Poucos momentos da história do
Antigo Egito foram tão peculiares como o reinado do controverso faraó Aquenáton,
que reinou por volta de 1352 a 1336 a.C. e, tachado de herege, revolucionou a
religião e a arte egípcias mas, logo que morreu, seu legado foi completamente
ignorado e agourado, e o homem foi considerado um pária, uma verdadeira ovelha
negra na tradição faraônica, sendo vítima de iconoclastia. Muitos hoje o consideram o primeiro indivíduo da História, um homem à frente de seu próprio tempo.
O que ocorria? O Egito era uma nação
politeísta, com uma religião muito tradicional, dotada de centenas de deuses,
em um panteão riquíssimo, com divindades muito importantes como Ísis,
Osíris e Hórus, narradas em lendas clássicas. A classe sacerdotal era muito
influente e poderosa, só ficando abaixo do faraó na pirâmide social, e a classe
religiosa não gostou das reformas do polêmico rei. Aquenáton baniu dos altares
absolutamente todos os deuses, todinhos. Instituiu o culto a Aton, o criador de
tudo, o deus à imagem do simples disco solar, parecido com Amon, o rei dos
deuses, como Zeus era o rei dos deuses gregos. A partir da tomada de poder por
Aquenáton, os egípcios agora só podiam cultuar a nova divindade – torna-se lei.
Historiadores consideram que esta foi a semente para germinar o monoteísmo na Humanidade.
Alguns creem que o povo hebreu, escravo no Egito, tenha levado adiante a
doutrina de Aton e fundado o Judaísmo, a primeira religião monoteísta, da qual
mais tarde viria o Cristianismo e, depois deste, a doutrina espírita – Deus é o
infinito, dizem os espíritas. No Oriente, surgiria o Taoísmo, também uma
espécie de monoteísmo, numa religião que cultua o misterioso e insondável Tao,
criador do universo, visto que Tao e Deus são a mesma coisa, chamada por nomes
diferentes. E Maomé traria o Islamismo, que tomaria conta do Egito milênios mais
tarde. Não é engraçado? O poder do monoteísmo está na simplicidade – um só
Deus, um só universo. No princípio da Era Cristã, o Cristianismo foi perseguido
e considerado herege pelos romanos. Vale salientar que o catolicismo apostólico
romano aperfeiçoou a idolatria pagã e trouxe uma verdadeira variedade de
santos, que são os espíritos elevados, exemplos de apuro moral. A Humanidade
evoluiu.
A XVIII dinastia egípcia vinha com
reis belicosos, agressivos, impondo respeito por todos os domínios da grande
potência que era o Egito imperial. Naquela época, o faraó tinha um harém de
esposas, sendo uma mulher a esposa principal e a(s) outra(s) sendo a(s) esposa(s)
secundária(s), entendendo que a mortalidade infantil era alta e a estimativa de
vida era baixa. O harém não existia por luxúria, mas para assegurar que o
soberano colocasse no mundo um herdeiro do sexo masculino, visto que, na época,
era impensável existir regente do sexo feminino, com exceção de Hatshepsut, a
primeira feminista da História, uma mulher que se impôs à nação egípcia e
reinou como faraó, para isso até usando um cavanhaque postiço - os longos cavanhaques,
amarrados em trança, eram muito usados pelos regentes na época. Hatshepsut foi
uma grande liderança, alavancando obras faraônicas, ironicamente falando.
Pai de Aquenáton, Amenófis III, da XVIII dinastia, tinha
outro filho herdeiro, favorito para a sucessão, pois este era o mais velho,
porém filho de uma esposa secundária do harém. Aquenáton era filho da célebre
Tii, a esposa principal do harém real, uma mulher que fez de tudo para o próprio
filho assumir o trono. O meio irmão de Aquenáton até reinou por um tempo em
parceria com o pai, um costume para assegurar a tranquilidade na sucessão. Mas
o rapaz morreu cedo, deixando o trono livre para Aquenáton, que assumiu a
princípio com o nome de Amenófis IV – ninguém previu o que aconteceria. Em uma
revolução cultural, como na China comunista, o novo faraó muda de nome para
honrar o deus uno do disco solar, e muitos começaram a achar que o debutante
líder era louco.
