quarta-feira, 26 de abril de 2017

De Lanterninha a Diva




            Aos 16 anos de idade, Barbra Streisand era uma judia do Brooklin, região metropolitana de Nova York. A jovem decidiu que queria trabalhar na Broadway, não importando como ou em que função. Então ela atravessou a ponte do Brooklin em direção a Manhattan, e foi batalhar por um emprego, com uma Barbra sempre guerreira. Conseguiu um trabalho de lanterninha, e gostava, pois podia ver as peças teatral-musicais de graça. Você percebe a trajetória desta judia? Ela começou como lanterninha e acabou como um verdadeiro monstro artístico. Apenas cinco anos depois de ingressar na Broadway como lanterninha – cinco anos passam rápidos –, Barbra protagonizava o célebre musical Funny Girl, interpretando o mesmo papel no cinema anos depois e levando um Oscar por tal. Talento indiscutível, Barbra atua e canta obtendo reconhecimento incondicional. Para uma pessoa conseguir emprego de ator na Broadway, esta pessoa tem que ser excepcional, pois medíocres não têm vez na Broadway. As auditions, ou seja, os testes de elenco são inúmeros e a competição é acirrada. Só o talento abre portas, e Barbra escancara-as. De brilho da lanterna a brilho dos holofotes. Sometimes, you have to start small, ou seja, às vezes, você tem que começar por baixo, canta Barbra no clássico da Broadway Everybody Says Don’t. E, como diz Tao, temos que nos curvar antes de conquistar.

            No arrebatador desenho animado cômico Southpark, Barbra transforma-se num terrível monstro que destrói Nova York, cantando o clássico Memories. Em outro momento, Barbra está disfarçada, e tem que aturar comentários do tipo Barbra gostaria de ter para sempre 45 anos de idade, e a dublagem de Barbra no desenho trata de reproduzir o som nasalado de sua voz, como a da divertida personagem Fran Fine no extinto seriado The Nanny. A judia Fran é absolutamente louca por Barbra, e esta recebe várias homenagens em episódios diferentes do seriado, como por exemplo: Fran descobre em uma caixa de coisas velhas suas uma peruca que imita o cabelo de Barbra; Fran fala com Barbra ao telefone depois de um espetáculo desta, e a cantora a saúda com o jargão Hello, Gorgest, ou seja, Alô Lindona. Fran diz que Barbra libertou o povo judeu do sentimento de culpa! Mas, no seriado, Fran nunca chega a de fato encontrar-se com Barbra, como em um show na vida real, em que uma expectadora na primeira fila grita Touch me, Barbra!, ou seja, Toque-me, Barbra!, mas Barbra, apesar de estender a mão com sua famosas unhas longuíssimas, não chega a tocar na fã. Inclusive, na capa do álbum Lazy Afternoon, na moda dos esteticamente infames anos 70, Barbra está com unhas com “quilômetros” de comprimento.

            Reservada, Barbra é discreta no dia-a-dia. Faz aparições públicas não muito frequentes, como no programa televisivo americano Saturday Night Live, em que personagens mulheres judias adoram Barbra como uma verdadeira deusa.

