quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Mago (Parte 7)




Falo pela sétima vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram quase todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Poça, xilogravura de 1952, 31,9 cm x 24 cm. A pureza do traço de Escher num reflexo n’água. A marca dos pneus são as cicatrizes existenciais, inevitáveis, próprias de pessoas maduras e vividas – não é bom ser jovem demais, sem marcas, sem experiências. A maturidade tem muitos encantos, num momento em que a pessoa finalmente consegue conciliar as coisas dentro de si. Além das marcas de pneus, vemos pegadas, numa trilha que pode nos levar a algo, a alguma descoberta, a algum destino – é só seguir as pegadas. Vemos refletido o Sol ou a Lua, e não sabemos se é dia ou noite, num sexy limiar entre luz e escuridão, como no Castelo de Grayskull. A poça reflete um céu incerto, cinzento, não sabendo se é Boogie ou Woogie – a indefinição tem seus encantos: a dualidade, como numa tomada bivolt. Como um espelho, a poça é um instrumento existencial de reflexão, convidando o espectador a olhar-se e refletir sobre si mesmo, num processo solitário de autocognição, num momento a sós, num saudável momento a sós. A estrada é úmida e barrenta, imunda, emporcalhando os pneus e os sapatos. Não é um terreno muito convidativo, nem belo, nem agradável. A água está absolutamente pacífica e estável, num momento de paz profunda, num silêncio inquebrantável – é o momento a sós. Pobre da vida que não tem paz. Como Tao diz, a paz é mais grandiosa do que a raiva. É um cimento mole, ainda úmido, que acabou sendo maculado e tatuado pelos pneus e pelos sapatos, gerando uma cicatriz, ou seja, algo indelével, como na Calçada da Fama, maculada pelas mãos dos astros. A vegetação refletida é bela, frondosa, como veias e artérias em um organismo de carne e osso, fazendo a vida pulsar, no vaivém de carros e pessoas por esta estrada barrenta – é o movimento da vida, numa demanda que faz uma estrada ser extremamente útil e funcional, pois pobre daquele que não é útil ao mundo, numa vida enfadonha de princesa, na qual a pessoa tem casa, comida e roupa lavada, precisando preocupar-se com nada. A estrada tenta driblar o vazio existencial, sendo digna, erguendo a cabeça, como num altivo Leonardo DiCaprio recebendo um Oscar. Trata-se aqui de um cenário plácido, na estabilidade emocional de alguém que está fazendo algo de bom da vida, colocando-se à disposição do Mundo, sendo digno de respeito. A água aqui é um perfeito espelho, convidando Narciso a olhar-se e afogar-se, como numa traiçoeira areia movediça. A poça imaculada contrasta com o barro maculado, num contraste entre Yin e Yang: a intocada beleza feminina com as “rugas” existenciais do masculino. Este quadro se basta. É claro que Escher lançava mão de exaustivos rascunhos, só finalizando a obra quando, finalmente, chegava a um consenso consigo mesmo, dialogando consigo mesmo, executando toda a sua impecabilidade, num artista perfeccionista, quase obsessivo. A água plácida nos tenta a tocá-la e maculá-la, no prazer transgressor da defloração, pois uma sociedade só evolui por meio da transgressão de alguns de seus indivíduos, dizia o diretor Fábio Barreto. As marcas dos calçados soam masculinas – não são de salto alto. São pés grandes, masculinos, indo e vindo, revelando ser uma via de duas mãos; uma faca de dois gumes; uma contradição de trânsito – o que sobe, desce. E por que a misteriosa esfera, a qual não podemos ver se é Sol ou Lua? Escher é o mestre da dualidade, sempre pregando charadas insolúveis, exercendo fascínio permanente, inesgotável. O barro cinzento é a dúvida existencial: o que está acontecendo com minha própria vida? O artista luta para se estabelecer, e alguns só são plenamente reconhecidos depois que morrem, como Jesus Cristo, que em vida foi subestimando e só séculos depois foi devidamente reconhecido. O Sol/Lua é o ponto mais claro do quadro, destacando-se em meio a uma cena tão sombria. No barro, vemos crateras, que contam uma história de violação, de marcos divisórios, como AC e DC.

