Tenho muita admiração por essas
pessoas que vêm do nada e conquistam o mundo. Louise Ciccone, a mulher que as
pessoas conhecem como Madonna, veio do nada e tinha tudo para se tornar uma
simples dona de casa: nasceu em uma cidadezinha satélite de Detroit, esta sendo
um lugar com uma cena cultural nula; nasceu filha de um engenheiro que não conseguia
enxergar que a sua filha queria ser uma artista; foi para Nova York “sem lenço
nem documento”, sem conhecer pessoas influentes que poderiam ajudá-la; ralou
muito, por anos, como pessoa comum e anônima, sendo até faxineira. Não me
admira o fato de Louise fazer questão de mostrar para todos aonde chegou e onde
se mantém.
O empreendedorismo dos Ciccone é
genético: o pai de Louise, Silvio Ciccone, é dono de uma vinícola, a Ciccone Vineyard
& Winery. Aspectos públicos mostram a relação de Louise com o rígido pai,
um relacionamento meio complicado, apesar dos dois muito provavelmente se
amarem. Louise disse que seu pai a trata normalmente, e ele nunca diz “Vi um
dos teus vídeos na TV”. Louise perdeu a mãe muito cedo, aos cinco anos de
idade. Primogênita, a pequena Louise acostumou-se a ser a “esposa” da casa,
ajudando a criar os irmãos mais novos, algo que moldou na criança uma séria
postura de responsabilidade e iniciativa. Quando ainda era adolescente, Louise,
em um evento da própria escola, subiu num palco dançando só de biquíni, com flores
desenhadas pelo seu corpo, influenciada pela moda “flower power” da época. Silvio,
descontente, não percebeu que um artista quer sempre provocar, e impôs à filha
um castigo que durou o verão inteiro. Que dureza, hein? No documentário sobre a
turnê “Blond Ambition”, no início dos anos 90, Silvio aparece criticando a
filha, dizendo que “algumas partes eram desnecessárias” no show, no qual há a
famosa simulação de masturbação em “Like a Virgin”; no mesmo filme, em um show
em Detroit, Louise convida o pai, que estava aniversariante, para subir ao
palco para que ela lhe cantasse “Parabéns a Você”, o que a deixou emocionada;
ainda no documentário, quando Louise convida o pai a ver o show, ele pergunta a
ela se apareceria nua, ela diz um veemente “não” e ele diz “Ok” – um pai
conhece seus filhos. Poucos anos depois, Louise escandalizaria o mundo peladonna
com “Sex”, que nada mais é do que um livro de nu artístico, inclusive de muito
bom gosto, no qual não há “sexo” de fato, mas só insinuações, sendo que os nus
femininos não eram agressivos, só mostrando vulvas, e o único nu frontal masculino
era de pênis flácido – o povo julgou “Sex” sequer folheando-o, achando que se tratava
de um descarado material pornô barato, com Louise em situações absolutamente
degradantes e vulgares. Um jornalista sacana chegou a perguntar a Louise se
“Sex” tinha como objetivo excitar Silvio, e Louise disse que “Nem a pau!”. Em
um documentário sobre uma turnê posterior, Silvio diz que sua filha estava
crescendo no palco, e que o show em questão era o mais positivo em toda a sua
carreira, diferente do estilo “circo gay” de turnês como “The Girlie Show”, na
qual há uma baita suruba - de mentirinha, é claro. Louise é assim: reza mas não
diz o santo, equilibrando-se em uma linha tênue, como só essa aranha sabe tecer.
Apesar dos defeitos que todo ser humano tem, Louise é uma grande estrela,
estabelecendo-se como implacável ponto de referência a quem quiser seguir
carreira no showbusiness. O ícone Ciccone.