            Uma das mais belas canções de Barbra é I Finally Found Someone, ou seja, Eu Finalmente Encontrei Alguém, um dueto romântico com Bryan Adams, tema do ótimo filme O Espelho tem Duas Faces (The Mirror Has Two Faces), em que Barbra interpreta uma brilhante professora universitária de Literatura que descobre o amor conjugal e conquista a própria autoestima como mulher, na sequência final em que usa a metáfora da aurora para ilustrar a clareza com que a personagem acaba vendo a vida e o mundo. Há uma aurora na vida de Rose, a personagem, do modo como Barbra, que já fez décadas de psicoterapia, permite a si mesma ver o mundo de um modo novo, encontrando o prazer de viver e a certeza de encontrar contentamento e felicidade. A canção foi indicada ao Oscar de Melhor Canção. Só que Barbra decepcionou os fãs e disse que não cantaria a música na cerimônia, mesmo porque Barbra, na noite do Oscar, estava com uma ousada saia justa, sendo complicado subir no palco em tais vestes – Barbra gosta de se gabar por ter pernas bonitas, como no vestido famoso na turnê The Concert, onde sexy não é vulgar, numa tênue linha. Então, na dada cerimônia, o pepino ficou para Celine Dion, que teve que ensaiar às pressas a canção dentro do toalete feminino, por causa da acústica do WC. Como se trata de um dueto, na verdade a canção deveria ter sido interpretada por um cantor e uma cantora, mas foi só com Celine mesmo, privando a reprodução de todos os versos da bela balada. É por isso que Barbra ficou muito amiga de Celine, ficando grata a esta e, posteriormente, gravando juntas um dueto meio brega, mas belo, chamado Tell Him, ou seja, Diga a Ele, em que uma mulher mais experiente, interpretada por Barbra, dá conselhos amorosos a uma mulher mais jovem e inexperiente, vivida por Celine. Na canção, a mulher mais velha diz à mais nova que esta deve expressar ao amado toda sua paixão, partindo para o tudo ou nada, ganhando-o ou perdendo-o, mas sempre sendo autêntica em relação aos próprios sentimentos. A foto oficial das duas divas juntas tem ao fundo um grande arranjo de flores, para ilustrar a identidade feminina da canção. Breguinha, mas duas vozes (muito) respeitáveis. Na vida, não se tem tudo, e cada um tem seus defeitos. E o dueto com Bryan é pertinente, sendo este um homem feio, mas charmoso, com uma voz que fala cantando.

            Em relação a repertório, Barbra é meio engessada, dura. A diva só vai a público interpretando as mesmas velhas canções. É claro que a diva tem um fãclube sedimentado, com pessoas sempre dispostas a comprar seus CDs e a pagar ingressos para seus shows. É claro que a biografia musical da diva é soberba, mas seus shows acabam se tornando, de modo geral, vintage nostálgica, como no megashow The Concert, dos anos 90, no qual a diva provou ter poder de fogo de sobra. O show resgata grandes hits da carreira, com a diva até fazendo um narcisista dueto com si mesma, e insere pouco material novo. Existe uma pessoa do showbusiness, cujo nome não mencionarei, que permaneceu o resto de seus dias cantando músicas suas dos anos 80, quando que, na vida, o importante é sobreviver e tocar o barco para a frente. Existe outra característica de Barbra que é a pretensão, como podemos ver nos títulos de dois de seus álbuns, Timeless e Higher Ground, ou seja, Atemporal e Nível Mais Alto. Não que sua voz não seja poderosa e inspiradora, mas Barbra crê que a pretensão ajuda a vender CDs.

            Centrada, Barbra nunca se rendeu às drogas e à bebida, mesmo com as inevitáveis pressões do showbusiness, como nas pressões em cima de Harry Connick Jr., que nos início da própria carreira enfrentou um mercado que exigiu que Harry fosse “apenas” o novo Frank Sinatra; como no caso de Whitney Houston, que perdeu a voz por causa das drogas. Certamente, um dos highlights da carreira da diva é o inesquecível dueto com Frank Sinatra no pertinente CD de sucesso Duets. Um programa humorístico de TV americano mostrou atores interpretando Barbra e Frank, no qual o astro chama a diva de Nose, ou seja, Nariz. Heheheheh!!! De personalidade marcante, Barbra busca gravitar psicologicamente em níveis acima de mediocridade e mundanismo, sendo seletiva na hora de trabalhar em projetos, seja na Música, seja no Cinema.

O meu trabalho preferido de Barbra é o CD Back to Broadway, dos anos 90, no qual a diva, que começou na Broadway, revisita clássicos do teatro novaiorquino. Barbra brilha indescritivelmente como em canções imortais do musical Sunset Boulevard, musical já encenado por Glenn Close – não farei aqui uma covarde comparação, visto que Glenn, sendo toda a estrela que é, não tem a voz de uma Barbra, mas Glenn se defende no palco e não faz feio na hora de cantar a peça do mito Andrew Lloyd Webber. O CD ainda tem duetos primorosos, com arranjos musicais de extremo bom gosto, num álbum que tem o dom de ser reproduzido incansavelmente, mesmo tantos anos após seu lançamento. Barbra mostra intimidade com o microfone tanto em momentos sutis quando em grandes “gritos” melódicos, dando a impressão de que cantar é fácil. Mas é apenas uma impressão.

