quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Superstar



Nunca fui uma pessoa muito religiosa. Fiz só a Primeira Eucaristia e nunca me crismei. Não vou a missas. Gosto de visitar igrejas fora do horário de missa, para apreciar a arte dos templos. Apesar disso, tenho que reconhecer o mérito em Jesus Cristo. Ele foi altamente mal interpretado em vida, frustrando-se na cruz, e esse drama serve de alento eterno ao ser humano, que é por excelência um ser que se frustra o tempo todo. Esse contentamento conquista a fé das pessoas, em um mundo tão duro e difícil. A vitória de Cristo após a humilhação é uma história e tanto, servindo de esperança.
Era o ano de 1987, e minha irmã e eu estudávamos em um colégio particular de freiras. Nós assistíamos a slides da Via Sacra, e éramos levados à Igreja de São Pelegrino, também em Caxias, para ver uma réplica da Pietà de Michelangelo. E a freira nos dizia:
- Olhem a tristeza de Maria ao carregar o filho morto – a fidelidade da réplica era impressionante, uma pena que apenas a parte frontal da obra podia ser vista.
Minha professora, que era freira, explicou a divisão de águas que foi o surgimento do Cristianismo. Antes de Jesus, era tudo na base do “Olho por olho, dente por dente”, ou seja, se eu matasse alguém, eu teria que ser morto também. Então Jesus trouxe o conceito inédito do perdão. Se Deus tem paciência eterna para com seus filhos pecadores, então Ele tem que saber perdoar sempre. A frase já diz: “Errar é humano”. O ser humano foi feito para errar, para pecar. É da essência da Humanidade cometer equívocos e fazer “burradas”. O importante é o arrependimento: se tenho o desejo de voltar no tempo e desfazer o erro, é porque tenho a humildade de reconhecer o erro, libertando-me assim.
O taoismo, concebido algum tempo antes de Jesus passar pelo mundo, é bem simétrico aos conceitos do Cristianismo: humildade, compaixão e moderação são o tripé básico de Tao, visto que este é a mesma coisa do que Deus, só que chamado de modo diferente. Se o ser humano é universal, Deus também é, e assim é a mensagem cristã.
O filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, deu pano para a manga, sendo até acusado de antissemitismo. Na película, as últimas horas de vida do messias são retratadas. Patriarcas judeus julgam e decidem punir o homem com a pena capital, com o requinte de crueldade que era a crucificação, algo equiparável a ser queimado vivo em uma fogueira da Inquisição, sendo esta em nome de Cristo, porém uma espécie execução bárbara da qual Ele jamais lançaria mão. A crucificação servia para assustar o cidadão comum: comporta-te e não acabarás assim. Era aterrorizante.
O musical da Broadway “Jesus Cristo Superstar” traz uma roupagem pós moderna à trajetória do pregador que, ironicamente, morreu pregado. Jesus foi isso mesmo: um astro. Ele brilhava nos seus discursos e no seu modo simples de ver a vida. Para Ele, somos todos filhos do mesmo Pai, sendo Jesus nosso irmão, nosso igual. No filme “Celebridades” de Woody Allen, o diretor (judeu) tenta mostrar como Jesus foi amado como um carismático astro. Em outro divertido filme de Allen, seu personagem tenta se adaptar a alguma religião, deparando-se em um certo momento com um holograma 3D que mostra Cristo abrindo e fechando os olhos na cruz.
O Espiritismo reconhece tranquilamente o brilho de Cristo. Para a doutrina espírita, Ele é o espírito mais depurado que já encarnou na Terra.
- Nós (os católicos apostólicos romanos) respeitamos os espíritas – disse minha professora freira certa vez.
O livro bestseller megahit “O Código da Vinci” fala sobre o segredo de que Jesus tivera filhos com Maria Madalena e que seus descendentes ainda viviam sobre a Terra. Ficção, é claro. Na verdade, somos todos descendentes Dele.
O Cristianismo resultou em vários ramos. Há dias atrás, o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa encontrou-se com o Papa Francisco, e foi um evento grandioso porque havia um milênio que os líderes dessas igrejas não haviam se encontrado. Na Europa houve a cisão entre o Vaticano e a Igreja Protestante, um momento muito bem mostrado no filme “Elizabeth” de Shekhar Kapur. Isso sem falar das igrejas alternativas que pipocam no Brasil. Jesus Cristo é inesgotável.
