vida, com percalços os quais Tobias jamais encarou anteriormente. Tobias é a grande estrela da cena, e sua inocência faz com que as crianças tenham muito a ensinar aos adultos, pois estes já estão “carcomidos” por preconceitos e malícia. Não disse Jesus que o Reino dos Céus é das criancinhas? Tobias olha para algo, começando a construir lembranças de infância, (re)descobrindo o Mundo num novo capítulo existencial, uma nova meta, um novo crescimento. O véu de mosquiteiro visa proteger o bebê, e os insetos são os risco e perigos, mas um pai tem que entender que, apesar de ser forte o instinto de querer proteger a criança, esta tem que estar relativamente livre para experimentar e, consequentemente, crescer. E as crianças superprotegidas precisam “respirar”.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Genoveva Genial



Conheci Genoveva Finkler há alguns anos, na mostra que ela montou na Casa de Cultura de Caxias do Sul. A mostra abrangia figuras de pássaros, uma paixão nítida de Genoveva. No mesmo momento, Genoveva prestigiou uma palestra do Instituto Cultural Emilio Sessa, o ICES, na Igreja de São Pelegrino, recebendo, depois disso, membros do instituto na Casa de Cultura. Na mostra, Genoveva foi simpática e perguntou meu nome, e eu disse que este era fruto do nome de um personagem de Eça de Queiroz. Genoveva gosta de interagir com as pessoas. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Sem Título (I), técnica de aquarela, parte da exposição Avis. As corujas estão atentas, despertas, tensas, como se soubessem que um perigo ronda seus ninhos, na expressão “pai coruja”, que fica acordado esperando que os filhos retornem da balada. É como Tao descreve o líder sábio, sendo este hesitante, altamente cuidadoso, como se soubesse que há perigo em todo lugar. É o instinto de um animal, extremamente tímido, que só sai da toca quando está certo de que não há um predador à espreita. Os bicos pontiagudos são agressivos, prontos para rasgar a carne de presas, como ratos que viram lanche em uma fração de segundo, nas leis da Natureza, as quais tanto influenciam o Ser Humano. Aqui, cada coruja olha para um lado, unindo-se para que haja uma visão abrangente do campo de batalha, numa sociedade, em que indivíduos fazem uma divisão de tarefas, e cada um é responsável por algo importante, como num casamento, em que o casal se une e cada um faz sua parte para manter o lar bem provido e organizado, como num ninho de corujas, em que os pequenos são alimentados pelos pedaços de carne que vêm da boca do pai ou da mãe, exatamente como acontece no Ser Humano, com a diferença de que, nas corujas, o bebê cresce a abandona os pais; na Humanidade, os laços de família não se dissolvem, nem mesmo com o Desencarne – a instituição Família é indestrutível, sendo uma fortíssima base de referência eterna para o indivíduo encarnando ou desencarnado. Essas corujinhas têm pés de unhas afiadas, auxiliando na tarefa de caçar, agarrando as presas com garras afiadas, agressivas, próprias para a caça, para a luta pela Vida, do modo como o Ser Humano, em outro sentido, também sai em busca da luta pela Vida, e aquele que não luta, perece; desaparece. Como me disse uma médium espírita: Deus não quer que nós nos atiremos nas cordas. E a luta do dia não começa no momento em que temos que sair de uma cama quentinha e confortável? Essas corujas são uma família, talvez seres de uma mesma ninhada, no sentido da Igualdade, da Fraternidade, no modo como “Pai” e “Mãe” são termos para que o Ser Humano entenda como Tao gera seus filhos, sendo Masculino e Feminino caminhos diferentes que levam ao mesmo destino, ou seja, tanto faz se rezamos para o Pai ou para a Virgem Maria – dá no mesmo. As corujinhas têm penas luxuriantes, fofinhas, agradáveis ao toque, como numa Mulhergato, que combina a sensualidade macia felina com as garras agressivas e ferinas. Atrás das corujas, vemos uma estampa vegetal, o pano de fundo que é a Natureza, unindo ao redor do globo seres que respiram e vivem em comunidade, numa cadeia alimentar, como numa cadeia de reciclagem, num sistema em que cada ator tem seu papel, nos mistérios da Vida: Por que umas pessoas se dão tão bem e outras pessoas se dão tão mal? É um mistério insondável ao Ser Humano, e a este só resta viver e tocar o barco para frente, na coruja lutando para capturar um rato distraído, no sentido genético que os espertos passam seus genes para a frente, para as próximas gerações. Essas aves, em seu trabalho conjunto de vigia do terreno, unem-se e tornam-se um mesmo organismo, como nos animais cujos olhos dão uma visão de 360 graus do “campo de batalha”. As corujas não têm a mesma estatura, como numa família com filhos de várias idades, e ao mais velho resta a tarefa de ajudar a cuidar do ninho. São os olhos de uma Genoveva atenta, na “tensão” do olhar artístico, que observa o Mundo.


