quarta-feira, 25 de abril de 2018

Gol de Vasco



Quando foi feito um concurso para eleger qual obra daria corpo ao famoso monumento de O Laçador, em Porto Alegre, Vasco Prado inscreveu-se com um modelo de claros traços indígenas, mas o eleito foi outro trabalho. Vasco permanece como um dos grandes artistas gaúchos da História, amando a sua Pátria Gaúcha. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Cavalo. O animal aqui está castrado, limitado, num mundo em que os sonhos são destruídos e abreviados. O pescoço está retorcido, como se o cavalo estivesse tenso, esperando ser atacado pela retaguarda. O cavalo está erguido por um mastro, do modo como as cidades espirituais estão acima da Terra. É como um futurista prédio do desenho animado Os Jetsons, em que enormes estruturas prediais são sustentadas por um frágil pilar, num minimalismo, em que a pessoa toca no chão o mínimo possível, ou seja, numa pessoa que recorre ao Mundano de forma moderada, limitada. É como as mulheres amam sapatos, principalmente de salto: o salto as ergue, as elege, as protege, fazendo-as se sentir verdadeiras princesas privilegiadas e mimadas. É como na canção Express Yourself: “Você precisa é de uma mão grande e forte que te erga a um patamar mais elevado, fazendo você se sentir uma rainha num trono”. É a magia do ritual de casamento, em que Yang envolve Yin, protegendo este. E é muito comum, principalmente nas campanhas publicitárias, ver o Homem acima da Mulher, sendo mais alto. Uma mulher já disse para mim: “Quero um namorado que seja mais alto do que eu”, do modo como Nicole Kidman teve que usar sapatos de salto baixo ao aparecer ao lado do marido tampinha Tom Cruise. O cavalo está aqui protegido, em um metafísico Monte Olimpo, e o contato com o Mundo Material é realmente evitado. O rabo do cavalo também está tolhido, castrado, impedindo-o de espraiar a magia elegante dos cavalos que correm olimpicamente. O sustentáculo é fino, querendo ser invisível, do modo como a Dimensão Metafísica é invisível aos olhos carnais, materiais. O sustentáculo é um falo, retilíneo e racional, observando o Mundo de forma clara e objetiva, sem lugar para emoções que desvirtuam os caminhos de um marinheiro seduzido por uma sereia, como Botticelli coloca Vênus seduzindo e entorpecendo Marte, num quadro pacifista, que sabe que o Ódio não é uma invenção de Tao, mas um capricho humano: a Paz é maior do que a Raiva. A base desta escultura faz parte do conjunto, e representa a referência, a base sábia que sustenta ideias, conceitos. A base é todo o trabalho árduo e minucioso de um artista dedicado ao labor. A base é o dia a dia do atelier, dando ocupação e propósito, pois já ouvi de uma poetisa: “Sem a poesia, o que faria eu desta tarde brumosa?”. O cavalo está espetado como churrasco, como uma borboleta espetada por um alfinete em uma coleção de borboletas mortas. É a mortificação espiritual, necessária porque liberta a Mente dos caminhos instáveis da Emoção, de um coração traiçoeiro, que sempre engana em seus meandros labirínticos que levam a nada. O cavalo parece estar fazendo “não” com a cabeça, na renúncia, no rejeito aos luxos frívolos mundanos, no sentido de que a pessoa, para ter o controle de sua própria vida, tem que saber dizer “não”. É como uma armadura, que repele flechas inimigas. E não tem o controle que sabe renunciar? Este cavalo é bem corpulento, meio obeso, numa fartura de cornucópia, numa mesa de banquete tão generosa, sempre nutrindo seus filhos, sempre acolhendo. É a generosidade, a qual é necessária, pois quem nutre Mundo é acolhido por este. Mais abaixo, vemos testículos, que representam a Coragem, a hombridade de vir ao Mundo e mostrar ao que veio. Também vemos o ânus desprotegido, e talvez esse seja o motivo pelo qual o cavalo esteja tão tenso, tão desconfiado, buscando proteger a si mesmo. É como se fosse um mítico cavalo alado, na liberdade mental que nutre a Imaginação e a Criatividade, liberdade esta capital para os artistas. Há nada mais triste do que um artista esmagado por um sistema totalitário, sendo este artista obrigado a ser limitado por ideologias, que limitam a visão. Pois este cavalo de Vasco Prado está de olhos livres, sempre atento, no mito novaioquino da “cidade que nunca dorme”, ou seja, do espírito desvinculado das fadigas materiais.


