Falo pela sétima vez sobre o célebre artista MC Escher. As
imagens analisadas aqui foram quase todas extraídas do site oficial do artista.
As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Poça,
xilogravura de 1952, 31,9 cm
x 24 cm.
A pureza do traço de Escher num reflexo n’água. A marca dos pneus são as
cicatrizes existenciais, inevitáveis, próprias de pessoas maduras e vividas –
não é bom ser jovem demais, sem marcas, sem experiências. A maturidade tem
muitos encantos, num momento em que a pessoa finalmente consegue conciliar as
coisas dentro de si. Além das marcas de pneus, vemos pegadas, numa trilha que
pode nos levar a algo, a alguma descoberta, a algum destino – é só seguir as
pegadas. Vemos refletido o Sol ou a Lua, e não sabemos se é dia ou noite, num
sexy limiar entre luz e escuridão, como no Castelo de Grayskull. A poça reflete
um céu incerto, cinzento, não sabendo se é Boogie ou Woogie – a indefinição tem
seus encantos: a dualidade, como numa tomada bivolt. Como um espelho, a poça é
um instrumento existencial de reflexão, convidando o espectador a olhar-se e
refletir sobre si mesmo, num processo solitário de autocognição, num momento a
sós, num saudável momento a sós. A estrada é úmida e barrenta, imunda,
emporcalhando os pneus e os sapatos. Não é um terreno muito convidativo, nem
belo, nem agradável. A água está absolutamente pacífica e estável, num momento
de paz profunda, num silêncio inquebrantável – é o momento a sós. Pobre da vida
que não tem paz. Como Tao diz, a paz é mais grandiosa do que a raiva. É um
cimento mole, ainda úmido, que acabou sendo maculado e tatuado pelos pneus e
pelos sapatos, gerando uma cicatriz, ou seja, algo indelével, como na Calçada
da Fama, maculada pelas mãos dos astros. A vegetação refletida é bela,
frondosa, como veias e artérias em um organismo de carne e osso, fazendo a vida
pulsar, no vaivém de carros e pessoas por esta estrada barrenta – é o movimento
da vida, numa demanda que faz uma estrada ser extremamente útil e funcional,
pois pobre daquele que não é útil ao mundo, numa vida enfadonha de princesa, na
qual a pessoa tem casa, comida e roupa lavada, precisando preocupar-se com
nada. A estrada tenta driblar o vazio existencial, sendo digna, erguendo a
cabeça, como num altivo Leonardo DiCaprio recebendo um Oscar. Trata-se aqui de
um cenário plácido, na estabilidade emocional de alguém que está fazendo algo
de bom da vida, colocando-se à disposição do Mundo, sendo digno de respeito. A
água aqui é um perfeito espelho, convidando Narciso a olhar-se e afogar-se,
como numa traiçoeira areia movediça. A poça imaculada contrasta com o barro
maculado, num contraste entre Yin e Yang: a intocada beleza feminina com as
“rugas” existenciais do masculino. Este quadro se basta. É claro que Escher
lançava mão de exaustivos rascunhos, só finalizando a obra quando, finalmente,
chegava a um consenso consigo mesmo, dialogando consigo mesmo, executando toda
a sua impecabilidade, num artista perfeccionista, quase obsessivo. A água
plácida nos tenta a tocá-la e maculá-la, no prazer transgressor da defloração,
pois uma sociedade só evolui por meio da transgressão de alguns de seus
indivíduos, dizia o diretor Fábio Barreto. As marcas dos calçados soam
masculinas – não são de salto alto. São pés grandes, masculinos, indo e vindo,
revelando ser uma via de duas mãos; uma faca de dois gumes; uma contradição de
trânsito – o que sobe, desce. E por que a misteriosa esfera, a qual não podemos
ver se é Sol ou Lua? Escher é o mestre da dualidade, sempre pregando charadas
insolúveis, exercendo fascínio permanente, inesgotável. O barro cinzento é a
dúvida existencial: o que está acontecendo com minha própria vida? O artista
luta para se estabelecer, e alguns só são plenamente reconhecidos depois que
morrem, como Jesus Cristo, que em vida foi subestimando e só séculos depois foi
devidamente reconhecido. O Sol/Lua é o ponto mais claro do quadro, destacando-se
em meio a uma cena tão sombria. No barro, vemos crateras, que contam uma
história de violação, de marcos divisórios, como AC e DC.
