Quando foi feito um concurso
para eleger qual obra daria corpo ao famoso monumento de O Laçador, em
Porto Alegre, Vasco Prado inscreveu-se com um modelo de
claros traços indígenas, mas o eleito foi outro trabalho. Vasco permanece como
um dos grandes artistas gaúchos da História, amando a sua Pátria Gaúcha. Os
textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.
Acima, Cavalo. O animal aqui está castrado, limitado, num mundo em que os
sonhos são destruídos e abreviados. O pescoço está retorcido, como se o cavalo
estivesse tenso, esperando ser atacado pela retaguarda. O cavalo está erguido
por um mastro, do modo como as cidades espirituais estão acima da Terra. É como
um futurista prédio do desenho animado Os
Jetsons, em que enormes estruturas prediais são sustentadas por um frágil
pilar, num minimalismo, em que a pessoa toca no chão o mínimo possível, ou
seja, numa pessoa que recorre ao Mundano de forma moderada, limitada. É como as
mulheres amam sapatos, principalmente de salto: o salto as ergue, as elege, as
protege, fazendo-as se sentir verdadeiras princesas privilegiadas e mimadas. É
como na canção Express Yourself:
“Você precisa é de uma mão grande e forte que te erga a um patamar mais
elevado, fazendo você se sentir uma rainha num trono”. É a magia do ritual de
casamento, em que Yang
envolve Yin, protegendo este. E é muito comum, principalmente nas campanhas
publicitárias, ver o Homem acima da Mulher, sendo mais alto. Uma mulher já
disse para mim: “Quero um namorado que seja mais alto do que eu”, do modo como
Nicole Kidman teve que usar sapatos de salto baixo ao aparecer ao lado do
marido tampinha Tom Cruise. O cavalo está aqui protegido, em um metafísico
Monte Olimpo, e o contato com o Mundo Material é realmente evitado. O rabo do
cavalo também está tolhido, castrado, impedindo-o de espraiar a magia elegante
dos cavalos que correm olimpicamente. O sustentáculo é fino, querendo ser
invisível, do modo como a Dimensão Metafísica é invisível aos olhos carnais,
materiais. O sustentáculo é um falo, retilíneo e racional, observando o Mundo
de forma clara e objetiva, sem lugar para emoções que desvirtuam os caminhos de
um marinheiro seduzido por uma sereia, como Botticelli coloca Vênus seduzindo e
entorpecendo Marte, num quadro pacifista, que sabe que o Ódio não é uma
invenção de Tao, mas um capricho humano: a Paz é maior do que a Raiva. A base
desta escultura faz parte do conjunto, e representa a referência, a base sábia
que sustenta ideias, conceitos. A base é todo o trabalho árduo e minucioso de
um artista dedicado ao labor. A base é o dia a dia do atelier, dando ocupação e
propósito, pois já ouvi de uma poetisa: “Sem a poesia, o que faria eu desta
tarde brumosa?”. O cavalo está espetado como churrasco, como uma borboleta
espetada por um alfinete em uma coleção de borboletas mortas. É a mortificação
espiritual, necessária porque liberta a Mente dos caminhos instáveis da Emoção,
de um coração traiçoeiro, que sempre engana em seus meandros labirínticos que
levam a nada. O cavalo parece estar fazendo “não” com a cabeça, na renúncia, no
rejeito aos luxos frívolos mundanos, no sentido de que a pessoa, para ter o
controle de sua própria vida, tem que saber dizer “não”. É como uma armadura,
que repele flechas inimigas. E não tem o controle que sabe renunciar? Este
cavalo é bem corpulento, meio obeso, numa fartura de cornucópia, numa mesa de
banquete tão generosa, sempre nutrindo seus filhos, sempre acolhendo. É a
generosidade, a qual é necessária, pois quem nutre Mundo é acolhido por este.
Mais abaixo, vemos testículos, que representam a Coragem, a hombridade de vir
ao Mundo e mostrar ao que veio. Também vemos o ânus desprotegido, e talvez esse
seja o motivo pelo qual o cavalo esteja tão tenso, tão desconfiado, buscando
proteger a si mesmo. É como se fosse um mítico cavalo alado, na liberdade
mental que nutre a Imaginação e a Criatividade, liberdade esta capital para os
artistas. Há nada mais triste do que um artista esmagado por um sistema
totalitário, sendo este artista obrigado a ser limitado por ideologias, que
limitam a visão. Pois este cavalo de Vasco Prado está de olhos livres, sempre
atento, no mito novaioquino da “cidade que nunca dorme”, ou seja, do espírito
desvinculado das fadigas materiais.