Acima, O Laçador. Símbolo de virilidade, O Laçador representa a Humanidade domando a Natureza, seja com cordas para atar os cavalos e o gado, seja com uma faca para carnear. Este laçador de Vasco é um tanto minimalista, pois não traz riqueza em detalhes. Podemos ver um laço, algo essencial aqui – leia-se o nome da obra –, e vemos vestimentas típicas da cintura para baixo. O modelo parece estar nu da cintura para cima, apresentando uma musculatura avantajada, como um Davi gaúcho. O rosto não tem feições, e este gaúcho parece estar olhando para cima, para as estrelas em uma noite clara de luar, no Cruzeiro do Sul abençoando as terras meridionais, e podemos ouvir o rico canto prateado dos quero-queros. É a identidade campeira do gaúcho, na quietude da vida rural, numa água de chimarrão sendo aquecida em um fogo de chão, junto com pinhões no inverno. Este laçador está com os pés ocultos, e seus pés estão fincados na base da escultura. Isso é o realismo, os pés no chão, na identidade gaúcha, que teve na Revolução Farroupilha sua tragédia fundadora. É sabido que o gaúcho tem um certo “bairrismo”, ficando atento aos gaúchos que fazem sucesso fora do RS. E a base de pedra desta obra é a terra gaúcha, o lar, a proveniência, na lei do eterno retorno – todos retornamos à base, à origem. De fato, o RS é um reino por si só, com terras vastas e peculiares. Quaisquer laçadores representam todo esse orgulho, e até hoje o gaúcho tem uma pontinha de sentimento separatista. É claro que RS jamais via se separar do resto do Brasil, mas o bairrismo é muito claro, havendo em Brasília um local em frente ao qual existe uma placa dizendo: “Embaixada do Rio Grande em Brasília”. O hábito do chimarrão, por exemplo. A base em granito é o sustentáculo, o pai, gerando seus filhos sobre o solo de uma terra que ousou desafiar o Imperador, como diz o Hino do RS: “Sirvam nossas façanhas de exemplo a toda a Terra”. Os laçadores são o ímpeto, o grito por identidade e liberdade, e o laço é o cordão umbilical, sempre ligando o bebê ao útero, à terra maternal, à dimensão onde todos somos livres, desencarnados. O laço é o fio de ligação entre todos os gaúchos, conectando todos sob o mesmo sentimento de semisseparatismo, um sentimento que é inofensivo se não for levado ao pé da letra. O laço é a linha de um novelo, tecendo as roupas típicas gaúchas, no trabalho cuidadoso de uma mãe zelosa, costurando pacientemente a roupa para seu filho. No RS há toda uma identidade rural, nas raízes do gaúcho, numa terra que um dia foi alvo de disputa entre Portugal e Espanha. O laço é o controle sobre a própria vida, num homem viril que se recusa a não ter o controle sobre sua própria vida. O laço é o grito de independência, de autonomia, de soberania, de masculinidade, nunca deixando que as terras gaúchas deixem de pertencer aos gaúchos. A tradição tosca gaúcha tem todo um reconforto, do modo como o selvagem Queequeg, do romance Moby Dick, o qual acabei de ler, é aparentemente tosco mas, no fundo, provou ter sangue azul e nobre, como no rei Aragorn de O Senhor dos Anéis: uma aparência tosca que traz um sentimento de bem estar. O estilo dos CTGs é assim, tosco, e belo, na beleza graciosa das prendas. Tenho orgulho de dizer que meu bisavô Joaquim Pedro Lisboa fundou o CTG Rincão da Lealdade, em Caxias do Sul. Nessa atitude tosca e “buenacha”, O Laçador é a vitória da autenticidade sobre a dissimulação traiçoeira. E o laço são os laços de sangue que ligam os seres humanos, como irmãos de uma mesma casa real, todos iguais e, ainda assim, peculiares a nível individual. O laço é a cobra peçonhenta sendo vencida pelo Homem, como Nossa Senhora esmagando a serpente maliciosa. A identidade dos Pampas é muito clara, pois vi, há alguns anos em Buenos Aires, um show de dança que provou ter traços inegavelmente gaúchos, tradicionais.


