Certa vez, um museu
brasileiro – o MASP, se não me lapsa a memória – fez uma mostra sobre o
colombiano Fernando Botero, e o anúncio publicitário sobre a exposição era bem
divertido, mostrando um prego na parede, só que o prego estava quase caindo,
como se não tivesse suportado o peso de uma obra de Botero, o qual retrata
sempre pessoas gordinhas, num artista de estilo inconfundível. As análises
semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Cristo. O rosto do Salvador é simétrico; o seu coração ardente,
também. O coração queima uma chama inextinguível, na força da fé entre os que
consideram Jesus o maior espírito que já encarnou na Terra – inclusive, eu já
falei de Jesus Cristo aqui no blog. Seu cabelo é crespo, sem um fio de fios brancos,
numa pessoa no auge da juventude, numa vida abreviada de um modo absolutamente
cruel, só equiparável à execução de pessoas queimadas vivas. Jesus Cristo, de
fato, ressuscitou – na fé dos cristãos, num Jesus que, de fato, não foi
reconhecido em vida. A barba aqui é extensa, num homem que jamais a aparou. Sua
boca é pequena, mínima, rósea, combinando cromaticamente com a chama do coração
e parte de suas vestes. A parte branca das vestes é o apelo de Jesus por paz no
Mundo, um apelo encarnado pelos papas, os quais repudiam qualquer tipo de
violência e crueldade. A veste branca é limpa, perfumada, na pureza perfumada
da atitude de pessoas que seguem Tao: o que é melhor – sujeira ou limpeza? A
veste alaranjada é o calor do Sol, da vida, num Jesus que dedicou uma vida a
uma tarefa instintiva e inconsciente: pregar o conceito metafísico do Reino dos
Céus, um conceito inédito até então – o Mundo, na época de Jesus, era tosco,
violento e cruel, grosso ao ponto de não acreditar em um Mundo melhor acima, na
dimensão metafísica. Há uma aurela sobre a cabeça de Jesus, transmitindo a
divindade do pensamento taoista, na iluminação psíquica, na mente capaz de
transcender a matéria e conectar-se com o espiritual, o psicológico, o
comportamental. É uma lâmpada, no símbolo da iluminação criativa, num pregador
criativo e imaginativo. É um nascer do Sol, que traz a ressurreição, ou um pôr
do Sol, que anuncia a morte de Jesus após a Última Ceia. Seus dedos gordinhos
simbolizam os dedos célebres da divindade do homem Jesus, difundindo o conceito
de perdão: se a vida é eterna, há tempo de sobra para o perdão, pois a
Eternidade vence tudo; vence a matéria; vence o mundano; vence o amargo e o
mau. E um diamante, é divino? Não, porque o diamante é matéria, e a matéria não
é eterna como o espírito – este é a simplicidade. Em um dos filmes de Indiana
Jones, uma personagem tem que escolher, dentre muitos cálices, o que fora usado
por Jesus na Ceia. Então o personagem escolhe o cálice mais luxuoso, feito de
ouro e cravejado de pedras preciosas. Só que a escolha foi errônea, pois o
cálice de Jesus era o mais simples de todos, digno de um filho de carpinteiro.
Ou seja, a simplicidade é superior à soberba. Jesus cobra o desapego ao
material. Aqui, o coração pulsa, incendiando vontade de viver, encontrando
propósito e sentido. Ao redor dele, a famosa Coroa de Espinhos, dolorida, na
dor inevitável do ser encarnado. Todos sentem dor na encarnação. O que faz a
diferença é se esta pessoa vai sofrer por meio da dor. Quem não sofre, mesmo
com dor, é feliz. Nesses tempos vi na rua um cachorro com uma das patas
amputadas, e o bicho corria alegremente, sem reclamar da vida. Os símbolos
católicos são intensos e apaixonados. Aqui, o cabelo de Jesus está
impecavelmente penteado, na autoestima de uma pessoa que se gosta e se cuida. A
divisão capilar é o marco divisório do Ano Zero, partindo em duas a História da
Humanidade, como numa Elizabeth I, marcando a História da Inglaterra. O coração
está centralizado, no prazer de um fumante em acender um cigarro. O prazer
convive com a dor. O coração ardente é libertário, e é o amor ao próximo, na
pessoa que se coloca nos sapatos dos outros, entendendo a dor destes. Amar é
colocar-se no lugar do outro. Os olhos deste Jesus são bem escuros e profundos,
no mistério da Divina Providência: nada é revelado antes do tempo apropriado.