Acima, Formiga, litogravura de 1943, 24,9 cm x 18,2 cm. Aqui, Escher quer simplesmente debruçar-se sobre a Biologia e reproduzir cada detalhe de um animal tão pequeno e delicado. Esta formiga é como um robô, numa nanotecnologia. A formiga aqui está solitária, talvez perdida de seu formigueiro, longe de casa, de suas referências. Vemos o movimento das patas, e o som de pegadinhas suaves, num Escher laborioso como uma formiga, sempre construindo seus formigueiros, num trabalho incessante. É um quadro meio assustador para quem é aracnofóbico. Mesmo desenhando, Escher é invisível. O que é ele? A formiga tem na boca garras afiadíssimas, prontas para estraçalhar a presa, devorando folhas de árvores e animais maiores, na força da coletividade, num cadáver de pássaro sendo devorado por inúmeras formigas ao mesmo tempo. O formigueiro é um enigma: como é que ele funciona? As antenas da formiga dão-lhe noção e sensibilidade, sentindo o universo ao seu redor, num Escher antenado com o Mundo. A formiga é uma anônima operária, humilde em seu anonimato, conformada com sua posição de “mais um tijolo na parede”, como numa ditadura, em que o cidadão é reduzido a uma pilha Rayovac, a serviço de um estado. A formiga projeta uma suave sombra abaixo de si, dando efeito de profundidade ao quadro, e o inseto pula aos olhos de quem o vê. A formiga é um Escher que procura por algo, mas não sabe exatamente pelo quê. Seu corpo negro é lustroso, polido como prata, e seu “bumbum” revela uma bagagem, uma carga existencial, um portamala cheio de recordações de uma vida bem vivida. É como um bombom delicioso, negro, amargo, fora do gosto infantil. Neste quadro, a formiga pode estar em qualquer posição: num teto, num chão ou numa parede. É um quadro sem centro gravitacional, uma característica frequente em Escher, num artista de mente questionadora, algo impossível em regimes políticos totalitários: Escher é um libertário. Este ser lembra o monstro Laracna de O Senhor dos Anéis, um ser absolutamente agressivo e repugnante, sempre faminto, nunca satisfeito, num artista sempre faminto por questionamento, sempre explorando possibilidades. As antenas são o relacionamento da pessoa como Cosmos à sua volta, sensitivas, detectando o mais sutil sinal emitido pelo Mundo. Suas patas, apesar de delgadas, são fortes, guiando o espectador pelo complexo sistema de várias patas, numa Natureza perfeita no que faz – Escher tem uma paixão pela Biologia. Resta-nos saber como Escher se sairia se tivesse tornado-se fotógrafo; sairia-se bem, provavelmente. Esta formiga tem olhos grandes, insaciáveis por Arte, observando o espectador ameaçadoramente. A formiga é grande e minúscula ao mesmo tempo, numa contradição escheriana, em que positivo e negativo dançam uma dança harmônica. Frágil, esta formiga pode ser facilmente esmagada por um ser humano; forte, a formiga é um exército inteiro de força blindada, numa armadura que sabe dizer “não”, tendo virilidade e independência. É a dureza bélica de Yang. A formiga é um soldado indestrutível, um agente de um formigueiro de vida pulsante, complexa. O pescoço do inseto aqui é extremamente frágil, fininho, sustentando uma cabeça descomunal, armada até os dentes. Escher vê a sensualidade da força da natureza, adicionando-se ao fluxo, entregando-se. A superfície abaixo do inseto é texturizada, como cascalho, numa parede imperfeita e rústica, aconchegante, convidativa. É a dúvida cinzenta, debatendo-se entre dia e noite. Ao observarmos à distância, a formiga parece que é uma foto, tal a precisão de Escher. A formiga está cuidando de sua própria vida, e não espera que alguém viva a vida deste mesmo animal. A formiga é grande ou pequena?

