quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Gotham Kitty



            “Batman, o Retorno”, de 1992, foi feito por um Tim Burton que conquistara a confiança da Warner pelo filme anterior, "Batman", de 1989, que contava a história do início da influência de Batman sobre o submundo do crime de Gotham City. O filme, que marcou o fim dos anos 80, foi inovador em relação ao seriado de TV "Batman" dos anos 60 e trouxe o intenso prazer lúgubre do respeitado Burton, numa Gotham desordenada, cheia de prostitutas e criminosos de máfias organizadas, em um certo clima estilístico anos 40. O sucesso foi tanto que Burton obteve carta branca para fazer a sequência. Nesta, a cidade do cavaleiro das trevas está ainda mais sombria, tomada pelos flocos de neve, pouco antes do Natal na história.
Começa com a rejeição que o Pinguim, então pequeno infante, sofre por parte dos próprios pais milionários, que não aceitaram ter um filho animalesco e deformado. A criança é então abandonada pelos genitores em um cesto em um gelado córrego que leva aos esgotos da impessoal cidade gótica. Uma vibrante trilha entoa, pelo sempre competente compositor Danny Elfman, grande parceiro em muitos filmes de Tim e também autor do tema de “Os Simpsons”. O público pode sentir que aquele rechaço todo construiria no Pinguim uma revolta e uma raiva irredutíveis, num desejo de vingança do qual toda a sociedade de Gotham seria vítima décadas depois, mais precisamente 33 anos, no auspício da idade de Cristo quando morreu. O futuro vilão é então acolhido por pinguins no subterrâneo do zoo da cidade, um pouco nonsense, é claro, mas temos que dar a Burton uma licença poética durante o desenrolar da trama, em cujo início rondam pelo jornal de Gotham os rumores de que havia um homem pinguim morando nos esgotos da cidade.
            Os sets são ambiciosos, como uma reconstituição real de Gotham em estúdio, com ambientes como uma grande árvore de Natal em uma ampla praça, um capricho de um Burton sempre muito apegado à plasticidade de seus filmes, como nos ambientes loucos de “Os Fantasmas se Divertem”, sendo que o minucioso Tim é também expert em maquetes e stopmotion. No primeiro fim de semana de lançamento, “Batman, o Retorno” bateu recordes de bilheteria nos EUA, sendo simultaneamente lançado no Brasil. Era uma fria noite de inverno em Caxias do Sul, como no frio natalino do filme. Eu era um adolescente de 14 anos de idade e estava em um (hoje extinto) cinema de rua da cidade. Aquelas horas de projeção passaram como em um décimo de segundo. Voltei ao cinema para ver o filme por mais duas vezes. Pouco tempo depois, em Orlando, EUA, adquiri um pôster, um livro e um audiobook sobre o filme. Burton me seduziu por personagens cheias de motivações próprias, com suas paixões e dores, chocando-se umas contra as outras.
            Michael Keaton, Batman pela segunda vez, está ok, mas não melhor do que Christian Bale, se bem que este imita a voz rouca e discreta do Homem Morcego que Keaton trouxe. No primeiro filme, Michael ilustra bem os conflitos e sentimentos de um menino que vê os próprios pais serem assassinados pelo futuro Coringa na trama; no segundo filme, esse desejo de vingança está saciado e Bruce Wayne está agindo em prol do povo de Gotham, encontrando no caminho uma paixão avassaladora por uma personagem feminina da qual falarei nos próximos parágrafos. Vale lembrar que em “Batman, o Retorno” Wayne está amorosamente frustrado, tendo desatado com a fotojornalista Vicky Vale, feita por uma Kim Basinger belíssima no filme de 89.
            O grotesco Pinguim, quando criança, trabalhara como uma aberração exótica em um circo, fugindo deste e, anos mais tarde, formando a Gangue do Circo, que age no filme trazendo terror a Gotham. Danny deVito, desculpe-me, está muito caricato e mal dirigido, fazendo um Pinguim que busca se igualar ao excelente vilão vivido por Jack Nicholson na primeira película. E isso não é exclusividade dos filmes de Burton – os filmes de Batman posteriores, sob outras direções, também têm vilões que não dão certo na tela, como Hera Venenosa, Charada, Duas Caras e a insípida Mulher Gato de Anne Hathaway, atriz a qual funciona muito melhor em outros filmes, como “O Diabo Veste Prada”. DeVito brilha mais, por exemplo, em sua participação no seriado “Friends” como um stripper quase aposentado.
