quarta-feira, 4 de maio de 2016

O Senhor da Fantasia




O mundo inteirinho sabe muito bem quem é J.R.R. Tolkien e qual a obra que este homem legou. Recém quando foi lançado, o livro “O Senhor dos Anéis” não se tornou imediatamente um best seller mas, com as décadas posteriores, tornou-me mais e mais popular e vendido. O diretor Peter Jackson escolheu a Nova Zelândia para dar corpo cinematográfico à mística Terra Média, palco em que Tolkien desenvolveu toda a sua imaginação em uma trama que encanta e, provavelmente, continuará a encantar a Humanidade por muito mais tempo. A Terra Média é o planeta Terra há muito, muito tempo atrás, com a Lua, o Sol, as estrelas no céu e as estações do ano, mas a extensão territorial é plana, e não redonda, passando-se no Hemisfério Norte. Várias culturas, reinos, raças e curiosas criaturas habitam este mundo mágico. O extremo ocidental são os portos, que são uma metáfora da morte – os que embarcam nos barcos de lá, vão para as iluminadas terras eternas além mar.

Tudo começa quando o senhor da escuridão, Sauron, ainda não declaradamente mau, oferece anéis mágicos a criaturas poderosas de três povos – os nove reis homens, os reis anões e os três superiores elfos, prometendo-lhes ainda mais poder com esses regalos. O que esses poderosos não sabiam era que Sauron tinha inventado um anel secreto, o qual controlaria a vontade dos que usassem os anéis restantes dados de presente. O Anel é uma metáfora do poder, e de como este suga alma e deturpa homens inicialmente honestos e humildes. Aquele que usa o Anel é seduzido; a alma daquele, corrompida. É uma maldição. Numa batalha entre Sauron e aqueles que ainda resistiam ao seu maligno poder, o rei Isildur corta a mão do vilão e adquire para si o Anel. Seduzido, Isildur vê-se traído pelo próprio amuleto, e este cai no esquecimento, escondendo-se no leito de um rio. O Anel é ignorado e a Terra Média segue existindo, com vários séculos indo e vindo. Como o Anel tem o instinto de ir ao seu criador, querendo ser encontrado por Sauron, a joia cai ao acaso nas mãos de Gollum, formidável personagem da galeria de Tolkien. Gollum é um monstrinho que é absolutamente tragado pelo Anel, e este, em um certo ponto, abandona Gollum para cair nas mãos de um hobbit, Bilbo Bolseiro – os hobbits eram criaturas de baixa estatura que viviam em uma região chamada de Condado. Em um certo ponto, Bilbo vê-se obrigado a deixar o Anel de herança ao seu sobrinho Frodo Bolseiro. Mas Gollum fora capturado por Sauron e, sob terrível tortura, o monstrinho disse que o Anel estava na posse de “Bolseiro” no “Condado”.

A ação aí começa, quando Frodo, aconselhado pelo mago Gandalf – brilhantemente interpretado por Sir Ian McKellen -, deixa o Condado acompanhado por seu fiel jardineiro Sam. Sauron conta com os terríveis Nove Cavaleiros, espectro letais que, montados em raivosos cavalos negros, invadem a Terra Média em uma caçada implacável atrás de Frodo para obter o Anel de volta ao seu senhor Sauron, que mora na sombria terra de Mordor, um lugar onde só há medo e sofrimento, o Umbral espírita. Na verdade, os terríveis Nove eram os reis outrora presenteados por Sauron e que acabaram se tornando escravos cegos do Senhor do Escuro. É como se Tolkien pudesse fazer uma metáfora das drogas, de seu poder acorrentador, e de como as drogas dão a ilusão de plenitude, de liberdade – é uma prisão.

Tolkien mostrou-se muito irritado com aqueles que diziam que “O Senhor dos Anéis” era uma alegoria da II Guerra Mundial, tendo Hitler como uma inspiração para a criação de Sauron, por exemplo. Mas trata-se de um universo de magia tão rico que quaisquer teorias de alegoria caem por terra. É tão complexo que fica impossível contemplar tudo em apenas três filmes de três horas de duração cada, na mesma riqueza de “O Tempo e o Vento” de Erico Veríssimo. Tolkien afirmou que, se sua trama fosse uma alegoria da II Guerra, o Anel não seria destruído, mas usado contra Sauron (Hitler). Bem plausível. O personagem Boromir, que é intoxicado pelo Anel, oferece essa opção, a de usar a joia contra Sauron, mas a ideia de Boromir é rechaçada pelos outros personagens anti Sauron, pois o Anel só obedece ao Senhor de Mordor.

Um dos personagens mais fascinantes é Galadriel, a rainha élfica, senhora da mística floresta de Lothlorien. Vivida por Cate Blanchett nos filmes, Galadriel não é exatamente uma fadinha de Disney, repleta de exclusiva bondade – Galadriel é estranha, quase assustadora, boa mas, ao mesmo tempo, fria; misteriosa, mas clara. Marcante, Galadriel acaba por se revelar o antídoto para o Mal, mas não se torna uma Cinderela passiva, nem uma dedicada e adorável dona de casa. Galadriel é soberana de si mesma, e olha o mundo com a sabedoria de um elfo – os elfos eram imortais, portanto, sábios no decorrer dos milênios de vida. Galadriel tem olhos agudos que penetram na alma dos homens, como o fez com Boromir, ao observar tendência deste a ser enganado pelo Anel.

