quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Brilho de Britto


Pop, Romero Britto tem uma certa candura infantil, uma doçura inocente, num adulto que não se amargou pela vida. Reconhecidíssimo internacionalmente, o brasileiro tem um estilo inconfundível (e copiado por outrem). Seus quadros têm simplicidade, pois nada neles é nebuloso ou confuso. Há alegria multicolorida, bombardeando os olhos do espectador. Lembro de um pôster de Britto no consultório de minha oftalmologista, num quadro chamado Abraço. Todas as imagens analisadas aqui foram extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, Celebração Coca-Cola, acrílico sobre tela de 2015. Temos aqui uma alusão clara à Pop Art, movimento este que se inspirou no mundo da Propaganda, da Indústria e da Cultura de Massa – existe algo mais massivo do que Coca-Cola? A garrafa aqui explode estonteantemente, como num Big Bang, como num orgasmo, trazendo desordem e prazer. O formato fálico da garrafa é inevitável e, perdoem minha indiscrição, é uma ejaculação. Existe alívio, pois havia muita pressão estancada no interior da embalagem, muito tesão recolhido. A tampa é extirpada e a garrafa estoura como num delicioso espumante gelado, numa celebração de Réveillon, marcando o fim de um ciclo e o início de outro ciclo, numa agressão que serve para marcar uma divisão clara entre antes e depois. É a euforia de Ano Novo, numa reunião eufórica e animada, num momento passageiro de alegria e entusiasmo. O som dos explosivos dos fogos e dos foguetes são a agressão sonora que marca uma divisão clara entre velho e novo, do modo como os belos e coloridos fogos de artifício chineses serviram ao Ocidente para a invenção da agressiva pólvora. Aqui, a garrafa é lustrosa e reluzente, no esforço mercadológico de design de embalagem, na intenção de se desenhar uma embalagem extremamente sedutora, chamativa, pertinente e vendedora, na batalha implícita nas gôndolas de supermercado, onde produtos acotovelam-se para conquistar o consumidor, o alvo de todos os esforços de mercado. A Pop Art inspira-se nessa batalha por um lugar ao Sol, e é uma selva, com plantas concorrendo pelo espaço, como no mercado de trabalho, com vários pretendentes para a mesma vaga, como espermatozoides concorrendo pelo mesmo óvulo passivo e sedutor: é o objeto de desejo. Este quadro é bem representativo, pois mostra a verdadeira paixão de Britto pelo mundo encantado das cores – nunca vemos um Brito triste acinzentado ou em preto & branco. É exatamente esta alegria cromática que fez Britto tão célebre e reconhecido, do modo como cada grande artista trata de conquistar sua própria identidade, produzindo um estilo único e inconfundível. Aqui, a explosão do refrigerante gera ondas bem sinuosas, na sedução da água fluente, como num rio caudaloso que nutre e hidrata os seres vivos. Em alguns pontos do quadro vemos corações avermelhados, os quais simbolizam a paixão de Britto por produzir Arte, num pessoa confortavelmente dentro de si mesma. Vemos esferas lúdicas, como enfeites em uma árvore de Natal, celebrando o fim de um ano, na celebração do nascimento de uma pessoa de suma importância. Britto deve ser daquelas pessoas que adoram montar enfeites de Natal, no prazer de enfeitar com cores e brilho uma casa. Em outros pontos, vemos estrelas, no brilho estelar de Britto, um verdadeiro astro das Artes Plásticas. As estrelas enfeitam um céu de agradável noite amena, num encontro de estrelas irmãs, de uma mesma constelação, como membros de uma família de realeza, representando todas as famílias de seu reino. Em outros pontos, vemos flores rosadas, na delicadeza de um jardim bem-cuidado, na dedicação paternal de um jardineiro, debruçado sobre o trabalho, amando a terra, como num imigrante italiano no Rio Grande do Sul, arando sua terra, sonhando com uma vida melhor do que a vida na Itália. Em outros pontos, vemos tons de verde, numa floresta fértil e exuberante, como na flora carioca, no Jardim Botânico do Rio, com suas majestosas palmeiras e vitórias-régias, na fertilidade imaginativa de Britto, numa cabeça que é um gramado onde brotam flores silvestres na Primavera, numa mente que é uma verdadeira copa de árvore frondosa, profundamente enraizada, firme e forte em seu porte majestoso, numa imaginação brotando incessantemente como folhas e frutos. A mente de cada artista é uma cornucópia psíquica, sempre prosperando, sempre respirando. Apesar das cores alegres, há uma cor decisiva em Brito – o preto. Coadjuvante, discreto e essencial, o preto de Britto serve para delinear limites nos quadros, estabelecendo terrenos claramente divididos. Aqui, o preto é mínimo e, ainda assim, essencial. Aqui, temos um mistério: como uma garrafa tão sem cores pode gerar uma explosão tão multicolorida? É uma contradição. Ao fundo da garrafa, vemos um fundo avermelhado, uterino, na origem primordial, no mundo que nos precede antes de encarnar. É o enigma da Imaculada Conceição: concepção pura, sem influência da matéria.