Quem sou eu e para onde vou? Jesus na cruz questiona a si mesmo. O sobrepeso
deste Jesus é a cornucópia da dimensão metafísica, na fartura de uma dimensão
mais plena e nobre, acima de nós, esperando por nosso desencarne e por nosso
retorno ao Lar. Este quadro é uma declaração de amor ao Cristianismo. A
imperfeição das pontas da barba é a inevitável – porém, não despropositada –
desordem da Vida. Nunca ouvimos dizer que Deus escreve certo por linhas tortas?
Acima, Monalisa. Há aqui metalinguagem: pintor falando de pintor, como uma
atriz interpretando outra atriz. É uma ironia. Esta neo-Monalisa tem um olhar
alegre, satisfeito, de quem acabou de fazer uma bela refeição. Nunca ouvimos
dizer que barriga cheia, coração contente? Seu decote é sensual, ainda que
recatado, como no busto de Fafá de Belém, transbordando vida, abundante,
generosa. Seu cabelo cacheado repousa calmamente, como um rio fluindo
caudalosamente. Seu delicado véu negro, de fino tecido, cobre-lhe a cabeça, na
discrição de uma mulher aristocrática. Sequer há uma brisa na cena, pois o véu
não está tremulando como uma bandeira. Seu nariz é delicado, mínimo, elegante,
como num nariz mínimo de Michael Jackson. Seu rosto é redondo como uma Lua
cheia, emanando um leve brilho, com brandura. Seu pescoço é forte e sustenta a
pesada cabeça. Suas mãos gordinhas mostram unhas impecavelmente feitas, numa
mulher com autoestima, num ser humano que gosta de si mesmo e se cuida. Ela
está lactante, na generosidade de uma autêntica mamma italiana, na ironia da
semelhança com o termo “mama” e “mamar”. Ela recém deu à luz, alegre com um
bebê saudável. Suas vestes são nobres, elaboradas, luxuosas – é uma mulher
bem-vestida. O negror de suas vestes contrastam com a pele clara. Suas
sobrancelhas são mínimas, quase imperceptíveis, como era moda nos anos 70, como
nas sobrancelhas de Elis Regina, e Monalisa da MPB. O olhar da Gioconda de da
Vinci não é o mesmo da de Botero, é claro, pois cada artista tem identidade
própria. Aqui temos uma releitura, numa declaração de amor ao quadro original
renascentista. O céu atrás parece ser de uma sensual noite de Lua cheia, como
no formato lunar da face desta Gioconda. É uma luz branda, que não fere a
retina. O céu é de um azul turquesa escuro, como num profundo mar de mistérios.
É como um oceano, guardando segredos, como no enigma eterno da Monalisa, o
ponto alto do Museu do Louvre, a grande estrela da cidade de Paris e do Mundo
Ocidental, forte o suficiente para seduzir o próprio Leonardo DiCaprio, digo,
da Vinci. É um quadro que revela um artista feliz e satisfeito, sorrindo
brandamente, produzindo peças que se tornam filhas entranhadas, no sentido de
que a obra, apesar de comercializada, é sempre pertencente ao próprio artista,
ao próprio pai. E por que a preferência de Botero por modelos obesos? A
obesidade é a abundância, a cornucópia natalina, num Papai Noel gordo, que
carrega um gordo saco cheio de brinquedos, tesouros e presentes. Esta Monalisa
é, por fora, gordinha, mas, por dentro, revela uma elegância delgada, magra,
minimalista, no sentido de que beleza vem de dentro; beleza não se compra; amor
não se compra. As vestes negras revelam sobriedade, numa pessoa centrada e
pés-no-chão, numa concepção realista, de um artista que revela saber o valor da
discrição, como no Taoismo, que revela que a pessoa não revele sua própria
riqueza como um pavão. Aqui, temos um Botero comedido, comportado, pacato, na
metáfora de Super-Homem e Clark Kent: seja pacato e serás um super-herói. A
paisagem ao fundo difere do quadro de da Vinci, e as colinas aqui têm formato
piramidal, como num Egito Antigo abundante, na glória nababesca dos faraós, num
exagero de soberba: túmulos, as pirâmides são um resquício do exagero
faraônico, numa sociedade piramidal, onde classes minoritárias estão sobre as
classes mais numerosas. Estas colinas de Botero têm formato de seios femininos,
na lactância generosa desta Monalisa, na fartura de uma mesa de ceia de Natal,
reunindo a família, celebrando uma farta refeição. Botero é assim: um banquete.
Os olhos desta Gioconda são dois peixes negros, fluindo por este oceano, num
rosto sutilmente corado. O véu negro é a noite densa, mas não assustadora, e é
uma sensual noite tropical enluarada, no sensual farfalhar das folhas das
árvores. Seus dedos de dama revelam bondade e nobreza, talvez unhas polidas por
um séquito de damas de companhia – esta Monalisa é para poucos, talvez
remetendo à época em que a obesidade feminina era padrão de beleza. Como numa
loja de tamanhos especiais, dando autoestima à mulher obesa. Por que será que
hoje existe este padrão de beleza de mulheres extremamente magras? O que é
melhor: ser gordinho ou ser anoréxico?