Há décadas atrás, o Príncipe Charles, em visita oficial aos EUA, pediu para se encontrar com Barbra, sendo provado aí o monstro global que a diva é. Barbra estava em estúdio gravando, e estava muito concentrada e absorvida pelo trabalho. A diva recebeu Charles no estúdio e, sob câmeras da imprensa, conversaram rapidamente e Barbra até lhe ofereceu um gole do chá que ela estava tomando. Décadas depois, Barbra até brincou, dizendo que, se talvez tivesse sido mais simpática e calorosa, poderia ter se tornando a primeira princesa judia da História, já imaginando manchetes sobre si, provavelmente apelidada de Princesa Babs, nos tablóides ingleses! Em outra ocasião, reza a lenda que Barbra, lá pelos anos 60, encontrou-se em um camarim com o rei Elvis Presley, e que o astro beijou as pontas das unhas de Barbra.

Em termos de política, Barbra é democrata, e gosta de fazer opinião pública sobre política. Como na maioria da classe artística americana, o Partido Democrata é unanimidade entre as pessoas sensíveis e intelectualizadas do showbusiness, o qual premiou Barbra com um Globo de Ouro pelo conjunto da carreira cinematogtáfica.

Barbra tem muito controle sobre a própria vida, na independência psíquica das pessoas psicoanalisadas. Por exemplo, é difícil achar imagens na internet de Barbra sem direito autoral, pois esta busca ter o direito de reprodução de cada foto sua. Uma insegurança, talvez pela diva não se achar das mais belas e, mesmo psicoanalisada, tem problemas em relação à própria aparência. Conheço pessoas que acham Barbra um tribufu; outras, consideram-na uma “feia bonita”, ou seja, um charme interessante, não nos clássicos padrões de beleza, mas num encanto único, como seu grande nariz, responsável pela soberba voz nasalada, equivalendo a uma orquestra inteira. Em Funny Girl, na hora da personagem de Barbra interpretar a canção The Most Beautiful Bride in the World, ou seja, A Noiva Mais Bela do Mundo, a personagem trata de ousar e mudar um pouco o roteiro, aparecendo inesperadamente no palco com uma irreverente barriga de grávida, transgredindo comicamente. Numa metalinguagem, pois é monstro de teatro falando de monstro de teatro.

A mãe de Barbra, quando esta era jovem, dizia que Barbra teria dificuldades em obter um marido, pois a jovem judia era nariguda e estrábica. Como é característica das grandes pessoas, Barbra venceu todas as vicissitudes da baixa autoestima e se tornou uma pessoa adulta e madura, sendo sinônimo de excelência, quando ouvimos frases do tipo O Fulano é a Barbra Streisand da Arquitetura, ou O Beltrano é a Barbra Streisand da Propaganda. E a diva disse em entrevista que Sucesso é ter um melão inteiro à disposição mas só comer um pedaço deste. Barbra fala de como é ser uma celebridade, envelhecendo publicamente, mas, como a própria já disse, algumas coisas melhoram com a idade.

Ok, Barbra não tem muito estilo, como em uma recente aparição pública, em que vestiu uma roupa medonha que fazia referência aos anos 70, época que a diva amou viver. Mas existe uma celebridade, cujo nome não mencionarei, que esbanja estilo mas tem uma voz quilômetros pior do que a de Barbra. Encantando gerações diferentes, Barbra é apreciada por mim e pelos meus pais, e, ao que tudo indica, entrará para a História com uma das principais vozes de nosso tempo.

Não devemos culpar quem escreve “Barbara” ao invés de “Barbra”, pois a diva é, ironicamente, bárbara. E há um fato engraçado, pois já foi dito inúmeras vezes que a top brasileira Mariana Weickert parece-se com a Barbra na juventude desta. Um narigão para lá de charmoso. Nunca ouvimos falar que beleza não põe à mesa?