Acima, Esconde-Esconde, acrílico sobre tela de 2014. Temos aqui uma identidade feminina, remetendo à adorável personagem Hello Kitty, febre nos anos 80, em diversos tipos de produtos, como estojos escolares e papéis de carta. A gatinha está brincando em um Éden perfeito e prazeroso. Sua pele é absolutamente branca, num espaço de respiro que contrasta com as cores restantes do quadro. Ela sorri contente, e podemos ver os pequenos orifícios pelos quais brotam pelinhos invisíveis, como num rosto de mulher, sem barba. Seus olhos são doces, com cílios proeminentes, e seu focinho é em tom de magenta, na cor-de-rosa do universo da boneca Barbie. No fundo temos um céu perfeitamente azul, céu de brigadeiro, e sobre o azul infinito e profundo vemos rabiscos furtivos, divertidos, de uma criança rabiscando e explorando as possibilidades de desenho, como num desenho de criança na pré-escola, sonhando em desenhar tão bem quanto os desenhistas profissionais adultos. Sobre a cabeça da gatinha vemos formas que parecem laços ornamentais, das cores azul profundo e bordô, sendo este último um tom discreto, adulto, nas cores do vinho – é uma pitada de adultice em um Britto tão infante e doce. No topo da cabeça da gatinha vemos uma ponta triangular, numa pitada mínima de agressividade, na forma espinhenta das pirâmides, abrasivas, numa pitada agressiva em um quadro tão delicado e feminino, no modo como o próprio Britto possui uma pitada (necessária e essencial) de agressividade, num artista que lutou na vida para se estabelecer e ser reconhecido. Sobre a gatinha vemos doces coraçõezinhos, numa mensagem psicológica ao espectador: amar o mundo e a si mesmo é o que traz felicidade a uma pessoa, e se as pessoas amam o trabalho de Britto, é por ver que este ama o mundo, estando em harmonia existencial consigo mesmo. Adornando a cabeça da gatinha, uma flor em tons de rosa e laranja, como se fosse uma flor retirada deste jardim tão rico e divertido. A gatinha brinca de esconde-esconde no jardim, e as flores são extremamente coloridas, como num mágico caleidoscópio, explorando possibilidades infinitas de uma chuva cromática. As flores são vibrantes como vitrais de igreja, revelando sua mágica ao simples toque da luz solar, enchendo o templo de cor e alegria, num retorno à infância, ao berço, no desencarne de uma pessoa que volta para esse útero tão rico, reconfortante e acolhedor, no nome da colônia espiritual “Nosso Lar”. Britto sente-se em casa ao produzir, confortável, de pantufas, à vontade consigo mesmo, num artista que se encontrou no próprio trabalho. As flores emitem uma melodia límpida, harmoniosa, num dia de Sol e luz, de leveza, de luxo, conquistando as almas dos seres humanos, mostrando a estes que há um mundo melhor, um mundo acima das vaidades e mesquinharias mundanas – Britto crê no infinito. Neste jardim há também luxuriantes folhagens, em muitos tons de verde, num belo gramado de futebol, num carpete cheio de vida, no conforto de uma casa acarpetada ou de um simples tapete. As folhagens são pontiagudas, meio agressivas, na “feiura” do pragmatismo, do pensamento prático, racional. Essas “agulhas” convivem harmonicamente com as flores, as quais pouca agressividade possuem, como um guardacostas protegendo uma estrela, num vínculo erótico de codependência. No jardim ainda vemos umas pitadas de azul, combinando como céu limpo, numa temperatura amena e ideal – nem quente, nem fria, numa eterna primavera, do modo como os espíritos desencarnados, livres do corpo físico sensível às temperaturas, não sentem frio, nem calor, na plenitude do espírito livre. A assinatura de Britto é sublinhada, como um chão, uma base de referência, na noção de direção das pessoas que deram um Norte para as suas próprias vidas, num labirinto sendo desvendado e solucionado. A estrela deste quadro é o vazio em branco da gatinha, na pureza infantil em se divertir, numa brincadeira simples e deliciosa como esconde-esconde. O branco é o que abre a porta para o restante das cores. E os coraçõezinhos são como borboletas alegres, no prazer da vida, muita vida.