Acima, Formiga,
litogravura de 1943, 24,9 cm
x 18,2 cm.
Aqui, Escher quer simplesmente debruçar-se sobre a Biologia e reproduzir cada
detalhe de um animal tão pequeno e delicado. Esta formiga é como um robô, numa
nanotecnologia. A formiga aqui está solitária, talvez perdida de seu
formigueiro, longe de casa, de suas referências. Vemos o movimento das patas, e
o som de pegadinhas suaves, num Escher laborioso como uma formiga, sempre construindo
seus formigueiros, num trabalho incessante. É um quadro meio assustador para
quem é aracnofóbico. Mesmo desenhando, Escher é invisível. O que é ele? A
formiga tem na boca garras afiadíssimas, prontas para estraçalhar a presa,
devorando folhas de árvores e animais maiores, na força da coletividade, num
cadáver de pássaro sendo devorado por inúmeras formigas ao mesmo tempo. O
formigueiro é um enigma: como é que ele funciona? As antenas da formiga dão-lhe
noção e sensibilidade, sentindo o universo ao seu redor, num Escher antenado
com o Mundo. A formiga é uma anônima operária, humilde em seu anonimato,
conformada com sua posição de “mais um tijolo na parede”, como numa ditadura,
em que o cidadão é reduzido a uma pilha Rayovac, a serviço de um estado. A
formiga projeta uma suave sombra abaixo de si, dando efeito de profundidade ao
quadro, e o inseto pula aos olhos de quem o vê. A formiga é um Escher que
procura por algo, mas não sabe exatamente pelo quê. Seu corpo negro é lustroso,
polido como prata, e seu “bumbum” revela uma bagagem, uma carga existencial, um
portamala cheio de recordações de uma vida bem vivida. É como um bombom
delicioso, negro, amargo, fora do gosto infantil. Neste quadro, a formiga pode
estar em qualquer posição: num teto, num chão ou numa parede. É um quadro sem
centro gravitacional, uma característica frequente em Escher, num artista de
mente questionadora, algo impossível em regimes políticos totalitários: Escher
é um libertário. Este ser lembra o monstro Laracna de O Senhor dos Anéis, um ser absolutamente agressivo e repugnante,
sempre faminto, nunca satisfeito, num artista sempre faminto por
questionamento, sempre explorando possibilidades. As antenas são o
relacionamento da pessoa como Cosmos à sua volta, sensitivas, detectando o mais
sutil sinal emitido pelo Mundo. Suas patas, apesar de delgadas, são fortes,
guiando o espectador pelo complexo sistema de várias patas, numa Natureza
perfeita no que faz – Escher tem uma paixão pela Biologia. Resta-nos saber como
Escher se sairia se tivesse tornado-se fotógrafo; sairia-se bem, provavelmente.
Esta formiga tem olhos grandes, insaciáveis por Arte, observando o espectador
ameaçadoramente. A formiga é grande e minúscula ao mesmo tempo, numa
contradição escheriana, em que positivo e negativo dançam uma dança harmônica.
Frágil, esta formiga pode ser facilmente esmagada por um ser humano; forte, a
formiga é um exército inteiro de força blindada, numa armadura que sabe dizer
“não”, tendo virilidade e independência. É a dureza bélica de Yang. A formiga é
um soldado indestrutível, um agente de um formigueiro de vida pulsante,
complexa. O pescoço do inseto aqui é extremamente frágil, fininho, sustentando
uma cabeça descomunal, armada até os dentes. Escher vê a sensualidade da força
da natureza, adicionando-se ao fluxo, entregando-se. A superfície abaixo do
inseto é texturizada, como cascalho, numa parede imperfeita e rústica,
aconchegante, convidativa. É a dúvida cinzenta, debatendo-se entre dia e noite.