A relação com o pai é nítida e se
entremeia com outros aspectos da mente da cantora. Durante um momento de auge da
carreira de Louise, veio um tapa na cara da sociedade patriarcal: em “Papa
Don’t Preach”, Louise interpreta uma adolescente que engravidou e que implora
para o pai não lhe dar sermão, mas lhe aconselhar. Na letra, a personagem dela decide
que não abortará e que terá o filho, fazendo uso de uma prerrogativa que pisa
nos calos da Igreja Católica, a qual condena o aborto – sei disso, pois estudei
em escola católica. Polêmica na certa, mas por quê, se a personagem opta por
não abortar? O que fedeu nessa questão de “Papa” foi a liberdade da mulher: uma
fêmea sem estar subordinada a um macho é mal vista. E existe mulher mais
independente do que Louise? Independência ou morte! Outra canção é bem
autobiográfica: “Oh Father” tem uma letra que diz como uma filha sofreu com a
rigidez do pai, em um clipe que mostra uma menininha brincando com as roupas e
joias da falecida mãe, com um pai que, ao ver aquilo, pune severamente a filha,
em um take inesquecível de um colar de pérolas sendo desmantelado em pérolas
soltas, como os sentimentos despedaçados da menina. “Não foi tua intenção ser
cruel. Alguém te machucou também” diz ela na canção, que, em outro pedaço, diz
“Você nunca quis me machucar. Por que estou me afastando de você?” e também
“Sinto-me bem, como nunca me senti antes”. No clipe de “Deeper and Deeper” uma
figura paterna tolhe os sonhos de Louise, para a qual tudo é muito instintivo,
inconsciente. No clipe de “Bad Girl”, uma figura masculina mais velha é um anjo
da guarda. Como Louise tem a atitude corajosa de não censurar a si mesma, a
expressividade é inevitável. Louise tem duas bolas entre as pernas, e é uma
americana, ou seja, entende a importância da liberdade de pensamento. Brava!
Outro aspecto da vida de LC é o áspero
relacionamento com a imprensa. Parece que uma não quer falar muito bem da outra,
apesar de uma precisar da outra. Há a infame entrevista cedida a Marília
Gabriela – a entrevistadora não se sentiu muito respeitada nem muito
confortável ao entrevistar Louise. Gabi disse ter se deparado com uma pessoa
com muita esperteza mas pouca inteligência, nunca a star aproveitando as perguntas para desenvolver respostas
capciosas. Outro brasileiro que entrevistou a cantora foi Zeca Camargo, na
época do lançamento do desastroso e opaco filme “Sobrou para Você” – durante
toda a entrevista, uma assessora de Louise, atrás desta, seguindo instruções
prévias da artista, fazia mímicas a Zeca para este não perguntar sobre o bebê,
visto que Louise estava grávida, esperando o segundo filho. Geniosa a diva.
Como os jornalistas são pessoas inteligentes, nada mais natural do que não irem
muito com a cara de Louise. Uma pena. Em outro episódio, jornalistas ficaram
esperando por horas numa ante sala para entrevistar a mulher, sendo que um
destes, que narrou a situação, disse ironicamente:
- Se Nossa Senhora Mãe de Deus demorou tanto para aparecer
em Fátima e Lourdes, Madonna também tem que se dar ao luxo de ser esperada.
Você percebe que vem a César o que é de César? Não tenha
pena, pois quem tem pena é pato, que não entrou para a seleção. Louise merece ser
tratada assim pela imprensa. É uma coroa de espinhos.
A trajetória de Louise sofreu uma
reviravolta positiva com o álbum “Ray of Light”, premiado com um Grammy, com
canções muito originais, em um trabalho inusitado, que entrou em contraste com
o que as pessoas esperavam inconscientemente de L. Ciccone. Na mesma época, a
mulher tem uma filha, e a imprensa trata Louise como se fosse a primeira
celebridade do mundo a ter uma criança. Também na época, a filha de Silvio
abocanha um Globo de Ouro por interpretar a não menos polêmica Evita Perón –
sequer é indicada a um Oscar, uma injustiça, num fato que mostra como a Academia
não morre de amores por Luísa.
“Eu sei que não sou a melhor
cantora. Eu sei que não sou a melhor dançarina. Mas você não quer ser uma estrela?
Come on!” diz a diva pós moderna. Lou
Lou, na sua esperteza, sabe que, se parar, virará peça de museu. Daqui a pouco
tempo, ela completa 60 anos de idade. Se até Mick Jagger continua na ativa,
difícil ver uma Louise idosa em casa fazendo tricô. Louise sabe que a vida é
luta renhida. “Ela é guerreira. Ela é uma deusa. Ela é mulher de verdade” diz a
letra de uma canção de Chorão, a qual pode ser tranquilamente associada a
Louise. De luta, L. entende, até chorando, mas nunca se entregando.
Normalmente, Louise se dá mal no
cinema, atuando ou dirigindo. É um carma. Um dos filmes que dirigiu até foi
indicado ao Oscar de Figurino. Mas parou por aí. “Evita” de Alan Parker foi
exceção. Louise já é costumeiramente indicada ao prêmio deboche Framboesa de
Ouro – nada mais natural, pois Louise é uma artista para lá de debochada. Portanto,
não reclame, Louise! Leve na esportiva. Bolas, digo, bola para frente.