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Bette Devil




            A estrelíssima estrelésima Bette Midler disse que adotou este nome artístico querendo homenagear uma diva que a influenciou muito, ou seja, Bette Davis, e esta não suportava papéis superficiais. Em A Malvada, por exemplo, Bette interpreta uma personagem que percebe capciosamente as ações e movimentos de uma sociopata ardilosa e manipuladora, a dissimulada Eve, no pecado original. Bette era mestre em expor a sociopatia, e não se contentava em ser apenas uma darling fútil. Bette debochava brilhantemente da superficialidade burguesa. Enquanto todos aplaudem Eve, Bette fica em silêncio, debochando não só da falta de caráter de Eve como também da burrice de quem a aplaude. Coitadinha da Eve, dizia Bette com sarcasmo. É claro que jamais veremos outra atriz como Davis. Os espíritos são únicos. Nada mais natural do que Davis interpretando Elizabeth I da Inglaterra – rainha falando de rainha, na Era de Ouro de Hollywood, termo irônico, pois o Cinema naquela época era chamado de Silver Screen, ou seja, Tela de Prata.

            Um grande hit da música pop chama-se Bette Davis Eyes, ou seja, Olhos de Bette Davis. A canção fala de uma mulher sedutora, com olhos frios como a neve de Nova York, apetite sexual intenso, disposta a girar como dados a vida de seu amante, expondo-o. Na canção, Bette sabe o que é o suficiente para causar um tsunami, sendo uma mulher provocante, que conhece o próprio amante muito bem. Quem ela é? É uma espiã? Ela tem olhos de Bette Davis. Who’s that girl? Quem é esta garota? Madonna, a eterna diva de sutiã, homenageou BD na canção hit Vogue, dizendo Bette Davis, nós amávamos você. Duas damas com atitude, com brilho, capazes de encarnar as mais majestosas cadelas da História. Sou tão boa interpretando cadelas porque eu não sou uma cadela. É por isso que Joan Crawford é tão boa em interpretar damas. Quando sou boa, sou boa; quando sou má, sou melhor ainda. Essas palavras imortais, ditas por Bette Davis, delineiam uma divertida, mortífera e lendária rivalidade entre Bette e Joan. As atrizes encontraram-se no set de O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, trabalhando juntas. Reza a lenda que, quando ambas foram indicadas ao Oscar no mesmo ano, Joan, em detrimento de Bette, fez uma campanha de porta em porta em Hollywood para pedir que a Academia votasse em Anne Bancroft, outra indicada. Joan não suportaria ver Bette dando-se bem. Eram nêmesis uma da outra, uma interessada na infelicidade da outra. Hollywood é uma glamorosa selva. Estaria Bette vendo em Joan uma Eve? Arte e vida real entrelaçam-se.

Recentemente, O Que Terá... foi refeito com Susan Sarandon no papel interpretado por Bette e Jessica Lange no papel interpretado por Joan. O clássico em preto & branco recheado por Bette e Joan inspirou o filme nacional Irma Vap, o Retorno, no qual o célebre Marco Nanini faz referências claras e apaixonadas ao filme. Quando vi uma peça teatral de comédia besteirol em Porto Alegre, a película também teve referências, com uma Bette que debochava até do som da campainha.

A cena final de O Que Terá... é monumental, com uma Bette encarnando a mais patética e completa loucura e demência. E isso Davis fazia bem. Em outro filme, encarna uma psicopata absolutamente fria, ardilosa e dissimulada, como muitas que vi na minha vida (e ainda verei), pois, disse-me uma grande amiga psicóloga, psicopatas existem em qualquer lugar. Na referida cena, um personagem doente precisa de um remédio urgente, e a personagem de Bette, querendo o dinheiro dele, fica imóvel vendo-o passar mal, e ele se depara com a total ausência de caráter e moralidade da vilã. Nessa cena, Bette infla-se como um pico Everest, como um iceberg intransponível, como um tufão levando tudo e todos consigo. A terra treme. O psicopata é brilhantemente interpretado por um ator que seja uma pessoa de bom coração. Nessa lógica, Bette era uma pessoa fina, elegante e bondosa, apesar de até hoje as pessoas acharem que ela era na vida real aquilo que era na tela, do mesmo modo como as pessoas acham até hoje que Marilyn Monroe era na vida real a personagem sexy e burra que era na tela. A genialidade de um ator gira em torno dos monstros que ele mesmo constrói na vida pública, tornado-se uma força da natureza. A Arte torna-se oxigênio, e a força da estrela torna-se um raio de tempestade avassalador.

