quarta-feira, 27 de abril de 2016

Os cones de Ciccone




            Tenho muita admiração por essas pessoas que vêm do nada e conquistam o mundo. Louise Ciccone, a mulher que as pessoas conhecem como Madonna, veio do nada e tinha tudo para se tornar uma simples dona de casa: nasceu em uma cidadezinha satélite de Detroit, esta sendo um lugar com uma cena cultural nula; nasceu filha de um engenheiro que não conseguia enxergar que a sua filha queria ser uma artista; foi para Nova York “sem lenço nem documento”, sem conhecer pessoas influentes que poderiam ajudá-la; ralou muito, por anos, como pessoa comum e anônima, sendo até faxineira. Não me admira o fato de Louise fazer questão de mostrar para todos aonde chegou e onde se mantém.

            O empreendedorismo dos Ciccone é genético: o pai de Louise, Silvio Ciccone, é dono de uma vinícola, a Ciccone Vineyard & Winery. Aspectos públicos mostram a relação de Louise com o rígido pai, um relacionamento meio complicado, apesar dos dois muito provavelmente se amarem. Louise disse que seu pai a trata normalmente, e ele nunca diz “Vi um dos teus vídeos na TV”. Louise perdeu a mãe muito cedo, aos cinco anos de idade. Primogênita, a pequena Louise acostumou-se a ser a “esposa” da casa, ajudando a criar os irmãos mais novos, algo que moldou na criança uma séria postura de responsabilidade e iniciativa. Quando ainda era adolescente, Louise, em um evento da própria escola, subiu num palco dançando só de biquíni, com flores desenhadas pelo seu corpo, influenciada pela moda “flower power” da época. Silvio, descontente, não percebeu que um artista quer sempre provocar, e impôs à filha um castigo que durou o verão inteiro. Que dureza, hein? No documentário sobre a turnê “Blond Ambition”, no início dos anos 90, Silvio aparece criticando a filha, dizendo que “algumas partes eram desnecessárias” no show, no qual há a famosa simulação de masturbação em “Like a Virgin”; no mesmo filme, em um show em Detroit, Louise convida o pai, que estava aniversariante, para subir ao palco para que ela lhe cantasse “Parabéns a Você”, o que a deixou emocionada; ainda no documentário, quando Louise convida o pai a ver o show, ele pergunta a ela se apareceria nua, ela diz um veemente “não” e ele diz “Ok” – um pai conhece seus filhos. Poucos anos depois, Louise escandalizaria o mundo peladonna com “Sex”, que nada mais é do que um livro de nu artístico, inclusive de muito bom gosto, no qual não há “sexo” de fato, mas só insinuações, sendo que os nus femininos não eram agressivos, só mostrando vulvas, e o único nu frontal masculino era de pênis flácido – o povo julgou “Sex” sequer folheando-o, achando que se tratava de um descarado material pornô barato, com Louise em situações absolutamente degradantes e vulgares. Um jornalista sacana chegou a perguntar a Louise se “Sex” tinha como objetivo excitar Silvio, e Louise disse que “Nem a pau!”. Em um documentário sobre uma turnê posterior, Silvio diz que sua filha estava crescendo no palco, e que o show em questão era o mais positivo em toda a sua carreira, diferente do estilo “circo gay” de turnês como “The Girlie Show”, na qual há uma baita suruba - de mentirinha, é claro. Louise é assim: reza mas não diz o santo, equilibrando-se em uma linha tênue, como só essa aranha sabe tecer. Apesar dos defeitos que todo ser humano tem, Louise é uma grande estrela, estabelecendo-se como implacável ponto de referência a quem quiser seguir carreira no showbusiness. O ícone Ciccone.

