quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A Chave do Humor



            O seriado Chaves é sucesso invencível de audiência em 30 décadas de exibição pelo Sistema Brasileiro de Televisão – SBT. O Brasil tem verdadeira paixão pelo universo concebido e protagonizado pelo genial Roberto Gómez Bolaños, mais conhecido como Chespirito, o qual começou a brilhar nos roteiros que passou a escrever não só para Chaves, mas também para o Chapolin Colorado e o doutor Chapatin, entre outros. Falecido recentemente, Chespirito, cujo nome significa “Pequeno Shakespeare”, deixou saudades dos áureos tempos em que trabalhou na televisão mexicana, principalmente nos anos 70. Com uma criatividade inesgotável e um humor muito puro e inocente, seus personagens ganharam a simpatia não só do público infantil, mas de crianças que cresceram e não deixaram de amar Chaves e companhia limitada – eu sou um desses que seguem vendo e revendo inúmeras vezes os episódios, amplamente reprisados não só pelo SBT como também por outros canais, de TV por assinatura. É engraçado: nunca me canso de revisitar os programas. Existe inclusive o desenho animado do Chaves, concebido por volta dos anos 2000, mas com histórias requentadas, baseadas nos seriados dos anos 70 – faz falta a redação fértil de Chespirito.
            Há poucos anos o apresentador Ratinho, do SBT, foi a Cancun entrevistar Bolaños na casa deste. Casado com a atriz Florinda Meza, que é estrela dos seriados, Roberto ouviu a pergunta do entrevistador:
            - Seu Roberto, você tem idéia de como você é importante no Brasil?
            Eu estava certa vez assistindo na TV, sem lembrar do canal, um casamento cuja temática era Chaves. Os noivos e convidados estavam trajados a modelo dos personagens da vila do menino pobre do “Chavo Del Ocho”, que significa “O Menino do Oito”, em alusão ao número do canal mexicano que exibia o seriado. Em festas a fantasia, Chaves e sua trupe são costumeiros nas fantasias – estão entranhados no imaginário, objetos de carinho do público, não sendo exagero dizer que Chaves e Chapolin são parte do folclore latino americano, sendo identidade coletiva.
            Chapolin é um anti herói. Ele não é perfeito nem bonitão como o Super Homem. É magrela. Seu traje remete a uma barata. Seria isso um complexo de inferioridade dos latino americanos? Sua arma é uma marreta biônica; suas antenas detectam a presença do inimigo; seu brasão no peito é um coração com as iniciais “CH”; ele tem pílulas de felanimina para diminuir de tamanho e passar despercebido, ele é evocado cada vez que alguém precisa de ajuda e diz as palavras “Oh, e agora quem poderá me defender?” ou “Oh, e agora quem poderá me ajudar?”. E Chapolin surge do nada e diz um paladino “Eu!”, seguido de “Não contavam com minha astúcia!”. Os chavões são amplamente ditos, como “Suspeitei desde o princípio!”, “Aproveitam-se de minha nobreza”, “Calma, calma, não criemos pânico!” e o clássico “Sigam-me os bons!”, repetido pelo próprio Chespirito quando este abriu sua conta no Twitter. Chapolin é muito humano, tem medos e receios, é sempre muito bem intencionado mas é bem atrapalhado, tropeçando, caindo, machucando-se e cometendo erros, nunca tendo a imagem idealizada de um poderoso deus infalível, sendo o Polegar Vermelho um personagem com suas vulnerabilidades. Em uma metalinguística, o Chapolin já participou de episódio no qual entrou na vila do Chaves e encontra-se com este; em outro episódio, Chaves e sua trupe fazem uma peça teatral sobre Chapolin. Chaves é grande fã do anti herói, e coleciona os gibis do Chapolin. Vale lembrar que Chespirito era muito empreendedor, e circulavam pelo México as revistinhas em quadrinhos do Chaves e as do Chapolin, promovidas nos próprios seriados. Chespirito tinha uma visão de marketing muito apurada, e entendia o conceito de sinergia mercadológica. Um homem excepcional e marcante, que trabalhava muito. Um verdadeiro profissional de showbusiness, nunca dando ponto sem nó.