Falando em Disney, Tolkien, ao saber que não viveria para sempre, implorou aos seus herdeiros que, em hipótese alguma, vendessem os direitos de sua obra para a Disney. Muito compreensível, pois, apesar de falar sobre a luta do Bem contra o Mal, “O Senhor...” é uma história muito sombria, com personagens humanos, com riquezas e fraquezas, quando, por exemplo, um personagem benigno como Frodo é mostrado sendo hipnotizado pelo maldito Anel. Tolkien fala da inclinação humana a cair nas tentações do Mal. Nos filmes de Disney, há o vilão e o mocinho: o primeiro é a personificação de tudo o que existe de ruim; o segundo, dono de um caráter absolutamente idealizado, perfeito e incorruptível. Essa percepção binária infantil, essa bipolaridade entre certo e errado, fundamental na formação do caráter da criança, é incompatível com Tolkien, pois o Anel é capaz de corroer os corações mais nobres. A própria Galadriel confessa ter, por muito tempo, ambicionado o Anel, e, com este, obteria poderes que a tornariam a mais absoluta poderosíssima rainha, a qual todos teriam que obedecer – se você fica pensando o que faria se tivesse o poder do Anel, é porque este já está começando a tomar conta da sua mente, como o simplório Sam, que carregou o Anel no lugar de Frodo por alguns instantes: nem a mais bondosa criatura está a salvo. Não é He-Man vs. Esqueleto. Tolkien enxerga as vulnerabilidades do ser humano, e dos problemas da Humanidade, num apelo atemporal, mortificado em relação aos desvios da personalidade. Para J.R.R., He-Man revela-se fraco perante o Anel, e Esqueleto ri maliciosamente dessa falha no herói. Realismo. Para Tolkien, não há heróis de fato.

Existe toda uma matiz de escuridão, de mistério na narrativa de Tolkien. O negócio é sério; adulto. Há o repulsivo monstro Laracna que, no filme, é mostrado como uma aranha gigante mas, no livro, é um ser ainda mais monstruoso e disforme, rainha de um submundo escuro e fedorento, onde reina absoluta. Laracna está sempre com fome, e vive em sua traiçoeira e labiríntica toca tecendo teias fortíssimas que aprisionam seres, os quais são avidamente devorados pelo monstro. Perdido na toca, em uma emboscada armada pelo terrível Gollum, o qual só quer o Anel de Frodo, este evoca Galadriel e luta contra o ser ávido.

Tolkien é acusado de ser machista, pois as tramas são desenvolvidas, normalmente, por personagens do sexo masculino – as personagens femininas têm um papel coadjuvante, discreto, sutil. As mulheres são contentes donas de casa, e os grandes reis nunca trazem entre eles próprios uma mulher, e isso deve irritar as feministas. No livro, há a elfa Arwen, interpretada no filme pela bela Liv Tyler, apesar de alguns acharem esta com cara de cavalo. Se no livro ela é uma dama feliz em seu papel nulo, o filme de Peter Jackson deu a Liv mais destaque, mostrando uma Arwen agressiva e independente, corajosa ao fugir com Frodo e o Anel dos nefastos Nove. Só há uma personagem feminista em todos os livros de “O Senhor...”, que é a donzela Eowyn, que resolver se disfarçar de homem e ir para a guerra contra os horrorosos orcs, criaturas absolutamente grotescas e maléficas – interessante observar que o termo “orc” tem uma sonoridade de porco. Habitualmente, as fêmeas de Tolkien são meros úteros de reprodução – a ação de fato está no lado macho da vida. Mas isso não tira o mérito de personagens como Galadriel que, apesar de aparecer pouco, é tida como a criatura mais nobre e elevada da Terra Média. O enigmático espelho de Galadriel é essa metáfora de feminilidade, e de como o masculino tem que se curvar perante o feminino. Uma doce contradição tolkiena. Por exemplo, não aparecem orcs fêmeas, apesar da repulsiva Laracna ser chamada de “nobre senhora” pelos próprios orcs.

Há uma passagem fantástica, quando Frodo e seus amigos hobbits são aprisionados pelas temíveis Criaturas Tumulares, e são colocados em um sepulcro gelado e escuro. A narrativa é tão contundente que o leitor tem a impressão de estar de fato ali, junto aos hobbits. Só que, falando de Tolkien, há um porém: a tradução para o português. Nos textos em geral, não se perde muito na tradução, mas há vários trechos dos livros de “O Senhor...” que têm canções mas, como no livro não há melodia para ser transmitida, tornam-se poemas que, em inglês, devem ter mais pertinência do que os poemas traduzidos para outras línguas. É o inevitável percalço da tradução, na qual algo sempre se perde, pois é duro achar rimas em português nas canções de Tolkien. Trabalho duro.