Certa vez eu estava folheando uma revista americana, mas nem lembro de que título era, mas lembro-me muito bem dos causos narrados por um senhor que disse ter convivido com Bette Davis. Sinceramente, acho que ele mentiu na narração dos causos, pois não crio que BD fosse uma vagabunda vulgar e insegura na vida real. Então, peço ao leitor que, na leitura dos próximos parágrafos, tenha em mente que os causos são falsos, porém divertidos. A matéria era intitulada The Lonely Lady, ou seja A Dama Solitária, ilustrada por uma foto que mostrava Davis no set de filmagem, fazendo uma pausa para tomar um café e fumar um cigarro, visto a convicta tabagista que era a estrela, numa época em que a conotação de fumar era associada a glamour e fascínio.

Digamos que o nome do narrador dessas histórias fosse Jack Smith, um homem que ficou muito impressionado por ter conhecido tal monstro do cinema que era Bette. Ele conta que no set de O Que Terá..., Joan, com a melhor das intenções, deixava no camarim de Bette uma rosa por dia, sem revelar que era ela quem o fazia. Então Bette teria dito: Que saco! Porque essa pessoa tem que me mandar uma rosa por dia? Que me mande logo um buquê inteiro, ora bolas. Jack achou então que, na verdade, Bette passou a desprezar Joan, achando a co-estrela vulgar, burra e cafona, como reza a lenda da suposta rivalidade entre as brasileiras Fernanda Montenegro e Tônia Carrero, quando Tônia, ao ver uma peça de Fernanda, escreveu a esta um bilhete dizendo Boa atuação, mas cuidado com a aparência, e Fernanda revidou, tendo após ver uma peça encenada por Tônia, deixando a esta um recado dizendo Boa aparência, mas cuidado com a atuação. Competições são divertidas, como no caso das socialites brasileiras Vera Loyola e Carmen Mayrinck Veiga, tendo Vera dizendo Os gays mais assumidos gostam de mim, e os mais enrustidos gostam da Carmen. Cada uma tem os gays que merece. Reza a lenda que Carmen desprezava Vera, achando esta uma nova rica cafona, tendo Carmen representando as elites mais tradicionais e Vera representando a burguesia em ascensão social. Como na célebre foto antiga de Sofia Loren olhando escandalizada para o decote indiscreto de Jane Mansfield. As competições são inerentes ao ser humano, como espermatozóides concorrendo pelo mesmo óvulo.

Outra passagem de Bette Davis teria tomado cena em um restaurante. Estavam Jack, Bette e outras pessoas em torno de uma mesa jantando. Até então, tudo bem. Então, um dos senhores que estavam na mesa, inocentemente, estava falando algo do tipo: Depois iremos em tal lugar, ele, ela..., e apontou suavemente o dedo para Bette. A estrela, ao ver o dedo apontado para si, disse bem alto: Não se atreva a apontar o dedo para mim. O restaurante ficou em pétreo silêncio. Todas as pessoas na mesa de Bette ficaram caladas, e todas as outras pessoas no restaurante também calaram-se e olharam para a mesa. Até o rapaz que estava tocando um piano parou de tocar e olhou para a mesa. Então, quando aquele senhor tomou ar para se desculpar e dizer algo do tipo: Desculpe-me, não foi minha intenção. Eu não tive a intenção de desrespeitá-la, Bette disse, ainda em alto e bom som: Eu sequer quero vê-lo novamente. Cá entre nós, é claro que Bette não era essa vaca louca na vida real, mas não deixa de ser um causo engraçado.