Acima, O Rapto de Europa. A sensualidade do feminino abduzido pelo
masculino. Completamente nua, Europa só usa joias. Um colar de pérolas adorna o
busto, dividido entre dois seios belos, redondos. É a pérola da ostra, nos
segredos profundos do oceano, no odor de mar, no odor da parte íntima da
mulher. E da ostra vem Vênus, anunciando a noite ou o início do dia, como uma
Iemanjá sexy, usando um vestido decotado e tendo cabelos negros que lhe caem
nos ombros, numa versão sensual da Virgem Maria. Aqui, a virgindade e Europa é
sexy e cobiçada pelo furioso touro, e podemos ver um sinal de pênis no animal,
para termos a certeza de que se trata do princípio masculino fálico. As patas
do bicho estão completamente mergulhadas no infinito oceano, adormecidas,
entorpecidas, imóveis pelo canto de Vênus que faz Marte, o Rei da Guerra,
adormecer. Assim, a Paz é estabelecida, e a raiva da Guerra é derrotada, como diz
Tao: a Paz é maior (e melhor) do que a Raiva. O touro é extremamente
corpulento, forte, como nos homens de Aldo Locatelli, num Botero que ama a
corpulência e a força, e o animal tem veias salientes, no vigor da vida e da
sexualidade. Os seios de Europa são dois grandes olhos, na fartura que alimenta
o bebê, no caso, o touro. Na verdade, não é o touro quem conduz Europa, mas é
Europa quem conduz o touro, como Maria carregando o Menino Jesus, na vitória do
Yin sobre o Yang. Podemos ver um pequeno pedaço da vulva de Europa, a qual
parece uma diva de Ópera, só que nua. O rabo do touro balança furiosamente,
dando vida ao quadro. O oceano ao fundo é o Infinito, a Vida Eterna, no sentido
de que as pessoas jamais morrem, jamais. São as três leis básicas: o espírito é
único, indivisível e eterno. O oceano estende-se até onde a vista pode
alcançar, e o céu o complementa cromaticamente, num lindo tom discreto de azul.
Este mar é brando, doce e agradável, com ondas suaves, que acariciam e acolhem,
trazendo muito prazer e relaxamento, no retorno ao útero, ao vaso primordial,
no bem-estar de quem está em casa. É um mar que nos convida a mergulhar, e
podemos ouvir o som das pequenas ondas, como um farfalhar de quietude. Podemos
sentir o perfume dessas águas sedutoras, e podemos sentir o quentinho dessa
água, como numa deliciosa piscina térmica. Europa sente-se segura sobre o touro
raptor, e, ainda assim, conduz o animal. Europa tem ares de mulher rica, ostentando
suas joias. Seus cabelos estão jogados para trás, recatados, recolhidos, numa
Europa que é a Mãe do Mundo Ocidental. Ela segura um dos chifres, equilibrando-se
para não cair. E o touro a assegura de que não a deixará cair, no vínculo
erótico entre protetor e protegida. O touro é belo; e Europa, também. Botero nos
mostra que magreza não é sinônimo de beleza, apesar da rima entre estes
substantivos. Os olhos de Europa estão fixos nos olhos do espectador, convidando
este a entrar no quadro; a compreendê-lo. Seus lábios são vermelhos, numa
mulher cuidadosamente arrumada, digna de posar para um grande artista. O
focinho e a boca do touro são bem negros, na imprevisibilidade da existência,
no sentido de que as coisas nunca acontecem exatamente como imaginamos que elas
aconteceriam, nas surpresas da Divina Providência – não existe bola de cristal;
há apenas uma ideia vaga do futuro. Neste quadro há sexo, com opostos
unindo-se, sempre em nome da unidade cósmica, numa Barbra Streisand que já
disse, em entrevista, querer conhecer o som do orgasmo. Os olhos do touro são
negros e profundos, como dois diamantes negros incrustados. Suas patas são
quatro pilares fortíssimos, como um Atlas sustentando o Mundo, mais fortes do
que os pilares da Terra. São colunas gregas ou romanas, erguendo templos e
prédios suntuosos. As veias salientes do touro são como raios de tempestade,
rompendo ruidosamente nos céus, na fúria da Natureza. A outra mão de Europa
coloca-se próxima ao rabo do touro, como se o membro fosse um chicote, numa Mulhergato
agressiva, domando masculino com seu chicote, como um domador de circo, na
vitória da mente sobre o corpo. Na verdade, é Europa quem está raptando o
touro.
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