O seriado Chaves é sucesso
invencível de audiência em 30 décadas de exibição pelo Sistema Brasileiro de
Televisão – SBT. O Brasil tem verdadeira paixão pelo universo concebido e protagonizado
pelo genial Roberto Gómez Bolaños, mais conhecido como Chespirito, o qual
começou a brilhar nos roteiros que passou a escrever não só para Chaves, mas
também para o Chapolin Colorado e o doutor Chapatin, entre outros. Falecido
recentemente, Chespirito, cujo nome significa “Pequeno Shakespeare”, deixou
saudades dos áureos tempos em que trabalhou na televisão mexicana,
principalmente nos anos 70. Com uma criatividade inesgotável e um humor muito
puro e inocente, seus personagens ganharam a simpatia não só do público
infantil, mas de crianças que cresceram e não deixaram de amar Chaves e
companhia limitada – eu sou um desses que seguem vendo e revendo inúmeras vezes
os episódios, amplamente reprisados não só pelo SBT como também por outros
canais, de TV por assinatura. É engraçado: nunca me canso de revisitar os programas.
Existe inclusive o desenho animado do Chaves, concebido por volta dos anos 2000,
mas com histórias requentadas, baseadas nos seriados dos anos 70 – faz falta a
redação fértil de Chespirito.
Há poucos anos o apresentador
Ratinho, do SBT, foi a Cancun entrevistar Bolaños na casa deste. Casado com a
atriz Florinda Meza, que é estrela dos seriados, Roberto ouviu a pergunta do
entrevistador:
- Seu Roberto, você tem idéia de
como você é importante no Brasil?
Eu estava certa vez assistindo na TV,
sem lembrar do canal, um casamento cuja temática era Chaves. Os noivos e
convidados estavam trajados a modelo dos personagens da vila do menino pobre do
“Chavo Del Ocho”, que significa “O Menino do Oito”, em alusão ao número do
canal mexicano que exibia o seriado. Em festas a fantasia, Chaves e sua trupe são
costumeiros nas fantasias – estão entranhados no imaginário, objetos de
carinho do público, não sendo exagero dizer que Chaves e Chapolin são parte do
folclore latino americano, sendo identidade coletiva.
Chapolin é um anti herói. Ele não é
perfeito nem bonitão como o Super Homem. É magrela. Seu traje remete a uma
barata. Seria isso um complexo de inferioridade dos latino americanos? Sua arma
é uma marreta biônica; suas antenas detectam a presença do inimigo; seu brasão
no peito é um coração com as iniciais “CH”; ele tem pílulas de felanimina para
diminuir de tamanho e passar despercebido, ele é evocado cada vez que alguém
precisa de ajuda e diz as palavras “Oh, e agora quem poderá me defender?” ou
“Oh, e agora quem poderá me ajudar?”. E Chapolin surge do nada e diz um
paladino “Eu!”, seguido de “Não contavam com minha astúcia!”. Os chavões são
amplamente ditos, como “Suspeitei desde o princípio!”, “Aproveitam-se de minha
nobreza”, “Calma, calma, não criemos pânico!” e o clássico “Sigam-me os bons!”,
repetido pelo próprio Chespirito quando este abriu sua conta no Twitter. Chapolin
é muito humano, tem medos e receios, é sempre muito bem intencionado mas é bem
atrapalhado, tropeçando, caindo, machucando-se e cometendo erros, nunca tendo a
imagem idealizada de um poderoso deus infalível, sendo o Polegar Vermelho um
personagem com suas vulnerabilidades. Em uma metalinguística, o Chapolin já
participou de episódio no qual entrou na vila do Chaves e encontra-se com este;
em outro episódio, Chaves e sua trupe fazem uma peça teatral sobre Chapolin.
Chaves é grande fã do anti herói, e coleciona os gibis do Chapolin. Vale
lembrar que Chespirito era muito empreendedor, e circulavam pelo México as
revistinhas em quadrinhos do Chaves e as do Chapolin, promovidas nos próprios
seriados. Chespirito tinha uma visão de marketing muito apurada, e entendia o
conceito de sinergia mercadológica. Um homem excepcional e marcante, que
trabalhava muito. Um verdadeiro profissional de showbusiness, nunca dando ponto
sem nó.