            A relação com o pai é nítida e se entremeia com outros aspectos da mente da cantora. Durante um momento de auge da carreira de Louise, veio um tapa na cara da sociedade patriarcal: em “Papa Don’t Preach”, Louise interpreta uma adolescente que engravidou e que implora para o pai não lhe dar sermão, mas lhe aconselhar. Na letra, a personagem dela decide que não abortará e que terá o filho, fazendo uso de uma prerrogativa que pisa nos calos da Igreja Católica, a qual condena o aborto – sei disso, pois estudei em escola católica. Polêmica na certa, mas por quê, se a personagem opta por não abortar? O que fedeu nessa questão de “Papa” foi a liberdade da mulher: uma fêmea sem estar subordinada a um macho é mal vista. E existe mulher mais independente do que Louise? Independência ou morte! Outra canção é bem autobiográfica: “Oh Father” tem uma letra que diz como uma filha sofreu com a rigidez do pai, em um clipe que mostra uma menininha brincando com as roupas e joias da falecida mãe, com um pai que, ao ver aquilo, pune severamente a filha, em um take inesquecível de um colar de pérolas sendo desmantelado em pérolas soltas, como os sentimentos despedaçados da menina. “Não foi tua intenção ser cruel. Alguém te machucou também” diz ela na canção, que, em outro pedaço, diz “Você nunca quis me machucar. Por que estou me afastando de você?” e também “Sinto-me bem, como nunca me senti antes”. No clipe de “Deeper and Deeper” uma figura paterna tolhe os sonhos de Louise, para a qual tudo é muito instintivo, inconsciente. No clipe de “Bad Girl”, uma figura masculina mais velha é um anjo da guarda. Como Louise tem a atitude corajosa de não censurar a si mesma, a expressividade é inevitável. Louise tem duas bolas entre as pernas, e é uma americana, ou seja, entende a importância da liberdade de pensamento. Brava!

            Outro aspecto da vida de LC é o áspero relacionamento com a imprensa. Parece que uma não quer falar muito bem da outra, apesar de uma precisar da outra. Há a infame entrevista cedida a Marília Gabriela – a entrevistadora não se sentiu muito respeitada nem muito confortável ao entrevistar Louise. Gabi disse ter se deparado com uma pessoa com muita esperteza mas pouca inteligência, nunca a star aproveitando as perguntas para desenvolver respostas capciosas. Outro brasileiro que entrevistou a cantora foi Zeca Camargo, na época do lançamento do desastroso e opaco filme “Sobrou para Você” – durante toda a entrevista, uma assessora de Louise, atrás desta, seguindo instruções prévias da artista, fazia mímicas a Zeca para este não perguntar sobre o bebê, visto que Louise estava grávida, esperando o segundo filho. Geniosa a diva. Como os jornalistas são pessoas inteligentes, nada mais natural do que não irem muito com a cara de Louise. Uma pena. Em outro episódio, jornalistas ficaram esperando por horas numa ante sala para entrevistar a mulher, sendo que um destes, que narrou a situação, disse ironicamente:
- Se Nossa Senhora Mãe de Deus demorou tanto para aparecer em Fátima e Lourdes, Madonna também tem que se dar ao luxo de ser esperada.
Você percebe que vem a César o que é de César? Não tenha pena, pois quem tem pena é pato, que não entrou para a seleção. Louise merece ser tratada assim pela imprensa. É uma coroa de espinhos.

            A trajetória de Louise sofreu uma reviravolta positiva com o álbum “Ray of Light”, premiado com um Grammy, com canções muito originais, em um trabalho inusitado, que entrou em contraste com o que as pessoas esperavam inconscientemente de L. Ciccone. Na mesma época, a mulher tem uma filha, e a imprensa trata Louise como se fosse a primeira celebridade do mundo a ter uma criança. Também na época, a filha de Silvio abocanha um Globo de Ouro por interpretar a não menos polêmica Evita Perón – sequer é indicada a um Oscar, uma injustiça, num fato que mostra como a Academia não morre de amores por Luísa.

            “Eu sei que não sou a melhor cantora. Eu sei que não sou a melhor dançarina. Mas você não quer ser uma estrela? Come on!” diz a diva pós moderna. Lou Lou, na sua esperteza, sabe que, se parar, virará peça de museu. Daqui a pouco tempo, ela completa 60 anos de idade. Se até Mick Jagger continua na ativa, difícil ver uma Louise idosa em casa fazendo tricô. Louise sabe que a vida é luta renhida. “Ela é guerreira. Ela é uma deusa. Ela é mulher de verdade” diz a letra de uma canção de Chorão, a qual pode ser tranquilamente associada a Louise. De luta, L. entende, até chorando, mas nunca se entregando.

            Normalmente, Louise se dá mal no cinema, atuando ou dirigindo. É um carma. Um dos filmes que dirigiu até foi indicado ao Oscar de Figurino. Mas parou por aí. “Evita” de Alan Parker foi exceção. Louise já é costumeiramente indicada ao prêmio deboche Framboesa de Ouro – nada mais natural, pois Louise é uma artista para lá de debochada. Portanto, não reclame, Louise! Leve na esportiva. Bolas, digo, bola para frente.

