“Batman, o Retorno”, de 1992, foi
feito por um Tim Burton que conquistara a confiança da Warner pelo filme
anterior, "Batman", de 1989, que contava a história do início da influência de Batman
sobre o submundo do crime de Gotham City. O filme, que marcou o fim dos anos 80,
foi inovador em relação ao seriado de TV "Batman" dos anos 60 e trouxe o
intenso prazer lúgubre do respeitado Burton, numa Gotham desordenada, cheia de
prostitutas e criminosos de máfias organizadas, em um certo clima estilístico
anos 40. O sucesso foi tanto que Burton obteve carta branca para fazer a
sequência. Nesta, a cidade do cavaleiro das trevas está ainda mais sombria,
tomada pelos flocos de neve, pouco antes do Natal na história.
Começa com a rejeição que o Pinguim, então pequeno infante,
sofre por parte dos próprios pais milionários, que não aceitaram ter um filho
animalesco e deformado. A criança é então abandonada pelos genitores em um
cesto em um gelado córrego que leva aos esgotos da impessoal cidade gótica. Uma
vibrante trilha entoa, pelo sempre competente compositor Danny Elfman, grande
parceiro em muitos filmes de Tim e também autor do tema de “Os Simpsons”. O
público pode sentir que aquele rechaço todo construiria no Pinguim uma revolta
e uma raiva irredutíveis, num desejo de vingança do qual toda a sociedade de
Gotham seria vítima décadas depois, mais precisamente 33 anos, no auspício da
idade de Cristo quando morreu. O futuro vilão é então acolhido por pinguins no
subterrâneo do zoo da cidade, um pouco nonsense, é claro, mas temos que dar a
Burton uma licença poética durante o desenrolar da trama, em cujo início rondam
pelo jornal de Gotham os rumores de que havia um homem pinguim morando nos
esgotos da cidade.
Os sets são ambiciosos, como uma
reconstituição real de Gotham em estúdio, com ambientes como uma grande árvore
de Natal em uma ampla praça, um capricho de um Burton sempre muito apegado à
plasticidade de seus filmes, como nos ambientes loucos de “Os Fantasmas se
Divertem”, sendo que o minucioso Tim é também expert em maquetes e stopmotion.
No primeiro fim de semana de lançamento, “Batman, o Retorno” bateu recordes de
bilheteria nos EUA, sendo simultaneamente lançado no Brasil. Era uma fria noite
de inverno em Caxias do Sul, como no frio natalino do filme. Eu era um
adolescente de 14 anos de idade e estava em um (hoje extinto) cinema de rua da
cidade. Aquelas horas de projeção passaram como em um décimo de segundo. Voltei
ao cinema para ver o filme por mais duas vezes. Pouco tempo
depois, em Orlando, EUA, adquiri um pôster, um livro e um audiobook sobre o filme.
Burton me seduziu por personagens cheias de motivações próprias, com suas
paixões e dores, chocando-se umas contra as outras.
Michael Keaton, Batman pela segunda
vez, está ok, mas não melhor do que Christian Bale, se bem que este imita a voz
rouca e discreta do Homem Morcego que Keaton trouxe. No primeiro filme, Michael
ilustra bem os conflitos e sentimentos de um menino que vê os próprios pais
serem assassinados pelo futuro Coringa na trama; no segundo filme, esse desejo
de vingança está saciado e Bruce Wayne está agindo em prol do povo de Gotham,
encontrando no caminho uma paixão avassaladora por uma personagem feminina da
qual falarei nos próximos parágrafos. Vale lembrar que em “Batman, o Retorno”
Wayne está amorosamente frustrado, tendo desatado com a fotojornalista Vicky
Vale, feita por uma Kim Basinger belíssima no filme de 89.
O grotesco Pinguim, quando criança,
trabalhara como uma aberração exótica em um circo, fugindo deste e, anos mais
tarde, formando a Gangue do Circo, que age no filme trazendo terror a Gotham. Danny
deVito, desculpe-me, está muito caricato e mal dirigido, fazendo um Pinguim que
busca se igualar ao excelente vilão vivido por Jack Nicholson na primeira
película. E isso não é exclusividade dos filmes de Burton – os filmes de Batman
posteriores, sob outras direções, também têm vilões que não dão certo na tela,
como Hera Venenosa, Charada, Duas Caras e a insípida Mulher Gato de Anne
Hathaway, atriz a qual funciona muito melhor em outros filmes, como “O Diabo
Veste Prada”. DeVito brilha mais, por exemplo, em sua participação no seriado “Friends”
como um stripper quase aposentado.