Acima, Gato ao Ar Livre, acrílico sobre tela de 2014. Como o Pequeno Príncipe em seu minirreino, o gato sorri altivamente, num Britto reinando livre por meio da Arte, num senhor no controle de seu próprio feudo. Britto gosta de céus bem azuis e limpos, também se apaixonando por estampas. Cheio de amor ao seu redor, amor este representado pelos coraçõezinhos, o gato está pleno e feliz, muito satisfeito. Sua coleira é uma joia dourada, digna de realeza. Sua coroa, também dourada, dá a mensagem de que o gato é quem manda e reina neste reino tão doce. Em Britto podemos sentir o gosto de doces deliciosos, recém-saídos da confeitaria, num chá da tarde acompanhado por acepipes deliciosos, tentadores, na crença espírita de que, no Céu, temos doces irresistíveis para comer, algo que elimina a culpa sobre o pecado capital da Gula. Britto é um doce. Atrás no plano, uma árvore, que remete à genealogia, dando o pedigree do gato, o qual ostenta com orgulho sua linhagem de sangue azul, na questão de que, na Dimensão Metafísica, somos todos sangue azul. A árvore brilha em tons de verde, remetendo a saúde e bem-estar, num jardim impecável, belo, saudável, numa temperatura amena – Britto crê num mundo melhor. A cabeça do gato-rei é branca, remetendo a pureza, como na alva pele de Cate Blanchet na cena final do filme Elizabeth, como um marshmallow ou uma torta cuidadosamente decorada, irresistível ao olhar e à boca. Os membros do gato têm estampas de trazem a cor cinza, na seriedade discreta da cabeça que á adornada pela coroa, no peso da responsabilidade, num monarca sempre coberto de expectativas, na inevitável comparação entre monarcas de diferentes eras e reinos – existe pressão e, ainda assim, o gato sorri radiantemente, passando aos súditos a ideia de estabilidade, do modo como um reino tem que estar em ordem para gerar fartura. Os bigodes do gato são cuidadosamente cortados e dispostos, como se o monarca tivesse recém-saído da barbearia, na importância da aparência na vida da pessoa pública – uma boa aparência pode ajudar muito na vida pública. As orelhas do gato são cândidas, pois, além de branquinhas, trazem um tom rosado, como um interior rosado de um belo bife de filé. Britto deve adorar bichos de pelúcia, e essa candura aparece em sua obra. A coroa tem três pontas, como as Três Marias no céu noturno, guiando navegantes, coruscando no mistério glamoroso da Dimensão Metafísica, dimensão esta falada por Platão, ou Reino dos Céus de Cristo. A coroa é o símbolo de regência, no desafio de reinar sem controlar, evitando assim as ditaduras. A coroa é coletiva, e cada súdito a usa também. É a Igualdade da Revolução Francesa. O regente não pode deixar de lado sequer um súdito, e sempre tem que pensar no todo, colocando-se em último lugar, sendo humilde e, assim, ser respeitado, pois a arrogância precede a queda, como a queda do último Romanov da Rússia. Aqui, outra estampa que se percebe é a florada, na simplicidade da flor silvestre, a qual brota sem alguém ter tido a plantado. Tanto no Antigo Egito quanto na França Monárquica, flores eram símbolo de realeza, no milagre da beleza da vida, trazendo uma flor que, apesar de fisicamente frágil, tem um poder representativo enorme, como uma altiva vitória-régia. O gato repousa sobre uma laje, num caminho claramente delineado, no itinerário existencial pelo qual o monarca tem que passar, suportando décadas de vida pública, do modo como a pessoa pública está sempre exposta, como uma Evita Perón. O focinho do gato é cor-de-rosa, e representa o instinto do faro, do modo como o instinto da pessoa fala mais alto, pois não há livro ou faculdade que ensine alguém a brilhar – e Brito brilha. Britto venceu em um terreno no qual muitos outros artistas sucumbem, vencendo por meio de sua singularidade, longe da mediocridade do plágio. O gato-monarca está feliz e exibe-se com orgulho e satisfação, convidando diplomaticamente estrangeiros para receber estes em seu reino próspero e exuberante. E Brito nos convida para entrar, numa casa aberta e pulsante. Como eu já disse antes, a cor preta é decisiva em Britto, colocando-se ela coadjuvante e discreta, abrindo espaço para as explosões cromáticas deste artista.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Elegância Gorda




Certa vez, um museu brasileiro – o MASP, se não me lapsa a memória – fez uma mostra sobre o colombiano Fernando Botero, e o anúncio publicitário sobre a exposição era bem divertido, mostrando um prego na parede, só que o prego estava quase caindo, como se não tivesse suportado o peso de uma obra de Botero, o qual retrata sempre pessoas gordinhas, num artista de estilo inconfundível. