Caxiense que se preza é apaixonado
pela Festa da Uva de Caxias do Sul. A festividade é uma verdadeira manifestação
de cultura popular: vem do povo e com o povo fica. Minha tese de graduação foi
sobre a festa. As mulheres que são eleitas rainhas e princesas passam o resto
de suas vidas sendo lembradas por isso, e são cumprimentadas nas ruas e volta e
meia dão entrevistas, como verdadeiras estrelas. São mulheres que não saem na
rua se não estiverem muito bem arrumadas, pois sabem que sempre serão símbolos
de uma festa comunitária. Uma ex soberana aparece várias vezes na crônica
social, e quando algumas desse mulherio se reúnem, é um acontecimento badalado.
Beleza é coadjuvante: uma soberana tem que ter, acima de tudo, classe,
distinção e polidez, pois a virtude vem de dentro. Certa vez, quando conversei
com Elizabeth Menetrier, a gloriosa rainha da Festa de 1969, época auge da moda
da minissaia, Bete, como é conhecida, disse-me que a menina que é eleita rainha
começa o reinado sendo (pós) adolescente e termina o reinado sendo mulher
adulta, pois é uma experiência de vida que faz com que a pessoa amadureça
muito, de forma inevitável. O “tao”, o aspecto psicológico da rainha, revela-se
no amor que essa menina tem pela comunidade e pelo mundo. A bela coroa tem que
estar sobre uma cabeça que tem o desejo de fazer o bem. E a rainha Bete,
diga-se de passagem, é a soberana mais popular da história da festa caxiense,
pois esta soberana soube representar todo um povo e uma tradição, entendendo a
grandiosidade da celebração. Brava, Bete!
Meu bisavô Joaquim Pedro Lisboa é o
Pai da Festa da Uva, um homem visionário que foi muito respeitado em vida,
tendo uma personalidade articulada, com iniciativa e espírito comunitário – ele
fazia as coisas pelo prazer de contribuir, não buscando glórias pessoais, pois
era um homem sem avidez pelo poder, e hoje há um busto em sua homenagem no
Parque da Festa da Uva, além de uma homenagem em escrito na réplica da Estátua
da Liberdade na praça Dante Alighieri, a central de Caxias. O vô Lisboa, como é
chamado na família, reuniu um time de cavalheiros caxienses para articular uma
discreta mostra das uvas produzidas em uma Caxias então muito agrária - isso no ano de 1931. A mostra foi
prestigiada pelo povo e autoridades. No ano seguinte, em 1932, surge a idéia de
se fazer um desfile alegórico, batizado na época de “Cortejo da Uva”. Os carros
alegóricos eram enfeitados com uvas de verdade e eram puxados por juntas de
bois, em uma Caxias
ainda não pavimentada – foi a época heróica da Festa da Uva. No referido
desfile, uma menina bonita desfilou dentro de um cesto, o que inspirou a
comunidade a eleger, na edição seguinte, em 1933, uma rainha para ser uma
embaixatriz da festa e da cidade. Infelizmente a identidade da precursora
menina do desfile de 32 foi perdida. Mas sempre lembraremos dela! E fica também
na História a presença de Getúlio Vargas na edição de 1954, meses antes do
ditador se suicidar – esta grandiosa edição foi retratada em um ótimo filme à
disposição no Youtube.
A Festa da Uva de Caxias do Sul foi
pioneira, sendo a musa inspiradora de todas as outras festas comunitárias que
brotaram no Rio Grande do Sul e no Brasil. Como disse-me Zila Turra Pierucini,
rainha da festa caxiense de 1958, na época era só esta festa que existia; não
havia a diversidade de celebrações que existe hoje em dia, no século XXI. Hoje
há festa de “tudo”: peixe, ameixa, maçã, kiwi, pinhão, chocolate, laranja,
morango, doces, caqui, lã e vários outros produtos. A tradição caxiense de ter
soberanas coroadas com vestidos de vindima serve de inspiração a todas essas
“festas filhas”. Existe até o blog “Festas do Interior” do jornal Zero Hora,
que trata das festividades pelo estado do Rio Grande do Sul.