Sensível, Aquenáton, cujo nome significava “A imagem viva
de Aton”, escrevia poesia em honra ao deus, e inclusive há historiadores que
veem semelhança entre um poema a Aton com um Salmo da Bíblia. Aquenáton
humilhou a classe sacerdotal e a destituiu dos plenos poderes. Templos
politeístas foram fechados ou adaptados à nova religião. O clero ficou à deriva,
sem ter uma função oficial. A ordem social entrou em crise. O faraó proibiu
também os sacrifícios humanos. Tudo isso repercutiu como uma bomba pelo Egito
inteiro. O novo líder também não era agressivo como o falecido pai, e o
exército passou a receber cada vez menos atenção do soberano. É fácil observar
a agressividade do Egito clássico, no design fálico dos obeliscos e na forma
pontiaguda das pirâmides, como espinhos. O faraó herege fez com que os
diplomatas egípcios não mais fossem respeitados, e o império começou a se abalar
com a política delicada do rei revolucionário. O caos social e o risco de
revoltas populares passaram a ser uma possibilidade. O Egito estava largado às
moscas.
A nação era desde cedo dividida entre Alto Egito – mais ao
sul do rio Nilo - e Baixo Egito - ao norte, na foz. Aquenáton ignorou isso tudo
e resolveu construir uma cidade bem no meio da extensão do rio, num lugar
deserto, batizando a cidade de Aquetáten, que significa “O Horizonte de Aton”,
mais tarde sendo chamada de Amarna pelos historiadores. Uma grande obra passou
a ser tocada, e a cidade planejada teve que transportar inúmeras pedras para a
construção. As vias eram amplas e o templo de Aton era a céu aberto, apenas com
paredes e colunas, em contraste com os sombrios templos fechados politeístas
egípcios. A cidade foi planejada arquitetonicamente e os custos do trabalho foram
enormes. Então o faraó convida egípcios que gostariam de viver na nova urbe. Só
que Aquenáton, em seus quase vinte anos de reinado, começou a ter que subornar
o povo para este permanecer na cidade. A nova religião começou a entrar em
discreto colapso, e não resistiu à morte do mentor. Até hoje não há consenso
sobre onde estaria a múmia do líder. Aquetáten (ou Amarna) foi desmantelada após
a morte de seu fundador e suas pedras foram utilizadas para novas obras. A
polis foi abandonada, voltando a ser o que fora: um ermo. Do pó ao pó.
Assim que morreu, Aquenáton teve sua imagem perseguida e
deletada de monumentos e esculturas. Seu nome e o de sua esposa Nefertiti foram riscados
de registros, com um Egito desejoso de esquecer reinado tão instável, trazendo
dificuldade aos arqueólogos para a obtenção de informações mais precisas sobre
o rei infame, que é pai do ultrafamoso Tutancâmon, cuja tumba foi descoberta nos
anos 20 e fez a imagem do jovem soberano ser muito difundida. O rei Tut, como é
chamado, morreu ainda menino, mas assinalou a volta dos sacerdotes ao poder e à
restauração completa do politeísmo egípcio. Tut era filho de Kya, uma esposa
secundária do harém de Aquenáton. A riqueza da tumba deslumbrou o mundo,
principalmente a máscara mortuária de ouro. Foi uma comoção no mundo da Arqueologia
– o mundo pôde reviver a áurea era dos faraós.
Bem, não podemos falar de Aquenáton sem mencionar a marcante
Nefertiti, a grande esposa real do harém do rei herege. De uma beleza icônica,
ela teve tanto poder que praticamente foi co-regente, sendo a principal apoiadora
da nova religião e do novo modo de pensar. Arqueólogos acreditam que há uma
possibilidade de sua múmia ter sido encontrada junto à múmia de Tii, mas a
certeza ainda não aterrisou sobre a questão.
Uma das mais importantes obras de arte da história da
humanidade é o famoso busto de Nefertiti, na ilustração desta postagem. A
harmonia dos traços é impressionante, num realismo muito claro. A musa aparece
com sua coroa, típica da XVIII dinastia, de cabeça raspada, pois os egípcios o
faziam para evitar piolhos, sendo que as mulheres usavam perucas. O sorriso da
dona é sutil. Seu pescoço é delicado como um caule de lírio. Sua pele é
bronzeada, fruto dos ensolarados templos atonistas. Seus lábios são sensuais.