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, Cristo. O rosto do Salvador é simétrico; o seu coração ardente, também. O coração queima uma chama inextinguível, na força da fé entre os que consideram Jesus o maior espírito que já encarnou na Terra – inclusive, eu já falei de Jesus Cristo aqui no blog. Seu cabelo é crespo, sem um fio de fios brancos, numa pessoa no auge da juventude, numa vida abreviada de um modo absolutamente cruel, só equiparável à execução de pessoas queimadas vivas. Jesus Cristo, de fato, ressuscitou – na fé dos cristãos, num Jesus que, de fato, não foi reconhecido em vida. A barba aqui é extensa, num homem que jamais a aparou. Sua boca é pequena, mínima, rósea, combinando cromaticamente com a chama do coração e parte de suas vestes. A parte branca das vestes é o apelo de Jesus por paz no Mundo, um apelo encarnado pelos papas, os quais repudiam qualquer tipo de violência e crueldade. A veste branca é limpa, perfumada, na pureza perfumada da atitude de pessoas que seguem Tao: o que é melhor – sujeira ou limpeza? A veste alaranjada é o calor do Sol, da vida, num Jesus que dedicou uma vida a uma tarefa instintiva e inconsciente: pregar o conceito metafísico do Reino dos Céus, um conceito inédito até então – o Mundo, na época de Jesus, era tosco, violento e cruel, grosso ao ponto de não acreditar em um Mundo melhor acima, na dimensão metafísica. Há uma aurela sobre a cabeça de Jesus, transmitindo a divindade do pensamento taoista, na iluminação psíquica, na mente capaz de transcender a matéria e conectar-se com o espiritual, o psicológico, o comportamental. É uma lâmpada, no símbolo da iluminação criativa, num pregador criativo e imaginativo. É um nascer do Sol, que traz a ressurreição, ou um pôr do Sol, que anuncia a morte de Jesus após a Última Ceia. Seus dedos gordinhos simbolizam os dedos célebres da divindade do homem Jesus, difundindo o conceito de perdão: se a vida é eterna, há tempo de sobra para o perdão, pois a Eternidade vence tudo; vence a matéria; vence o mundano; vence o amargo e o mau. E um diamante, é divino? Não, porque o diamante é matéria, e a matéria não é eterna como o espírito – este é a simplicidade. Em um dos filmes de Indiana Jones, uma personagem tem que escolher, dentre muitos cálices, o que fora usado por Jesus na Ceia. Então o personagem escolhe o cálice mais luxuoso, feito de ouro e cravejado de pedras preciosas. Só que a escolha foi errônea, pois o cálice de Jesus era o mais simples de todos, digno de um filho de carpinteiro. Ou seja, a simplicidade é superior à soberba. Jesus cobra o desapego ao material. Aqui, o coração pulsa, incendiando vontade de viver, encontrando propósito e sentido. Ao redor dele, a famosa Coroa de Espinhos, dolorida, na dor inevitável do ser encarnado. Todos sentem dor na encarnação. O que faz a diferença é se esta pessoa vai sofrer por meio da dor. Quem não sofre, mesmo com dor, é feliz. Nesses tempos vi na rua um cachorro com uma das patas amputadas, e o bicho corria alegremente, sem reclamar da vida. Os símbolos católicos são intensos e apaixonados. Aqui, o cabelo de Jesus está impecavelmente penteado, na autoestima de uma pessoa que se gosta e se cuida. A divisão capilar é o marco divisório do Ano Zero, partindo em duas a História da Humanidade, como numa Elizabeth I, marcando a História da Inglaterra. O coração está centralizado, no prazer de um fumante em acender um cigarro. O prazer convive com a dor. O coração ardente é libertário, e é o amor ao próximo, na pessoa que se coloca nos sapatos dos outros, entendendo a dor destes. Amar é colocar-se no lugar do outro. Os olhos deste Jesus são bem escuros e profundos, no mistério da Divina Providência: nada é revelado antes do tempo apropriado. Quem sou eu e para onde vou? Jesus na cruz questiona a si mesmo. O sobrepeso deste Jesus é a cornucópia da dimensão metafísica, na fartura de uma dimensão mais plena e nobre, acima de nós, esperando por nosso desencarne e por nosso retorno ao Lar. Este quadro é uma declaração de amor ao Cristianismo. A imperfeição das pontas da barba é a inevitável – porém, não despropositada – desordem da Vida. Nunca ouvimos dizer que Deus escreve certo por linhas tortas?


Acima, Monalisa. Há aqui metalinguagem: pintor falando de pintor, como uma atriz interpretando outra atriz. É uma ironia. Esta neo-Monalisa tem um olhar alegre, satisfeito, de quem acabou de fazer uma bela refeição. Nunca ouvimos dizer que barriga cheia, coração contente? Seu decote é sensual, ainda que recatado, como no busto de Fafá de Belém, transbordando vida, abundante, generosa. Seu cabelo cacheado repousa calmamente, como um rio fluindo caudalosamente. Seu delicado véu negro, de fino tecido, cobre-lhe a cabeça, na discrição de uma mulher aristocrática. Sequer há uma brisa na cena, pois o véu não está tremulando como uma bandeira. Seu nariz é delicado, mínimo, elegante, como num nariz mínimo de Michael Jackson. Seu rosto é redondo como uma Lua cheia, emanando um leve brilho, com brandura. Seu pescoço é forte e sustenta a pesada cabeça. Suas mãos gordinhas mostram unhas impecavelmente feitas, numa mulher com autoestima, num ser humano que gosta de si mesmo e se cuida. Ela está lactante, na generosidade de uma autêntica mamma italiana, na ironia da semelhança com o termo “mama” e “mamar”. Ela recém deu à luz, alegre com um bebê saudável. Suas vestes são nobres, elaboradas, luxuosas – é uma mulher bem-vestida. O negror de suas vestes contrastam com a pele clara. Suas sobrancelhas são mínimas, quase imperceptíveis, como era moda nos anos 70, como nas sobrancelhas de Elis Regina, e Monalisa da MPB. O olhar da Gioconda de da Vinci não é o mesmo da de Botero, é claro, pois cada artista tem identidade própria. Aqui temos uma releitura, numa declaração de amor ao quadro original renascentista. O céu atrás parece ser de uma sensual noite de Lua cheia, como no formato lunar da face desta Gioconda. É uma luz branda, que não fere a retina. O céu é de um azul turquesa