            Agora, finalmente, chegou a hora de falar de Michelle Pfeiffer, cujo nome soa como uma sexy chibatada e unhas afiadas. Ela está tão bem que não é exagero dizer que o filme a ela pertence. A tímida secretária pata choca Selina Kyle é uma mulher iludida, com um emprego que pouca realização a ela traz – é secretária do hipócrita Max Shrek, brilhantemente vivido por Christopher Walken, que faz o dono de um império comercial em Gotham e que tem como obsessão ser o dono da cidade, para isso estabelecendo uma aliança maligna com o Pinguim, que na trama emerge como um candidato a prefeito da cidade, em uma tacada de marketing arquitetada por Shrek, mas nunca tirando as suspeitas que Wayne tinha sobre a índole do Pinguim, o qual só estabeleceu um acordo com Shrek por chantagear este, tal a sordidez dos segredos da personagem de Walken. Inclusive, no início da película, Selina descobre um podre de Max, que planeja construir uma usina que não daria energia, mas a sugaria dos cidadãos. Max empurra Selina de uma alta janela, e a secretária é despertada por gatos de rua. Pronto, a catarse estava programada, e Michelle entendeu isso, como um vômito violento, incontrolável. Selina decide se revoltar contra o que a reprimia, e, com uma energia incrível, retalha um casaco de vinil preto, costurando o traje pós moderno de uma Mulher Gato bela e agressiva, como cortes suturados causados por vários ferimentos, como nas cicatrizes de Johnny Depp em “Edward Mãos de Tesoura”, também de Burton, atento a garras cortantes. Só tem um porém: onde Kyle arranjou o chicote?
O papel fora cobiçado por Sharon Stone, Sean Young e uma certa popstar. Outra Catwoman célebre é Julie Newmar, na televisão, com um corpo de deusa. Eartha Kitt gravou o jazz minimalista “My Discarded Men” (Meus homens descartados), no qual encarna sutilmente a personagem felina que também viveu na telinha, numa letra em que a diva debocha dos homens que se julgam sedutores de mulheres iludíveis. E, como todos sabem, a Mulher Gato de Hale Berry no filme homônimo foi um completo desastre, contracenando com Sharon - olha ela aí de novo - em um roteiro pobre e numa falta de proposta de enredo, de sinergia, em um figurino sofrível, constrangedor. Sem falar na Framboesa de Ouro que a oscarizada Hale arrebatou pelo filme – a estrela teve a bravura de ir à cerimônia de entrega do prêmio zombaria, levando consigo a estatueta da Academia, mostrando que os gatos caminham por altos e baixos, tanto por chãos quanto por telhados. É difícil superar Pfeiffer, ainda mais com a sutileza de Elfman com arranhões de violino que imitam miados de gato.
            É claro que Michelle está icônica de vinil, botas de cano alto, chicote e batom vermelho. Mas se tivéssemos que selecionar uma cena na qual Selina engole tudo e todos como uma supernova implacável, seria quando Max Shrek está reunido em seu escritório com Bruce Wayne, e aquele achando que Selina já estava morta e enterrada. Então Selina ressurge das trevas e entra no escritório, dúbia, lúdica e felina, nunca dando a entender se lembrava ou não que tinha sido vítima de uma tentativa de assassinato por causa de detalhes das falcatruas de Shrek. Naquele momento, enquanto o sangue de Max gela, Bruce Wayne fica embevecido, hipnotizado, encantado. Só que, depois, Bruce e Selina encontrar-se-iam como Batman e Mulher Gato, numa relação de amor e ódio. Só lá pelo final do filme é que eles se dão conta dos disfarces um do outro. E as identidades secretas caem em um baile de máscaras, na pertinência de um Burton atento a metáforas como, na entrada do baile, Selina Kyle, em um deslumbrante vestido negro, sendo antecedida por uma pessoa com uma máscara de caveira, pincelando a femme fatale de Pfeiffer, com as frases que o casal troca no filme: “Visco pode ser venenoso se comido. Um beijo pode ser tão venenoso, se é isso que você quer dizer”, pela tradição americana de troca de beijos sob um ramo de visco no Natal.