Acima, Faixa de Möbius, xilogravura de 1963, 20,5 cm x 45,3 cm. Este quadro é uma alegoria da Eternidade, pois as formigas – Escher gosta de formigas – estão em constante fluxo, sempre caminhando. É um número oito, com curiosa semelhança com o símbolo na fronte do célebre busto de Nefertiti. Os olhos das formigas são negros e profundos, e são lustrosos, e as formigas aqui parecem estar divertindo-se, talvez num Escher que se divertia ao produzir suas obras, estabelecendo um vínculo afetivo com os próprios quadros, do modo como Leonardo da Vinci ficou apegado à sua própria Monalisa. As formigas são bordôs, na cor do vinho e do sangue de Cristo, no mistério da transubstanciação no momento da missa, em que o vinho torna-se o sangue do Salvador. É o prazer de um bom vinho, no prazer artístico de produzir, no prazer de qualquer pessoa que faz o que gosta e que gosta do que faz. A faixa sinuosa é sensual, feminina, liquidiscente, e recebe as formigas com o prazer de um grande e generoso anfitrião. A faixa tem um brilho metálico, e tem furos quadriculados. É a estrada da Vida, sempre fluindo, como cinzentos paralelepípedos. Por outro lado, há algo que na faz sentido, pois as formigas caminham eternamente da mesma forma, nunca questionando, num artista buscando sentido na Vida. Cada formiga tem sua carga existencial, mas aqui não há diferenciação – seriam todas essas formigas uma formiga só, mas captada em momentos diferentes? Seria como uma fotomontagem: a formiga é captada em vários momentos e, depois, Escher teria montado o quadro. O quadro é uma representação da rotina, da ordem do dia, na tarefa rotineira de trabalho, limpeza, higiene e organização. A formiga é extremamente laboriosa, como Escher o foi. O quadro é fascinante. Observando-se bem de perto, vemos a meticulosidade deste artista, pois ele trabalhava por meio de muitos e muitos traços, numa paciência admirável. Olhando de perto vemos cada tracinho e, ao nos afastarmos, compreendemos o efeito Escher. Quanto tempo será que o artista levava para produzir cada obra? Trabalhando por meio de contrastes, Escher entra na mente do espectador. É o ciclo da Vida, ascendendo e descendendo, na rotina da respiração, em pulmões que expiram e inspiram, num coração de bate. Junto à necessária rotina, vem o insight existencial, e o ser humano encontra propósito na Vida, intercalando rotina com excepcional; intercalando sonho com trabalho; contemplação com labor. Aqui, temos a mágica do movimento de Escher, que excitava as percepções do espectador. Escher é uma lanterna mágica, pela qual podemos ver fluxo plástico. Os furos quadriculados na faixa sinuosa são janelas, aberturas que fazem uma casa respirar e viver. São lacunas de sensual vazio, formando um centro gravitacional que puxa o espectador para dentro do quadro. O espectador pergunta-se: “Como será que o cara fez isso?”. As formigas aqui caminham em total e absoluta harmonia, nunca havendo um congestionamento ou uma desordem. Aqui, a Lei reina e estabelece a Paz. Como no Ecossistema, onde tudo se aproveita. As formigas estão em perfeita paz, ocupadas no labor do dia, ocupando-se alegremente, encontrando propósito. É como uma roda em uma gaiola de roedor hamster, sempre girando, trazendo fluxo de caixa ao organismo econômico. É a Roda da Economia, girando em nome da riqueza e do bem-estar. A caixa quadriculada permite-nos que vejamos todas as formigas em trânsito, trazendo arejamento e leveza ao quadro. Podemos sentir uma doce brisa. O fundo branco é a Paz, fazendo contraste com os elementos mais escuros do quadro, trazendo, assim, a visibilidade de formas.

