Certa vez, fui à boate Fim de Século, em Porto Alegre, vestido
de Neo, o emblemático personagem vivido por Keanu Reeves em uma trilogia
cinematográfica de estrondoso sucesso – os filmes Matrix, Matrix Reloaded e Matrix
Revolutions. Era o momento pré aurora dos anos 2000, e as pessoas olhavam para
mim na boate e diziam:
- Matrix! – o ambiente sombrio e a música techno da
trilogia e do club combinavam profundamente com meu outfit.
Confesso que não foi instantaneamente que me apaixonei pelo
universo concebido pelos diretores, os irmãos Wachowski. Só no finzinho de 2003
fui ver Matrix Revolutions, sem ter visto os dois anteriores. Então debrucei-me
e tratei de ver os dois filmes restantes – os três são de uma impecabilidade
técnica enorme, com uma trilha sonora pulsante e metáforas preciosas, como o
inferno, o pecado original, o salvador messiânico, o Cristianismo, desilusões,
libertação da mente e revolta contra lideranças tirânicas, por alguns exemplos.
A trilogia foi uma vogue, uma onda de
estilo inovador. A tomada de Neo escapando de tiros de revolver foi amplamente
difundida, em um modo muito original de se mostrar a ação na película. Matriz é
uma trilogia com muita ação que inovou estilisticamente, mas isso não subtrai o
mérito poético, abordando a autocognição do indivíduo – o forte personagem
Oráculo, um programa que serve como guia espiritual, traz a frase em latim
“Memet Nosce”, ou seja, “Conhece a ti próprio”. É a pessoa descobrindo o seu
papel no mundo. Maturação. Libertação. Autoencontro.
Na sinopse, no ano de 1999, um programa de inteligência
artificial escapa do controle e acaba por deflagrar uma guerra da humanidade versus máquinas. Quase todos os seres
humanos são exterminados, e os sobreviventes mudam-se para uma cidade
subterrânea secreta, Zion, aonde as cruéis máquinas exterminadoras (ainda) não
chegaram. As máquinas então, para obter a energia para funcionar, concebem
vastos campos nos quais seres humanos ficam absolutamente sedados e aprisionados,
enganados, anestesiados e conectados a uma realidade falsa, um simulacro
digital, ou seja, Matrix, onde todos os ludibriados vivem eternamente no ano de
1999. A
infinidade de pessoas aprisionadas é tal que os campos (de concentração) são
muito vastos, e de lá as máquinas tiram toda a energia da qual precisam. É do
interesse de Matrix que as pessoas agrilhoadas não percebam que vivem em um
mundo de mentirinha – o prisioneiro vive numa espécie de sonho (ou pesadelo)
permanente, achando que vive em um mundo real. São poucos os seres humanos, a
elite intelectual, que se libertam e percebem que, durante todas as suas vidas,
passaram dormindo e servindo de bateria para um sistema absolutamente
totalitário, insano e sem sentido. Matrix é um programa de simulação de realidade
– não é autêntico; é como baunilha sintética. Aqueles que se libertam desse
infindável simulacro são resgatados e vão para Zion. Assim foi com Neo, o
protagonista da trilogia. Neo foi libertado e deu-se conta de que passou a vida
dormindo conectado a um programa. O amigo Morfeu, vivido pelo ótimo Lawrence
Fishburne, recebe Neo em Zion dizendo-lhe:
- Bem vindo ao mundo real.
Foi difícil e frustrante para Neo aceitar que vivia desde
sempre num mundo irreal. O personagem é matéria de uma profecia, sendo esta
altamente acreditada por Morfeu, a profecia de que “O Escolhido” viria e
travaria uma guerra para vencer as máquinas e restabelecer a humanidade,
libertando esta de Matrix. Para Morfeu, esse “escolhido” era Neo. “Quem sou eu?”,
este indaga. A insegurança de Neo, como o Charlie Brown de Snoopy, ou como a
insegurança de Aragorn sobre ser um rei em “O Senhor dos Anéis”, traz todo um
charme humano ao personagem. Neo trilha o caminho da humildade versus a arrogância psicopática das
máquinas frias – é uma metáfora sobre vampirismo, como em um filme sobre um nosferatu em uma rápida passagem em
Reloaded. Matriz suga almas. É para o Espiritismo o “Umbral”, dimensão onde os
espíritos sofredores vagam sem destino.
