O mundo inteirinho sabe muito bem quem é J.R.R. Tolkien e qual
a obra que este homem legou. Recém quando foi lançado, o livro “O Senhor dos
Anéis” não se tornou imediatamente um best seller mas, com as décadas
posteriores, tornou-me mais e mais popular e vendido. O diretor Peter Jackson
escolheu a Nova Zelândia para dar corpo cinematográfico à mística Terra Média,
palco em que Tolkien
desenvolveu toda a sua imaginação em uma trama que encanta e, provavelmente,
continuará a encantar a Humanidade por muito mais tempo. A Terra Média é o
planeta Terra há muito, muito tempo atrás, com a Lua, o Sol, as estrelas no céu
e as estações do ano, mas a extensão territorial é plana, e não redonda,
passando-se no Hemisfério Norte. Várias culturas, reinos, raças e curiosas
criaturas habitam este mundo mágico. O extremo ocidental são os portos, que são
uma metáfora da morte – os que embarcam nos barcos de lá, vão para as iluminadas
terras eternas além mar.
Tudo começa quando o senhor da escuridão, Sauron, ainda não
declaradamente mau, oferece anéis mágicos a criaturas poderosas de três povos –
os nove reis homens, os reis anões e os três superiores elfos, prometendo-lhes ainda
mais poder com esses regalos. O que esses poderosos não sabiam era que Sauron
tinha inventado um anel secreto, o qual controlaria a vontade dos que usassem
os anéis restantes dados de presente. O Anel é uma metáfora do poder, e de como
este suga alma e deturpa homens inicialmente honestos e humildes. Aquele que
usa o Anel é seduzido; a alma daquele, corrompida. É uma maldição. Numa batalha
entre Sauron e aqueles que ainda resistiam ao seu maligno poder, o rei Isildur
corta a mão do vilão e adquire para si o Anel. Seduzido, Isildur vê-se traído
pelo próprio amuleto, e este cai no esquecimento, escondendo-se no leito de um
rio. O Anel é ignorado e a Terra Média segue existindo, com vários séculos indo
e vindo. Como o Anel tem o instinto de ir ao seu criador, querendo ser
encontrado por Sauron, a joia cai ao acaso nas mãos de Gollum, formidável
personagem da galeria de Tolkien. Gollum é um monstrinho que é absolutamente
tragado pelo Anel, e este, em um certo ponto, abandona Gollum para cair nas
mãos de um hobbit, Bilbo Bolseiro – os hobbits eram criaturas de baixa estatura
que viviam em uma região chamada de Condado. Em um certo ponto, Bilbo vê-se
obrigado a deixar o Anel de herança ao seu sobrinho Frodo Bolseiro. Mas Gollum
fora capturado por Sauron e, sob terrível tortura, o monstrinho disse que o Anel
estava na posse de “Bolseiro” no “Condado”.
A ação aí começa, quando Frodo, aconselhado pelo mago
Gandalf – brilhantemente interpretado por Sir Ian McKellen -, deixa o Condado
acompanhado por seu fiel jardineiro Sam. Sauron conta com os terríveis Nove
Cavaleiros, espectro letais que, montados em raivosos cavalos negros, invadem a
Terra Média em uma caçada implacável atrás de Frodo para obter o Anel de volta
ao seu senhor Sauron, que mora na sombria terra de Mordor, um lugar onde só há
medo e sofrimento, o Umbral espírita. Na verdade, os terríveis Nove eram os
reis outrora presenteados por Sauron e que acabaram se tornando escravos cegos
do Senhor do Escuro. É como se Tolkien pudesse fazer uma metáfora das drogas,
de seu poder acorrentador, e de como as drogas dão a ilusão de plenitude, de
liberdade – é uma prisão.