Ao observarmos à distância, a formiga parece que é uma foto, tal a precisão de
Escher. A formiga está cuidando de sua própria vida, e não espera que alguém
viva a vida deste mesmo animal. A formiga é grande ou pequena?
Acima, Faixa de
Möbius, xilogravura de 1963, 20,5 cm x 45,3 cm. Este quadro é uma
alegoria da Eternidade, pois as formigas – Escher gosta de formigas – estão em
constante fluxo, sempre caminhando. É um número oito, com curiosa semelhança
com o símbolo na fronte do célebre busto de Nefertiti. Os olhos das formigas
são negros e profundos, e são lustrosos, e as formigas aqui parecem estar
divertindo-se, talvez num Escher que se divertia ao produzir suas obras,
estabelecendo um vínculo afetivo com os próprios quadros, do modo como Leonardo
da Vinci ficou apegado à sua própria Monalisa. As formigas são bordôs, na cor
do vinho e do sangue de Cristo, no mistério da transubstanciação no momento da
missa, em que o vinho torna-se o sangue do Salvador. É o prazer de um bom
vinho, no prazer artístico de produzir, no prazer de qualquer pessoa que faz o
que gosta e que gosta do que faz. A faixa sinuosa é sensual, feminina,
liquidiscente, e recebe as formigas com o prazer de um grande e generoso
anfitrião. A faixa tem um brilho metálico, e tem furos quadriculados. É a
estrada da Vida, sempre fluindo, como cinzentos paralelepípedos. Por outro
lado, há algo que na faz sentido, pois as formigas caminham eternamente da
mesma forma, nunca questionando, num artista buscando sentido na Vida. Cada
formiga tem sua carga existencial, mas aqui não há diferenciação – seriam todas
essas formigas uma formiga só, mas captada em momentos diferentes? Seria como
uma fotomontagem: a formiga é captada em vários momentos e, depois, Escher
teria montado o quadro. O quadro é uma representação da rotina, da ordem do
dia, na tarefa rotineira de trabalho, limpeza, higiene e organização. A formiga
é extremamente laboriosa, como Escher o foi. O quadro é fascinante.
Observando-se bem de perto, vemos a meticulosidade deste artista, pois ele
trabalhava por meio de muitos e muitos traços, numa paciência admirável.
Olhando de perto vemos cada tracinho e, ao nos afastarmos, compreendemos o
efeito Escher. Quanto tempo será que o artista levava para produzir cada obra?
Trabalhando por meio de contrastes, Escher entra na mente do espectador. É o
ciclo da Vida, ascendendo e descendendo, na rotina da respiração, em pulmões
que expiram e inspiram, num coração de bate. Junto à necessária rotina, vem o
insight existencial, e o ser humano encontra propósito na Vida, intercalando
rotina com excepcional; intercalando sonho com trabalho; contemplação com
labor. Aqui, temos a mágica do movimento de Escher, que excitava as percepções
do espectador. Escher é uma lanterna mágica, pela qual podemos ver fluxo
plástico. Os furos quadriculados na faixa sinuosa são janelas, aberturas que
fazem uma casa respirar e viver. São lacunas de sensual vazio, formando um
centro gravitacional que puxa o espectador para dentro do quadro. O espectador
pergunta-se: “Como será que o cara fez isso?”. As formigas aqui caminham em
total e absoluta harmonia, nunca havendo um congestionamento ou uma desordem.
Aqui, a Lei reina e estabelece a Paz. Como no Ecossistema, onde tudo se
aproveita. As formigas estão em perfeita paz, ocupadas no labor do dia,
ocupando-se alegremente, encontrando propósito. É como uma roda em uma gaiola
de roedor hamster, sempre girando, trazendo fluxo de caixa ao organismo
econômico. É a Roda da Economia, girando em nome da riqueza e do bem-estar. A
caixa quadriculada permite-nos que vejamos todas as formigas em trânsito,
trazendo arejamento e leveza ao quadro. Podemos sentir uma doce brisa. O fundo
branco é a Paz, fazendo contraste com os elementos mais escuros do quadro,
trazendo, assim, a visibilidade de formas.
