Falo pela primeira vez sobre o artista gráfico italiano
Ettore Sottsass. Estava eu nesses tempos no site do majestoso Metropolitan
Museum of Art de Nova York, meu amado Met, e vi que a instituição abria uma
mostra sobre este designer italiano, o qual, antes disso, eu desconhecia. Filho
de um italiano com uma austríaca, Ettore destacou-se no desenho italiano no
pós-guerra, formando-se em Arquitetura pela Universidade Politécnica de Turim
no ano de 1939, no início do conflito. Neste ano, Sottsass estaria completando
100 anos de idade, tendo falecido em 2007. As análises semióticas a seguir são
inteiramente minhas.
Acima, um divisor de ambientes. Um deus hindu, com vários
braços e atributos. Uma aranha pós-moderna, colorida, abrindo os braços para
seduzir uma mosquinha desavisada, enjaulando esta. A peça convida a colecionar
livros, numa criatividade tão própria do Design Italiano. É uma dança
cromática, alegre, festiva, carnavalesca, driblando as sequelas amargas da II
Grande Guerra – o Mundo Pós-Guerra quer mais é se esquecer de Hitler e
Mussolini, num pacto ocidental de reconstrução, assim como a Festa da Uva de
Caxias renasce após o conflito. Este divisor de Ettore é o representante de um
divisor de águas no Desenho Ocidental, e os padrões clássicos e tradicionais
perdem força perante a reinvenção e a transgressão do Pós-Moderno, numa peça
que, aqui, mesmo tendo sido feita há décadas, permanece fresquinha e inovadora,
adorável e formidável, privilegiando uma casa que possua este divisor. É uma
peça tão bela que dá quase pena de colocarmos objetos nela, como livros e
enfeites em geral – é uma peça que se basta. Na parte inferior, vemos duas
gavetinhas vermelhas, na cor vibrante do sangue italiano, no molho de tomate da
tradicional pasta italiana. Estas gavetinhas são o segredo guardado da mente de
Sottsass, no mistério do talento: o que faz uma pessoa ser talentosa e genial?
É algo do espírito encarnado? De onde vem a criatividade? As gavetinhas são os
segredos do Inconsciente, numa Caixa de Pandora, a qual jamais pode ser aberta
ou ser exposta. O vermelho é o sangue derramado na II Guerra, o sangue de
milhões de pessoas, como no Holocausto, na loucura e na demência do
Nazifascismo. As gavetinhas são um segredo, um mistério, e cada um sabe o que
guardar nelas, numa questão íntima e pessoal, privada, sigilosa, do pacto de
confidência num consultório psiquiátrico: tudo o que é dito no consultório, no
consultório permanece. No topo da peça, um retângulo que é a tela de um
computador, em uma peça confeccionada décadas antes da Era Digital. A “tela”
está no topo de tudo, como uma janela para se observar o Mundo, do modo como,
hoje em dia, quem não está online, não está no Mundo, como em regimes
ditatoriais, que tolhem a liberdade do cidadão em navegar pela web. Esta
liberdade é a que vemos na mente de Ettore, livre em suas concepções, pois a
censura é insuportável para o artista, como podemos imaginar como deve ter sido
difícil a Vida Artística no Brasil durante a Ditadura Militar. Em todo este
divisor, não vemos linhas curvilíneas ou orgânicas, e só podemos observar
linhas retas, ainda que diagonais. A peça toda é uma explosão da mente do
artista, como num Big Bang, espalhando-se por todas as direções, numa explosão
de imaginação. Este divisor é tão formidável que quase nos dá pena de
colocarmos algo em suas prateleiras, e outra impressão é a de que qualquer
coisa ali ficaria bem exposta. O Design Italiano é genial, como na direção de
arte da Copa do Mundo na Itália em 1990, onde pudemos ver a riqueza gráfica da
italianada. A Itália soube reerguer-se após a queda do Fascismo, sepultando
para sempre as limitações ditatoriais sobre o pensamento artístico. Na base de
tudo, uma sólida pedra cinzenta, como um duro granito, como a Arte Egípcia exposta
no Met. Esta base é o fundamento, a sustentação, do modo com um talento suporta
a si mesmo, sustentando-se. Vemos algumas partes em branco, na cor da Paz. Mas
vemos também algo em preto, num Ettore que tem uma visão abrangente de Mundo:
os opostos convivem entre si. A maior de todas as tábuas é verde, na
fertilidade de uma floresta vasta, na mente criadora de um Ettore fértil, num
artista que não tolhe a si mesmo – Liberdade é tudo. Altamente simétrico, este
divisor é uma obra de Arte por si só, mostrando um Ettore Sotsass digno de
estar exposto no maior museu dos EUA, numa Nova York que respira Arte. A “tela
de computador” ao topo parece ter um pescoço, dois braços e duas pernas, como
um robô, como numa bombarrelógio, prestes a explodir – quando o artista tem
talento, tudo o que aquele precisa é de persistência, pois o resto é questão de
tempo. Respira-se o ar de vitória aqui. De cabeça para baixo, parece uma folha
de plátano ou um cacho de uva, numa abstração que traz o pensamento racional e
esquemático, com suas quinas e superfícies. O inevitável momento vem chegando. Não
dá vontade de levar para casa?