Agora, finalmente, chegou a hora de
falar de Michelle Pfeiffer, cujo nome soa como uma sexy chibatada e unhas
afiadas. Ela está tão bem que não é exagero dizer que o filme a ela pertence. A
tímida secretária pata choca Selina Kyle é uma mulher iludida, com um
emprego que pouca realização a ela traz – é secretária do hipócrita Max
Shrek, brilhantemente vivido por Christopher Walken, que faz o dono de um
império comercial em Gotham e que tem como obsessão ser o dono da cidade, para
isso estabelecendo uma aliança maligna com o Pinguim, que na trama emerge como
um candidato a prefeito da cidade, em uma tacada de marketing arquitetada por
Shrek, mas nunca tirando as suspeitas que Wayne tinha sobre a índole do Pinguim,
o qual só estabeleceu um acordo com Shrek por chantagear este, tal a sordidez
dos segredos da personagem de Walken. Inclusive, no início da película, Selina
descobre um podre de Max, que planeja construir uma usina que não daria
energia, mas a sugaria dos cidadãos. Max empurra Selina de uma alta janela, e a
secretária é despertada por gatos de rua. Pronto, a catarse estava programada,
e Michelle entendeu isso, como um vômito violento, incontrolável. Selina decide
se revoltar contra o que a reprimia, e, com uma energia incrível, retalha um
casaco de vinil preto, costurando o traje pós moderno de uma Mulher Gato bela e
agressiva, como cortes suturados causados por vários ferimentos, como nas
cicatrizes de Johnny Depp em “Edward Mãos de Tesoura”, também de Burton, atento
a garras cortantes. Só tem um porém: onde Kyle arranjou o chicote?
O papel fora cobiçado por Sharon Stone, Sean Young e uma
certa popstar. Outra Catwoman célebre é Julie Newmar, na televisão, com um
corpo de deusa. Eartha Kitt gravou o jazz minimalista “My Discarded Men” (Meus
homens descartados), no qual encarna sutilmente a personagem felina que também
viveu na telinha, numa letra em que a diva debocha dos homens que se julgam
sedutores de mulheres iludíveis. E, como todos sabem, a Mulher Gato de Hale
Berry no filme homônimo foi um completo desastre, contracenando com Sharon - olha
ela aí de novo - em um roteiro pobre e numa falta de proposta de enredo, de
sinergia, em um figurino sofrível, constrangedor. Sem falar na Framboesa de
Ouro que a oscarizada Hale arrebatou pelo filme – a estrela teve a bravura de
ir à cerimônia de entrega do prêmio zombaria, levando consigo a estatueta da
Academia, mostrando que os gatos caminham por altos e baixos, tanto por chãos
quanto por telhados. É difícil superar Pfeiffer, ainda mais com a sutileza de
Elfman com arranhões de violino que imitam miados de gato.
É claro que Michelle está icônica de
vinil, botas de cano alto, chicote e batom vermelho. Mas se tivéssemos que selecionar
uma cena na qual Selina engole tudo e todos como uma supernova implacável,
seria quando Max Shrek está reunido em seu escritório com Bruce Wayne, e aquele
achando que Selina já estava morta e enterrada. Então Selina ressurge das
trevas e entra no escritório, dúbia, lúdica e felina, nunca dando a entender se
lembrava ou não que tinha sido vítima de uma tentativa de assassinato por causa
de detalhes das falcatruas de Shrek. Naquele momento, enquanto o sangue de Max
gela, Bruce Wayne fica embevecido, hipnotizado, encantado. Só que, depois,
Bruce e Selina encontrar-se-iam como Batman e Mulher Gato, numa relação de amor
e ódio. Só lá pelo final do filme é que eles se dão conta dos disfarces um do
outro. E as identidades secretas caem em um baile de máscaras, na pertinência de
um Burton atento a metáforas como, na entrada do baile, Selina Kyle, em um
deslumbrante vestido negro, sendo antecedida por uma pessoa com uma máscara de
caveira, pincelando a femme fatale de Pfeiffer, com as frases que o casal troca
no filme: “Visco pode ser venenoso se comido. Um beijo pode ser tão venenoso,
se é isso que você quer dizer”, pela tradição americana de troca de beijos sob
um ramo de visco no Natal.
