quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A Singularidade do Design Italiano




Falo pela primeira vez sobre o artista gráfico italiano Ettore Sottsass. Estava eu nesses tempos no site do majestoso Metropolitan Museum of Art de Nova York, meu amado Met, e vi que a instituição abria uma mostra sobre este designer italiano, o qual, antes disso, eu desconhecia. Filho de um italiano com uma austríaca, Ettore destacou-se no desenho italiano no pós-guerra, formando-se em Arquitetura pela Universidade Politécnica de Turim no ano de 1939, no início do conflito. Neste ano, Sottsass estaria completando 100 anos de idade, tendo falecido em 2007. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, um divisor de ambientes. Um deus hindu, com vários braços e atributos. Uma aranha pós-moderna, colorida, abrindo os braços para seduzir uma mosquinha desavisada, enjaulando esta. A peça convida a colecionar livros, numa criatividade tão própria do Design Italiano. É uma dança cromática, alegre, festiva, carnavalesca, driblando as sequelas amargas da II Grande Guerra – o Mundo Pós-Guerra quer mais é se esquecer de Hitler e Mussolini, num pacto ocidental de reconstrução, assim como a Festa da Uva de Caxias renasce após o conflito. Este divisor de Ettore é o representante de um divisor de águas no Desenho Ocidental, e os padrões clássicos e tradicionais perdem força perante a reinvenção e a transgressão do Pós-Moderno, numa peça que, aqui, mesmo tendo sido feita há décadas, permanece fresquinha e inovadora, adorável e formidável, privilegiando uma casa que possua este divisor. É uma peça tão bela que dá quase pena de colocarmos objetos nela, como livros e enfeites em geral – é uma peça que se basta. Na parte inferior, vemos duas gavetinhas vermelhas, na cor vibrante do sangue italiano, no molho de tomate da tradicional pasta italiana. Estas gavetinhas são o segredo guardado da mente de Sottsass, no mistério do talento: o que faz uma pessoa ser talentosa e genial? É algo do espírito encarnado? De onde vem a criatividade? As gavetinhas são os segredos do Inconsciente, numa Caixa de Pandora, a qual jamais pode ser aberta ou ser exposta. O vermelho é o sangue derramado na II Guerra, o sangue de milhões de pessoas, como no Holocausto, na loucura e na demência do Nazifascismo. As gavetinhas são um segredo, um mistério, e cada um sabe o que guardar nelas, numa questão íntima e pessoal, privada, sigilosa, do pacto de confidência num consultório psiquiátrico: tudo o que é dito no consultório, no consultório permanece. No topo da peça, um retângulo que é a tela de um computador, em uma peça confeccionada décadas antes da Era Digital. A “tela” está no topo de tudo, como uma janela para se observar o Mundo, do modo como, hoje em dia, quem não está online, não está no Mundo, como em regimes ditatoriais, que tolhem a liberdade do cidadão em navegar pela web. Esta liberdade é a que vemos na mente de Ettore, livre em suas concepções, pois a censura é insuportável para o artista, como podemos imaginar como deve ter sido difícil a Vida Artística no Brasil durante a Ditadura Militar. Em todo este divisor, não vemos linhas curvilíneas ou orgânicas, e só podemos observar linhas retas, ainda que diagonais. A peça toda é uma explosão da mente do artista, como num Big Bang, espalhando-se por todas as direções, numa explosão de imaginação. Este divisor é tão formidável que quase nos dá pena de colocarmos algo em suas prateleiras, e outra impressão é a de que qualquer coisa ali ficaria bem exposta. O Design Italiano é genial, como na direção de arte da Copa do Mundo na Itália em 1990, onde pudemos ver a riqueza gráfica da italianada. A Itália soube reerguer-se após a queda do Fascismo, sepultando para sempre as limitações ditatoriais sobre o pensamento artístico. Na base de tudo, uma sólida pedra cinzenta, como um duro granito, como a Arte Egípcia exposta no Met. Esta base é o fundamento, a sustentação, do modo com um talento suporta a si mesmo, sustentando-se. Vemos algumas partes em branco, na cor da Paz. Mas vemos também algo em preto, num Ettore que tem uma visão abrangente de Mundo: os opostos convivem entre si. A maior de todas as tábuas é verde, na fertilidade de uma floresta vasta, na mente criadora de um Ettore fértil, num artista que não tolhe a si mesmo – Liberdade é tudo. Altamente simétrico, este divisor é uma obra de Arte por si só, mostrando um Ettore Sotsass digno de estar exposto no maior museu dos EUA, numa Nova York que respira Arte. A “tela de computador” ao topo parece ter um pescoço, dois braços e duas pernas, como um robô, como numa bombarrelógio, prestes a explodir – quando o artista tem talento, tudo o que aquele precisa é de persistência, pois o resto é questão de tempo. Respira-se o ar de vitória aqui. De cabeça para baixo, parece uma folha de plátano ou um cacho de uva, numa abstração que traz o pensamento racional e esquemático, com suas quinas e superfícies. O inevitável momento vem chegando. Não dá vontade de levar para casa?

