quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Sistemas ditatoriais opressores




Certa vez, fui à boate Fim de Século, em Porto Alegre, vestido de Neo, o emblemático personagem vivido por Keanu Reeves em uma trilogia cinematográfica de estrondoso sucesso – os filmes Matrix, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions. Era o momento pré aurora dos anos 2000, e as pessoas olhavam para mim na boate e diziam:
- Matrix! – o ambiente sombrio e a música techno da trilogia e do club combinavam profundamente com meu outfit.
Confesso que não foi instantaneamente que me apaixonei pelo universo concebido pelos diretores, os irmãos Wachowski. Só no finzinho de 2003 fui ver Matrix Revolutions, sem ter visto os dois anteriores. Então debrucei-me e tratei de ver os dois filmes restantes – os três são de uma impecabilidade técnica enorme, com uma trilha sonora pulsante e metáforas preciosas, como o inferno, o pecado original, o salvador messiânico, o Cristianismo, desilusões, libertação da mente e revolta contra lideranças tirânicas, por alguns exemplos. A trilogia foi uma vogue, uma onda de estilo inovador. A tomada de Neo escapando de tiros de revolver foi amplamente difundida, em um modo muito original de se mostrar a ação na película. Matriz é uma trilogia com muita ação que inovou estilisticamente, mas isso não subtrai o mérito poético, abordando a autocognição do indivíduo – o forte personagem Oráculo, um programa que serve como guia espiritual, traz a frase em latim “Memet Nosce”, ou seja, “Conhece a ti próprio”. É a pessoa descobrindo o seu papel no mundo. Maturação. Libertação. Autoencontro.
Na sinopse, no ano de 1999, um programa de inteligência artificial escapa do controle e acaba por deflagrar uma guerra da humanidade versus máquinas. Quase todos os seres humanos são exterminados, e os sobreviventes mudam-se para uma cidade subterrânea secreta, Zion, aonde as cruéis máquinas exterminadoras (ainda) não chegaram. As máquinas então, para obter a energia para funcionar, concebem vastos campos nos quais seres humanos ficam absolutamente sedados e aprisionados, enganados, anestesiados e conectados a uma realidade falsa, um simulacro digital, ou seja, Matrix, onde todos os ludibriados vivem eternamente no ano de 1999. A infinidade de pessoas aprisionadas é tal que os campos (de concentração) são muito vastos, e de lá as máquinas tiram toda a energia da qual precisam. É do interesse de Matrix que as pessoas agrilhoadas não percebam que vivem em um mundo de mentirinha – o prisioneiro vive numa espécie de sonho (ou pesadelo) permanente, achando que vive em um mundo real. São poucos os seres humanos, a elite intelectual, que se libertam e percebem que, durante todas as suas vidas, passaram dormindo e servindo de bateria para um sistema absolutamente totalitário, insano e sem sentido. Matrix é um programa de simulação de realidade – não é autêntico; é como baunilha sintética. Aqueles que se libertam desse infindável simulacro são resgatados e vão para Zion. Assim foi com Neo, o protagonista da trilogia. Neo foi libertado e deu-se conta de que passou a vida dormindo conectado a um programa. O amigo Morfeu, vivido pelo ótimo Lawrence Fishburne, recebe Neo em Zion dizendo-lhe:
- Bem vindo ao mundo real.
Foi difícil e frustrante para Neo aceitar que vivia desde sempre num mundo irreal. O personagem é matéria de uma profecia, sendo esta altamente acreditada por Morfeu, a profecia de que “O Escolhido” viria e travaria uma guerra para vencer as máquinas e restabelecer a humanidade, libertando esta de Matrix. Para Morfeu, esse “escolhido” era Neo. “Quem sou eu?”, este indaga. A insegurança de Neo, como o Charlie Brown de Snoopy, ou como a insegurança de Aragorn sobre ser um rei em “O Senhor dos Anéis”, traz todo um charme humano ao personagem. Neo trilha o caminho da humildade versus a arrogância psicopática das máquinas frias – é uma metáfora sobre vampirismo, como em um filme sobre um nosferatu em uma rápida passagem em Reloaded. Matriz suga almas. É para o Espiritismo o “Umbral”, dimensão onde os espíritos sofredores vagam sem destino.