escuro, como num profundo mar de mistérios. É como um oceano, guardando segredos, como no enigma eterno da Monalisa, o ponto alto do Museu do Louvre, a grande estrela da cidade de Paris e do Mundo Ocidental, forte o suficiente para seduzir o próprio Leonardo DiCaprio, digo, da Vinci. É um quadro que revela um artista feliz e satisfeito, sorrindo brandamente, produzindo peças que se tornam filhas entranhadas, no sentido de que a obra, apesar de comercializada, é sempre pertencente ao próprio artista, ao próprio pai. E por que a preferência de Botero por modelos obesos? A obesidade é a abundância, a cornucópia natalina, num Papai Noel gordo, que carrega um gordo saco cheio de brinquedos, tesouros e presentes. Esta Monalisa é, por fora, gordinha, mas, por dentro, revela uma elegância delgada, magra, minimalista, no sentido de que beleza vem de dentro; beleza não se compra; amor não se compra. As vestes negras revelam sobriedade, numa pessoa centrada e pés-no-chão, numa concepção realista, de um artista que revela saber o valor da discrição, como no Taoismo, que revela que a pessoa não revele sua própria riqueza como um pavão. Aqui, temos um Botero comedido, comportado, pacato, na metáfora de Super-Homem e Clark Kent: seja pacato e serás um super-herói. A paisagem ao fundo difere do quadro de da Vinci, e as colinas aqui têm formato piramidal, como num Egito Antigo abundante, na glória nababesca dos faraós, num exagero de soberba: túmulos, as pirâmides são um resquício do exagero faraônico, numa sociedade piramidal, onde classes minoritárias estão sobre as classes mais numerosas. Estas colinas de Botero têm formato de seios femininos, na lactância generosa desta Monalisa, na fartura de uma mesa de ceia de Natal, reunindo a família, celebrando uma farta refeição. Botero é assim: um banquete. Os olhos desta Gioconda são dois peixes negros, fluindo por este oceano, num rosto sutilmente corado. O véu negro é a noite densa, mas não assustadora, e é uma sensual noite tropical enluarada, no sensual farfalhar das folhas das árvores. Seus dedos de dama revelam bondade e nobreza, talvez unhas polidas por um séquito de damas de companhia – esta Monalisa é para poucos, talvez remetendo à época em que a obesidade feminina era padrão de beleza. Como numa loja de tamanhos especiais, dando autoestima à mulher obesa. Por que será que hoje existe este padrão de beleza de mulheres extremamente magras? O que é melhor: ser gordinho ou ser anoréxico?


Acima, O Rapto de Europa. A sensualidade do feminino abduzido pelo masculino. Completamente nua, Europa só usa joias. Um colar de pérolas adorna o busto, dividido entre dois seios belos, redondos. É a pérola da ostra, nos segredos profundos do oceano, no odor de mar, no odor da parte íntima da mulher. E da ostra vem Vênus, anunciando a noite ou o início do dia, como uma Iemanjá sexy, usando um vestido decotado e tendo cabelos negros que lhe caem nos ombros, numa versão sensual da Virgem Maria. Aqui, a virgindade e Europa é sexy e cobiçada pelo furioso touro, e podemos ver um sinal de pênis no animal, para termos a certeza de que se trata do princípio masculino fálico. As patas do bicho estão completamente mergulhadas no infinito oceano, adormecidas, entorpecidas, imóveis pelo canto de Vênus que faz Marte, o Rei da Guerra, adormecer. Assim, a Paz é estabelecida, e a raiva da Guerra é derrotada, como diz Tao: a Paz é maior (e melhor) do que a Raiva. O touro é extremamente corpulento, forte, como nos homens de Aldo Locatelli, num Botero que ama a corpulência e a força, e o animal tem veias salientes, no vigor da vida e da sexualidade. Os seios de Europa são dois grandes olhos, na fartura que alimenta o bebê, no caso, o touro. Na verdade, não é o touro quem conduz Europa, mas é Europa quem conduz o touro, como Maria carregando o Menino Jesus, na vitória do Yin sobre o Yang. Podemos ver um pequeno pedaço da vulva de Europa, a qual parece uma diva de Ópera, só que nua. O rabo do touro balança furiosamente, dando vida ao quadro. O oceano ao fundo é o Infinito, a Vida Eterna, no sentido de que as pessoas jamais morrem, jamais. São as três leis básicas: o espírito é único, indivisível e eterno. O oceano estende-se até onde a vista pode alcançar, e o céu o complementa cromaticamente, num lindo tom discreto de azul. Este mar é brando, doce e agradável, com ondas suaves, que acariciam e acolhem, trazendo muito prazer e relaxamento, no retorno ao útero, ao vaso primordial, no bem-estar de quem está em casa. É um mar que nos convida a mergulhar, e podemos ouvir o som das pequenas ondas, como um farfalhar de quietude. Podemos sentir o perfume dessas águas sedutoras, e podemos sentir o quentinho dessa água, como numa deliciosa piscina térmica. Europa sente-se segura sobre o touro raptor, e, ainda assim, conduz o animal. Europa tem ares de mulher rica, ostentando suas joias. Seus cabelos estão jogados para trás, recatados, recolhidos, numa Europa que é a Mãe do Mundo Ocidental. Ela segura um dos chifres, equilibrando-se para não cair. E o touro a assegura de que não a deixará cair, no vínculo erótico entre protetor e protegida. O touro é belo; e Europa, também. Botero nos mostra que magreza não é sinônimo de beleza, apesar da rima entre estes substantivos. Os olhos de Europa estão fixos nos olhos do espectador, convidando