Sua fronte é altiva. O mais engraçado é que o busto foi encontrado abandonado milênios
depois em uma escavação arqueológica nos arredores de Amarna, pois a cidade em si foi totalmente deletada pelos iconoclastas, e o busto sobreviveu exatamente por não ter estado no centro da cidade. O busto foi achado em um antigo estúdio, descoberto por arqueólogos alemães - não foi achado como a tumba
de Tut, a qual fora fortemente trancada e segura pelos sacerdotes na época, pois
Tut estava em um verdadeiro cofre gigante a salvo de saqueadores. O busto de
Nefertiti, que servia de modelo para transposição em pedra - uma técnica comum no Antigo Egito -, foi encontrado jogado à própria sorte, desprezado, ignorado. No abandono dos arredores de Amarna, ninguém queria o busto, pois este era um souvenir de uma
época que o Egito queria obliterar. O busto virou lixo, tranqueira. A verdade é
a filha do tempo. Hoje, o busto é de valor inestimável, impossível de ter um
preço em leilão. Hoje,
sequer podemos chegar muito perto dele, muito menos tocá-lo. Hoje, a peça é
motivo diplomático de disputa entre Egito e Alemanha, visto que a obra reside
no Museu de Berlim. Até hoje não se sabe o que aconteceu com o olho que falta
na imagem, provavelmente perdido pelas areias da cidade. A precisão do busto é
tal que, visto de lado, ele tem uma forma de perfeita seta, sendo o nariz a
ponta, com equilíbrio – o busto não cai para frente, nem para trás. Mas, apesar
da beleza, Nefertiti não era exatamente um anjinho – um certo registro em baixo
relevo mostra a esposa batendo em alguém com um bastão, provavelmente em alguém
que se recusara a seguir a nova religião: um herege punindo outro herege. Resta imaginar todas as obras de arte e registros que foram destruídos pela febre iconoclasta anti Aquenáton.
Não há registros da morte de Nefertiti, cuja origem
familiar também é um mistério – alguns historiadores acham que ela era filha de
um rei de Mitani, um reino vizinho. Ela simplesmente evanesce da História.
Muitos especiais de televisão foram feitos até hoje sobre a quase faraó, entre
eles o “Nefertiti Revelada”, sobre a tumba que poderia ser dela. Lembro-me de
um filme hollywoodiano dos anos 50 ou 60, de cujo título esqueci, numa película
que mostrava de forma extremamente sucinta o reinado de Aquenáton. O rei é
retratado como homem belo e Nefertiti aparece como sua grande conselheira. Tii
é retratada como uma Bette Davis, uma mulher realista e pés no chão, grande
apreciadora de cerveja, amplamente fabricada no Antigo Egito. O filme não
mostra a revolução atonista, mas apenas em uma cena pessoas em um templo a céu
aberto cantando “Como é belo nosso deus!”. Quem não sabe da História não
entende direito o filme.
Outro aspecto claro do reinado de Aquenáton foi a revolução
nas artes plásticas. Antes dele, o Egito tinha toda uma tradição estética de
perfeição, como os gregos antigos o tinham. Os deuses e soberanos egípcios eram
retratados com corpos perfeitos, atléticos, de magreza elegante, e as feições
da face eram suaves e harmônicas, num padrão de beleza que perdura pela Humanidade, visto que a busca pelo belo é universal e atemporal. Aquenáton
subverteu isso tudo e instaurou um inédito realismo: os artistas tinham que
retratar exatamente o que viam. A imagem do próprio faraó, por exemplo. Não se
sabe exatamente o porquê, se por uma síndrome, mas o faraó amaldiçoado tinha
pouca beleza, com quadris largos, muita gordura abdominal, corpo não atlético e
um rosto não formoso. O próprio busto de Nefertiti preocupa-se em reproduzir
fotograficamente o rosto da rainha, cujo corpo era retratado com gorduras
localizadas nas coxas e glúteos, algo impensável na arte egípcia tradicional.
Até Tii foi retratada sem idealizações, como uma mulher com rugas. Outro
aspecto inovador foi a retratação de cenas íntimas do convívio familiar do
faraó com a esposa e as filhas pequenas, algo impensável no paradigma do formalismo
politeísta egípcio. O casal não teve filhos homens. Em imagens, saíam mãos do
disco solar de Aton que abençoavam a família real, uma deificação como tinham
os Romanov na Rússia czarista. Aton também era retratado segurando o ank,
símbolo egípcio da vida, um elemento presente em toda a história do Egito Antigo.