Keanu vive Thomas A. Anderson, um programador entediado com
um emprego medíocre, confinado em uma baia sectária. Nas horas de folga, ele tenta
respirar e libertar a própria alma sendo um hacker chamado Neo, que vara a
internet em busca de motivação e sentido de vida. Além disso, Neo fornece
programas clandestinos a quem pagar. Em uma noite, alguém entra misteriosamente
no computador de Neo e aborda este. Excitado por tanto mistério, Neo vive uma
Alice no País das Maravilhas e entra em contato com Trinity, uma mulher que já
havia se libertado de Matrix mas que se infiltrava perigosamente nesta em
missões de resgate a outros aprisionados, pois as pessoas livres usavam um
programa pirata para reentrar em Matrix, assumindo o risco de serem detectados
nesta e assassinados por programas malévolos terroristas do sistema diabólico. Mais
tarde, Neo e Trinity apaixonar-se-iam. Trinity diz que Neo está em perigo e que
precisa fazer contato com Morfeu, um indivíduo considerado criminoso pelas
autoridades de Matrix, que, mais tarde, revelar-se-iam os vilões da história,
ou seja, autoridades falsas, falácias. Neo topa encontrar-se face a face com o
célebre Morfeu. Então Morfeu, com um nome irônico, convida Neo a sair do sono e
deparar-se com a realidade. O corajoso Neo aceita o convite e, depois, dá-se
conta: era um dos inúmeros seres humanos criados em cativeiro, com sua energia
literalmente sugada por um sistema, o que os marxistas chamam de “Capitalismo”.
Então Neo, recém desperto em sua célula prisão, olha para os lados e vê uma
imensidão de outros seres humanos aprisionados, e Morfeu lhe diz: o sistema
totalitário de Matrix faz do ser humano um mero par de pilhas alcalinas, um
escravo cego, surdo e mudo. Chocado, Neo precisa de um tempo para se adaptar à
nova realidade, à vida de desconectado. Assim que Neo é resgatado de Matrix,
depara-se com a dura e inevitável verdade, a qual a priori não consola muito o protagonista.
A vida imita a arte. A Coreia do Norte é uma Matrix. É um
sistema altamente cruel, no qual a liberdade de pensamento é impensável. A
nação mais fechada do mundo tem seus cidadãos como prisioneiros, tendo estes servindo
de bateria a um país que pouco se importa com a felicidade do próprio povo – os
nortecoreanos passam fome, em um país obcecado em ser uma potência mundial militar
nuclear: é a deificação da guerra. É uma nação do mal. Desculpe-me – não vejo
isso de qualquer outro modo. Essas nações Matrix não entendem o que é livre
arbítrio, um conceito altamente difundido pelo Espiritismo: a pessoa é livre
para escolher seu próprio caminho. Matrix não trata adultos como adultos, e não
respeita a inteligência do cidadão. É mentira atrás de mentira. Há rumores de
que há campos de concentração na Coreia do Norte, punindo e aterrorizando os
que ousam contestar o regime, desculpe-me, daquela rolha de poço que é o insensível,
odioso e infeliz ditador nortecoreano. É uma “twisted guidance”, do inglês, um
guia instável. A Revolução Francesa vem difundir os preceitos de democracia,
amaldiçoando as ditaduras, uma lição muito bem aprendida pelos EUA. Esse estado
absoluto de Matrix é como Elis Regina tendo se incomodado com os militares ao
tê-los chamado de “gorilas” em uma entrevista que deu a um jornal europeu
durante o regime brasileiro – nem do outro lado do Atlântico poder-se-ia falar
mal do governo. Matrix é isso. Pobre de quem resolver pensar livremente. A
miséria da Coreia no Norte é tão grande que os homens são obrigados a ter o
cabelo exatamente igual ao do ditador. Absurdamente uó. Lá, o cidadão não pode
ter estilo próprio.