este a entrar no quadro; a compreendê-lo. Seus lábios são vermelhos, numa mulher cuidadosamente arrumada, digna de posar para um grande artista. O focinho e a boca do touro são bem negros, na imprevisibilidade da existência, no sentido de que as coisas nunca acontecem exatamente como imaginamos que elas aconteceriam, nas surpresas da Divina Providência – não existe bola de cristal; há apenas uma ideia vaga do futuro. Neste quadro há sexo, com opostos unindo-se, sempre em nome da unidade cósmica, numa Barbra Streisand que já disse, em entrevista, querer conhecer o som do orgasmo. Os olhos do touro são negros e profundos, como dois diamantes negros incrustados. Suas patas são quatro pilares fortíssimos, como um Atlas sustentando o Mundo, mais fortes do que os pilares da Terra. São colunas gregas ou romanas, erguendo templos e prédios suntuosos. As veias salientes do touro são como raios de tempestade, rompendo ruidosamente nos céus, na fúria da Natureza. A outra mão de Europa coloca-se próxima ao rabo do touro, como se o membro fosse um chicote, numa Mulhergato agressiva, domando masculino com seu chicote, como um domador de circo, na vitória da mente sobre o corpo. Na verdade, é Europa quem está raptando o touro.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Mago (Parte 7)




Falo pela sétima vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram quase todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Poça, xilogravura de 1952, 31,9 cm x 24 cm. A pureza do traço de Escher num reflexo n’água. A marca dos pneus são as cicatrizes existenciais, inevitáveis, próprias de pessoas maduras e vividas – não é bom ser jovem demais, sem marcas, sem experiências. A maturidade tem muitos encantos, num momento em que a pessoa finalmente consegue conciliar as coisas dentro de si. Além das marcas de pneus, vemos pegadas, numa trilha que pode nos levar a algo, a alguma descoberta, a algum destino – é só seguir as pegadas. Vemos refletido o Sol ou a Lua, e não sabemos se é dia ou noite, num sexy limiar entre luz e escuridão, como no Castelo de Grayskull. A poça reflete um céu incerto, cinzento, não sabendo se é Boogie ou Woogie – a indefinição tem seus encantos: a dualidade, como numa tomada bivolt. Como um espelho, a poça é um instrumento existencial de reflexão, convidando o espectador a olhar-se e refletir sobre si mesmo, num processo solitário de autocognição, num momento a sós, num saudável momento a sós. A estrada é úmida e barrenta, imunda, emporcalhando os pneus e os sapatos. Não é um terreno muito convidativo, nem belo, nem agradável. A água está absolutamente pacífica e estável, num momento de paz profunda, num silêncio inquebrantável – é o momento a sós. Pobre da vida que não tem paz. Como Tao diz, a paz é mais grandiosa do que a raiva. É um cimento mole, ainda úmido, que acabou sendo maculado e tatuado pelos pneus e pelos sapatos, gerando uma cicatriz, ou seja, algo indelével, como na Calçada da Fama, maculada pelas mãos dos astros. A vegetação refletida é bela, frondosa, como veias e artérias em um organismo de carne e osso, fazendo a vida pulsar, no vaivém de carros e pessoas por esta estrada barrenta – é o movimento da vida, numa demanda que faz uma estrada ser extremamente útil e funcional, pois pobre daquele que não é útil ao mundo, numa vida enfadonha de princesa, na qual a pessoa tem casa, comida e roupa lavada, precisando preocupar-se com nada. A estrada tenta driblar o vazio existencial, sendo digna, erguendo a cabeça, como num altivo Leonardo DiCaprio recebendo um Oscar. Trata-se aqui de um cenário plácido, na estabilidade emocional de alguém que está fazendo algo de bom da vida, colocando-se à disposição do Mundo, sendo digno de respeito. A água aqui é um perfeito espelho, convidando Narciso a olhar-se e afogar-se, como numa traiçoeira areia movediça. A poça imaculada contrasta com o barro maculado, num contraste entre Yin e Yang: a intocada beleza feminina com as “rugas” existenciais do masculino. Este quadro se basta. É claro que Escher lançava mão de exaustivos rascunhos, só finalizando a obra quando, finalmente, chegava a um consenso consigo mesmo, dialogando consigo mesmo, executando toda a sua impecabilidade, num artista perfeccionista, quase obsessivo. A água plácida nos tenta a tocá-la e maculá-la, no prazer transgressor da defloração, pois uma sociedade só evolui por meio da transgressão de alguns de seus indivíduos, dizia o diretor Fábio Barreto. As marcas dos calçados soam masculinas – não são de salto alto. São pés grandes, masculinos, indo e vindo, revelando ser uma via de duas mãos; uma faca de dois gumes; uma contradição de trânsito – o que sobe, desce. E por que a misteriosa esfera, a qual não podemos ver se é Sol ou Lua? Escher é o mestre da dualidade, sempre pregando charadas insolúveis, exercendo fascínio permanente, inesgotável. O barro cinzento é a dúvida existencial: o que está acontecendo com minha própria vida? O artista luta para se estabelecer, e alguns só são plenamente reconhecidos depois que morrem, como Jesus Cristo, que em vida foi subestimando e só séculos depois foi devidamente reconhecido. O Sol/Lua é o ponto mais claro do quadro, destacando-se em meio a uma cena tão sombria. No barro, vemos crateras, que contam uma história de violação, de marcos divisórios, como AC e DC.