            A direção de arte dos seriados era muito bem executada, preocupada em trazer o telespectador ao universo das tramas, como em uma cidade do Velho Oeste, uma cantina de piratas, uma pirâmide do Egito, um cemitério etc. Os efeitos especiais faziam o que podia ser feito com a tecnologia da época, com cromakey muito evidente e tosco em comparação aos recursos do século XXI. Mas essa carência tecnológica torna-se um charme retrô, e o público de hoje não culpa as limitações tecnológicas do México dos anos 70.
            Chaves vive em uma humilde vila, em uma vizinhança muito sui generis. O órfão esfomeado de oito anos de idade refugia-se em um barril, e é um sonhador, como mostra a ilustração desta postagem. Chaves tem bom coração mas é muito, muito clumsy, do inglês, “desastrado”. Mas quando comete cômicos erros, o público perdoa. Chaves mostra a realidade latino americana dos menores abandonados. A Dona Florinda (Florinda Meza) é uma dona de casa viúva e está sempre com bobs no cabelo, sendo poucas vezes no seriado vista sem os rolos. Ela adula ao máximo o seu filho único Kiko (Carlos Vilagrán), e é absolutamente apaixonada pelo narcisista Professor Girafalez (Rubem Aguirre), o tutor de dois metros de altura que dá aulas para outras crianças além de Kiko. A superprotetora Florinda é faca na bota – ai de quem tocar em um só fio de cabelo do filho. Kiko, suscetível a irritação com os outros, é mimado pela mãe e é engraçada a falta de inteligência do moleque, sendo célebres as caras e bocas que Vilagrán empresta ao personagem. Dona Florinda acha que pertence a uma classe social elevada em relação aos vizinhos da vila, e tem especial asco pelo Seu Madruga (Ramon Valdez), batendo nele seja ou não este ter sido quem batera em Kiko. Seu Madruga também é viúvo e cria sua filha Chiquinha (Maria Antonieta de las Nieves). Madruga está sempre devendo 14 meses de aluguel ao Seu Barriga (Edgar Vivar), que é o dono gordinho da vila e é pai do guloso e dentuço Nhonho, interpretado pelo mesmo ator. Chiquinha é sapeca, e às vezes mente e prega peças – uma moleca. Está sempre banguela, usa óculos, é sardenta, é bem baixinha, suas maria chiquinhas nunca estão alinhadas e seu casaco está vestido de qualquer modo. Ela não gosta de se arrumar muito e fica louca de ciúmes quando o Chaves fica olhando para a bonita Pati, uma menina que chega na vila para morar com sua tia bonita Glória, a qual joga seu charme para o Seu Madruga e deixa este apaixonado e em êxtase. Também tem a Bruxa do 71, dona Clotilde (Angelines Fernandez), que mora no apartamento do número e é apaixonadíssima pelo Seu Madruga, o qual não corresponde. Clotilde morre de ciúmes de Glória e é uma solteirona que, por sua aparência, é chamada de bruxa pelas crianças da vila. Um dos melhores episódios de toda a história de Chaves é quando as crianças entram na casa da “bruxa” e começam a ver coisas em uma ótima cenografia, como uma vassoura voadora, um caldeirão e a própria Clotilde vestida de preto fazendo uma poção para enfeitiçar o Seu Madruga. Mas era tudo imaginação da meninada!
O Doutor Chapatin é um médico bem idoso que está sempre com gabardine e cachecol. Um dos melhores episódios é no qual um louco fugiu do manicômio e Chapatin e outros personagens envolvem-se em muitos equívocos às voltas com o maluco. Aliás, os desentendimentos são marca registrada de Chespirito, que tece os conflitos resultantes de julgamentos precipitados. Fica hilário então o convívio em meio a tanta desordem e caos. Roberto tira o humor das dificuldades, fazendo do limão uma limonada. Por falar nisso, um dos melhores episódios de Chaves é quando este e Kiko abrem cada um uma banca de refrescos, competindo pela preferência da Chiquinha. Chespirito é um “moleque” nas suas concepções, pois pensa no público infantil. As tramas são simples e tudo é mostrado de forma muito clara.