Keanu vive Thomas A. Anderson, um programador entediado com um emprego medíocre, confinado em uma baia sectária. Nas horas de folga, ele tenta respirar e libertar a própria alma sendo um hacker chamado Neo, que vara a internet em busca de motivação e sentido de vida. Além disso, Neo fornece programas clandestinos a quem pagar. Em uma noite, alguém entra misteriosamente no computador de Neo e aborda este. Excitado por tanto mistério, Neo vive uma Alice no País das Maravilhas e entra em contato com Trinity, uma mulher que já havia se libertado de Matrix mas que se infiltrava perigosamente nesta em missões de resgate a outros aprisionados, pois as pessoas livres usavam um programa pirata para reentrar em Matrix, assumindo o risco de serem detectados nesta e assassinados por programas malévolos terroristas do sistema diabólico. Mais tarde, Neo e Trinity apaixonar-se-iam. Trinity diz que Neo está em perigo e que precisa fazer contato com Morfeu, um indivíduo considerado criminoso pelas autoridades de Matrix, que, mais tarde, revelar-se-iam os vilões da história, ou seja, autoridades falsas, falácias. Neo topa encontrar-se face a face com o célebre Morfeu. Então Morfeu, com um nome irônico, convida Neo a sair do sono e deparar-se com a realidade. O corajoso Neo aceita o convite e, depois, dá-se conta: era um dos inúmeros seres humanos criados em cativeiro, com sua energia literalmente sugada por um sistema, o que os marxistas chamam de “Capitalismo”. Então Neo, recém desperto em sua célula prisão, olha para os lados e vê uma imensidão de outros seres humanos aprisionados, e Morfeu lhe diz: o sistema totalitário de Matrix faz do ser humano um mero par de pilhas alcalinas, um escravo cego, surdo e mudo. Chocado, Neo precisa de um tempo para se adaptar à nova realidade, à vida de desconectado. Assim que Neo é resgatado de Matrix, depara-se com a dura e inevitável verdade, a qual a priori não consola muito o protagonista.
A vida imita a arte. A Coreia do Norte é uma Matrix. É um sistema altamente cruel, no qual a liberdade de pensamento é impensável. A nação mais fechada do mundo tem seus cidadãos como prisioneiros, tendo estes servindo de bateria a um país que pouco se importa com a felicidade do próprio povo – os nortecoreanos passam fome, em um país obcecado em ser uma potência mundial militar nuclear: é a deificação da guerra. É uma nação do mal. Desculpe-me – não vejo isso de qualquer outro modo. Essas nações Matrix não entendem o que é livre arbítrio, um conceito altamente difundido pelo Espiritismo: a pessoa é livre para escolher seu próprio caminho. Matrix não trata adultos como adultos, e não respeita a inteligência do cidadão. É mentira atrás de mentira. Há rumores de que há campos de concentração na Coreia do Norte, punindo e aterrorizando os que ousam contestar o regime, desculpe-me, daquela rolha de poço que é o insensível, odioso e infeliz ditador nortecoreano. É uma “twisted guidance”, do inglês, um guia instável. A Revolução Francesa vem difundir os preceitos de democracia, amaldiçoando as ditaduras, uma lição muito bem aprendida pelos EUA. Esse estado absoluto de Matrix é como Elis Regina tendo se incomodado com os militares ao tê-los chamado de “gorilas” em uma entrevista que deu a um jornal europeu durante o regime brasileiro – nem do outro lado do Atlântico poder-se-ia falar mal do governo. Matrix é isso. Pobre de quem resolver pensar livremente. A miséria da Coreia no Norte é tão grande que os homens são obrigados a ter o cabelo exatamente igual ao do ditador. Absurdamente uó. Lá, o cidadão não pode ter estilo próprio.