O final é redentor, com Sauron e o Anel destruídos e Frodo partindo para as praias iluminadas a partir dos portos do extremo ocidente da Terra Média, enquanto Sam volta para casa no Condado para viver a sua pequena e deliciosa vida, com sua esposa e filha. Tolkien tem espírito aventureiro e é um ícone da “Sessão da Tarde”, pois convida, principalmente a juventude, a sonhar, e faz com que as pessoas mais velhas sintam-se crianças de novo. A impecabilidade de Jackson é inegável, tendo o merecidíssimo Oscar de melhor direção e melhor filme por “O Retorno do Rei”, o tomo final da saga do Anel nas telonas. Hoje, as pessoas consideram tecnicamente perfeito o Gollum no cinema mas, daqui a séculos, as pessoas vão considerá-lo extremamente grotesco e primário – o avanço técnico é infindável e irrefreável.

Tolkien era um viril amante do ar livre, e, amando cavalos e cavalgadas, seu universo desenrola-se nas suas fiéis descrições dos campos, lagos, florestas, montanhas, bosques, pântanos, céus, penhascos, planícies e rios da Terra Média. Os ambientes fechados, como a toca de Laracna, são claustros vaginais de terror e opressão, como na casa da Bruxa de Blair – Freud explica sempre. A Laracna pode ser interpretada como o negativo de Galadriel – esta tem um poder quase amedrontador, mas não é pura maldade e bestialidade como aquela.

Tolkien faz com que nos apaixonemos por seus personagens, e que sintamos falta deles em nossas vidas. O elenco dos filmes foi cuidadosamente selecionado, transmitindo a energia de cada ator da história. A carreira de Viggo Mortensen, que faz Aragorn, o herdeiro dos reis da Terra Média, sofreu uma reviravolta enorme pois, antes disso, Viggo era terceira ou quarta escolha para papéis – o seu Aragorn foi tão bom que o ator hoje se tornou um astro de destaque, quase abocanhando um Oscar por um papel posterior. Ator dedicado ao laboratório, decidiu, durante as filmagens de “O Senhor...”, andar sempre carregando a espada do personagem, tendo sido abordado pela polícia da cidade de Wellington, que o achou com cara de bandido armado. Sofisticado, Viggo também é artista plástico, tendo interpretado um em “O Crime Perfeito”, e já morou na Argentina, onde adquiriu o hábito do mate, bebendo-o frequentemente enquanto dá entrevistas. Inclusive, Viggo, por se sentir um pouco argentino, não gostou do episódio da Guerra das Malvinas, quando ouvia dos ingleses:
- Matem esses argentinos malditos!
Viggo declarou que fazer Aragorn foi um desafio e tanto, pois seu filho, na época adolescente, era grande fã de Tolkien, ou seja, o ator teve que passar pelo crivo do moleque.

Difícil imaginar um Gandalf melhor do que o de Sir Ian, o que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em “A Sociedade do Anel”. E, provavelmente, só as muito futuras gerações verão uma refilmagem dessas pérolas de Jackson. Se você pega um bom livro e prima por uma boa produção, incluindo um roteiro capcioso, não tem como dar errado. O problema é que Hollywood é a terra da pretensão, com pessoas achando que tudo o que tocam vira ouro:
- Eu posso pegar qualquer roteiro ruim e transformar em um épico – devem dizer.
Há um paradigma na indústria do cinema: um bom filme tem em suas entranhas um bom argumento. Com competentes letras no papel, num ponto de partida, o resto vem depois.

Frodo é um herói e, ao mesmo tempo, não. Sua missão era jogar o Anel nas lavas da Montanha da Perdição, onde o Anel fora forjado, este só lá podendo ser destruído. Mas, na hora H, Frodo peca, decidindo ficar com o Anel para si, quando então é atacado por Gollum e, numa briga sangrenta, Gollum arranca-lhe o Anel e, acidentalmente, cai nas lavas destrutivas, morrendo junto com a maldita joia. Só por esse acaso o Anel é eliminado. É claro que isso não é próprio de um mocinho de Disney; se fosse, Frodo chegaria na beira da lava e tranquilamente jogaria o Anel nela. Muito fácil e óbvio para a esperteza da mente de Tolkien, o qual não cultiva ilusões ingênuas.

E você? O que faria com o Anel? Não nos deixeis cair em tentação. Uma maçã do Éden, como uma Eva na boate infernal do perigoso Merovíngio, de Matrix. A Branca de Neve mordeu a maçã!

Depois de “O Senhor...”, Jackson transformou em três películas “O Hobbit”, livro de Tolkien que se passa antes da saga de Frodo na Terra Média, quando Bilbo encontra o Anel, numa ação que gira em torno de guerras na mágica extensão territorial do mundo de então. Mas, como o sucesso é volúvel, os filmes de “O Hobbit”, apesar de tecnicamente irretocáveis, não causaram o mesmo impacto do que “A Sociedade do Anel”, “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei” nas salas de cinema da Terra Média, digo, da Terra.

Na ilustração desta postagem, uma divertida versão Lego do Aragorn de Viggo Mortensen.

Nenhum comentário:

Postar um comentário