Jesus nasceu pobre, viveu pobre a morreu pobre. Ele não nasceu herdeiro do trono de Roma; sequer nasceu herdeiro do trono de alguma província dos domínios do Império Romano. Apenas séculos depois, depois dos cristãos terem sido cruelmente perseguidos no império, é que a Humanidade deu-se conta da importância de Cristo no curso da história dessa mesma Humanidade. Jesus é o centro sobrenatural da História. A riqueza Dele está nos conceitos, ideias e pensamentos que Ele propagou. “Matéria é nada; pensamento é tudo”, diz o Espiritismo. O legado de Jesus está em sua própria cabeça. Jesus está na mente das pessoas. Jesus despreza o materialismo.
Em outra instituição de ensino, minha professora interpretou o conceito de ressurreição: Jesus, homem de carne e osso, de fato morreu e seu corpo pereceu, mas depois ressuscitou na fé dos seus seguidores. Nesse sentido é palpável o renascimento, pois a Ciência, por exemplo, refuta a ressurreição da carne - ressuscitar é um conceito que não deve ser levado ao pé da letra. No ponto de vista espírita, ressuscitar significa morrer, desencarnar e ser livre de tudo o que afetava o corpo físico. No desencarne, a pessoa deixa tudo par atrás: raça, cor, nacionalidade, classe social, gênero e sexualidade. É a igualdade entre irmãos. O mundo está até hoje tentando entender o que significa ressuscitar. E o que o “Reino dos Céus” é? Para o Espiritismo, são as colônias metafísicas, as cidades espirituais onde os indivíduos vivem com trabalho, estudo e diversão, em uma vida produtiva e agradável. E lá está Jesus nos esperando, fazendo-nos entender que o Paraíso não é uma vida contemplativa e ociosa – é um lugar cheio de riqueza espiritual, no qual tudo gira em torno da saúde psicológica.
Jesus foi executado como um pária. Ele não foi covardemente assassinado em uma emboscada. Não foi pego por um assassino reles. Jesus foi oficialmente processado pelas leis do Império Romano. Foi executado como previsto em lei. Foi considerado um verme, um psicopata louco, um câncer social, uma ameaça à vida e à integridade dos cidadãos. Ele foi desprezado como fezes. E esse fim deveria ter sepultado para sempre sua passagem pelo mundo. Ele tinha tudo para cair no mais completo esquecimento, ter virado uma piada, tratado como uma pedra de cascalho de tão comum e medíocre. Como a verdade é a filha do tempo, o efeito Jesus se revelou claro, conciso e compreendido. A história de Cristo é muito forte e poderosa. É uma mensagem, a de que somos todos da mesma família e, quem não respeita essa mensagem, sofre. A simplicidade Dele, sua racionalidade no Seu modo de organizar o universo, é promessa de uma vida melhor após o desencarne, como a alma sobrevive à morte do corpo. Jesus rechaçou o mundanismo romano.
- São nossos irmãos, que sofrem – diz um espírito no filme espírita “Nosso Lar” sobre pessoas que vagam pelo Umbral, a dimensão prisional dos espíritos materialistas e infelizes, que não aceitam a morte do corpo físico e nem querem desprender-se do que tinham de material na Terra.
A corajosa popstar Madonna já se inspirou muito em Jesus Cristo e no Cristianismo em músicas, clips e shows, principalmente na canção “Like a Prayer” (Como uma oração) – mãos furadas por pregos, cruzes em chamas da Ku Klux Klan, racismo e preconceito. A irreverência artístico religiosa mina quase toda a obra da estrela, que busca brilhar como Ele.
Eu tenho um colega do Ensino Fundamental que virou padre, e tenho uma grande amiga minha que é freira. É raro hoje em dia um jovem decidir pela carreira eclesiástica. Por isso a imposição de uma figura como o Papa Francisco está sendo positiva, pois o Santo Padre esforça-se para ser um autêntico cristão e interpretar da forma mais pura possível o legado de Jesus. Francisco está dando um show de humildade e está se tornando um gigante diplomático, reaproximando Cuba dos EUA, por exemplo. A mensagem de Jesus está na união dos povos, mesmo o mundo não sendo totalmente cristão: os hindus, os chineses, os judeus, os islâmicos, os taoistas e os budistas não reconhecem a divindade em Jesus Cristo. Mas Ele foi um homem tão grande que nunca desejou ter poder e influência, valores estes mundanos. Jesus pregou o rechaço ao mundanismo e à obsessão por dinheiro, na promessa de libertação da alma, de felicidade e de contentamento.