Quaisquer tentativas de se construir um estado absoluto resultaram em fracasso – foi assim no nazifascismo, no comunismo, nas ditaduras militares latinoamericanas e nos regimes islâmicos xiitas. O estado onipresente acaba por se transformar em uma Matrix, virando um vilão de Disney. As ditaduras caem de podres. A luta de Neo é a de libertar as pessoas as quais não sabem que são prisioneiras. Ele entra em Matrix e trava uma luta contra pavorosos e medonhos programas, como o perigosíssimo e letal agente Smith – espetacularmente vivido pelo sempre brilhante Hugo Weaving - e o tirano Merovíngio, um boçal francês ganancioso que mostra a obsessão do ser humano em acumular poder. O mundo virtual de Matrix é repleto de programas, e cada um tem um propósito para manter o sistema vigente.
Matrix é uma armadilha ideológica. O cidadão é dependente de um sistema, e não pode desenvolver sua individualidade como cidadão respeitado e amado. Desafiar um sistema demanda coragem e lucidez. A filosofia não muda o mundo; ela apenas o vê como ele realmente é.
Na ilustração desta postagem, o herói Neo luta contra o vilão Smith, mostrando a verdade versus mentira – Coreia do Sul versus Coreia do Norte. Quando os coreanos refugiados do Norte fogem para o Sul, essas pessoas têm que passar por um processo de desintoxicação mental, e percebem que a pátria-mãe que deixaram para trás era uma Laracna de “O Senhor dos Anéis” – um monstro insaciável que devora, em uma fome infinita, a carne de seus próprios filhos. Eis que as forças do Mal se revelam, em um Estado claustrofóbico, horroroso. O vilão Sauron nada mais quer do que controlar ao máximo a vida. Liberte-se! Aconselho que seja visto o clip “Free your mind” (Liberte sua mente) gravada pelo conjunto americano de rythum & blues En Vogue. Tem no Youtube. Vida à expressão de pensamento. No clip, um macaco aparece como metáfora: a opressão é desprovida de cavalheirismo. É barbárie.
A trilogia Matrix reserva grande espaço ao aspecto marcial, abundante ação com cenas de luta cuidadosamente orquestradas, um deleite para quem gosta de aventura e lutas em geral. Há um sequência extremamente competente em Reloaded, numa perseguição de carros, motos e caminhões em uma rodovia movimentada. Algo que deve ter muito bem planejado e executado com paciência e talento, com timing para a ação. Efeitos especiais de ponta, sem decepções. Trata-se de produções de alto orçamento. Sucesso digno e merecido. E com potencial para virar cult, se já não o é.
Eu disse isso antes e repito: o sucesso é um amante infiel. Keanu está até hoje tentando sobreviver à força escravizadora de Matrix, ironicamente falando. O ator bem que tenta emplacar um novo sucesso. Reservado, ele nunca se expõe muito, e dá um pito em jornalistas intrometidos e fofoqueiros. Os próprios Wachowski emplacaram um baita fracasso chamado “O Destino de Júpiter”, lembrado pelo prêmio deboche Framboesa de Ouro, que “premia” aqueles que estão passando por um momento de seca na carreira em Hollywood. Os altos e baixos são inevitáveis, porque são a liquidiscência da vida, com picos de sucesso e depressões de insucesso. Como diz Morfeu, é o mundo real. Como diz o taoísmo, o sucesso é um problema, pois o doce momento de hit traz em si o insucesso. Irônico, não? Há um ator, cujo nome não mencionarei, que hoje, entre os anos de 2015 e 2016, está em um belo momento de sucesso com um filme. Mas a conta vai chegar, pois o amante infiel não deita-se para sempre com você.
A campanha de divulgação do primeiro filme da trilogia Matrix, em 1999, lançou mão da internet, no site whatisthematrix.com, ou seja, “O que é Matrix”, numa tentativa de fazer o público, especialmente o jovem, ver o invisível - a gaiola ideológica. Na época, foi moderníssimo. E inusitado.
O gran finale da trilogia é a grande guerra dos humanos contra as máquinas, na qual, além da épica batalha de fato em Zion, Neo entra em Matrix para lutar contra a grandiosa maldade de Smith. O final é belo, com uma aurora de esperança e renovação, na promessa de que há um lugar melhor para nós todos, longe de sistemas opressores. Não há amor sem liberdade, e vice versa. É o drama humano de saber quem é, de onde veio e para onde vai. É como estar encarnado: não odeie a carne; apenas veja-a com nitidez.

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