Acima, um totem. O falo do Código de Hamurabi, impondo leis
e obrigando o cidadão a ter um comportamento de elevação moral. Do contrário, a
lei pune o cidadão. O falo amedronta: você quer ser preso? Não? Então,
comporte-se. A palavra régua, em
inglês, quer dizer ruler, ou seja,
legislador. E não é a régua um falo, um cassetete de polícia? Os totens são
assim, como um obelisco, cuja extremidade posterior é banhada pelo Sol antes do
obelisco inteiro ser iluminado. Portanto, é um prenúncio de um novo dia, como
um galo cantante. Em inglês, galo
quer dizer cock, e este termo é, na
linguagem vulgar americana, o pênis. Não é o falo uma cópia do pênis; o pênis é
uma cópia do falo. Na verdade, o falo pouco tem a ver com sexo, anatomia e
sexualidade. É um estabelecimento abstrato, como Madonna, ao ser entrevistada
por David Letterman, chamou a atenção para o formato fálico de um microfone do
estúdio televisivo. Aqui, o totem tem uma base bem simples, branca, cúbica, sem
excessos gráficos, na brandura de uma bandeira clamando por paz, como nas
paredes brancas do MOMA de Nova York. O falo é o Yang, o princípio masculino
cósmico. Todos temos Yang. Uma grande amiga minha psicóloga disse-me que não
devemos projetar coisas nossas em outrem, como, por exemplo, se eu projetar meu
Yang em outra pessoa – temos que ser independentes psicologicamente. Todos
precisam de virilidade, independência, autonomia. E não é patética uma pessoa
que se coloca totalmente nas mãos de outrem? Acima do cubo branco, um padrão de
listras, como numa camisa de sorveteiro, um lembrança doce de infância, como um
pirulito – aí vem o falo novamente. Essa alternância entre branco e vermelho é
um sinal, um aviso: não chegue muito perto; respeite o limite entre você e eu.
É como a camisa do famoso Wally, dos livros Onde
Está Wally?, fenômeno literário: onde está Ettore? O que ele quer dizer?
Por que ele fez isso ou aquilo? Como todo grande artista, Ettore é um enigma,
bem insolúvel, impossível de ser desnudado e de ser resumido em palavras. Acima
das listras, mais um cilindro, desta vez multicolorido, com azul, verde e
vermelho. O verde intermediário é um mediador, pois amarelo e azul estão em
guerra, visto que são tão diferentes um do outro, não havendo entendimento
recíproco. Então, o verde surge como diplomata mediador, em nome da paz, no
sentido de que o verde é a junção entre o amarelo e o azul, ou seja, a verde é
algo que este dois oponentes têm em comum, numa promessa de paz, como uma
linhagem em comum – o Fascismo deve ter sido insuportável para as mentes
criativas italianas. O verde é a neutralidade suíça, numa sala de negociação e
entendimento. O verde se esforça. Mais acima, uma parte bem negra e densa, numa
bruxa má de Disney, na cor da morte, da ausência de luz, no ódio entre as
nações envolvidas na II Guerra Mundial. Aqui, o preto tem amplo destaque, mais
gordinho ao centro, numa janela que se abre para o nada, como no Umbral
espírita, um lugar horrível, onde a privação reina solta. O preto significa os
horrores da Guerra, de qualquer guerra. Acima do preto, uma pequena peça
branca, menor do que a base do totem, mas mantendo-se na missão de paz, mesmo
esta peça sendo tão menor do que a guerra. Mais acima, uma bola achatada que
lembra uma tangerina, na doçura da paz e do entendimento e, ainda assim, meio
ácida, no prazer de um vinho adstringente, que cutuca a boca do provador. A
tangerina é a produtividade de Ettore, tendo neste a fertilidade mental para
produzir abundantemente, nunca parando de criar, como Tao, que está sempre
criando. E, no topo de tudo, uma forma que parece ser uma tampinha de
refrigerante, coroando tudo, na cor do sangue, do molho de tomate italiano, do
modo como todos os seres humanos estão unidos por laços de sangue: todos filhos
do mesmo Rei. A tampinha é a conclusão de tudo, num certo derramamento de
sangue, mas numa promessa de paz. É um nariz de palhaço, trazendo alegria a um
mundo tão dividido – a Arte tem o dever de unir as pessoas. Aqui, vemos um
equilíbrio frágil, como se as peças estivesses empilhadas, sem um pingo de cola
para uni-las. É a fragilidade da paz, e qualquer sopro aqui arruinaria tudo.