Após a cerimônia em que Bette perdeu o Oscar, houve um baile pós-cerimônia. Então Bette, indignada e aborrecida, de péssimo humor, viu Joan no baile e disse a Jack: Não quero ficar neste salão com ela aqui dentro, não me importa o quão enorme o salão possa ser. Então Bette chegou em casa acompanhada por Jack. A diva, “morta” de fome, pegou uma faca para cortar um pão e fazer um sanduíche. Jack comentou que Joan estava muito bonita e elegante na cerimônia, e disse que Joan estava parecendo uma princesa atemporal de tão estonteante. Bette pegou a faca, apontou-a para o peito de Jack e disse-lhe: Repita o que você disse. E Jack repetiu. Então Bette apontou a faca para o nariz dele e disse-lhe: Você me deixa com náuseas. Para Davis, todo o buraco era mais embaixo.

Muitos anos depois, Jack encontrou-se ao acaso com a diva, e disse-lhe: Oi, Bette. E Davis o olhou como se nunca o tivesse visto na vida. Então ele disse: Sou eu, Jack Smith. E Davis disse: Eu sei quem você é, Jack Smith. E ele nunca mais a viu na vida. As histórias de Jack mostram uma louca digna de ser atada num manicômio. Bette Davis era uma loucura no bom sentido, já homenageada no célebre programa de comédia americano Saturday Night Live.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Elis Rainha