Acima, Sem Título (II), técnica de aquarela, parte da exposição Avis. É um close up, um encaramento, um olhar sério, de um indivíduo que resolveu encarar a Vida de frente, adquirindo, assim, o controle sobre a própria vida, não mais permitindo ser guiado por outrem. Há pessoas que desenvolvem gradualmente a agressividade; outras, repentinamente. É uma ave bela, com olhos pétreos, que encaram o espectador, deixando este quase “desconfortável”, “invadido”, na eterna tarefa da Arte – mexer com as pessoas; mexer com as percepções do indivíduo. E não é pseudoarte aquilo que é ignorado pelo espectador? Os traços de Genoveva delineiam as penas do bicho, como numa majestosa vitória régia, ou um majestoso cavalo, criações que dão um indício de que, realmente, temos que crer em uma Inteligência Suprema Criadora. Do contrário, qual o sentido de todas as dimensões do Universo? As aves representam a Liberdade, no prazer que temos naqueles sonhos em que sonhamos que plainamos e voamos, sendo errado ter sentimento de culpa em relação a prazeres – o Bem é sempre agradável. Podemos ouvir o som de pássaros cantando, na orquestra da Vida, de um lugar cheio de vida, como no filme Nosso Lar, quando, numa cidade espiritual, ouvimos o canto de pássaros. É a certa magia da Natureza, e esta é um sinal, uma cópia tosca da vida melhor que nos espera após o óbito carnal. Os olhos desta ave são de um negror profundo, denso e insondável, num mistério, numa noite que, apesar de negra, é bela em seus céus estrelados. Esta ave é de um tom cinzento, como nas cinzas vestigiais após um fogo ardente, numa Quarta-feira de Cinzas, no momento em que a festa acaba e o indivíduo tem que voltar a encarar a Vida e a batalhar por esta. Cinza é uma cor discreta, uma cor que rejeita cores extremamente alegres. É uma cor que se depara com uma dualidade barroca: luz e sombra. Como num dia encoberto, em que não sabemos quem é mais forte: a Luz ou a Escuridão. Como no Castelo de Grayskull, o Castelo da Caveira Cinza, lugar disputado entre os seres do Bem e do Mal. A boca desta ave tem um formato de cruz, que remete a um homem pobre que mudou o Mundo. A Cruz é uma passagem, um lugar pelo qual todos temos que passar. É uma referência metafísica, uma referência que despreza profundamente homens que enganam, exploram e lesam pessoas ignorantes. Esta ave tem um rosto belo, proporcional, equilibrado. Tem a fotogenia de uma supermodelo, num charme e uma beleza de arrebatar o Mundo, pois é considerado belo tudo aquilo que mostre que o Ser Humano é algo além de um símio racional – é um ser estelar, mental, metafísico. Entre os olhos desta ave e no fundo do quadro, uma coloração alaranjada, na cor sedutora de um vistoso pôr do Sol, num momento em que a Natureza nos dá uma ligeira impressão do que é a beleza do plano acima. Este quadro traz a majestade da Criação, na necessidade do Ser Humano de entender e amar o Universo. Estes olhos negros nos puxam para dentro do quadro, seduzindo-nos para observarmos o Mundo pelos olhos de Genoveva, uma adoradora da Natureza.