Eu pareço soar como um padre, não?
Na ilustração desta postagem, o ator Jim Caviezel caracterizado no filme “A Paixão de Cristo”. O realismo na violência sofrida é intenso.
Outro filme, “A Última Tentação de Cristo” também causou alvoroço cultural. É arrebatadora a sequência inicial, que mostra Jesus como simples carpinteiro mercenário, fabricando cruzes sem se importar quem nelas eram crucificados, levando na cara uma cusparada de uma Maria Madalena que o despreza, tendo a Nossa Senhora como mulher comum, brigando fervorosamente para defender o próprio filho.
Se você mora ou não em Caxias do Sul, convido-o a visitar a Igreja de São Pelegrino, um templo de interiores deslumbrantes concebidos por Aldo Locatelli e Emilio Sessa, dois pintores italianos. A cena do Juízo Final é de tirar o fôlego, e a Via Sacra também não decepciona.
Acima de tudo, Jesus trouxe a mensagem do Amor. Pobre daquele que não ama a si nem aos outros. Pobre daquele que não ama a vida. No mundo espiritual, há o conceito magno de amor incondicional, da estima saudável – o ódio, ou seja, a falta de amor, é doente e só traz sofrimento ao espírito odioso. Eis que um rei desencarna e deixa para trás sua coroa, e só será feliz se aceitar que não mais tem o que tinha. Como diz o ditado, “Vão-se os anéis, ficam os dedos”. O Espiritismo diz:
- Você não imagina a que estado ficam reduzidos aqui (no mundo metafísico) aqueles que são considerados felizes na Terra, ou seja, os ricos.
Em um mundo no qual tudo gira em torno de dinheiro, Jesus vem e traz o conceito de desprendimento: você até pode ter o ouro, mas nunca deixe o ouro ter você.
Engatado no conceito de amor vem a caridade. Por exemplo: certa vez, uma vizinha minha pediu para estacionar o carro na vaga de garagem, vaga correspondente à do meu pai. Como meu pai estava fora da cidade e só voltaria muitos dias depois, eu cedi temporariamente o box à vizinha. Se eu fosse egoísta e ganancioso, eu teria cobrado um pequeno aluguel. Caridade é ter a consciência do próximo, algo ainda mal compreendido no mundo. De que adianta termos as coisas se não podemos compartilhar as mesmas?
Existe um centro espírita cujo nome é “Fora da Caridade não há Salvação”. O egoísmo é fechar os olhos para os problemas do mundo e ter uma vida centrada no próprio umbigo: se estou bem os outros que se danem, diz o egoísta. O problema é que, em geral, o mundo está cheio de pessoas que querem passar uma na frente da outra. Amar é ser honesto, diria Jesus; é respeitar a vida. Em vida, Jesus foi extremamente desrespeitado, provando assim o egoísmo do mundo. Cada prego da cruz mostrou a falta de amor e de compadecimento que as autoridades tiveram para com Ele. À frente de seu próprio tempo, Jesus segue invicto na fé, como o Papa Francisco, agregando as pessoas em um posicionamento de alegria em estar no mundo.
Jesus dá uma lição de como brilhar. Difícil imaginar algum astro de Hollywood com o mesmo brilho Dele. Jesus mostra que o sofrimento passa e que o êxito espiritual permanece. Vão-se as experiências; fica o aprendizado. A paz é maior do que o sofrimento. Jesus é o maior diplomata de todos os tempos, pregando a paz entre os povos, nunca Ele exigindo ser recompensado por isso. Como diz o taoismo, deve haver a falta de expectativas, pois, assim, a frustração será evitada. Jesus quis unir o mundo por amar este, nunca exigindo ser um homem endeusado. Isso é humildade. Quantos reis perecem em seu próprio desejo em se tornar deuses, desprezando o amor e a união! Jesus veio ao mundo, cumpriu sua missão e voltou intocado ao Reino dos Céus, sem qualquer cicatriz de pregos.