            Tenho amigos que são grandes, gigantescos fãs de Louise. É claro que eu continuo acompanhando a carreira dela, e que nunca deixarei de comprar os seus álbuns, mas já não a adoro com aquele ardor de adolescência. Hoje aprecio também jazz. É claro que o olhar do fã é um olhar idealizado, livre de julgamentos – o ídolo solta um pum e o fã acha o máximo; o admirador acha que sente cheiro de Chanel n. 5. Louise é uma desbravadora, e sabe que trabalhar é sempre bom. Ela se acostumou com o nível de vida milionário e, para bancar este, precisa estar “o tempo todo” em turnê. Nunca ficou na sombra de homem algum, apesar de ser heterossexual – as várias vezes em que já foi vista, filmada e fotografada beijando mulheres de língua são só para provocar. Louise gosta mesmo é de um belo homem. Só que ela teve um relacionamento que a decepcionou muito – não citarei nome algum aqui, mas foi uma história que ensinou muito a Thelma, digo, Louise.

            O mercado fonográfico está sempre em busca de renovação, de novos nomes, daquilo que está enlouquecendo a juventude. Há muitas divas fantásticas concorrendo pela atenção do público global: lindas, audaciosas, maravilhosas. Uma diva tem que ser completamente competente; se não, sai do mapa. Existe uma pessoa, cujo nome não mencionarei, que tem a coragem de injetar no mercado clipes medíocres, sem proposta nem indagação. Claro que Louise não está sempre com nota dez no boletim, mas se esforça, sabendo que, na cultura pop, uma boa imagem casa com uma boa canção, como o inesquecível Michael Jackson. Louise sabe o que é mercado. É uma wonder woman, digo, uma business woman, a qual nunca precisou cursar uma caríssima escola de business para obter sucesso, sendo isso um coice nas pretensões elitistas de outrem. Um banho de água gelada, com direito a cubinhos de gelo boiando.

            Rainha da catarse, Lou dançou em “Like a Prayer” em meio a cruzes incendiando para protestar contra o preconceito racial. Louise faz do limão uma limonada e usa a arte para curar feridas internas. Acusada de ser marqueteira, Louise sabe que trabalha no setor de cultura de massa, e que há todo um mercado esperando para ser domado e dominado. Daí vem a agressividade dessa mulher, que diz na letra de “Rescue Me”:
            - Você me faz ajoelhar enquanto coço as costas de um mundo que quero conquistar.
            Por exemplo, quando Louise fez uma apresentação no intervalo do grande torneio de basquete nos EUA. Com alma de cheer leader, a líder de torcida, Louise integrou, na época do colégio, o grupo de torcedoras da escola. Mas, na verdade, Louise quer mesmo é estar ali na quadra, fazendo cesta. Isso é feminismo ou o quê?

            Imagine o seu irmão, que vem do mesmo lar do que o seu, lançar um livro falando o tempo inteiro mal de você. É o que fez Christopher Ciccone, o irmão de Louise. Não sei como está a situação entre os dois, mas deve ser difícil. Imagine no Natal, com a família reunida. A fama pode ser bem complicada. Você gostaria de ver a sua família numa situação como essa? Que dor.

            Na ilustração desta postagem, os famosos cones de Louise desenhados por Jean-Paul Gaultier, por si só com um desenho agressivo mas feminino, como tudo relacionado a Madame Ciccone, uma mulher com alma européia. Ulalá!

            Fica sempre a pergunta sobre a imprevisível show girl: o que será que ela vai aprontar dessa vez? Ela sabe que, para sobreviver à voraz e canibalesca máquina que é o showbusiness, tem que sempre trazer algo novo. O lançamento de uma fragrância de Louise fez menos sucesso do que poderia. Por quê? Porque traz elementos e referências a momentos já passados da carreira de Louise, algo que dificilmente conquistaria a meninada que está vindo aí. A fragrância em questão deveria ter vendido como água benta. Os altos e baixos, na valsa volúvel da vida, são inevitáveis. É a metáfora do livro “As Horas” de Michael Jackson, digo, Cunningham: boa ou ruim, essa hora passará. Louise tem álbuns que venderam mais; outros, menos.

            Louise, como todo artista, é uma interpretadora de personagens: ela no palco, em um clipe ou no estúdio gravando, é sempre uma artista fazendo um personagem. E seus fãs sabem que um artista quer sempre interpretar personagens, mas o resto do povo não acha isso, e acha que Louise é sempre aquilo que, na verdade, apenas interpreta. A excepcional menina de Detroit é um ícone antipreconceitos, e sua imposição em um mundo tão fútil e preconceituoso sempre faz bem. É o poder da arte. Frágil mulher de baixa estatura, Louise é um colosso, numa deliciosa contradição. O simples fato dela ser fêmea já é um soco no estômago de muita gente. Papai está brabo?

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