Há meses atrás dei-me ao trabalho de fazer uma pesquisa
sobre festas da uva e do vinho no Brasil e no mundo, e fiquei impressionado com
a questão da universalidade do ser humano. Há vitivinifestas por “tudo”: EUA,
Índia, Alemanha, Canadá, Chile, Argentina, Uruguai, China, Espanha, França,
Japão, México, Portugal, Sérvia, Suíça, Ucrânia, África do Sul, Austrália e,
muito principalmente, Itália – a nação da bota é o berço das vindimas, e muitas
comunas pequeninas têm sua festa própria, sendo que, por alto, contabilizei,
pasmem, 230 festas da vindima italianas - e devem haver mais. Existe toda uma
sensualidade nas vindimas, pois são celebrações de fartura e abundância em meio
ao sexy calor do verão. Vida. E são várias as festas que têm sua soberana,
fazendo da feminilidade da rainha um motif de exuberância e cornucópia. Na
Índia, por exemplo, é eleita a Wine Queen, ou seja, a rainha da vinho. Em minha
pesquisa, pude observar que a maior festa da uva do planeta é a de Mendoza, na
Argentina, um país de ampla enoprodução, também com festas de outros produtos
nacionais. Dizem que a festividade da vindima argentina é de uma grandiosidade
de se tirar o chapéu, com uma forte tradição de soberanas. Há várias festas da
uva pelo Brasil; além das do estado do RS, há festas similares nos estados do
ES, GO, MG, PR, PE, PI, RJ, SC e SP.
Uma das maiores entusiastas da festa
de Caxias é a pesquisadora Cleodes Maria Piazza Ribeiro, que em seu livro
“Festa e Identidade” faz um rico apanhado das décadas de trajetória da
celebração. Respeitada, nunca esquecer-me-ei de uma palestra que ela deu entre
os anos de 1990 e 91 no colégio caxiense do Carmo, onde estudei na época.
Cleodes subiu ao palco e disse:
- Hoje chamar uma pessoa de “colona”
é considerado uma ofensa!
Cleodes tem razão – temos que ter
muito orgulho de nossas origens. Eu mesmo sou trineto do imigrante italiano
Felice Veronese, um homem simples que construiu um casarão de pedra no
município de Flores da Cunha, uma estrutura que está sendo revitalizada pela
prefeitura municipal de Flores, com o patrocínio dos móveis Florense. O casarão
faz parte da história da Imigração Italiana no Brasil, e vê-lo recuperado
enche-me de alegria. O filho de Felice, meu bisavô Luiz Veronese, um
proeminente químico que fabricava produtos que auxiliavam na vinificação regional
da época (numa firma centenária dirigida pela família até hoje), era grande
amigo do célebre industrial caxiense Abramo Eberle. A filha de Abramo, Adélia
Eberle, foi a primeira rainha da Festa da Uva, reinando na edição de 1933.
Sensível, Adélia pintava, tendo retratado em óleo sobre tela a primeira
estrutura, de madeira, que abrigou a empresa do pai, uma instituição que
cresceu e se tornou um verdadeiro império de metalurgia. A história dos Eberle
marca uma reviravolta na economia caxiense, pois, a partir do pós-guerra,
Caxias tornou-se um grande pólo metalmecânico, só perdendo no Brasil para o
parque industrial de São Paulo. Há muito tempo a cidade da Festa da Uva deixou
de ser grande produtora de uva. Na aurora do século XXI, Flores da Cunha é o
município brasileiro com maior número de vinícolas, com sua Fenavindima; Bento
Gonçalves, com o já célebre Vale dos Vinhedos, é também grande pólo
enoturístico, com sua Fenavinho; Garibaldi é a capital nacional do espumante,
com sua Fenachamp; Farroupilha tem o seu Festival do Moscatel.
Tenho comigo uma relíquia de
família, uma panela de puro cobre que minha tataravó Dommenica Sella Veronese,
esposa de Felice, usava para fazer polenta. Estou pensando em doá-la para o
museu da família Veronese, que fará parte do casarão restaurado. A Festa da Uva
faz todo um resgate das raízes culturais da Imigração Italiana, sem esquecer de
todas as outras etnias que delinearam o traço de pluralidade cultural da
diversidade da “Babilônia” Caxias. Se eu viver até os cem anos de idade,
participarei das comemorações do bicentenário da Imigração, no ano de 2075.
Então contarei aos mais jovens sobre meus antepassados colonos. A identidade
celebrada pela Festa da Uva também abrange o tradicionalismo gaúcho, e o vô
Lisboa era grande entusiasta do folclore estadual, sendo fundador do Centro de
Tradições Gaúchas Rincão da Lealdade – Caxias do Sul é a capital mundial dos
CTGs. O vô gostava de assar galetos, um prato muito típico da culinária
colonial italiana no RS – há primorosas galeterias em Caxias. Para quem não
sabe, o galeto é um frango adolescente – não é nem pinto, nem adulto. É uma
delícia, principalmente temperado com sálvia.