Jesus foi e continua sendo referência. Sua elegância é incrível. Quando levou um tapa na cara, ofereceu a outra face. Chique como uma fragrância agradável. Realmente, a elevação de Cristo é incontestável. Mesmo quem não é cristão tem que reconhecer que Ele foi um homem singular, muito singular. O maior dos visionários. Não tenho medo de Jesus – tenho medo das atrocidades que o ser humano comete dizendo este agir em nome de Jesus, ou em nome de outras religiões, como o islamismo, que por si só é uma bela religião. Tenho medo do ódio e da guerra.
E, no mundo, reis sobem e descem de tronos, com suas vaidades perecidas, enquanto Jesus permanece. Rei dos reis.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Sistemas ditatoriais opressores




Certa vez, fui à boate Fim de Século, em Porto Alegre, vestido de Neo, o emblemático personagem vivido por Keanu Reeves em uma trilogia cinematográfica de estrondoso sucesso – os filmes Matrix, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions. Era o momento pré aurora dos anos 2000, e as pessoas olhavam para mim na boate e diziam:
- Matrix! – o ambiente sombrio e a música techno da trilogia e do club combinavam profundamente com meu outfit.
Confesso que não foi instantaneamente que me apaixonei pelo universo concebido pelos diretores, os irmãos Wachowski. Só no finzinho de 2003 fui ver Matrix Revolutions, sem ter visto os dois anteriores. Então debrucei-me e tratei de ver os dois filmes restantes – os três são de uma impecabilidade técnica enorme, com uma trilha sonora pulsante e metáforas preciosas, como o inferno, o pecado original, o salvador messiânico, o Cristianismo, desilusões, libertação da mente e revolta contra lideranças tirânicas, por alguns exemplos. A trilogia foi uma vogue, uma onda de estilo inovador. A tomada de Neo escapando de tiros de revolver foi amplamente difundida, em um modo muito original de se mostrar a ação na película. Matriz é uma trilogia com muita ação que inovou estilisticamente, mas isso não subtrai o mérito poético, abordando a autocognição do indivíduo – o forte personagem Oráculo, um programa que serve como guia espiritual, traz a frase em latim “Memet Nosce”, ou seja, “Conhece a ti próprio”. É a pessoa descobrindo o seu papel no mundo. Maturação. Libertação. Autoencontro.
Na sinopse, no ano de 1999, um programa de inteligência artificial escapa do controle e acaba por deflagrar uma guerra da humanidade versus máquinas. Quase todos os seres humanos são exterminados, e os sobreviventes mudam-se para uma cidade subterrânea secreta, Zion, aonde as cruéis máquinas exterminadoras (ainda) não chegaram. As máquinas então, para obter a energia para funcionar, concebem vastos campos nos quais seres humanos ficam absolutamente sedados e aprisionados, enganados, anestesiados e conectados a uma realidade falsa, um simulacro digital, ou seja, Matrix, onde todos os ludibriados vivem eternamente no ano de 1999. A infinidade de pessoas aprisionadas é tal que os campos (de concentração) são muito vastos, e de lá as máquinas tiram toda a energia da qual precisam. É do interesse de Matrix que as pessoas agrilhoadas não percebam que vivem em um mundo de mentirinha – o prisioneiro vive numa espécie de sonho (ou pesadelo) permanente, achando que vive em um mundo real. São poucos os seres humanos, a elite intelectual, que se libertam e percebem que, durante todas as suas vidas, passaram dormindo e servindo de bateria para um sistema absolutamente totalitário, insano e sem sentido. Matrix é um programa de simulação de realidade – não é autêntico; é como baunilha sintética. Aqueles que se libertam desse infindável simulacro são resgatados e vão para Zion. Assim foi com Neo, o protagonista da trilogia. Neo foi libertado e deu-se conta de que passou a vida dormindo conectado a um programa. O amigo Morfeu, vivido pelo ótimo Lawrence Fishburne, recebe Neo em Zion dizendo-lhe:
- Bem vindo ao mundo real.
Foi difícil e frustrante para Neo aceitar que vivia desde sempre num mundo irreal. O personagem é matéria de uma profecia, sendo esta altamente acreditada por Morfeu, a profecia de que “O Escolhido” viria e travaria uma guerra para vencer as máquinas e restabelecer a humanidade, libertando esta de Matrix. Para Morfeu, esse “escolhido” era Neo. “Quem sou eu?”, este indaga. A insegurança de Neo, como o Charlie Brown de Snoopy, ou como a insegurança de Aragorn sobre ser um rei em “O Senhor dos Anéis”, traz todo um charme humano ao personagem. Neo trilha o caminho da humildade versus a arrogância psicopática das máquinas frias – é uma metáfora sobre vampirismo, como em um filme sobre um nosferatu em uma rápida passagem em Reloaded. Matriz suga almas. É para o Espiritismo o “Umbral”, dimensão onde os espíritos sofredores vagam sem destino.