Acima, Gravidade, litogravura de 1952, 29,7 cm x 29,7 cm. Uma linda estrela expande-se por todos os lados, como um popstar difundido pelos quatro cantos do Mundo. A cultura de massa afeta a todos, sem pedir licença para entrar na mente das pessoas. Os meios de Comunicação Social chegam a nós por papel ou digitalmente, num objetivo quantitativo – quanto mais espectadores, melhor. A estrela cadente atende a pedidos quando ela cai, fascinando o céu noturno. A Estrela de Belém guia os Reis Magos até a manjedoura. A Estrela d’Alva anuncia um novo dia, como um galo cantante, como um superstar sendo visto e reconhecido pelas pessoas, pelas massas, como uma Gisele sendo revelada. É uma estrela glacial, feita de cristal gelado, fascinando por suas formas agressivas e belas, com suas pontas afiadas, emitindo o seguinte aviso: não chegue perto demais. A estrela aqui está tomada de vida pulsante: vemos serpentes e patas de animais. É uma riqueza biológica impressionante, assustadora, num ecossistema rico como uma ninhada numerosa de gatos ou cachorros, no milagre da Vida, da reprodução. A limpeza da estrela cristalina contrasta com os membros de animais, como um covil de cobras, numeroso, como um harém reptiliano. Remete a uma estrela militar, símbolo de poder, força, agressividade e disciplina. E por que a estrela está toda perfurada, tão cheia de seres vivos dentro de si? Esses seres estão lutando entre si? Seria a luta pela Vida, na Seleção Natural de Darwin? Os seres aqui lutam por um lugar ao Sol. Parece que a estrela os aprisiona, impedindo-os de sair. Seria a estrela um belo presídio, como numa encarnação? De onde veio a vida que pulsa dentro desta estrutura de gelo? Podemos ouvir o som de fino cristal tilintando, na pureza da voz de um grande cantor ou cantora, numa estrela que vibra musicalmente no Céu, sempre seduzindo por sua beleza impecável. As pontas da estrela são bem agressivas, abrasivas, mas não chegam a ferir os seres dentro dela. A ponta espinhosa requer respeito. Do contrário, lesões acontecerão. A estrela exige ser contemplada à distância. Os seres vivos aqui são coloridos: amarelos, esverdeados, avermelhados e alaranjados, como num prato do colorido cereal Froot Loops. É a candura infantil, sempre atenta às cores, à festa cromática. Tudo neste quadro parece girar em sentido horário, na ordem cronológica. A estrela gira sem parar, e os seres dentro dela fazem parte deste movimento, como um planeta Terra, fazendo tudo e todos girar junto com a esfera terrestre. É uma dança conjunta, na harmonia de um biossistema integrado, onde cada agente tem uma função para com o todo – nada na Natureza está isolado. Podemos ouvir sons guturais e o balançar das línguas das serpentes. Escher é muito cheio de vida. E por que a estrela gira? É o ritmo do Mundo. Este cristal brilha irresistivelmente, seduzindo por sua beleza fria, racional, na beleza matemática, na pureza dos números. O pensamento racional é belo, exato, preciso. É a construção técnica do espírito, na demanda existencial. A estrela parece estar rolando morro abaixo, no efeito “bola de neve” – quanto mais rola, maior fica. Este colorido dá uma certa alegria ao quadro, em contraste com a sóbria frieza estelar. A estrela é uma espécie de prisão, de calabouço, aprisionado a feras do Inconsciente, impondo ordem ao caos do Inconsciente, jogando luz sobre este. É a vitória da Razão, da autocognição, do autodescobrimento. As criaturas bestiais estão contidas, derrotadas, controladas.

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