Caxias prepara-se para sua festa maior como uma cidade
plácida, limpa e bem administrada, como você nunca viu. Um lugar onde impera a
bondade. As maravilhas desta terra elevada esperam por você. Nossa imaculada
Rainha receberá você, de braços abertos, em nosso lar, onde reina a harmonia.
Uma fina melodia paira no ar puro. Doces uvas. Aqui há vida com trabalho, mas
sem dor. Nós, caxienses e turistas, pertencemos a esta grande e única família!
O vídeo mais popular da festa no Youtube foi o do famoso
choque que Lasier Martins levou no Parque, também conhecido como Pavilhões,
enquanto entrevistava as soberanas e mostrava cachos de uva, sem saber, é
claro, que ali no meio havia um fio desencapado. O choque foi tão grave que
Lasier caiu e sofreu uma fratura de costela, o que lhe custou meses de noites
mal dormidas. Por sorte nenhuma soberana sofreu o choque, e também por sorte
Lasier caiu para trás, pois, se tivesse caído para frente, não teria soltado o
fio e poderia ter morrido eletrocutado. Ossos do ofício.
Difícil falar de Festa da Uva de Caxias do Sul sem
mencionar o ultrafamoso episódio das rainhas gêmeas idênticas. A rainha Fabiane
Koch decidiu com sua irmã Karina que esta, em uma das edições do desfile
alegórico da Festa de 2000, desfilaria no lugar da mana – na hora, ninguém
notou. Quando, um tempo depois, a mãe das meninas revelou os bastidores do
episódio em um programa de rádio da cidade, o negócio estourou como uma bomba
atômica, com direito a cogumelo. O chão de Caxias tremeu. Os caxienses acabaram
perdoando as gêmeas, mas é duro imaginar que, em algum dia, seja eleita
novamente uma rainha que tiver uma gêmea idêntica. Hoje, o causo das Koch é uma
história folclórica no município.
Na ilustração desta
postagem, o Espírito Santo, que traduz a religiosidade do povo caxiense e
também faz menção à paz mundial e à graça radiante da Rainha. Falando
nisso, uma grande polêmica em Caxias é a proibição de se alimentar os pombos da
praça Dante. As pessoas que descumprem a determinação alegam que os pombos são
símbolo da Igreja Católica, pois festa e paz se complementam. Uma prova disso é
que, com a II Guerra Mundial, a Festa da Uva foi momentaneamente abandonada,
pois não havia clima para festejar. Só no ano de 1950 é que a festa voltou a
ser celebrada, com o vô Lisboa indo à rádio da cidade em 1949 para conclamar os
cidadãos para o que Cleodes chama de “Pacto de Reconstrução”. A Festa da Uva
ressuscitou das cinzas, e o orgulho de ser ítalo descendente renasce depois da
derrota sofrida por Mussolini e pelo nazifascismo. A Festa venceu!
Bem, com ou sem pombos, venha curtir a Festa da Uva 2016 de
Caxias do Sul. Além das várias edições do desfile alegórico, aqui chamado de
desfile cênico musical, grandiosos shows estão marcados: Anitta, Chitãozinho
& Xororó, Victor & Léo, Sandy e Michel Teló, entre outros. Isso sem
falar da rica exposição de grandes instituições caxienses no Parque da festa. O
site é festanacionaldauva.com.br
Vale lembrar que ser rainha é um sonho de menina: cada moça
que se inscreve no concurso de escolha da Rainha da Festa da Uva de Caxias é
porque sonhou com isso por toda sua infância, brincando de desfilar. Salve,
Regina! E esse sonho se mescla com o sonho do imigrante italiano que vinha para
o Brasil começar uma vida nova, como os imigrantes africanos que têm vindo
ultimamente para a cidade em busca de uma vida melhor. A Festa da Uva, como
qualquer outra festa, é a beleza de um sonho, e todos são convidados a
apreciá-lo. Caxias, a pérola de todas as belas colônias! O tema da edição de
2016 é “Imagens e Horizontes”, como o horizonte vislumbrado pelo colono com sua
enxada no Monumento Nacional ao Imigrante em Caxias. A vitória da colonização!