Keanu vive Thomas A. Anderson, um programador entediado com um emprego medíocre, confinado em uma baia sectária. Nas horas de folga, ele tenta respirar e libertar a própria alma sendo um hacker chamado Neo, que vara a internet em busca de motivação e sentido de vida. Além disso, Neo fornece programas clandestinos a quem pagar. Em uma noite, alguém entra misteriosamente no computador de Neo e aborda este. Excitado por tanto mistério, Neo vive uma Alice no País das Maravilhas e entra em contato com Trinity, uma mulher que já havia se libertado de Matrix mas que se infiltrava perigosamente nesta em missões de resgate a outros aprisionados, pois as pessoas livres usavam um programa pirata para reentrar em Matrix, assumindo o risco de serem detectados nesta e assassinados por programas malévolos terroristas do sistema diabólico. Mais tarde, Neo e Trinity apaixonar-se-iam. Trinity diz que Neo está em perigo e que precisa fazer contato com Morfeu, um indivíduo considerado criminoso pelas autoridades de Matrix, que, mais tarde, revelar-se-iam os vilões da história, ou seja, autoridades falsas, falácias. Neo topa encontrar-se face a face com o célebre Morfeu. Então Morfeu, com um nome irônico, convida Neo a sair do sono e deparar-se com a realidade. O corajoso Neo aceita o convite e, depois, dá-se conta: era um dos inúmeros seres humanos criados em cativeiro, com sua energia literalmente sugada por um sistema, o que os marxistas chamam de “Capitalismo”. Então Neo, recém desperto em sua célula prisão, olha para os lados e vê uma imensidão de outros seres humanos aprisionados, e Morfeu lhe diz: o sistema totalitário de Matrix faz do ser humano um mero par de pilhas alcalinas, um escravo cego, surdo e mudo. Chocado, Neo precisa de um tempo para se adaptar à nova realidade, à vida de desconectado. Assim que Neo é resgatado de Matrix, depara-se com a dura e inevitável verdade, a qual a priori não consola muito o protagonista.
A vida imita a arte. A Coreia do Norte é uma Matrix. É um sistema altamente cruel, no qual a liberdade de pensamento é impensável. A nação mais fechada do mundo tem seus cidadãos como prisioneiros, tendo estes servindo de bateria a um país que pouco se importa com a felicidade do próprio povo – os nortecoreanos passam fome, em um país obcecado em ser uma potência mundial militar nuclear: é a deificação da guerra. É uma nação do mal. Desculpe-me – não vejo isso de qualquer outro modo. Essas nações Matrix não entendem o que é livre arbítrio, um conceito altamente difundido pelo Espiritismo: a pessoa é livre para escolher seu próprio caminho. Matrix não trata adultos como adultos, e não respeita a inteligência do cidadão. É mentira atrás de mentira. Há rumores de que há campos de concentração na Coreia do Norte, punindo e aterrorizando os que ousam contestar o regime, desculpe-me, daquela rolha de poço que é o insensível, odioso e infeliz ditador nortecoreano. É uma “twisted guidance”, do inglês, um guia instável. A Revolução Francesa vem difundir os preceitos de democracia, amaldiçoando as ditaduras, uma lição muito bem aprendida pelos EUA. Esse estado absoluto de Matrix é como Elis Regina tendo se incomodado com os militares ao tê-los chamado de “gorilas” em uma entrevista que deu a um jornal europeu durante o regime brasileiro – nem do outro lado do Atlântico poder-se-ia falar mal do governo. Matrix é isso. Pobre de quem resolver pensar livremente. A miséria da Coreia no Norte é tão grande que os homens são obrigados a ter o cabelo exatamente igual ao do ditador. Absurdamente uó. Lá, o cidadão não pode ter estilo próprio.