Acima, Sem Título (III), técnica de vime e trama. Formidável a ideia de Genoveva de colocar uma lâmpada incandescente no interior desta aranha. A luz é o mistério da Vida, na força enigmática que faz um coração pulsar. Temos aqui uma metalinguagem: artesão falando de artesão. A aranha é uma artesã, que tece sua teia e espere que nesta caia uma mosca desavisada. Por outro lado, é uma “teia” tecida pelas mãos de Genoveva, remetendo à técnica difundida de artesanato de vime. Vemos aqui a força das mãos da artista, numa teia que deve ter demandado um trabalho intenso, como o da incansável aranha. Esta cena faz metáfora com os vampiros parasitas psicopatas: o assassino tece sua teia, e tem uma posição passiva, pois, cedo ou tarde, uma “mosca” masoquista, que gosta de ser enganada e sugada, cairá na teia ardilosa, na teia manipuladora, e, uma vez ali caindo, é só questão de tempo até a aranha fazer uma farta refeição. A teia é o labor, a obra, aquilo que o artista deixa no Mundo. É um trabalho de paciência, de dedicação. A aranha tece calmamente, sem sobressaltos, sem pressa, como se soubesse que Roma não foi erguida em um dia só. A teia é uma espécie de mandala, e parece girar como um relógio, na finitude de tudo relacionado à Dimensão Material. O centro é vazio, pois a sensualidade reside exatamente neste vazio, pois é o vazio que faz uma porta útil, e Tao é isso: um grande portal do qual tudo vem, no mistério da Criação. A luz que vem de dentro da aranha é o gênio artístico, que já nasce com a pessoa, e uma pessoa sensível, que assim nasceu, não precisa que lhe ensinem o que é sensibilidade: o artista simplesmente é assim, sem premeditação. É um instinto, como no instinto da aranha sedutora, brilhando na inteligência, como um vagalume, dos mistérios que movem a Vida. Esta luz que Geno entranhou na aranha elimina quaisquer aracnofobias, e o espectador não fica amedrontado ou paralisado pela aranha. Esta é a luz dentro da mente de um artista, uma luz infindável que faz brotar intermitente criatividade – nenhum artista leu num livro como ser criativo, pois cada pessoa tem que, por si mesma, aprender Tao; aprender o que é criar. A teia faz metáfora com tramas literárias, com histórias que fazem com que personagens passem uns pelas vidas dos outros, no modo como a poderosa Divina Providência trama as sortes e destinos do indivíduo, visando um só objetivo – o aprimoramento moral. Pois não é a imoralidade a mãe de todos os flagelos humanos? A Humanidade não precisa se aprimorar e se tornar mais perfeita, mais materialmente desprendida? Geno fez questão de dependurar a teia no teto, para que o espectador se sentisse, de fato, frente a uma obra da Natureza. Esta teia parece uma roleta, girando sempre, sempre ditando as sortes dos indivíduos. A teia é pegajosa, ou seja, envolvente, como um artista envolve o espectador nessa teia. O espectador se sente uma mosquinha, a qual, por sabedoria, tem que se manter longe da teia, pois, do contrário, vai virar lanche. Essa aranha iluminada seduz, e nos dá vontade de cair na teia. O centro da teia parece ser uma boca esfomeada, como nos aterrorizantes monstros de Tolkien. É uma boca que nunca está satisfeita, como na Sociedade de Consumo, que quer fazer com que o indivíduo nunca se sinta satisfeito nem feliz. No Consumismo, quem não consume é desprezado. O que é bom, fazendo com que este indivíduo não consumista tenha, finalmente, Paz, pois é da Paz que vem o sentimento de saciez: se não estou o tempo todo querendo coisas e mais coisas, posso estar quieto e feliz, satisfeito como que tenho. A aranha é essa fome infindável, sempre querendo mais, como um vampiro viciado em sangue. A luz acesa na aranha é essa gana, esse impulso, num dos instintos mais primordiais – a Fome. Dizer “Isto é o bastante” cala essa boca insaciável, e a Paz, finalmente, pode acontecer. O meio desta teia é um buraco negro, ou o centro de uma galáxia, numa força gravitacional implacável, sugando o espectador, tendo no artista uma releitura dessas poderosas forças cósmicas. É a água caindo pelo ralo de uma pia, esvaziando a pia e trazendo a simplicidade do contentamento. É um canal pelo qual fazemos um ato básico animal – a defecação. É um canal que tem que estar sempre aberto, sempre desobstruído, sempre fazendo