Acima, O Laçador. Símbolo de virilidade, O Laçador representa a Humanidade domando a Natureza, seja com
cordas para atar os cavalos e o gado, seja com uma faca para carnear. Este
laçador de Vasco é um tanto minimalista, pois não traz riqueza em detalhes. Podemos
ver um laço, algo essencial aqui – leia-se o nome da obra –, e vemos vestimentas
típicas da cintura para baixo. O modelo parece estar nu da cintura para cima,
apresentando uma musculatura avantajada, como um Davi gaúcho. O rosto não tem feições, e este gaúcho parece estar
olhando para cima, para as estrelas em uma noite clara de luar, no Cruzeiro do
Sul abençoando as terras meridionais, e podemos ouvir o rico canto prateado dos
quero-queros. É a identidade campeira do gaúcho, na quietude da vida rural, numa
água de chimarrão sendo aquecida em um fogo de chão, junto com pinhões no
inverno. Este laçador está com os pés ocultos, e seus pés estão fincados na
base da escultura. Isso é o realismo, os pés no chão, na identidade gaúcha, que
teve na Revolução Farroupilha sua tragédia fundadora. É sabido que o gaúcho tem
um certo “bairrismo”, ficando atento aos gaúchos que fazem sucesso fora do RS.
E a base de pedra desta obra é a terra gaúcha, o lar, a proveniência, na lei do
eterno retorno – todos retornamos à base, à origem. De fato, o RS é um reino por
si só, com terras vastas e peculiares. Quaisquer laçadores representam todo
esse orgulho, e até hoje o gaúcho tem uma pontinha de sentimento separatista. É
claro que RS jamais via se separar do resto do Brasil, mas o bairrismo é muito
claro, havendo em Brasília um local em frente ao qual existe uma placa dizendo:
“Embaixada do Rio Grande em Brasília”. O hábito do chimarrão, por exemplo. A
base em granito é o sustentáculo, o pai, gerando seus filhos sobre o solo de
uma terra que ousou desafiar o Imperador, como diz o Hino do RS: “Sirvam nossas
façanhas de exemplo a toda a Terra”. Os laçadores são o ímpeto, o grito por
identidade e liberdade, e o laço é o cordão umbilical, sempre ligando o bebê ao
útero, à terra maternal, à dimensão onde todos somos livres, desencarnados. O
laço é o fio de ligação entre todos os gaúchos, conectando todos sob o mesmo
sentimento de semisseparatismo, um sentimento que é inofensivo se não for
levado ao pé da letra. O laço é a linha de um novelo, tecendo as roupas típicas
gaúchas, no trabalho cuidadoso de uma mãe zelosa, costurando pacientemente a
roupa para seu filho. No RS há toda uma identidade rural, nas raízes do gaúcho,
numa terra que um dia foi alvo de disputa entre Portugal e Espanha. O laço é o
controle sobre a própria vida, num homem viril que se recusa a não ter o
controle sobre sua própria vida. O laço é o grito de independência, de
autonomia, de soberania, de masculinidade, nunca deixando que as terras gaúchas
deixem de pertencer aos gaúchos. A tradição tosca gaúcha tem todo um
reconforto, do modo como o selvagem Queequeg, do romance Moby Dick, o qual acabei de ler, é aparentemente tosco mas, no
fundo, provou ter sangue azul e nobre, como no rei Aragorn de O Senhor dos Anéis: uma aparência tosca
que traz um sentimento de bem estar. O estilo dos CTGs é assim, tosco, e belo,
na beleza graciosa das prendas. Tenho orgulho de dizer que meu bisavô Joaquim
Pedro Lisboa fundou o CTG Rincão da Lealdade, em Caxias do Sul. Nessa atitude
tosca e “buenacha”, O Laçador é a
vitória da autenticidade sobre a dissimulação traiçoeira. E o laço são os laços
de sangue que ligam os seres humanos, como irmãos de uma mesma casa real, todos
iguais e, ainda assim, peculiares a nível individual. O laço é a cobra
peçonhenta sendo vencida pelo Homem, como Nossa Senhora esmagando a serpente
maliciosa. A identidade dos Pampas é muito clara, pois vi, há alguns anos em Buenos Aires, um show
de dança que provou ter traços inegavelmente gaúchos, tradicionais.
Acima, Modelo em Repouso. A modelo é voluptuosa, farta, saudável, nunca sendo uma modelo anoréxica
que se curva aos ditatoriais padrões de beleza contemporâneos. Ela está
confortável em sua própria nudez, na simplicidade de estar como veio ao Mundo.