            A Mulher Gato até topa fazer um acordo com o Pinguim para desmoralizar e derrotar Batman, mas por trás do vinil existe uma Selina que, no fundo, não quer fazer mal à sociedade como um todo. Selina é motivada por sentimento de justiça, e não pelo ódio psicopatológico da personagem de Danny deVito. Durante o filme, Selina sofre várias tentativas de assassinato, até pelo aliado Pinguim, e sempre reemerge como a fênix, como um gato com várias vidas. Ao final, ela renasce, caçoando do batsinal nos céus negros de Gotham. E Bruce Wayne adota um gato preto de rua, perguntando-se se algum dia veria a desaparecida Selina novamente, a qual tem sentimentos dúbios, humanos. Ela não é uma heroína, mas só faz coisas más para quem, no julgamento dela, merece, como explodir a loja de Shrek ou bater em um estuprador.
A Mulher Gato é muito feminista, e quer ver as mulheres serem donas de si mesmas e nunca colocarem a faca e o queijo nas mãos dos homens. A personagem felina é independente, tem iniciativa e, como diz Selina ao final para Wayne, não conseguiria suportar a si mesma sendo apenas uma Barbie rosa pink no castelo cinderelesco do milionário, como uma princesa Grace de Mônaco, que abandonou uma carreira brilhante para se casar com um homem. É impensável para a Mulher Gato estar à sombra de alguém, como uma mulherzinha indefesa, uma Hello Kitty. O conto de fadas se dissipa e Selina perde a “virgindade”, não mais crendo em “felizes para sempre”. Esse contraste entre fantasia e realidade é traduzido pelas personagens e seus alteregos (des)mascarados. O Pinguim vê sua própria “máscara” cair quando, no momento em que o povo de Gotham acreditava que ele era bom e nobre, esse mesmo povo dá-se conta de sua vilania, rejeita-o e despreza-o, assim como os então falecidos pais do vilão o fizeram. Pinguim morre frustrado na sua sofrida tentativa de destruir o mundo. Destrói a si mesmo, abandonado pelos próprios comparsas da Gangue do Circo. E Max, ao tentar matar Selina pela segunda vez, é assassinado pela gata.
            Mulher Gato é sutilmente citada no filme de Batman posterior, dirigido por Joel Schumacker, quando a personagem de Nicole Kidman fala em chicote. Em um momento da película “Hairspray”, a personagem de Michelle está com um gato no colo. Em “Batman, o Retorno”, no início do qual o Pinguim criança mata um gato, a banda Siouxie and the Banshees canta a canção tema “Face to Face”, ou seja, face a face, no momento do baile de máscaras, em um fonograma no qual a vocalista imita o ronronar e miados de gato. O sensível Burton é um grande fã da banda, que tem tudo a ver com a pureza do clima dark da imaginação do diretor, como um gato que enxerga no escuro. “Quem é você? Quem sou eu?”, indaga a letra, quando Bruce e Selina olham para dentro um do outro.
            O título do filme é intertextual: significa o retorno do herói a Gotham e às telas, como um homem que é Bruce e Batman, metades de um todo.
            Michelle até se cortou e sangrou no queixo em uma aula de treino do chicote, e disse que se sentia incomodada com o justo espartilho, sem conseguir respirar direito.
            Na ilustração desta postagem, a Mulher Gato na vitrine da loja de Shrek, cuja logomarca é logo um gato parecido com Félix, quando a felina arranha o vidro com suas afiadas garras, num ruído de arrepiar os ossos, pronta para aprontar travessuras, como uma criança fantasiada no Halloween. Apesar de destruir o estabelecimento, a gata poupa os guardas vigilantes, em um filme que não é exatamente para crianças, pois lembro-me muito bem de um pai e filho, de cerca de 7 anos de idade, indo embora do cinema no meio do filme, com o menino pouco satisfeito com este.
            Por fim, o termo “kitty” no título desta postagem pode ser interpretado por algumas pessoas como “kitsch”, ou seja, cafona. Na verdade é um trocadilho que quer dizer “A Gatinha de Gotham City”, como Bastet, a deusa egípcia com cabeça de gato.

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