Quando eu estava viajando por Nova York em fevereiro de 1998,
comprei na livraria Barnes & Noble um livro sobre Aquenáton. No
Metropolitan Museum of Art, na sua deslumbrante coleção egípcia, tive o
privilégio de ver peças correspondentes ao reinado herege. Quem sabe um dia vou
a Berlim ver “a bela que chegou”, tradução para o nome “Nefertiti”. Também gostaria
de visitar a ala egípcia do Louvre e do Museu Britânico, sem falar do Museu do
Cairo. Lembro-me, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, no início dos anos 90, de
um sarcófago egípcio. Há muitos anos atrás, em uma feira do livro em Capão da
Canoa, adquiri um romance chamado “Nefertiti, a Rainha do Nilo”, mas não lembro
do autor. No livro, Nefertiti se vê forçada a casar com Aquenáton mas, depois,
acaba amando o marido, que a chama de “radiosa”. Tii é posta como autoritária.
A decadência de Amarna também é retratada. E o harém no faraó não é mencionado,
pois a monogamia é muito forte nos códigos morais ocidentais. Falando em Egito,
lembro-me também de um seriado de TV chamado “Ísis”, no qual uma arqueóloga
encontra um colar da deusa que, ao ser usado, dá superpoderes ao usuário.
O impacto de Aquenáton sobre o Egito foi proporcional ao do
protestantismo sobre a Europa católica. Uma grande cisão aconteceu. Uma espécie
de guerra tomou silenciosa forma: a ordem vigente versus a nova ordem. Foi como
um abalo sísmico, como Henrique VIII da Inglaterra rompendo com o Vaticano; como
Elizabeth I, a filha protestante do rei, sendo quase condenada à morte por
heresia.
No superclipe “Remember the Time” (Lembre do Tempo) de
Michael Jackson o busto de Nefertiti é mostrado na introdução, visto que a
temática do vídeo é o Egito Antigo. A rainha é também sutilmente interpretada
pela linda modelo negra Iman no clipe, no qual é retratada a paixão que os
egípcios tinham por gatos, tendo os bichanos circulando por todos os cantos. O
Antigo Egito é também retratado com muita irreverência no seriado mexicano de
Chapolin por duas vezes. Em um episódio, há a múmia de Tut em um museu; em
outro, Chapolin entra em uma pirâmide cheia de mistérios.
Hollywood ainda está por fazer um filme que faça jus a todo
o reinado do faraó “insano”, com uma bela atriz para interpretar Nefertiti,
como Patricia Velásquez, do blockbuster “A Múmia”, película que se preocupa em
reproduzir o Egito Antigo em todo o esplendor místico deste império
inesquecível, um filme que trouxe licenças poéticas cinematográficas ficcionais,
é claro - é um filme de fantasia.
Permanece em questão entender porque Aquenáton fez tudo o
que fez. Alguns historiadores acreditam que ele tinha um complexo de rejeição,
por ter sido o segundo na linha de sucessão, estando sempre à sombra do meio
irmão favorito. Esse sentimento teria estimulado Aquenáton a romper com o
establishment tradicional, vingar-se e, com essa mágoa, ter decidido fazer uma
cisão com o Egito inteiro.
Muito bom o teu texto, Gonçalo. Só para acrescentar uma informação sobre o busto de Nefertite. Ele sobreviveu porque estava localizado nos arredores de Amarna. Numa oficina de escultura. Ele seria como que um modelo (reparem que é feito de gesso) para os escultores "transpô-lo" para a pedra, que era como se faziam as esculturas na antiguidade. Quando da destruição da cidade os iconoclastas não chegaram até os arredores de Amarna e, por esta razão, o busto sobreviveu. Quando os alemães o descobriram foi porque eles, como já se tinha escavado quase toda a área central, decidiram investir em escavações na sua periferia. Um achado e tanto. Quanto ao túmulo é uma obsessão de muito egiptólogos. Existem alguns que, há várias décadas, só se dedicam a isso. Imagine-se o que fazer se um dia acharem a múmia de Nefertite. Um grande abraço.
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