Acima, Modelo em Repouso. A modelo é voluptuosa, farta, saudável, nunca sendo uma modelo anoréxica que se curva aos ditatoriais padrões de beleza contemporâneos. Ela está confortável em sua própria nudez, na simplicidade de estar como veio ao Mundo. Seus seios parecem se movimentar suavemente pelos sutis movimentos dormentes, e a pose é de alguém em momento de contemplação, num momento em que tudo do que a pessoa precisa é de ar nos próprios pulmões. A genitália está escondida, reclusa, do modo como nudez e vulgaridade não precisam andar juntas. É o modo francês de lidar com simplicidade em relação à nudez. É um corpo farto, o qual significa satisfação, saciez, num artista satisfeito com a própria produtividade, no sentimento pacífico de realização – quem tem Paz é feliz, estando pacífico em relação a si mesmo e a outrem. A modelo está confortável, com autoestima, sem se preocupar com padrões estéticos. A modelo parece ser recém parida, numa pele sem máculas, como pele de bebê. Ela está em casa, relaxando, sem se preocupar com as vicissitudes do Mundo lá fora. É uma escultura que transmite tranquilidade, sedimentação, ponderação. Estar calmo é um prazer, uma dádiva. Nesta peça não há culpa ou preconceito, mas autoaceitação, autorrespeito, e podemos ouvir o sutil farfalhar da pele da modelo quando esta se move suavemente. Podemos ouvir a sutil respiração da modelo, com seu tórax inflando e desinflando. Aqui há Vida. É uma obra que convida à horizontalização, ao gostoso Pecado Capital da Preguiça. O semblante é plácido e relaxado, sem estar exposto aos estresses da Vida. É um rosto imaculado, sem traços de idade ou cansaço. Sobre a cabeça, uma forma que pode ser o cabelo ou pode ser uma toca ou chapéu, envolvendo e protegendo a cabeça. Esse invólucro é a Racionalidade, a vida intelectual, o sentar-se para ler um livro ou ver um filme, um cérebro que rejeita a mentalidade de que um ser humano só tem que trabalhar como workaholic, estando este mesmo ser privado dos prazeres intelectuais. É claro que Vasco Prado era produtivo e trabalhador, mas nunca ao ponto de não ter vida intelectual. Aqui, os seios fartos parecem estar cheios de leite, o que me faz lembrar de quando vi recentemente uma mulher no shopping amamentando seu nenê. É o milagre da Vida, da fartura, desta “caixinha de leite condensado” que nos nutre e nos fortalece. As pernas sutilmente cruzadas são a ponderação e o contentamento, numa modelo que senta e pensa, senta e conversa, senta e troca impressões. É uma conversa interessante numa aconchegante sala de estar. É a inteligência, a erudição, uma conversa divertida e enriquecedora, numa Elis Regina preocupada em gravar canções que fossem realmente interessantes, respeitando a inteligência do Público. É o eterno namoro da Arte com a nudez, como vi, certa vez em um atelier, exemplares de uma revista de nu feminino. Este “capacete” da modelo é o telhado, a casa, a proteção, a proveniência, num lar onde crianças são criadas em observância à virtude, à nobreza dos atos, ao discernimento entre certo e errado. O “capacete” é um abajur ligado, esclarecido, fruto de uma cabeça pensante. A modelo parece estar muito à vontade no atelier, pouco se importando com o olhar do artista sobre ela mesma. O ventre da modelo é farto como o de uma dançarina da Dança do Vente, numa refeição farta e suculenta, deliciosa. A modelo não fica perturbada com os olhares do espectador, o qual fica convidado e entrar e ficar à vontade, como o lar que é o Útero Materno.


Acima, Negrinho do Pastoreio. Uma das maiores lendas do Folclore Gaúcho, o Negrinho do Pastoreio conta a história de um menininho que, depois de ser executado de forma cruel – ficou amarrado junto ao um formigueiro até ser morto lenta e agoniantemente pelas formigas –, este Negrinho vai para o Céu em encontro com Nossa Senhora, ressuscitando depois de uma espécie de crucificação, só que sem cruz. Certa vez ganhei de presente uma faca de churrasco a qual trazia, na lâmina e na bainha, trechos ilustrados da lenda – nada mais gaúcho. Essa lenda não só assinala a influência negra no RS como também fala de relações sociais e de como os africanos e seus descendentes sofreram. Aqui, o Negrinho já está semimorto, parecendo estar adormecido, já no estágio final de óbito, depois de muitas horas de dor, tendo sido devorado vivo. É o eterno retorno: o Negrinho volta ao ventre imaculado da Dimensão Metafísica, libertando-se do Mundo, sendo recebido no plano acima, sequer se lembrando do que passou no momento da excruciante execução. Esquálido e abatido, o Negrinho mostra toda a inocência da criança, e está nu, exatamente do modo como estava no útero materno, retornando à Fonte. O formigueiro, a base desta escultura, é a estrutura social, num sistema onde cada indivíduo tem seu papel, restando aos negros pobres uma posição inferior, na base, na posição mais humilde e desprivilegiada. O formigueiro é o Mundo em seu ritmo frenético de labor, numa sociedade escravocrata, na qual ser negro era uma inevitável condenação. É uma escultura que fala de Racismo, a doença que ainda permeia a Vida em Sociedade. Aqui, o Negrinho está retorcido e inconsciente, como se sua alma já estivesse muito longe dali. O seu umbigo, a inevitável cicatriz causada pelo cordão umbilical, é a porta de entrada e de saída de uma dimensão melhor, e essa cicatriz é um lembrete: todos viemos de e vamos para o mesmo lugar. É claro que a pessoa desumana que condenou o Negrinho não tem compaixão, e essa lenda fala sobre piedade e covardia. O Negrinho e o formigueiro são um só corpo, um só momento dramático. O seu braço é ossudo, magro, abatido, numa realidade social em que a subnutrição é ainda realidade no Brasil, com crianças que não se desenvolvem adequadamente. É uma lenda brasileira, africana. Vemos aqui um corpo sem vida, um cadáver recém falecido, num vestígio de um processo de desencarne altamente complicado, insuportável. A lenda fala sobre tolerância e piedade, num mundo tão cruel, o mesmo mundo que crucificou o Messias. O gauchíssimo Vasco Prado entende que o Negrinho do Pastoreio abençoa as Terras Gaúchas, e o menino cavalga pelas noites dos Pampas, trazendo liberdade a todos os gaúchos, a todos os cidadãos da Querência. Ao morrer, o Negrinho se liberta.