Tolkien mostrou-se muito irritado com aqueles que diziam
que “O Senhor dos Anéis” era uma alegoria da II Guerra Mundial, tendo Hitler
como uma inspiração para a criação de Sauron, por exemplo. Mas trata-se de um
universo de magia tão rico que quaisquer teorias de alegoria caem por terra. É
tão complexo que fica impossível contemplar tudo em apenas três filmes de três
horas de duração cada, na mesma riqueza de “O Tempo e o Vento” de Erico
Veríssimo. Tolkien afirmou que, se sua trama fosse uma alegoria da II Guerra, o
Anel não seria destruído, mas usado contra Sauron (Hitler). Bem plausível. O
personagem Boromir, que é intoxicado pelo Anel, oferece essa opção, a de usar a
joia contra Sauron, mas a ideia de Boromir é rechaçada pelos outros personagens
anti Sauron, pois o Anel só obedece ao Senhor de Mordor.
Um dos personagens mais fascinantes é Galadriel, a rainha
élfica, senhora da mística floresta de Lothlorien. Vivida por Cate Blanchett
nos filmes, Galadriel não é exatamente uma fadinha de Disney, repleta de
exclusiva bondade – Galadriel é estranha, quase assustadora, boa mas, ao mesmo
tempo, fria; misteriosa, mas clara. Marcante, Galadriel acaba por se revelar o
antídoto para o Mal, mas não se torna uma Cinderela passiva, nem uma dedicada e
adorável dona de casa. Galadriel é soberana de si mesma, e olha o mundo com a
sabedoria de um elfo – os elfos eram imortais, portanto, sábios no decorrer dos
milênios de vida. Galadriel tem olhos agudos que penetram na alma dos homens,
como o fez com Boromir, ao observar tendência deste a ser enganado pelo Anel.
Falando em Disney, Tolkien, ao saber que não viveria para
sempre, implorou aos seus herdeiros que, em hipótese alguma, vendessem os
direitos de sua obra para a Disney. Muito compreensível, pois, apesar de falar
sobre a luta do Bem contra o Mal, “O Senhor...” é uma história muito sombria,
com personagens humanos, com riquezas e fraquezas, quando, por exemplo, um
personagem benigno como Frodo é mostrado sendo hipnotizado pelo maldito Anel. Tolkien
fala da inclinação humana a cair nas tentações do Mal. Nos filmes de Disney, há
o vilão e o mocinho: o primeiro é a personificação de tudo o que existe de
ruim; o segundo, dono de um caráter absolutamente idealizado, perfeito e incorruptível.
Essa percepção binária infantil, essa bipolaridade entre certo e errado,
fundamental na formação do caráter da criança, é incompatível com Tolkien, pois
o Anel é capaz de corroer os corações mais nobres. A própria Galadriel confessa
ter, por muito tempo, ambicionado o Anel, e, com este, obteria poderes que a
tornariam a mais absoluta poderosíssima rainha, a qual todos teriam que
obedecer – se você fica pensando o que faria se tivesse o poder do Anel, é
porque este já está começando a tomar conta da sua mente, como o simplório Sam,
que carregou o Anel no lugar de Frodo por alguns instantes: nem a mais bondosa
criatura está a salvo. Não é He-Man vs. Esqueleto. Tolkien enxerga as
vulnerabilidades do ser humano, e dos problemas da Humanidade, num apelo
atemporal, mortificado em relação aos desvios da personalidade. Para J.R.R.,
He-Man revela-se fraco perante o Anel, e Esqueleto ri maliciosamente dessa
falha no herói. Realismo. Para Tolkien, não há heróis de fato.
Existe toda uma matiz de escuridão, de mistério na
narrativa de Tolkien. O negócio é sério; adulto. Há o repulsivo monstro Laracna
que, no filme, é mostrado como uma aranha gigante mas, no livro, é um ser ainda
mais monstruoso e disforme, rainha de um submundo escuro e fedorento, onde
reina absoluta. Laracna está sempre com fome, e vive em sua traiçoeira e labiríntica
toca tecendo teias fortíssimas que aprisionam seres, os quais são avidamente
devorados pelo monstro. Perdido na toca, em uma emboscada armada pelo terrível
Gollum, o qual só quer o Anel de Frodo, este evoca Galadriel e luta contra o
ser ávido.