Acima, um totem. O falo do Código de Hamurabi, impondo leis e obrigando o cidadão a ter um comportamento de elevação moral. Do contrário, a lei pune o cidadão. O falo amedronta: você quer ser preso? Não? Então, comporte-se. A palavra régua, em inglês, quer dizer ruler, ou seja, legislador. E não é a régua um falo, um cassetete de polícia? Os totens são assim, como um obelisco, cuja extremidade posterior é banhada pelo Sol antes do obelisco inteiro ser iluminado. Portanto, é um prenúncio de um novo dia, como um galo cantante. Em inglês, galo quer dizer cock, e este termo é, na linguagem vulgar americana, o pênis. Não é o falo uma cópia do pênis; o pênis é uma cópia do falo. Na verdade, o falo pouco tem a ver com sexo, anatomia e sexualidade. É um estabelecimento abstrato, como Madonna, ao ser entrevistada por David Letterman, chamou a atenção para o formato fálico de um microfone do estúdio televisivo. Aqui, o totem tem uma base bem simples, branca, cúbica, sem excessos gráficos, na brandura de uma bandeira clamando por paz, como nas paredes brancas do MOMA de Nova York. O falo é o Yang, o princípio masculino cósmico. Todos temos Yang. Uma grande amiga minha psicóloga disse-me que não devemos projetar coisas nossas em outrem, como, por exemplo, se eu projetar meu Yang em outra pessoa – temos que ser independentes psicologicamente. Todos precisam de virilidade, independência, autonomia. E não é patética uma pessoa que se coloca totalmente nas mãos de outrem? Acima do cubo branco, um padrão de listras, como numa camisa de sorveteiro, um lembrança doce de infância, como um pirulito – aí vem o falo novamente. Essa alternância entre branco e vermelho é um sinal, um aviso: não chegue muito perto; respeite o limite entre você e eu. É como a camisa do famoso Wally, dos livros Onde Está Wally?, fenômeno literário: onde está Ettore? O que ele quer dizer? Por que ele fez isso ou aquilo? Como todo grande artista, Ettore é um enigma, bem insolúvel, impossível de ser desnudado e de ser resumido em palavras. Acima das listras, mais um cilindro, desta vez multicolorido, com azul, verde e vermelho. O verde intermediário é um mediador, pois amarelo e azul estão em guerra, visto que são tão diferentes um do outro, não havendo entendimento recíproco. Então, o verde surge como diplomata mediador, em nome da paz, no sentido de que o verde é a junção entre o amarelo e o azul, ou seja, a verde é algo que este dois oponentes têm em comum, numa promessa de paz, como uma linhagem em comum – o Fascismo deve ter sido insuportável para as mentes criativas italianas. O verde é a neutralidade suíça, numa sala de negociação e entendimento. O verde se esforça. Mais acima, uma parte bem negra e densa, numa bruxa má de Disney, na cor da morte, da ausência de luz, no ódio entre as nações envolvidas na II Guerra Mundial. Aqui, o preto tem amplo destaque, mais gordinho ao centro, numa janela que se abre para o nada, como no Umbral espírita, um lugar horrível, onde a privação reina solta. O preto significa os horrores da Guerra, de qualquer guerra. Acima do preto, uma pequena peça branca, menor do que a base do totem, mas mantendo-se na missão de paz, mesmo esta peça sendo tão menor do que a guerra. Mais acima, uma bola achatada que lembra uma tangerina, na doçura da paz e do entendimento e, ainda assim, meio ácida, no prazer de um vinho adstringente, que cutuca a boca do provador. A tangerina é a produtividade de Ettore, tendo neste a fertilidade mental para produzir abundantemente, nunca parando de criar, como Tao, que está sempre criando. E, no topo de tudo, uma forma que parece ser uma tampinha de refrigerante, coroando tudo, na cor do sangue, do molho de tomate italiano, do modo como todos os seres humanos estão unidos por laços de sangue: todos filhos do mesmo Rei. A tampinha é a conclusão de tudo, num certo derramamento de sangue, mas numa promessa de paz. É um nariz de palhaço, trazendo alegria a um mundo tão dividido – a Arte tem o dever de unir as pessoas. Aqui, vemos um equilíbrio frágil, como se as peças estivesses empilhadas, sem um pingo de cola para uni-las. É a fragilidade da paz, e qualquer sopro aqui arruinaria tudo. Aqui, vemos hierarquia, como numa pirâmide social com várias castas relacionadas. Para os indígenas americanos, os totens tinham um poder mágico, dispondo divindades em hierarquia conforme o nível de elevação, do modo como o Espiritismo estabelece que há uma forte hierarquia entre os espíritos: os moralmente mais elevados governam os menos, como num elevador em um prédio. Este totem é um prédio deliciosamente estranho, incomum.