a Vida fluir, sem interrupções que possam quebrar o ritmo. É a força das mãos de Genoveva, numa artista querendo preencher espaços, na forma gravitacional de um centro galáxico. As pernas delgadas da aranha são o refinamento, a polidez minimalista, em pernas que, apesar de ter uma aparência frágil, são fortíssimas, pois o fino singelo derrota o grosso excessivo. Podemos ver a aranha se mexendo pela própria obra, e podemos ouvir seus discretos passos como cordas de violão sendo tocadas. É o fascínio do super herói Homem Aranha, um ser humano que passou por uma mutação. Arte é isso – faz com que o espectador passe por uma mutação e, uma vez tendo passado por uma boa obra de Arte, o mesmo espectador jamais será o mesmo. A teia de Genoveva nos envolve e nos deixa “presos” à mente criativa. Dá para imaginar o trabalho que deu transportar esta obra do atelier à galeria. Esta aranha é uma Galadriel, ou seja, os mistérios femininos iluminados, elucidados.


Acima, Sem Título (IV), técnica de vime e trama. Esta instalação ficou na entrada da galeria caxiense, cujas escadarias ascendentes nos convidam à elevação mental. Aqui, voltamos a ver uma teia e uma aranha, mas, desta vez, a aranha não está iluminada internamente, numa perspectiva mais sombria, mais sinistra – conheço uma pessoa que é altamente aracnofóbica. A grande teia extrapola limites, quase não cabendo no espaço limitado. As escadas dialogam com a teia, e o espaço se torna um só. A teia é um tanto taoista, pois o centro vazio faz metáfora com o enigma do vazio, e este é a fonte da utilidade, do propósito. A aranha parece desfilar pela teia, e é o Pequeno Príncipe em seu pequenino reino, como um artista se torna rei e soberano de seu próprio atelier, espaço no qual tudo é do jeitinho do artista, numa espécie de campo onde a fazedor de Arte se sente absolutamente livre e a vontade, como na sensação redentora de chegar na praia e calçar um par de chinelos – é uma libertação, fazendo metáfora com o Desencarne, num autêntico retorno ao Lar, aos jovens amigos imortais. Aqui, parece que a galeria foi tomada pelas aranhas de Genoveva, mas isto não nos convida a destruir as teias – bem pelo contrário, o que me lembra de uma ecologista que conheci, e esta não me deixou destruir uma teia de aranha em um pequeno mato. Ao fundo à esquerda, os armários nos quais os visitantes da biblioteca têm que guardar seus pertences, e a aranha é assim – vai guardando os insetos que caem em sua teia, sendo uma caçadora ardilosa, que sabe esperar até colher os frutos de sua persistência, pois não é importante, ao se ter talento, persistir neste mesmo talento, nesse mesmo propósito? Os armários convidam o espectador a se despojar e a deixar para trás bens materiais, mergulhando na teia e permitindo que suas próprias tripas sejam devoradas, num ato de entrega, entregando-se aos olhos de Genoveva. Um jato de luz cai quase sobre o centro da teia, na sabedoria em tecer uma teia que, apesar de frágil, é forte, como na metáfora taoista da árvore ao vento: aquela árvore que se curva ao vento, sobrevive. Portando, curve-se e seja humilde. A aranha está acostumada a não ver seu próprio labor ser reconhecido, mas a aranha Genoveva teve a força para superar isso, sendo, enfim, reconhecida, não mais sendo ignorada por um Mundo tão frio e indiferente – é um baita desafio. Abaixo, uma mesa com um tecido que parece ser estopa, numa malha tecida assim como a teia tecida, num registro de labor. Em cima, um objeto que, creio eu, serve para captar as uvas assim que elas são ceifadas da videira, no trabalho de formiguinha que é uma colheita de uvas, com as abelhas contentes, rondando doces bagos de uva no parreiral. É uma alusão sutil à Festa da Uva, um momento em que a comunidade esquece suas diferenças e atritos, unindo-se para celebrar a Vida. E esta aranha é Vida, num ser guerreiro, que batalha para obter as coisas da Vida. E este objeto de colheita não está exatamente no meio da mesa, estando recatado, discreto e humilde, nunca querendo se apossar de tudo e todos. E, como diz Tao, aquele que nada quer, tudo tem. É uma charada, e o arrogante tropeça no próprio passo, natural e inevitavelmente. E eis que o trabalho, a necessidade de laborar, invade com força a Vida dos indivíduos. Não tente fugir da aranha!