Acima, Gravidade,
litogravura de 1952, 29,7 cm
x 29,7 cm.
Uma linda estrela expande-se por todos os lados, como um popstar difundido
pelos quatro cantos do Mundo. A cultura de massa afeta a todos, sem pedir
licença para entrar na mente das pessoas. Os meios de Comunicação Social chegam
a nós por papel ou digitalmente, num objetivo quantitativo – quanto mais espectadores,
melhor. A estrela cadente atende a pedidos quando ela cai, fascinando o céu
noturno. A Estrela de Belém guia os Reis Magos até a manjedoura. A Estrela
d’Alva anuncia um novo dia, como um galo cantante, como um superstar sendo
visto e reconhecido pelas pessoas, pelas massas, como uma Gisele sendo
revelada. É uma estrela glacial, feita de cristal gelado, fascinando por suas
formas agressivas e belas, com suas pontas afiadas, emitindo o seguinte aviso:
não chegue perto demais. A estrela aqui está tomada de vida pulsante: vemos
serpentes e patas de animais. É uma riqueza biológica impressionante,
assustadora, num ecossistema rico como uma ninhada numerosa de gatos ou
cachorros, no milagre da Vida, da reprodução. A limpeza da estrela cristalina
contrasta com os membros de animais, como um covil de cobras, numeroso, como um
harém reptiliano. Remete a uma estrela militar, símbolo de poder, força,
agressividade e disciplina. E por que a estrela está toda perfurada, tão cheia
de seres vivos dentro de si? Esses seres estão lutando entre si? Seria a luta
pela Vida, na Seleção Natural de Darwin? Os seres aqui lutam por um lugar ao
Sol. Parece que a estrela os aprisiona, impedindo-os de sair. Seria a estrela
um belo presídio, como numa encarnação? De onde veio a vida que pulsa dentro
desta estrutura de gelo? Podemos ouvir o som de fino cristal tilintando, na
pureza da voz de um grande cantor ou cantora, numa estrela que vibra
musicalmente no Céu, sempre seduzindo por sua beleza impecável. As pontas da
estrela são bem agressivas, abrasivas, mas não chegam a ferir os seres dentro
dela. A ponta espinhosa requer respeito. Do contrário, lesões acontecerão. A
estrela exige ser contemplada à distância. Os seres vivos aqui são coloridos:
amarelos, esverdeados, avermelhados e alaranjados, como num prato do colorido
cereal Froot Loops. É a candura infantil, sempre atenta às cores, à festa
cromática. Tudo neste quadro parece girar em sentido horário, na ordem
cronológica. A estrela gira sem parar, e os seres dentro dela fazem parte deste
movimento, como um planeta Terra, fazendo tudo e todos girar junto com a esfera
terrestre. É uma dança conjunta, na harmonia de um biossistema integrado, onde
cada agente tem uma função para com o todo – nada na Natureza está isolado.
Podemos ouvir sons guturais e o balançar das línguas das serpentes. Escher é
muito cheio de vida. E por que a estrela gira? É o ritmo do Mundo. Este cristal
brilha irresistivelmente, seduzindo por sua beleza fria, racional, na beleza
matemática, na pureza dos números. O pensamento racional é belo, exato,
preciso. É a construção técnica do espírito, na demanda existencial. A estrela
parece estar rolando morro abaixo, no efeito “bola de neve” – quanto mais rola,
maior fica. Este colorido dá uma certa alegria ao quadro, em contraste com a
sóbria frieza estelar. A estrela é uma espécie de prisão, de calabouço,
aprisionado a feras do Inconsciente, impondo ordem ao caos do Inconsciente,
jogando luz sobre este. É a vitória da Razão, da autocognição, do
autodescobrimento. As criaturas bestiais estão contidas, derrotadas,
controladas.
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