Tolkien é acusado de ser machista, pois as tramas são
desenvolvidas, normalmente, por personagens do sexo masculino – as personagens
femininas têm um papel coadjuvante, discreto, sutil. As mulheres são contentes
donas de casa, e os grandes reis nunca trazem entre eles próprios uma mulher, e
isso deve irritar as feministas. No livro, há a elfa Arwen, interpretada no
filme pela bela Liv Tyler, apesar de alguns acharem esta com cara de cavalo. Se
no livro ela é uma dama feliz em seu papel nulo, o filme de Peter Jackson deu a
Liv mais destaque, mostrando uma Arwen agressiva e independente, corajosa ao
fugir com Frodo e o Anel dos nefastos Nove. Só há uma personagem feminista em
todos os livros de “O Senhor...”, que é a donzela Eowyn, que resolver se
disfarçar de homem e ir para a guerra contra os horrorosos orcs, criaturas
absolutamente grotescas e maléficas – interessante observar que o termo “orc”
tem uma sonoridade de porco. Habitualmente, as fêmeas de Tolkien são meros
úteros de reprodução – a ação de fato está no lado macho da vida. Mas isso não
tira o mérito de personagens como Galadriel que, apesar de aparecer pouco, é
tida como a criatura mais nobre e elevada da Terra Média. O enigmático espelho
de Galadriel é essa metáfora de feminilidade, e de como o masculino tem que se
curvar perante o feminino. Uma doce contradição tolkiena. Por exemplo, não
aparecem orcs fêmeas, apesar da repulsiva Laracna ser chamada de “nobre
senhora” pelos próprios orcs.
Há uma passagem fantástica, quando Frodo e seus amigos
hobbits são aprisionados pelas temíveis Criaturas Tumulares, e são colocados em
um sepulcro gelado e escuro. A narrativa é tão contundente que o leitor tem a
impressão de estar de fato ali, junto aos hobbits. Só que, falando de Tolkien,
há um porém: a tradução para o português. Nos textos em geral, não se perde
muito na tradução, mas há vários trechos dos livros de “O Senhor...” que têm
canções mas, como no livro não há melodia para ser transmitida, tornam-se
poemas que, em inglês, devem ter mais pertinência do que os poemas traduzidos
para outras línguas. É o inevitável percalço da tradução, na qual algo sempre
se perde, pois é duro achar rimas em português nas canções de Tolkien. Trabalho
duro.
O final é redentor, com Sauron e o Anel destruídos e Frodo
partindo para as praias iluminadas a partir dos portos do extremo ocidente da
Terra Média, enquanto Sam volta para casa no Condado para viver a sua pequena e
deliciosa vida, com sua esposa e filha. Tolkien tem espírito aventureiro e é um
ícone da “Sessão da Tarde”, pois convida, principalmente a juventude, a sonhar,
e faz com que as pessoas mais velhas sintam-se crianças de novo. A
impecabilidade de Jackson é inegável, tendo o merecidíssimo Oscar de melhor
direção e melhor filme por “O Retorno do Rei”, o tomo final da saga do Anel nas
telonas. Hoje, as pessoas consideram tecnicamente perfeito o Gollum no cinema
mas, daqui a séculos, as pessoas vão considerá-lo extremamente grotesco e
primário – o avanço técnico é infindável e irrefreável.
Tolkien era um viril amante do ar livre, e, amando cavalos
e cavalgadas, seu universo desenrola-se nas suas fiéis descrições dos campos,
lagos, florestas, montanhas, bosques, pântanos, céus, penhascos, planícies e
rios da Terra Média. Os ambientes fechados, como a toca de Laracna, são
claustros vaginais de terror e opressão, como na casa da Bruxa de Blair – Freud
explica sempre. A Laracna pode ser interpretada como o negativo de Galadriel –
esta tem um poder quase amedrontador, mas não é pura maldade e bestialidade
como aquela.