O elenco perdurou unido por vários anos, mas aí ocorreram abalos que terminaram com a era clássica de Chespirito na TV mexicana. No princípio, Carlos Vilagrán era casado com Florinda Meza, mas ela e Chespirito apaixonam-se e casam, e Carlos, muito ressentido, deixa o programa, seguido de Ramon, que decidiu dar apoio ao colega Vilagrán, o qual fez episódios de seriados nos quais Kiko era o protagonista, mas sem o sucesso do Chaves do Oito, como tentou Matt Le Blanc, o Joey do seriado Friends, tentando tocar um seriado exclusivo do personagem após o término do muito bem sucedido programa de TV americano. Chespirito, enfrentando um desfalque grande de atores, até conseguiu driblar o percalço e tocou vários episódios com o elenco reduzido. Ramon morreu de câncer, pois fumava até em cena. Maria Antonieta desentende-se e entra com um recurso na Justiça proibindo que os trejeitos do próprio personagem fossem imitados – inclusive, no desenho animado, Chiquinha é substituída por Popis, a prima de Kiko interpretada por Florinda na TV. Vilagrán arrastou por muitos anos o ressentimento e, enquanto Roberto era vivo, chamava este de megalomaníaco. O grupo acaba se desmantelando e a Era Chespirito chega ao fim. Até hoje membros do elenco original buscam dar uma sobrevida aos personagens. Carlos e de las Nieves fizeram turnês, cada um com seu circo. E Edgar também viaja promovendo o Seu Barriga, passando até por Caxias do Sul. Meza, viúva de Chespirito, tornou-se dona de casa e nunca mais atuou.
O aspecto comédia pastelão predomina nos seriados, com direito a tudo voando: tortas, bolos, água, terra, lama, tinta, água com sabão, macarrão, lixo etc. Pobres do atores, que tinham que aguentar aquilo tudo! Ossos do ofício, em um elenco muito competente e amado pelo público, sob a liderança de um Roberto que dava liberdade para os atores desenvolverem e darem identidade aos personagens. Outro aspecto são as dublagens, com um time de intérpretes cujas vozes estão estampadas na mente do público brasileiro. E até foi lançado no Brasil um disco com músicas baseadas nos personagens de Chaves, sem falar nas próprias canções que vinham com os episódios cantadas em espanhol e depois dubladas. Falando nisso, outro ótimo episódio é no qual as crianças da vila brincam de banda de música, produzindo nada mais do que um barulho infernal! E outro aspecto era a pancadaria, com direito a topadas, socos, chutes, pauladas, marteladas, boladas, beliscões, tapas, tijoladas, sapatadas, pedradas e muito mais, mas de uma forma cômica, sem incitar violência, como o clássico trio hollywoodiano Os Três Patetas. Chespirito faz da dor um motivo de riso. Não sofra; faça piada.
A morte do criador de Chaves causou comoção no México e no mundo onde os seriados eram (e são) exibidos. Seu velório lotou um estádio. Será sempre lembrado como uma mente criativa, cativando o público, como na riqueza de personagens de um Chico Anysio. Nos últimos anos de vida, Chespirito sofreu de problemas graves de saúde. No final da entrevista que deu a Ratinho, Bolaños ganhou de presente um boneco do Chaves e abraçou o brinquedo com muita alegria e carinho. Amor – esse é o ingrediente de Roberto. Ele amou todo o universo que produziu. É o coração no peito do Chapolin: nós latino americanos não somos ricos como outros países, somos pobres como Chaves, mas temos amor e calor em nossos corações. Do mesmo modo como Dona Florinda e Girafalez são apaixonados, um amor que fazia com que os pombinhos simplesmente olvidassem das vicissitudes do mundo. Chespirito faz com que nos esqueçamos da dureza da vida. Amamos Bolaños. Descanse em paz, nosso herói! Sempre contaremos com sua astúcia!

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