            Eu não pertenço à geração Elis Regina; pertenço à geração Marisa Monte. Mas qualquer pessoa que ouse falar de MPB tem que passar pela gaúcha que ganhou o Brasil, tendo a diva ganhando-o para sempre. Monstro lendário. Estão tatuadas nas minhas memórias de infância as canções dela, de sua voz absolutamente inigualável e marcante, tanto em momentos sutis e sussurrantes quanto em ápices viris de voz desinibida, forte e macha, algo contrastante com os sussurros constantes de nomes como Nara Leão ou, puxando o assunto para hoje em dia, as incursões da canadense Diana Krall em casamentos entre Jazz e Bossa Nova – aliás, uma união perfeita, como arroz com feijão, numa ironia, pois foram gêneros de raízes absolutamente diferentes um do outro, visto que, como o ser humano é universal, a Arte também o é.
            Nos saudosos tempos da fita cassete de música, quando tudo era mais simples, nas inúmeras viagens de carro com meus pais e irmã pela praia, Porto Alegre ou Gramado – somos de Caxias do Sul –, ouvi essa voz tão boa, tão envolvente, tão enigmática, nos labirintos dos meandros do talento. O que é talento? Uma dádiva divina. Ouço Elis desde que eu estava na barriga de minha mãe. Elis é um recheio de xis burguer, deliciosa, levando tudo e todos consigo, como uma Billie Holiday tropical, marcando o senso comum brasileiro, na poesia da respeitável classe letrada brasileira. É claro que Elis nunca foi povão. A voz daquela mulher tinha classe.
            Certa vez, quando eu estava numa aula de cursinho pré-vestibular, um professor disse que Elis “traiu” o Rio Grande do Sul, pois a diva, ao mudar-se para o Rio de Janeiro para tocar a carreira para frente, em poucos meses adquiriu trejeitos do sotaque carioca. Well, temos que perdoá-la. Traição por traição, a gaúcha Xuxa Meneguel também adquiriu o mais puro sotaque carioca, chiando tal qual uma chaleira. Vamos deixar ash duash em pash. Na contramão, lembro da opinião do ultracélebre mestre Tatata Pimentel, que, ao defender a escolha de sotaque de Elis, disse que há pessoas que acham que Elis deveria ficar o resto da vida cantando em CTGs vestida de prenda – nada contra à tchê music, por favor. Vamos lembrar que o RS faz parte de uma federação, ora bolas.
            Brasileiríssima, Elis não poderia imaginar uma carreira que não incluísse o Brasil, na época da máxima Brasil – Ame-o ou Deixe-o, ou seja, se você não está contente com a situação brasileira, exile-se, como o fez Caetano Veloso, e o exílio era impensável para Elis e, por isso, ela teve que engolir um sapo fenomenal, num causo que vou contar no parágrafo a seguir, já pedindo eu desculpas se os fatos não ocorreram exatamente como vou narrar, o que não tira o lustro divertido da historieta, visto que Elis e sua geração foram marcadas pela Ditadura Militar. Na casa de minha irmã em Salvador, há anos atrás, li uma biografia não muito volumosa de Elis, e vou narrar o causo ficando um pouco refém de lapsos de memória em relação ao texto biográfico. O causo foi mais ou menos este:
Eram, digamos assim, os anos 1970. Elis já estava consagrada do Oiapoque ao Chuí, e estava fazendo uma pequena turnê pela Europa, apresentada como uma cantora exótica do “selvagem e misterioso” Brasil. Suponhamos então que Elis estivesse em Paris, e foi à suíte do hotel entrevistá-la um repórter de um jornal, digamos do Le Monde. Então Elis, por estar em um continente civilizado, do outro lado do Atlântico, sentiu-se à vontade para fazer uma coisa que não era possível de se fazer em território brasileiro, que era meter o p... no Governo. E Elis meteu muito bem metido; desceu a lenha, dizendo: São uns grossos, estúpidos, ignorantes, torturadores, quiçá assassinos. São uns animais no meio do mato. São uns brutos incivilizados. São uns gorilas. Ok. Findada a entrevista, o repórter despediu-se da diva, foi para a redação do jornal e transcreveu a entrevista, a qual saiu publicada um ou dois dias depois. Daí, aconteceu algo que Elis não previra: a Embaixada Brasileira em Paris adquire o exemplar do jornal, traduz a entrevista e envia o material para Brasília, indo parar na mesa do gabinete do Presidente Militar da República. Elis, ao botar os pés de volta em território brasileiro, ou seja, os pés de volta no chão, começa a se incomodar com essa história, e só não foi imediatamente presa e considerada subversiva porque já era uma artista célebre. Mas tudo ficou muito claro nas entrelinhas – da próxima vez, os militares agiriam, e o brilho estelar encontrar-se-ia com o negror dos porões da Ditadura. Os milicos fingiram que nada ocorrera e, meses depois, estavam acontecendo os Jogos Militares, que nada mais é do que uma Olimpíada exclusiva para atletas do Exército. Então os milicos “convidam” Elis para cantar o Hino Nacional na abertura dos Jogos. Elis, que para burra não servia, entendeu que os militares estavam botando o “termômetro” e tirando a “temperatura”, e a diva decidiu aceitar o “convite”, devendo ter cantado o Hino maravilhosamente bem para esfregar seu talento na cara dos gorilas. E, depois disso, Elis nunca mais mexeu com os caras e os caras nunca mais mexeram com ela. Naquela época, só adquiria problemas com os militares quem cutucava o tigre com a vara curta, como o fez uma certa figura da política brasileira. Não tenho pena, pois, já disse neste blog, quem tem pena é pato, que não entrou para a seleção.