Quaisquer tentativas de se construir um estado absoluto resultaram em fracasso – foi assim no nazifascismo, no comunismo, nas ditaduras militares latinoamericanas e nos regimes islâmicos xiitas. O estado onipresente acaba por se transformar em uma Matrix, virando um vilão de Disney. As ditaduras caem de podres. A luta de Neo é a de libertar as pessoas as quais não sabem que são prisioneiras. Ele entra em Matrix e trava uma luta contra pavorosos e medonhos programas, como o perigosíssimo e letal agente Smith – espetacularmente vivido pelo sempre brilhante Hugo Weaving - e o tirano Merovíngio, um boçal francês ganancioso que mostra a obsessão do ser humano em acumular poder. O mundo virtual de Matrix é repleto de programas, e cada um tem um propósito para manter o sistema vigente.
Matrix é uma armadilha ideológica. O cidadão é dependente de um sistema, e não pode desenvolver sua individualidade como cidadão respeitado e amado. Desafiar um sistema demanda coragem e lucidez. A filosofia não muda o mundo; ela apenas o vê como ele realmente é.
Na ilustração desta postagem, o herói Neo luta contra o vilão Smith, mostrando a verdade versus mentira – Coreia do Sul versus Coreia do Norte. Quando os coreanos refugiados do Norte fogem para o Sul, essas pessoas têm que passar por um processo de desintoxicação mental, e percebem que a pátria-mãe que deixaram para trás era uma Laracna de “O Senhor dos Anéis” – um monstro insaciável que devora, em uma fome infinita, a carne de seus próprios filhos. Eis que as forças do Mal se revelam, em um Estado claustrofóbico, horroroso. O vilão Sauron nada mais quer do que controlar ao máximo a vida. Liberte-se! Aconselho que seja visto o clip “Free your mind” (Liberte sua mente) gravada pelo conjunto americano de rythum & blues En Vogue. Tem no Youtube. Vida à expressão de pensamento. No clip, um macaco aparece como metáfora: a opressão é desprovida de cavalheirismo. É barbárie.
A trilogia Matrix reserva grande espaço ao aspecto marcial, abundante ação com cenas de luta cuidadosamente orquestradas, um deleite para quem gosta de aventura e lutas em geral. Há um sequência extremamente competente em Reloaded, numa perseguição de carros, motos e caminhões em uma rodovia movimentada. Algo que deve ter muito bem planejado e executado com paciência e talento, com timing para a ação. Efeitos especiais de ponta, sem decepções. Trata-se de produções de alto orçamento. Sucesso digno e merecido. E com potencial para virar cult, se já não o é.
Eu disse isso antes e repito: o sucesso é um amante infiel. Keanu está até hoje tentando sobreviver à força escravizadora de Matrix, ironicamente falando. O ator bem que tenta emplacar um novo sucesso. Reservado, ele nunca se expõe muito, e dá um pito em jornalistas intrometidos e fofoqueiros. Os próprios Wachowski emplacaram um baita fracasso chamado “O Destino de Júpiter”, lembrado pelo prêmio deboche Framboesa de Ouro, que “premia” aqueles que estão passando por um momento de seca na carreira em Hollywood. Os altos e baixos são inevitáveis, porque são a liquidiscência da vida, com picos de sucesso e depressões de insucesso. Como diz Morfeu, é o mundo real. Como diz o taoísmo, o sucesso é um problema, pois o doce momento de hit traz em si o insucesso. Irônico, não? Há um ator, cujo nome não mencionarei, que hoje, entre os anos de 2015 e 2016, está em um belo momento de sucesso com um filme. Mas a conta vai chegar, pois o amante infiel não deita-se para sempre com você.
A campanha de divulgação do primeiro filme da trilogia Matrix, em 1999, lançou mão da internet, no site whatisthematrix.com, ou seja, “O que é Matrix”, numa tentativa de fazer o público, especialmente o jovem, ver o invisível - a gaiola ideológica. Na época, foi moderníssimo. E inusitado.
O gran finale da trilogia é a grande guerra dos humanos contra as máquinas, na qual, além da épica batalha de fato em Zion, Neo entra em Matrix para lutar contra a grandiosa maldade de Smith. O final é belo, com uma aurora de esperança e renovação, na promessa de que há um lugar melhor para nós todos, longe de sistemas opressores. Não há amor sem liberdade, e vice versa. É o drama humano de saber quem é, de onde veio e para onde vai. É como estar encarnado: não odeie a carne; apenas veja-a com nitidez.