A Mulher Gato até topa fazer um
acordo com o Pinguim para desmoralizar e derrotar Batman, mas por trás do vinil
existe uma Selina que, no fundo, não quer fazer mal à sociedade como um todo.
Selina é motivada por sentimento de justiça, e não pelo ódio psicopatológico da
personagem de Danny deVito. Durante o filme, Selina sofre várias tentativas de
assassinato, até pelo aliado Pinguim, e sempre reemerge como a fênix, como um
gato com várias vidas. Ao final, ela renasce, caçoando do batsinal nos céus
negros de Gotham. E Bruce Wayne adota um gato preto de rua, perguntando-se se
algum dia veria a desaparecida Selina novamente, a qual tem sentimentos dúbios,
humanos. Ela não é uma heroína, mas só faz coisas más para quem, no julgamento
dela, merece, como explodir a loja de Shrek ou bater em um estuprador.
A Mulher Gato é muito feminista, e quer ver as mulheres
serem donas de si mesmas e nunca colocarem a faca e o queijo nas mãos dos
homens. A personagem felina é independente, tem iniciativa e, como diz Selina
ao final para Wayne, não conseguiria suportar a si mesma sendo apenas uma Barbie
rosa pink no castelo cinderelesco do milionário, como uma princesa Grace de
Mônaco, que abandonou uma carreira brilhante para se casar com um homem. É
impensável para a Mulher Gato estar à sombra de alguém, como uma mulherzinha
indefesa, uma Hello Kitty. O conto de fadas se dissipa e Selina perde a
“virgindade”, não mais crendo em “felizes para sempre”. Esse contraste entre
fantasia e realidade é traduzido pelas personagens e seus alteregos (des)mascarados.
O Pinguim vê sua própria “máscara” cair quando, no momento em que o povo de
Gotham acreditava que ele era bom e nobre, esse mesmo povo dá-se conta de sua
vilania, rejeita-o e despreza-o, assim como os então falecidos pais do vilão o
fizeram. Pinguim morre frustrado na sua sofrida tentativa de destruir o mundo.
Destrói a si mesmo, abandonado pelos próprios comparsas da Gangue do Circo. E
Max, ao tentar matar Selina pela segunda vez, é assassinado pela gata.
Mulher Gato é sutilmente citada no filme
de Batman posterior, dirigido por Joel Schumacker, quando a personagem de
Nicole Kidman fala em
chicote. Em um momento da película “Hairspray”, a personagem
de Michelle está com um gato no colo. Em “Batman, o Retorno”, no início do qual
o Pinguim criança mata um gato, a banda Siouxie and the Banshees canta a canção
tema “Face to Face”, ou seja, face a face, no momento do baile de máscaras, em
um fonograma no qual a vocalista imita o ronronar e miados de gato. O sensível Burton
é um grande fã da banda, que tem tudo a ver com a pureza do clima dark da
imaginação do diretor, como um gato que enxerga no escuro. “Quem é você? Quem
sou eu?”, indaga a letra, quando Bruce e Selina olham para dentro um do outro.
O título do filme é intertextual:
significa o retorno do herói a Gotham e às telas, como um homem que é Bruce e
Batman, metades de um todo.
Michelle até se cortou e sangrou no
queixo em uma aula de treino do chicote, e disse que se sentia incomodada com o
justo espartilho, sem conseguir respirar direito.
Na ilustração desta postagem, a
Mulher Gato na vitrine da loja de Shrek, cuja logomarca é logo um gato parecido
com Félix, quando a felina arranha o vidro com suas afiadas garras, num ruído
de arrepiar os ossos, pronta para aprontar travessuras, como uma criança
fantasiada no Halloween. Apesar de destruir o estabelecimento, a gata poupa os
guardas vigilantes, em um filme que não é exatamente para crianças, pois lembro-me
muito bem de um pai e filho, de cerca de 7 anos de idade, indo embora do cinema
no meio do filme, com o menino pouco satisfeito com este.
Por fim, o termo “kitty” no título
desta postagem pode ser interpretado por algumas pessoas como “kitsch”, ou
seja, cafona. Na verdade é um trocadilho que quer dizer “A Gatinha de Gotham
City”, como Bastet, a deusa egípcia com cabeça de gato.
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