Aqui, vemos hierarquia, como numa pirâmide social com várias castas relacionadas.
Para os indígenas americanos, os totens tinham um poder mágico, dispondo
divindades em hierarquia conforme o nível de elevação, do modo como o
Espiritismo estabelece que há uma forte hierarquia entre os espíritos: os
moralmente mais elevados governam os menos, como num elevador em um prédio.
Este totem é um prédio deliciosamente estranho, incomum.
Acima, uma luminária. O patinho feio “torna-se” cisne. O
fio elétrico é a conexão de Ettore com o mundo a sua volta – o artista encontra
a si mesmo ao fazer Arte, colocando-se a serviço do Mundo e trilhando caminhos
nunca antes trilhados, pois não há mérito em trilhar caminhos que já foram
trilhados, na força da Originalidade. Na “cabeça” do pato, uma antena prateada,
ligando as mentes em comunhão, fazendo a percepção passar por Ettore, e este
chama a atenção de uma instituição tão séria como o Met – medíocres não têm vez
no Met, na dureza de uma Nova York sedenta por Arte e inovação, como na
prestigiada Parsons, escola de Design de Manhattan. A antena é um sinal sendo
emitido incessantemente, interligando o Mundo, unindo mentes. O bico do pato é
sensual, rubro, com vivo sangue pulsando, no sangue italiano de Ettore,
vibrante como uma comida feita pela Mamma. Com o bico, o pato se relaciona com
o Mundo, alimentando-se em uma fome insaciável, num artista focado em produtividade. Certamente,
Ettore é inusitado, com uma imaginação monstruosa. A cabeça do pato é rósea,
como um suculento bife de gado ou porco, na delícia que é Ettore. O tronco do
pato é uma grande haste amarela, firme, voluntariosa, fazendo o bicho se curvar
para se alimentar ou se hidratar, numa fome e sede infindáveis, de um artista
que nunca parou. É o produto de limpeza Pato, matando os germes da mediocridade
e trazendo a limpeza de uma mente criadora, pois Tao é isso: limpeza, pureza,
minimalismo, simplicidade. Ao lado da haste dourada há um tubo que
provavelmente é por onde passa o fio elétrico. É da cor do chocolate, no
delicioso Design Italiano, na fragrância de chocolaterias de Gramado. O tubo
marrom é um intestino, processando os alimentos, sempre em demanda orgânica,
num organismo dinâmico e incessante. Junto à haste amarela, um triângulo negro,
servindo de base de apoio para a haste, prevendo como o preto tornar-se-ia moda
a partir dos anos 1990. O preto é uma nesga de dúvida, de escuridão, mas uma
escuridão que jamais poderá ofuscar a festa de cores nesta luminária. Como diz
uma canção em inglês: “There’s a little, black spot on the Sun today”, ou seja,
“Há uma manchinha preta no Sol hoje”, na questão da encarnação: sempre haverá
um ponto negro no Sol; sempre haverá algo de que não gostamos. O papel mínimo
do preto aqui revela uma minimização da dor, transformando esta a um pontinho
reduzido. Na base de todo este pato, um bloco oblíquo, estampado, alternando a
base branca com manchinhas negras. Esta é a base de tudo, como o lago no qual o
pato nada, com águas profundas, nunca totalmente alvas, mas com um quê
misterioso, no mistério da existência: o que vai acontecer? Estas manchas são
pequenas minhocas, movendo-se sensualmente na vibração da vida, sendo comida
por pássaros famintos, talvez comidas pelo próprio pato. Esta é uma luminária
sofisticada e inusitada, um item de luxo, algo feito de forma extremamente
customizada, artesanal, nunca cabendo ser feita em uma esteira industrial –
Ettore é para poucos. A luminária tem um movimento que nos faz achar que o pato
está se curvando para obter água e comida, na incessante luta pela vida, num
artista muito guerreiro, que nunca se “atirou nas cordas” – é a força da
produtividade. A fria dignidade deste pato está em ser útil para iluminação,
mas, ao mesmo tempo, é incomum, um artigo de alto luxo, muito mais caro do que
luminárias convencionais. Ettore tem uma preocupação em colorir, nunca caindo
no tédio monocromático, sempre trazendo combinações originais, evitando ao
máximo o tédio e a obviedade, o suficiente para, repito, estar exposto no Met.
É uma alegria colorida, jovial, sem ranço ou siso, num artista que nunca, de
fato, envelheceu, como Leonardo da Vinci, que se manteve irreverente até o fim
da vida. O que é melhor? Uma casa limpa ou uma casa cheia de pó? Você decide,
pois Tao não é ditatorial. E a mente artística tem que voar livre. Aliás,
qualquer mente tem que voar livre.
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