Acima, Sem Título (V), técnica de lápis de cor, parte da exposição Avis. O perfil mostra um animal agressivo, como na águia, símbolo dos EUA, num bicho que combina dois valores bem americanos – liberdade e agressividade, numa nação que se acostumou a ser o “xerife” do Mundo; em ser o dono da “bola” e do “campinho”. Podemos ouvir o canto da águia, com suas paladinas asas cruzando os céus de uma nação livre, rechaçando ao máximo os sistemas ditatoriais, os quais resultam em falta de liberdade, de bem estar ao cidadão. Com o lápis na mão, Genoveva revela um trabalho meticuloso, com cada tracinho revelando a majestade de um bicho tão belo e inspirador. A águia está de boca aberta, cantando, talvez faminta por uma presa, seja uma cobra, ou um rato, ou um sapo. É a luta pela Vida, pelo alimento de cada dia, na oração que pede a Deus que o pão nosso de cada dia esteja garantido. Podemos ver sutilmente a língua da águia, saboreando uma presa, e talvez levando nacos de carne para seus filhotes no ninho, e este é um lugar seguro, retirado, a salvo de predadores engraçadinhos que queiram se esbanjar na carne dos filhotes, e estes só poderão sair do ninho quando aprenderem a voar, a se sustentar com suas próprias asas – é o desafio da Vida. O bicho corta o quadro de ponta a ponta, numa Genoveva inspirada pelas riquezas e belezas biológicas. O olho da ave está aberto e atento, numa visão muito melhor do que a visão humana, numa ave que pode observar presas a uma longa, longa distância, com olhos aguçados, frutos de um processo evolutivo que fez com que as seres de pouca visão perecessem, não permitindo que as aves “míopes” pudessem transmitir seus genes para as gerações seguintes. Um orifício no bico é a narina da águia, parecendo que a ave levou um tiro de caçador, tendo se recobrado de tal ferimento e superado as vicissitudes, tocando a Vida para a frente. Ao fundo no quadro, um céu azul um pedaço de árvore, talvez o lugar que a águia escolheu para tecer seu ninho, no cuidado de construir um lar protetor, no instinto de Maternidade. No olho do bicho, Genoveva revela seu traço, e, ao olharmos para o olho, temos a impressão de dialogarmos com o bicho, na beleza de olhos puros, sem as vaidades e arrogâncias humanas – Deus não inventa o Ódio, pois este é um capricho humano. A águia se revela simples em sua Vida, cuidando dos afazeres do dia, vivendo seus dias com placidez e instinto, sem reclamar pelo fato de que é necessário lutar pela Vida. O bico agressivo da águia foi desenvolvido pela Evolução, para que a ave possa fisgar as presas, como num agressivo anzol de pesca, usando-se uma isca para enganar um peixe desavisado. As penas do bicho são macias e afáveis, convidando-nos ao toque delicado e reconfortante, mas não chegue muito perto! É um bicho com instinto de caça, entalhado na luta diária por comida. É um bicho que exige respeito, pedindo-nos para que não demos murro em ponta de faca, e é como os EUA, uma nação amigável mas que, se provocada, irá à Guerra. E quem quer guerrear contra a nação mais poderosa do Mundo? Esta águia parece uma figura de perfil de moeda, numa figura altiva e orgulhosa, como se soubesse que é bela e austera. Olhando o bicho de frente, talvez não perceberíamos o formato agressivo do bico, e é por isso que Genoveva optou por nos mostrar o bicho de perfil, para que pudéssemos observar o falo faminto, no charme que existe em pessoas narigudas. Genoveva nos recomenda a observar a águia a distância, como se o animal fosse um solado armado – nunca o provoque, rapaz!