Seus seios parecem se movimentar suavemente pelos sutis movimentos dormentes, e
a pose é de alguém em momento de contemplação, num momento em que tudo do que a
pessoa precisa é de ar nos próprios pulmões. A genitália está escondida,
reclusa, do modo como nudez e vulgaridade não precisam andar juntas. É o modo
francês de lidar com simplicidade em relação à nudez. É um corpo farto, o qual
significa satisfação, saciez, num artista satisfeito com a própria
produtividade, no sentimento pacífico de realização – quem tem Paz é feliz,
estando pacífico em relação a si mesmo e a outrem. A modelo está confortável,
com autoestima, sem se preocupar com padrões estéticos. A modelo parece ser
recém parida, numa pele sem máculas, como pele de bebê. Ela está em casa,
relaxando, sem se preocupar com as vicissitudes do Mundo lá fora. É uma
escultura que transmite tranquilidade, sedimentação, ponderação. Estar calmo é
um prazer, uma dádiva. Nesta peça não há culpa ou preconceito, mas
autoaceitação, autorrespeito, e podemos ouvir o sutil farfalhar da pele da
modelo quando esta se move suavemente. Podemos ouvir a sutil respiração da
modelo, com seu tórax inflando e desinflando. Aqui há Vida. É uma obra que
convida à horizontalização, ao gostoso Pecado Capital da Preguiça. O semblante
é plácido e relaxado, sem estar exposto aos estresses da Vida. É um rosto
imaculado, sem traços de idade ou cansaço. Sobre a cabeça, uma forma que pode
ser o cabelo ou pode ser uma toca ou chapéu, envolvendo e protegendo a cabeça.
Esse invólucro é a Racionalidade, a vida intelectual, o sentar-se para ler um
livro ou ver um filme, um cérebro que rejeita a mentalidade de que um ser
humano só tem que trabalhar como workaholic, estando este mesmo ser privado dos
prazeres intelectuais. É claro que Vasco Prado era produtivo e trabalhador, mas
nunca ao ponto de não ter vida intelectual. Aqui, os seios fartos parecem estar
cheios de leite, o que me faz lembrar de quando vi recentemente uma mulher no
shopping amamentando seu nenê. É o milagre da Vida, da fartura, desta “caixinha
de leite condensado” que nos nutre e nos fortalece. As pernas sutilmente
cruzadas são a ponderação e o contentamento, numa modelo que senta e pensa,
senta e conversa, senta e troca impressões. É uma conversa interessante numa
aconchegante sala de estar. É a inteligência, a erudição, uma conversa divertida
e enriquecedora, numa Elis Regina preocupada em gravar canções que fossem
realmente interessantes, respeitando a inteligência do Público. É o eterno
namoro da Arte com a nudez, como vi, certa vez em um atelier, exemplares de uma
revista de nu feminino. Este “capacete” da modelo é o telhado, a casa, a
proteção, a proveniência, num lar onde crianças são criadas em observância à
virtude, à nobreza dos atos, ao discernimento entre certo e errado. O
“capacete” é um abajur ligado, esclarecido, fruto de uma cabeça pensante. A
modelo parece estar muito à vontade no atelier, pouco se importando com o olhar
do artista sobre ela mesma. O ventre da modelo é farto como o de uma dançarina
da Dança do Vente, numa refeição farta e suculenta, deliciosa. A modelo não fica
perturbada com os olhares do espectador, o qual fica convidado e entrar e ficar
à vontade, como o lar que é o Útero Materno.
Acima, Negrinho do Pastoreio. Uma das maiores lendas do Folclore Gaúcho, o
Negrinho do Pastoreio conta a história de um menininho que, depois de ser
executado de forma cruel – ficou amarrado junto ao um formigueiro até ser morto
lenta e agoniantemente pelas formigas –, este Negrinho vai para o Céu em
encontro com Nossa Senhora, ressuscitando depois de uma espécie de
crucificação, só que sem cruz. Certa vez ganhei de presente uma faca de
churrasco a qual trazia, na lâmina e na bainha, trechos ilustrados da lenda –
nada mais gaúcho. Essa lenda não só assinala a influência negra no RS como
também fala de relações sociais e de como os africanos e seus descendentes
sofreram. Aqui, o Negrinho já está semimorto, parecendo estar adormecido, já no
estágio final de óbito, depois de muitas horas de dor, tendo sido devorado vivo.
É o eterno retorno: o Negrinho volta ao ventre imaculado da Dimensão
Metafísica, libertando-se do Mundo, sendo recebido no plano acima, sequer se
lembrando do que passou no momento da excruciante execução. Esquálido e
abatido, o Negrinho mostra toda a inocência da criança, e está nu, exatamente
do modo como estava no útero materno, retornando à Fonte. O formigueiro, a base
desta escultura, é a estrutura social, num sistema onde cada indivíduo tem seu
papel, restando aos negros pobres uma posição inferior, na base, na posição
mais humilde e desprivilegiada. O formigueiro é o Mundo em seu ritmo frenético
de labor, numa sociedade escravocrata, na qual ser negro era uma inevitável
condenação. É uma escultura que fala de Racismo, a doença que ainda permeia a
Vida em Sociedade.