Quaisquer tentativas de se construir um estado absoluto
resultaram em fracasso – foi assim no nazifascismo, no comunismo, nas ditaduras
militares latinoamericanas e nos regimes islâmicos xiitas. O estado onipresente
acaba por se transformar em
uma Matrix, virando um vilão de Disney. As ditaduras caem de
podres. A luta de Neo é a de libertar as pessoas as quais não sabem que são
prisioneiras. Ele entra em Matrix e trava uma luta contra pavorosos e medonhos
programas, como o perigosíssimo e letal agente Smith – espetacularmente vivido
pelo sempre brilhante Hugo Weaving - e o tirano Merovíngio, um boçal francês ganancioso
que mostra a obsessão do ser humano em acumular poder. O mundo virtual de
Matrix é repleto de programas, e cada um tem um propósito para manter o sistema
vigente.
Matrix é uma armadilha ideológica. O cidadão é dependente
de um sistema, e não pode desenvolver sua individualidade como cidadão respeitado
e amado. Desafiar um sistema demanda coragem e lucidez. A filosofia não muda o
mundo; ela apenas o vê como ele realmente é.
Na ilustração desta
postagem, o herói Neo luta contra o vilão Smith, mostrando a verdade versus mentira – Coreia do Sul versus Coreia do Norte. Quando os
coreanos refugiados do Norte fogem para o Sul, essas pessoas têm que passar por
um processo de desintoxicação mental, e percebem que a pátria-mãe que deixaram
para trás era uma Laracna de “O Senhor dos Anéis” – um monstro insaciável que
devora, em uma fome infinita, a carne de seus próprios filhos. Eis que as
forças do Mal se revelam, em
um Estado claustrofóbico, horroroso. O vilão Sauron nada mais
quer do que controlar ao máximo a vida. Liberte-se! Aconselho que seja visto o
clip “Free your mind” (Liberte sua mente) gravada pelo conjunto americano de
rythum & blues En Vogue. Tem no Youtube. Vida à expressão de pensamento. No
clip, um macaco aparece como metáfora: a opressão é desprovida de cavalheirismo.
É barbárie.
A trilogia Matrix reserva grande espaço ao aspecto marcial,
abundante ação com cenas de luta cuidadosamente orquestradas, um deleite para
quem gosta de aventura e lutas em
geral. Há um sequência extremamente competente em Reloaded,
numa perseguição de carros, motos e caminhões em uma rodovia movimentada. Algo
que deve ter muito bem planejado e executado com paciência e talento, com timing para a ação. Efeitos especiais de
ponta, sem decepções. Trata-se de produções de alto orçamento. Sucesso digno e
merecido. E com potencial para virar cult,
se já não o é.
Eu disse isso antes e repito: o sucesso é um amante infiel.
Keanu está até hoje tentando sobreviver à força escravizadora de Matrix,
ironicamente falando. O ator bem que tenta emplacar um novo sucesso. Reservado,
ele nunca se expõe muito, e dá um pito em jornalistas intrometidos e
fofoqueiros. Os próprios Wachowski emplacaram um baita fracasso chamado “O
Destino de Júpiter”, lembrado pelo prêmio deboche Framboesa de Ouro, que “premia”
aqueles que estão passando por um momento de seca na carreira em Hollywood. Os altos
e baixos são inevitáveis, porque são a liquidiscência da vida, com picos de
sucesso e depressões de insucesso. Como diz Morfeu, é o mundo real. Como diz o
taoísmo, o sucesso é um problema, pois o doce momento de hit traz em si o insucesso. Irônico, não? Há um ator, cujo nome não
mencionarei, que hoje, entre os anos de 2015 e 2016, está em um belo momento de
sucesso com um filme. Mas a conta vai chegar, pois o amante infiel não deita-se
para sempre com você.
A campanha de divulgação do primeiro filme da trilogia
Matrix, em 1999, lançou mão da internet, no site whatisthematrix.com, ou seja,
“O que é Matrix”, numa tentativa de fazer o público, especialmente o jovem, ver
o invisível - a gaiola ideológica. Na época, foi moderníssimo. E inusitado.
O gran finale da
trilogia é a grande guerra dos humanos contra as máquinas, na qual, além da épica
batalha de fato em Zion, Neo entra em Matrix para lutar contra a grandiosa
maldade de Smith. O final é belo, com uma aurora de esperança e renovação, na
promessa de que há um lugar melhor para nós todos, longe de sistemas opressores.
Não há amor sem liberdade, e vice versa. É o drama humano de saber quem é, de
onde veio e para onde vai. É como estar encarnado: não odeie a carne; apenas
veja-a com nitidez.
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