Acima, Formiga, litogravura de 1943, 24,9 cm x 18,2 cm. Aqui, Escher quer simplesmente debruçar-se sobre a Biologia e reproduzir cada detalhe de um animal tão pequeno e delicado. Esta formiga é como um robô, numa nanotecnologia. A formiga aqui está solitária, talvez perdida de seu formigueiro, longe de casa, de suas referências. Vemos o movimento das patas, e o som de pegadinhas suaves, num Escher laborioso como uma formiga, sempre construindo seus formigueiros, num trabalho incessante. É um quadro meio assustador para quem é aracnofóbico. Mesmo desenhando, Escher é invisível. O que é ele? A formiga tem na boca garras afiadíssimas, prontas para estraçalhar a presa, devorando folhas de árvores e animais maiores, na força da coletividade, num cadáver de pássaro sendo devorado por inúmeras formigas ao mesmo tempo. O formigueiro é um enigma: como é que ele funciona? As antenas da formiga dão-lhe noção e sensibilidade, sentindo o universo ao seu redor, num Escher antenado com o Mundo. A formiga é uma anônima operária, humilde em seu anonimato, conformada com sua posição de “mais um tijolo na parede”, como numa ditadura, em que o cidadão é reduzido a uma pilha Rayovac, a serviço de um estado. A formiga projeta uma suave sombra abaixo de si, dando efeito de profundidade ao quadro, e o inseto pula aos olhos de quem o vê. A formiga é um Escher que procura por algo, mas não sabe exatamente pelo quê. Seu corpo negro é lustroso, polido como prata, e seu “bumbum” revela uma bagagem, uma carga existencial, um portamala cheio de recordações de uma vida bem vivida. É como um bombom delicioso, negro, amargo, fora do gosto infantil. Neste quadro, a formiga pode estar em qualquer posição: num teto, num chão ou numa parede. É um quadro sem centro gravitacional, uma característica frequente em Escher, num artista de mente questionadora, algo impossível em regimes políticos totalitários: Escher é um libertário. Este ser lembra o monstro Laracna de O Senhor dos Anéis, um ser absolutamente agressivo e repugnante, sempre faminto, nunca satisfeito, num artista sempre faminto por questionamento, sempre explorando possibilidades. As antenas são o relacionamento da pessoa como Cosmos à sua volta, sensitivas, detectando o mais sutil sinal emitido pelo Mundo. Suas patas, apesar de delgadas, são fortes, guiando o espectador pelo complexo sistema de várias patas, numa Natureza perfeita no que faz – Escher tem uma paixão pela Biologia. Resta-nos saber como Escher se sairia se tivesse tornado-se fotógrafo; sairia-se bem, provavelmente. Esta formiga tem olhos grandes, insaciáveis por Arte, observando o espectador ameaçadoramente. A formiga é grande e minúscula ao mesmo tempo, numa contradição escheriana, em que positivo e negativo dançam uma dança harmônica. Frágil, esta formiga pode ser facilmente esmagada por um ser humano; forte, a formiga é um exército inteiro de força blindada, numa armadura que sabe dizer “não”, tendo virilidade e independência. É a dureza bélica de Yang. A formiga é um soldado indestrutível, um agente de um formigueiro de vida pulsante, complexa. O pescoço do inseto aqui é extremamente frágil, fininho, sustentando uma cabeça descomunal, armada até os dentes. Escher vê a sensualidade da força da natureza, adicionando-se ao fluxo, entregando-se. A superfície abaixo do inseto é texturizada, como cascalho, numa parede imperfeita e rústica, aconchegante, convidativa. É a dúvida cinzenta, debatendo-se entre dia e noite. Ao observarmos à distância, a formiga parece que é uma foto, tal a precisão de Escher. A formiga está cuidando de sua própria vida, e não espera que alguém viva a vida deste mesmo animal. A formiga é grande ou pequena?

Acima, Faixa de Möbius, xilogravura de 1963, 20,5 cm x 45,3 cm. Este quadro é uma alegoria da Eternidade, pois as formigas – Escher gosta de formigas – estão em constante fluxo, sempre caminhando. É um número oito, com curiosa semelhança com o símbolo na fronte do célebre busto de Nefertiti. Os olhos das formigas são negros e profundos, e são lustrosos, e as formigas aqui parecem estar divertindo-se, talvez num Escher que se divertia ao produzir suas obras, estabelecendo um vínculo afetivo com os próprios quadros, do modo como Leonardo da Vinci ficou apegado à sua própria Monalisa. As formigas são bordôs, na cor do vinho e do sangue de Cristo, no mistério da transubstanciação no momento da missa, em que o vinho torna-se o sangue do Salvador. É o prazer de um bom vinho, no prazer artístico de produzir, no prazer de qualquer pessoa que faz o que gosta e que gosta do que faz. A faixa sinuosa é sensual, feminina, liquidiscente, e recebe as formigas com o prazer de um grande e generoso anfitrião. A faixa tem um brilho metálico, e tem furos quadriculados. É a estrada da Vida, sempre fluindo, como cinzentos paralelepípedos. Por outro lado, há algo que na faz sentido, pois as formigas caminham eternamente da mesma forma, nunca questionando, num artista buscando sentido na Vida. Cada formiga tem sua carga existencial, mas aqui não há diferenciação – seriam todas essas formigas uma formiga só, mas captada em momentos diferentes? Seria como uma fotomontagem: a formiga é captada em vários momentos e, depois, Escher teria montado o quadro. O quadro é uma representação da rotina, da ordem do dia, na tarefa rotineira de trabalho, limpeza, higiene e organização. A formiga é extremamente laboriosa, como