Tenho amigos que são grandes,
gigantescos fãs de Louise. É claro que eu continuo acompanhando a carreira dela,
e que nunca deixarei de comprar os seus álbuns, mas já não a adoro com aquele
ardor de adolescência. Hoje aprecio também jazz. É claro que o olhar do fã é um
olhar idealizado, livre de julgamentos – o ídolo solta um pum e o fã acha o
máximo; o admirador acha que sente cheiro de Chanel n. 5. Louise é uma
desbravadora, e sabe que trabalhar é sempre bom. Ela se acostumou com o nível
de vida milionário e, para bancar este, precisa estar “o tempo todo” em turnê. Nunca ficou na
sombra de homem algum, apesar de ser heterossexual – as várias vezes em que já
foi vista, filmada e fotografada beijando mulheres de língua são só para provocar.
Louise gosta mesmo é de um belo homem. Só que ela teve um relacionamento que a
decepcionou muito – não citarei nome algum aqui, mas foi uma história que
ensinou muito a Thelma, digo, Louise.
O mercado fonográfico está sempre em
busca de renovação, de novos nomes, daquilo que está enlouquecendo a juventude.
Há muitas divas fantásticas concorrendo pela atenção do público global: lindas,
audaciosas, maravilhosas. Uma diva tem que ser completamente competente; se
não, sai do mapa. Existe uma pessoa, cujo nome não mencionarei, que tem a
coragem de injetar no mercado clipes medíocres, sem proposta nem indagação.
Claro que Louise não está sempre com nota dez no boletim, mas se esforça,
sabendo que, na cultura pop, uma boa imagem casa com uma boa canção, como o
inesquecível Michael Jackson. Louise sabe o que é mercado. É uma wonder woman,
digo, uma business woman, a qual nunca precisou cursar uma caríssima escola de
business para obter sucesso, sendo isso um coice nas pretensões elitistas de
outrem. Um banho de água gelada, com direito a cubinhos de gelo boiando.
Rainha da catarse, Lou dançou em
“Like a Prayer” em meio a cruzes incendiando para protestar contra o
preconceito racial. Louise faz do limão uma limonada e usa a arte para curar
feridas internas. Acusada de ser marqueteira, Louise sabe que trabalha no setor
de cultura de massa, e que há todo um mercado esperando para ser domado e
dominado. Daí vem a agressividade dessa mulher, que diz na letra de “Rescue
Me”:
- Você me faz ajoelhar enquanto coço
as costas de um mundo que quero conquistar.
Por exemplo, quando Louise fez uma
apresentação no intervalo do grande torneio de basquete nos EUA. Com alma de cheer leader, a líder de torcida, Louise
integrou, na época do colégio, o grupo de torcedoras da escola. Mas, na
verdade, Louise quer mesmo é estar ali na quadra, fazendo cesta. Isso é
feminismo ou o quê?
Imagine o seu irmão, que vem do
mesmo lar do que o seu, lançar um livro falando o tempo inteiro mal de você. É
o que fez Christopher Ciccone, o irmão de Louise. Não sei como está a situação
entre os dois, mas deve ser difícil. Imagine no Natal, com a família reunida. A
fama pode ser bem complicada. Você gostaria de ver a sua família numa situação
como essa? Que dor.
Na
ilustração desta postagem, os famosos cones de Louise desenhados por Jean-Paul
Gaultier, por si só com um desenho agressivo mas feminino, como tudo
relacionado a Madame Ciccone, uma mulher com alma européia. Ulalá!
Fica sempre a pergunta sobre a
imprevisível show girl: o que será
que ela vai aprontar dessa vez? Ela sabe que, para sobreviver à voraz e
canibalesca máquina que é o showbusiness, tem que sempre trazer algo novo. O
lançamento de uma fragrância de Louise fez menos sucesso do que poderia. Por
quê? Porque traz elementos e referências a momentos já passados da carreira de
Louise, algo que dificilmente conquistaria a meninada que está vindo aí. A
fragrância em questão deveria ter vendido como água benta. Os altos e baixos,
na valsa volúvel da vida, são inevitáveis. É a metáfora do livro “As Horas”
de Michael Jackson, digo, Cunningham: boa ou ruim, essa hora passará. Louise
tem álbuns que venderam mais; outros, menos.
Louise, como todo artista, é uma
interpretadora de personagens: ela no palco, em um clipe ou no estúdio
gravando, é sempre uma artista fazendo um personagem. E seus fãs sabem que um
artista quer sempre interpretar personagens, mas o resto do povo não acha isso,
e acha que Louise é sempre aquilo que, na verdade, apenas interpreta. A excepcional
menina de Detroit é um ícone antipreconceitos, e sua imposição em um mundo tão fútil
e preconceituoso sempre faz bem. É o poder da arte. Frágil mulher de baixa
estatura, Louise é um colosso, numa deliciosa contradição. O simples fato dela
ser fêmea já é um soco no estômago de muita gente. Papai está brabo?