Tolkien faz com que nos apaixonemos por seus personagens, e
que sintamos falta deles em nossas vidas. O elenco dos filmes foi
cuidadosamente selecionado, transmitindo a energia de cada ator da história. A
carreira de Viggo Mortensen, que faz Aragorn, o herdeiro dos reis da Terra
Média, sofreu uma reviravolta enorme pois, antes disso, Viggo era terceira ou
quarta escolha para papéis – o seu Aragorn foi tão bom que o ator hoje se
tornou um astro de destaque, quase abocanhando um Oscar por um papel posterior.
Ator dedicado ao laboratório, decidiu, durante as filmagens de “O Senhor...”,
andar sempre carregando a espada do personagem, tendo sido abordado pela
polícia da cidade de Wellington, que o achou com cara de bandido armado.
Sofisticado, Viggo também é artista plástico, tendo interpretado um em “O Crime
Perfeito”, e já morou na Argentina, onde adquiriu o hábito do mate, bebendo-o
frequentemente enquanto dá entrevistas. Inclusive, Viggo, por se sentir um
pouco argentino, não gostou do episódio da Guerra das Malvinas, quando ouvia
dos ingleses:
- Matem esses argentinos malditos!
Viggo declarou que fazer Aragorn foi um desafio e tanto,
pois seu filho, na época adolescente, era grande fã de Tolkien, ou seja, o ator
teve que passar pelo crivo do moleque.
Difícil imaginar um Gandalf melhor do que o de Sir Ian, o
que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em “A Sociedade do Anel”. E,
provavelmente, só as muito futuras gerações verão uma refilmagem dessas pérolas
de Jackson. Se você pega um bom livro e prima por uma boa produção, incluindo
um roteiro capcioso, não tem como dar errado. O problema é que Hollywood é a
terra da pretensão, com pessoas achando que tudo o que tocam vira ouro:
- Eu posso pegar qualquer roteiro ruim e transformar em um
épico – devem dizer.
Há um paradigma na indústria do cinema: um bom filme tem em
suas entranhas um bom argumento. Com competentes letras no papel, num ponto de
partida, o resto vem depois.
Frodo é um herói e, ao mesmo tempo, não. Sua missão era
jogar o Anel nas lavas da Montanha da Perdição, onde o Anel fora forjado, este só
lá podendo ser destruído. Mas, na hora H, Frodo peca, decidindo ficar com o Anel
para si, quando então é atacado por Gollum e, numa briga sangrenta, Gollum
arranca-lhe o Anel e, acidentalmente, cai nas lavas destrutivas, morrendo junto
com a maldita joia. Só por esse acaso o Anel é eliminado. É claro que isso não
é próprio de um mocinho de Disney; se fosse, Frodo chegaria na beira da lava e
tranquilamente jogaria o Anel nela. Muito fácil e óbvio para a esperteza da mente
de Tolkien, o qual não cultiva ilusões ingênuas.
E você? O que faria com o Anel? Não nos deixeis cair em tentação. Uma maçã
do Éden, como uma Eva na boate infernal do perigoso Merovíngio, de Matrix. A
Branca de Neve mordeu a maçã!
Depois de “O Senhor...”, Jackson transformou em três
películas “O Hobbit”, livro de Tolkien que se passa antes da saga de Frodo na
Terra Média, quando Bilbo encontra o Anel, numa ação que gira em torno de
guerras na mágica extensão territorial do mundo de então. Mas, como o sucesso é
volúvel, os filmes de “O Hobbit”, apesar de tecnicamente irretocáveis, não
causaram o mesmo impacto do que “A Sociedade do Anel”, “As Duas Torres” e “O
Retorno do Rei” nas salas de cinema da Terra Média, digo, da Terra.
Na ilustração desta
postagem, uma divertida versão Lego do Aragorn de Viggo Mortensen.
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