Aqui, o Negrinho está retorcido e inconsciente, como se sua
alma já estivesse muito longe dali. O seu umbigo, a inevitável cicatriz causada
pelo cordão umbilical, é a porta de entrada e de saída de uma dimensão melhor,
e essa cicatriz é um lembrete: todos viemos de e vamos para o mesmo lugar. É
claro que a pessoa desumana que condenou o Negrinho não tem compaixão, e essa
lenda fala sobre piedade e covardia. O Negrinho e o formigueiro são um só
corpo, um só momento dramático. O seu braço é ossudo, magro, abatido, numa
realidade social em que a subnutrição é ainda realidade no Brasil, com crianças
que não se desenvolvem adequadamente. É uma lenda brasileira, africana. Vemos
aqui um corpo sem vida, um cadáver recém falecido, num vestígio de um processo
de desencarne altamente complicado, insuportável. A lenda fala sobre tolerância
e piedade, num mundo tão cruel, o mesmo mundo que crucificou o Messias. O gauchíssimo
Vasco Prado entende que o Negrinho do Pastoreio abençoa as Terras Gaúchas, e o
menino cavalga pelas noites dos Pampas, trazendo liberdade a todos os gaúchos,
a todos os cidadãos da Querência. Ao morrer, o Negrinho se liberta.
Acima, Tiradentes. Com um semblante triste, Tiradentes olha para o Céu,
mostrando-se um sonhador, um indivíduo que sonhou com um Brasil diferente, foi
executado e virou mártir do Brasil. À sua frente, uma grande flor embasada por
um longo caule e muitas folhas. A flor é um sonho germinando, é um ideal, uma
meta. E essa flor foi ceifada pelo Império, num ato de repressão que teve como
objetivo assustar o cidadão comum: se você não quer terminar como Tiradentes,
não seja como Tiradentes. Do mesmo modo como as execuções de protestantes eram
para servir de exemplo ao cidadão comum: se você não quer terminar como este
infeliz na fogueira, seja católico, vá à Missa e fique quieto vivendo sua vida.
Tenho uma vaga lembrança de infância, quando eu lia um livro sobre Tiradentes
e, no volume, vi uma ilustração de partes esquartejadas de Tiradentes, expostas
ao público, servindo de puro e simples exemplo. Depois de morrer de forma tão
brutal, Tiradentes “ressuscita”, e o Império rui, dando espaço à República, do
modo como há a representação dessa transição política da Praça da Matriz, em Porto Alegre: a
República brilha vitoriosa e o Império é representado por uma besta horrenda, inferior
e animalesca. Aqui, este Tiradentes veste uma grande túnica quase em forma de
cone, e uma de suas pernas é revelada, numa perna ossuda e maltratada,
praticamente apenas pele e osso. Essa magreza são os maus tratos que o mártir
sofreu na execução. Aqui, a flor é um ideal, uma meta, a qual pareceu ser
frustrada mas que, depois, ressurgiu vitoriosa. O semblante triste a abatido do
mártir traz o tom dramático, de uma pessoa que, como Jesus na cruz, morreu
absolutamente frustrada, desamparada e desnorteada. Na mesma coragem que
Tiradentes teve para desafiar o Império, o artista tem que ter a coragem de
produzir o melhor de si, do contrário, não se torna um grande artista. O
aspecto metálico dessa obra é a dureza com a qual o mártir se deparou, numa
dureza fria e cruel, na vicissitude que ceifou a vida de um homem. A base desta
escultura é o argumento que Tiradentes fazia, contundente o bastante para
irritar os poderosos, do mesmo modo como Jesus fazia críticas contundentes aos
poderosos de sua época. Tiradentes não foi covardemente assassinado em uma
emboscada, mas oficialmente processado e executado. Tempos depois, o Povo
Brasileiro se deu conta da importância do mártir, pois, como já ouvi dizer, a
Verdade é a filha do Tempo, ou seja, o Tempo coloca tudo em seu devido lugar. O
pé de flor é o modo como a palavra de Tiradentes germinou após sua morte,
anunciando, de forma muito prematura, os ventos de renovação que a República
traria ao país. Visionário, Tiradentes é obra de outro visionário – Vasco
Prado. E a Arte tem que ser assim: visionária. Do contrário, torna-se
previsível e entediante. Esta flor metálica é a Vida em sua fragilidade, assim
como a grande flor metálica em
Buenos Aires, que relembra a Guerra das Malvinas – sangue
sendo derramado. Esta é uma obra que tem que ser observada à distância, pois
tem pontas cortantes, como em mãos e pés pregados numa cruz.