Acima, a artista com suas obras. O próprio cinto de Genoveva dialoga com a arte em tranças. Será que Geno usou o cinto (in)conscientemente? Nesta foto, vemos algumas “colunas” de artesanato, como se fossem o resultado de uma colheita, de um esforço. A obra mais ao fundo, que tapa uma visitante da mostra, parece uma colmeia ou um cupinzeiro, cheio de Vida, cheio de incessante labor, um banquete para predadores que gostam de insetos, como pelas línguas pegajosas de tamanduá. Genoveva celebra a beleza e a força da Vida. Essas formas remetem à seção africana do Met de Nova York, num apelo que mexe com a cabeça do espectador. Aqui, nessas casas cheias de Vida, podemos ouvir o mínimo som de labor, com seres subindo e descendo, exercendo seus papéis nessa comunidade, no modo como um artista busca ter um papel no Mundo. Genoveva revela ter alma de artesão, na capacidade de transformar objetos, fazendo com que um impessoal vime vire obra. Essas colunas sobem a galeria do chão ao teto, como se sustentassem a casa, como nos enigmáticos pilares vermelhos do MASP. São como árvores que nasceram do piso de porcelanato, transformando a galeria em uma pequena mata, como certa vez, em um mato de Gramado, observei um tucano – é a beleza da Vida, algo incomum para quem vive em urbes. Aqui, Genoveva sorri satisfeita, colocando-se de lado, nunca querendo ocupar o centro, ou seja, nunca querendo aparecer mais do que a própria obra, num exercício de discernimento e discrição, pois não é insuportável o showman, o exibido, que quer aparecer mais do que o próprio trabalho? A instalação mais ao fundo faz um efeito com o piso reflexivo, parecendo que se entranham no chão raízes profundas, sustentando a árvore, alimentando-se de águas subterrâneas. Pequenas formas brancas enfeitam o arranjo, como jabuticabas, ou como uma colônias de seres, talvez insetos, apoderando-se da árvore. São colunas de Vida que brotam do chão, sempre lutando para respirar, sempre competindo por um lugar ao Sol, na inevitável competitividade da Existência. Só que, quem é único, com ninguém precisa competir, e é essa a luta por identidade de um artista – ser único e inconfundível. Identidade. A coluna ao lado de Genoveva aqui tem uma espécie de coroa de espinhos, que martirizaram o Salvador, só que esta coroa de Geno não tem espinhos, como arestas que foram aparadas, elaboradas. É a coroa na cabeça de Cristo depois do Desencarne, ou seja, no Plano Espiritual, Jesus veste sua majestosa coroa, sequer se lembrando dos dolorosos momentos de martírio. É como uma roseira sem espinhos, pois, na Dimensão Material, os espinhos servem para barrar seres que queiram matar a rosa. Já, na Dimensão Metafísica, não há predadores, sendo então que aos espinhos não mais são necessários, pois no Plano das Ideias a pessoa não precisa mais se preocupar com o que comer, com o que vestir, com onde morar, com a passagem do Tempo etc. Esta coroa é como o cinto de Genoveva, trazendo disciplina, comedimento. A artista, nesta foto, quase se esconde por trás da própria obra, numa timidez que revela uma mente profunda, que sabe o valor da Discrição. Aqui, não podemos ver as mãos da artista, as responsáveis por tal mostra. E vem à mente a pergunta se Genoveva gosta de fazer tricô, crochê, bordados etc. Como as mãos de um pianista, pois estas são as responsáveis pelo labor de um artista. É um trabalho de paciência, de uma mente centrada, e podemos ver a intenção de diversidade, ou seja, de uma artista que não quer se repetir, transitando tranquilamente entre pinturas e instalações, como numa artista completa como Fernanda Montenegro, a qual transita entre Teatro, TV e Cinema. Genoveva se torna uma anfitriã, recebendo-nos em sua mente por meio de seu trabalho, na capacidade de expressar, de vomitar catarses.