A direção de arte dos seriados era
muito bem executada, preocupada em trazer o telespectador ao universo das
tramas, como em uma cidade do Velho Oeste, uma cantina de piratas, uma pirâmide
do Egito, um cemitério etc. Os efeitos especiais faziam o que podia ser feito
com a tecnologia da época, com cromakey muito evidente e tosco em comparação
aos recursos do século XXI. Mas essa carência tecnológica torna-se um charme
retrô, e o público de hoje não culpa as limitações tecnológicas do México dos
anos 70.
Chaves vive em uma humilde vila, em
uma vizinhança muito sui generis. O órfão esfomeado de oito anos de
idade refugia-se em um barril, e é um sonhador,
como mostra a ilustração desta postagem. Chaves tem bom coração mas é
muito, muito clumsy, do inglês, “desastrado”. Mas quando comete cômicos erros,
o público perdoa. Chaves mostra a realidade latino americana dos menores
abandonados. A Dona Florinda (Florinda Meza) é uma dona de casa viúva e está
sempre com bobs no cabelo, sendo poucas vezes no seriado vista sem os rolos.
Ela adula ao máximo o seu filho único Kiko (Carlos Vilagrán), e é absolutamente
apaixonada pelo narcisista Professor Girafalez (Rubem Aguirre), o tutor de dois
metros de altura que dá aulas para outras crianças além de Kiko. A
superprotetora Florinda é faca na bota – ai de quem tocar em um só fio de
cabelo do filho. Kiko, suscetível a irritação com os outros, é mimado pela mãe
e é engraçada a falta de inteligência do moleque, sendo célebres as caras e
bocas que Vilagrán empresta ao personagem. Dona Florinda acha que pertence a
uma classe social elevada em relação aos vizinhos da vila, e tem especial asco
pelo Seu Madruga (Ramon Valdez), batendo nele seja ou não este ter sido quem
batera em Kiko. Seu Madruga
também é viúvo e cria sua filha Chiquinha (Maria Antonieta de las Nieves).
Madruga está sempre devendo 14 meses de aluguel ao Seu Barriga (Edgar Vivar),
que é o dono gordinho da vila e é pai do guloso e dentuço Nhonho, interpretado
pelo mesmo ator. Chiquinha é sapeca, e às vezes mente e prega peças – uma
moleca. Está sempre banguela, usa óculos, é sardenta, é bem baixinha, suas
maria chiquinhas nunca estão alinhadas e seu casaco está vestido de qualquer
modo. Ela não gosta de se arrumar muito e fica louca de ciúmes quando o Chaves
fica olhando para a bonita Pati, uma menina que chega na vila para morar com
sua tia bonita Glória, a qual joga seu charme para o Seu Madruga e deixa este
apaixonado e em êxtase.
Também tem a Bruxa do 71, dona Clotilde (Angelines Fernandez),
que mora no apartamento do número e é apaixonadíssima pelo Seu Madruga, o qual
não corresponde. Clotilde morre de ciúmes de Glória e é uma solteirona que, por
sua aparência, é chamada de bruxa pelas crianças da vila. Um dos melhores
episódios de toda a história de Chaves é quando as crianças entram na casa da “bruxa”
e começam a ver coisas em uma ótima cenografia, como uma vassoura voadora, um
caldeirão e a própria Clotilde vestida de preto fazendo uma poção para
enfeitiçar o Seu Madruga. Mas era tudo imaginação da meninada!
O Doutor Chapatin é um médico bem idoso que está sempre com
gabardine e cachecol. Um dos melhores episódios é no qual um louco fugiu do
manicômio e Chapatin e outros personagens envolvem-se em muitos equívocos às
voltas com o maluco. Aliás, os desentendimentos são marca registrada de
Chespirito, que tece os conflitos resultantes de julgamentos precipitados. Fica
hilário então o convívio em meio a tanta desordem e caos. Roberto tira o humor
das dificuldades, fazendo do limão uma limonada. Por falar nisso, um dos
melhores episódios de Chaves é quando este e Kiko abrem cada um uma banca de
refrescos, competindo pela preferência da Chiquinha. Chespirito é um “moleque”
nas suas concepções, pois pensa no público infantil. As tramas são simples e
tudo é mostrado de forma muito clara.