Como eram as coisas naquele tempo! Se Elis estivesse em Tóquio, a Embaixada Brasileira em Tóquio enviaria a entrevista para Brasília. Para compreender este causo narrado acima, temos que entender o contexto global de Guerra Fria de então. Naqueles tempos, o Comunismo assustava, e o Bloco Capitalista, liderando pelos EUA, temia que o Brasil pudesse se tornar uma URSS ensolarada, anexando-se ao Bloco Comunista e deixando este poderosíssimo. Na verdade, os militares brasileiros já estavam pleiteando o poder desde 1961, no episódio da Legalidade. Portanto, o golpe de 1964, que varreu Jango, simpatizante de Che Guevara, para fora do mapa político brasileiro, não foi uma total surpresa. Washington D.C. foi conivente com o golpe, e tranquilizou-se com este. Os militares garantiram que o Brasil não seria anexado aos povos comunistas. Só muitos anos depois o Comunismo caiu de podre, numa China que, hoje, na teoria é comunista mas na prática é capitalista. Cuba dá hoje sinais de abertura e o Comunismo vive restritíssimo no mundo, mas as ditaduras ainda correm soltas, tendo nos EUA o papel de “xerife do mundo”.
            Nesta mesma biografia, houve um episódio em que a diva estava em uma amizade colorida com um amigo, de cujo nome não recordo. Então, na evolução do relacionamento, houve um momento em que a direta Elis virou-se para o amigo e disse: Vem cá, tu és gay ou me achas um bagulho?
Certa vez, em um recente programa de TV, Carlos Miele, contemporâneo de Elis e amigo dela, foi questionado sobre quem ele considerava um talento excepcional, e ele disse: Elis.
Uma grande professora que tive na faculdade, uma mulher que pertence à geração Elis, falou sobre o clássico Águas de Março, e disse que os militares eram tão burros que não notavam o manifesto político por trás da canção, que fala sobre um março sombrio que foi selado pelo golpe em primeiro de abril. É pau, é pedra, é o fim do caminho diz a letra, fazendo discretíssima alusão à brutalidade do regime. A promessa de vida na letra é a esperança de reabertura democrática.
Eu era bem pequeno quando vi a diva cantando na TV, e, na minha ignorância infantil, achei Elis feia, e minha mãe me disse que era por causa do tóxico. Elis complicou-se nas drogas, algo que abreviou drasticamente sua vida, matando uma mulher ainda cheia de sonhos e projetos de carreira. Mas, como o talento é uma dádiva inexorável e indelével, Elis deve estar em outros planos continuando a cantar e encantar corações. Há quem diga que se Elis estivesse viva até hoje ela já teria obtido renome mundial.
Como foi privilegiado o Brasil de ter aqui encarnado tal espírito tão espontâneo e simples como Elis, assim como no legado genial de Chico Anysio. Como é rico o Brasil. E único.
Sua filha, Maria Rita, seguiu a carreira da mãe. É claro que ser filha de uma grande estrela ajuda e atrapalha: ajuda porque é uma grande credencial; atrapalha porque as comparações são inevitáveis. Maria Rita é boa, mas não é Elis, diz-se. Entrevistada no extinto programa de Jô Soares, Maria Rota emocionou-se ao ouvir o nome da própria mãe. Maria Rita fofa.
Em Porto Alegre há uma controversa estátua em homenagem a Elis, pois muitos acham a homenagem estranha, beirando o feio e o impertinente, não fazendo jus a quem foi Elis.
Muito criteriosa (e corajosa), Elis era soda na hora de selecionar repertório, e ouvia muitas e muitas fitas para selecionar canções que considerava interessantes de se gravar, sendo dura na seleção – as músicas que a agradavam eram exceção. Sua capa na revista Veja, mostrando a língua, como um genial Albert Einstein cantante, ilustra sutilmente a rebeldia frente à sisudez militar do Brasil de então. Elis conduzia as pessoas com altivez monárquica, com espírito de líder. Sua morte só veio a fortalecer o ídolo, que permanece sendo a portoalegrense baixinha e estrábica apelidada de Pimentinha da MPB.
A mãe da infante Elis, ao ver o potencial melódico da filha, levou a pequena a um concurso musical em uma rádio de Porto Alegre, mas a tímida Elis ficou encabulada e travou, só destravando em uma segunda ocasião na mesma rádio. Hoje, veríamos uma Elis criança no programa televisivo The Voice Kids Brasil. Travando por travar, em uma ocasião, quando já fazia sucesso adulta no Rio, Elis travou e teve que fazer um grande esforço para liberar a voz, mostrando a força psicológica de seu dom inegável: o canto está na alma do cantor. Sem dom, não tem como. O diamante bruto é o potencial a ser lapidado – não se lapida ouro de tolo. Quando há potencial, tudo o que é necessário é persistência.
Tenho algo em comum com a diva, pois ela adorava fazer palavras cruzadas no jornal!
Afinal, o que tinha Elis? Tao, pois Tao é um mistério, insondável, infinito – tudo é sensual processo. E os mistérios de Elis continuam a fascinar. Recentemente, viajou pelo Brasil o musical Elis, a Musical, procurando matar um pouco da saudade da diva. Também recentemente, foi lançada uma cinebiografia, que também traz o episódio em que a estrela chamou os militares de gorilas. Respeitada, Elis podia dar-se ao luxo de só trabalhar com cobrões da MPB, pois estava à altura destes. Insubstituível.