Acima, uma luminária. O patinho feio “torna-se” cisne. O fio elétrico é a conexão de Ettore com o mundo a sua volta – o artista encontra a si mesmo ao fazer Arte, colocando-se a serviço do Mundo e trilhando caminhos nunca antes trilhados, pois não há mérito em trilhar caminhos que já foram trilhados, na força da Originalidade. Na “cabeça” do pato, uma antena prateada, ligando as mentes em comunhão, fazendo a percepção passar por Ettore, e este chama a atenção de uma instituição tão séria como o Met – medíocres não têm vez no Met, na dureza de uma Nova York sedenta por Arte e inovação, como na prestigiada Parsons, escola de Design de Manhattan. A antena é um sinal sendo emitido incessantemente, interligando o Mundo, unindo mentes. O bico do pato é sensual, rubro, com vivo sangue pulsando, no sangue italiano de Ettore, vibrante como uma comida feita pela Mamma. Com o bico, o pato se relaciona com o Mundo, alimentando-se em uma fome insaciável, num artista focado em produtividade. Certamente, Ettore é inusitado, com uma imaginação monstruosa. A cabeça do pato é rósea, como um suculento bife de gado ou porco, na delícia que é Ettore. O tronco do pato é uma grande haste amarela, firme, voluntariosa, fazendo o bicho se curvar para se alimentar ou se hidratar, numa fome e sede infindáveis, de um artista que nunca parou. É o produto de limpeza Pato, matando os germes da mediocridade e trazendo a limpeza de uma mente criadora, pois Tao é isso: limpeza, pureza, minimalismo, simplicidade. Ao lado da haste dourada há um tubo que provavelmente é por onde passa o fio elétrico. É da cor do chocolate, no delicioso Design Italiano, na fragrância de chocolaterias de Gramado. O tubo marrom é um intestino, processando os alimentos, sempre em demanda orgânica, num organismo dinâmico e incessante. Junto à haste amarela, um triângulo negro, servindo de base de apoio para a haste, prevendo como o preto tornar-se-ia moda a partir dos anos 1990. O preto é uma nesga de dúvida, de escuridão, mas uma escuridão que jamais poderá ofuscar a festa de cores nesta luminária. Como diz uma canção em inglês: “There’s a little, black spot on the Sun today”, ou seja, “Há uma manchinha preta no Sol hoje”, na questão da encarnação: sempre haverá um ponto negro no Sol; sempre haverá algo de que não gostamos. O papel mínimo do preto aqui revela uma minimização da dor, transformando esta a um pontinho reduzido. Na base de todo este pato, um bloco oblíquo, estampado, alternando a base branca com manchinhas negras. Esta é a base de tudo, como o lago no qual o pato nada, com águas profundas, nunca totalmente alvas, mas com um quê misterioso, no mistério da existência: o que vai acontecer? Estas manchas são pequenas minhocas, movendo-se sensualmente na vibração da vida, sendo comida por pássaros famintos, talvez comidas pelo próprio pato. Esta é uma luminária sofisticada e inusitada, um item de luxo, algo feito de forma extremamente customizada, artesanal, nunca cabendo ser feita em uma esteira industrial – Ettore é para poucos. A luminária tem um movimento que nos faz achar que o pato está se curvando para obter água e comida, na incessante luta pela vida, num artista muito guerreiro, que nunca se “atirou nas cordas” – é a força da produtividade. A fria dignidade deste pato está em ser útil para iluminação, mas, ao mesmo tempo, é incomum, um artigo de alto luxo, muito mais caro do que luminárias convencionais. Ettore tem uma preocupação em colorir, nunca caindo no tédio monocromático, sempre trazendo combinações originais, evitando ao máximo o tédio e a obviedade, o suficiente para, repito, estar exposto no Met. É uma alegria colorida, jovial, sem ranço ou siso, num artista que nunca, de fato, envelheceu, como Leonardo da Vinci, que se manteve irreverente até o fim da vida. O que é melhor? Uma casa limpa ou uma casa cheia de pó? Você decide, pois Tao não é ditatorial. E a mente artística tem que voar livre. Aliás, qualquer mente tem que voar livre.

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