O elenco perdurou unido por vários anos, mas aí ocorreram
abalos que terminaram com a era clássica de Chespirito na TV mexicana. No
princípio, Carlos Vilagrán era casado com Florinda Meza, mas ela e Chespirito
apaixonam-se e casam, e Carlos, muito ressentido, deixa o programa, seguido de
Ramon, que decidiu dar apoio ao colega Vilagrán, o qual fez episódios de seriados nos quais Kiko era o protagonista, mas sem o sucesso do Chaves do Oito,
como tentou Matt Le Blanc, o Joey do seriado Friends, tentando tocar um seriado exclusivo do personagem após o
término do muito bem sucedido programa de TV americano. Chespirito, enfrentando
um desfalque grande de atores, até conseguiu driblar o percalço e tocou vários
episódios com o elenco reduzido. Ramon morreu de câncer, pois fumava até em cena. Maria Antonieta
desentende-se e entra com um recurso na Justiça proibindo que os trejeitos do próprio
personagem fossem imitados – inclusive, no desenho animado, Chiquinha é
substituída por Popis, a prima de Kiko interpretada por Florinda na TV. Vilagrán
arrastou por muitos anos o ressentimento e, enquanto Roberto era vivo, chamava
este de megalomaníaco. O grupo acaba se desmantelando e a Era Chespirito chega
ao fim. Até hoje membros do elenco original buscam dar uma sobrevida aos
personagens. Carlos e de las Nieves fizeram turnês, cada um com seu circo. E
Edgar também viaja promovendo o Seu Barriga, passando até por Caxias do Sul.
Meza, viúva de Chespirito, tornou-se dona de casa e nunca mais atuou.
O aspecto comédia pastelão predomina nos seriados, com
direito a tudo voando: tortas, bolos, água, terra, lama, tinta, água com sabão,
macarrão, lixo etc. Pobres do atores, que tinham que aguentar aquilo tudo!
Ossos do ofício, em um elenco muito competente e amado pelo público, sob a
liderança de um Roberto que dava liberdade para os atores desenvolverem e darem
identidade aos personagens. Outro aspecto são as dublagens, com um time de
intérpretes cujas vozes estão estampadas na mente do público brasileiro. E até
foi lançado no Brasil um disco com músicas baseadas nos personagens de Chaves,
sem falar nas próprias canções que vinham com os episódios cantadas em espanhol
e depois dubladas. Falando nisso, outro ótimo episódio é no qual as crianças da
vila brincam de banda de música, produzindo nada mais do que um barulho
infernal! E outro aspecto era a pancadaria, com direito a topadas, socos,
chutes, pauladas, marteladas, boladas, beliscões, tapas, tijoladas, sapatadas, pedradas
e muito mais, mas de uma forma cômica, sem incitar violência, como o clássico
trio hollywoodiano Os Três Patetas. Chespirito faz da dor um motivo de riso.
Não sofra; faça piada.
A morte do criador de Chaves causou comoção no México e no
mundo onde os seriados eram (e são) exibidos. Seu velório lotou um estádio.
Será sempre lembrado como uma mente criativa, cativando o público, como na
riqueza de personagens de um Chico Anysio. Nos últimos anos de vida, Chespirito
sofreu de problemas graves de saúde. No final da entrevista que deu a Ratinho, Bolaños
ganhou de presente um boneco do Chaves e abraçou o brinquedo com muita alegria
e carinho. Amor – esse é o ingrediente de Roberto. Ele amou todo o universo que
produziu. É o coração no peito do Chapolin: nós latino americanos não somos
ricos como outros países, somos pobres como Chaves, mas temos amor e calor em
nossos corações. Do mesmo modo como Dona Florinda e Girafalez são apaixonados,
um amor que fazia com que os pombinhos simplesmente olvidassem das vicissitudes
do mundo. Chespirito faz com que nos esqueçamos da dureza da vida. Amamos
Bolaños. Descanse em paz, nosso herói! Sempre contaremos com sua astúcia!