Escher o foi. O quadro é fascinante. Observando-se bem de perto, vemos a meticulosidade deste artista, pois ele trabalhava por meio de muitos e muitos traços, numa paciência admirável. Olhando de perto vemos cada tracinho e, ao nos afastarmos, compreendemos o efeito Escher. Quanto tempo será que o artista levava para produzir cada obra? Trabalhando por meio de contrastes, Escher entra na mente do espectador. É o ciclo da Vida, ascendendo e descendendo, na rotina da respiração, em pulmões que expiram e inspiram, num coração de bate. Junto à necessária rotina, vem o insight existencial, e o ser humano encontra propósito na Vida, intercalando rotina com excepcional; intercalando sonho com trabalho; contemplação com labor. Aqui, temos a mágica do movimento de Escher, que excitava as percepções do espectador. Escher é uma lanterna mágica, pela qual podemos ver fluxo plástico. Os furos quadriculados na faixa sinuosa são janelas, aberturas que fazem uma casa respirar e viver. São lacunas de sensual vazio, formando um centro gravitacional que puxa o espectador para dentro do quadro. O espectador pergunta-se: “Como será que o cara fez isso?”. As formigas aqui caminham em total e absoluta harmonia, nunca havendo um congestionamento ou uma desordem. Aqui, a Lei reina e estabelece a Paz. Como no Ecossistema, onde tudo se aproveita. As formigas estão em perfeita paz, ocupadas no labor do dia, ocupando-se alegremente, encontrando propósito. É como uma roda em uma gaiola de roedor hamster, sempre girando, trazendo fluxo de caixa ao organismo econômico. É a Roda da Economia, girando em nome da riqueza e do bem-estar. A caixa quadriculada permite-nos que vejamos todas as formigas em trânsito, trazendo arejamento e leveza ao quadro. Podemos sentir uma doce brisa. O fundo branco é a Paz, fazendo contraste com os elementos mais escuros do quadro, trazendo, assim, a visibilidade de formas.

Acima, Gravidade, litogravura de 1952, 29,7 cm x 29,7 cm. Uma linda estrela expande-se por todos os lados, como um popstar difundido pelos quatro cantos do Mundo. A cultura de massa afeta a todos, sem pedir licença para entrar na mente das pessoas. Os meios de Comunicação Social chegam a nós por papel ou digitalmente, num objetivo quantitativo – quanto mais espectadores, melhor. A estrela cadente atende a pedidos quando ela cai, fascinando o céu noturno. A Estrela de Belém guia os Reis Magos até a manjedoura. A Estrela d’Alva anuncia um novo dia, como um galo cantante, como um superstar sendo visto e reconhecido pelas pessoas, pelas massas, como uma Gisele sendo revelada. É uma estrela glacial, feita de cristal gelado, fascinando por suas formas agressivas e belas, com suas pontas afiadas, emitindo o seguinte aviso: não chegue perto demais. A estrela aqui está tomada de vida pulsante: vemos serpentes e patas de animais. É uma riqueza biológica impressionante, assustadora, num ecossistema rico como uma ninhada numerosa de gatos ou cachorros, no milagre da Vida, da reprodução. A limpeza da estrela cristalina contrasta com os membros de animais, como um covil de cobras, numeroso, como um harém reptiliano. Remete a uma estrela militar, símbolo de poder, força, agressividade e disciplina. E por que a estrela está toda perfurada, tão cheia de seres vivos dentro de si? Esses seres estão lutando entre si? Seria a luta pela Vida, na Seleção Natural de Darwin? Os seres aqui lutam por um lugar ao Sol. Parece que a estrela os aprisiona, impedindo-os de sair. Seria a estrela um belo presídio, como numa encarnação? De onde veio a vida que pulsa dentro desta estrutura de gelo? Podemos ouvir o som de fino cristal tilintando, na pureza da voz de um grande cantor ou cantora, numa estrela que vibra musicalmente no Céu, sempre seduzindo por sua beleza impecável. As pontas da estrela são bem agressivas, abrasivas, mas não chegam a ferir os seres dentro dela. A ponta espinhosa requer respeito. Do contrário, lesões acontecerão. A estrela exige ser contemplada à distância. Os seres vivos aqui são coloridos: amarelos, esverdeados, avermelhados e alaranjados, como num prato do colorido cereal Froot Loops. É a candura infantil, sempre atenta às cores, à festa cromática. Tudo neste quadro parece girar em sentido horário, na ordem cronológica. A estrela gira sem parar, e os seres dentro dela fazem parte deste movimento, como um planeta Terra, fazendo tudo e todos girar junto com a esfera terrestre. É uma dança conjunta, na harmonia de um biossistema integrado, onde cada agente tem uma função para com o todo – nada na Natureza está isolado. Podemos ouvir sons guturais e o balançar das línguas das serpentes. Escher é muito cheio de vida. E por que a estrela gira? É o ritmo do Mundo. Este cristal brilha irresistivelmente, seduzindo por sua beleza fria, racional, na beleza matemática, na pureza dos números. O pensamento racional é belo, exato, preciso. É a construção técnica do espírito, na demanda existencial. A estrela parece estar rolando morro abaixo, no efeito “bola de neve” – quanto mais rola, maior fica. Este colorido dá uma certa alegria ao quadro, em contraste com a sóbria frieza estelar. A estrela é uma espécie de prisão, de calabouço, aprisionado a feras do Inconsciente, impondo ordem ao caos do Inconsciente, jogando luz sobre este. É a vitória da Razão, da autocognição, do autodescobrimento. As criaturas bestiais estão contidas, derrotadas, controladas.