Acima, Tiradentes. Com um semblante triste, Tiradentes olha para o Céu, mostrando-se um sonhador, um indivíduo que sonhou com um Brasil diferente, foi executado e virou mártir do Brasil. À sua frente, uma grande flor embasada por um longo caule e muitas folhas. A flor é um sonho germinando, é um ideal, uma meta. E essa flor foi ceifada pelo Império, num ato de repressão que teve como objetivo assustar o cidadão comum: se você não quer terminar como Tiradentes, não seja como Tiradentes. Do mesmo modo como as execuções de protestantes eram para servir de exemplo ao cidadão comum: se você não quer terminar como este infeliz na fogueira, seja católico, vá à Missa e fique quieto vivendo sua vida. Tenho uma vaga lembrança de infância, quando eu lia um livro sobre Tiradentes e, no volume, vi uma ilustração de partes esquartejadas de Tiradentes, expostas ao público, servindo de puro e simples exemplo. Depois de morrer de forma tão brutal, Tiradentes “ressuscita”, e o Império rui, dando espaço à República, do modo como há a representação dessa transição política da Praça da Matriz, em Porto Alegre: a República brilha vitoriosa e o Império é representado por uma besta horrenda, inferior e animalesca. Aqui, este Tiradentes veste uma grande túnica quase em forma de cone, e uma de suas pernas é revelada, numa perna ossuda e maltratada, praticamente apenas pele e osso. Essa magreza são os maus tratos que o mártir sofreu na execução. Aqui, a flor é um ideal, uma meta, a qual pareceu ser frustrada mas que, depois, ressurgiu vitoriosa. O semblante triste a abatido do mártir traz o tom dramático, de uma pessoa que, como Jesus na cruz, morreu absolutamente frustrada, desamparada e desnorteada. Na mesma coragem que Tiradentes teve para desafiar o Império, o artista tem que ter a coragem de produzir o melhor de si, do contrário, não se torna um grande artista. O aspecto metálico dessa obra é a dureza com a qual o mártir se deparou, numa dureza fria e cruel, na vicissitude que ceifou a vida de um homem. A base desta escultura é o argumento que Tiradentes fazia, contundente o bastante para irritar os poderosos, do mesmo modo como Jesus fazia críticas contundentes aos poderosos de sua época. Tiradentes não foi covardemente assassinado em uma emboscada, mas oficialmente processado e executado. Tempos depois, o Povo Brasileiro se deu conta da importância do mártir, pois, como já ouvi dizer, a Verdade é a filha do Tempo, ou seja, o Tempo coloca tudo em seu devido lugar. O pé de flor é o modo como a palavra de Tiradentes germinou após sua morte, anunciando, de forma muito prematura, os ventos de renovação que a República traria ao país. Visionário, Tiradentes é obra de outro visionário – Vasco Prado. E a Arte tem que ser assim: visionária. Do contrário, torna-se previsível e entediante. Esta flor metálica é a Vida em sua fragilidade, assim como a grande flor metálica em Buenos Aires, que relembra a Guerra das Malvinas – sangue sendo derramado. Esta é uma obra que tem que ser observada à distância, pois tem pontas cortantes, como em mãos e pés pregados numa cruz.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

A Arte pela Arte*



 Já me disseram que as Artes estão umas dentro das outras. Com o francês Edgar Degas não é diferente, na paixão desse artista plástico pela Dança e, por consequência, pela Música, numa metalinguagem – Arte falando de Arte, como no slogan em latim dos Estúdios MGM: *Ars Gratia Artis. E não é o Cinema a mistura de outras Artes? Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Aula de Dança. As meninas em primeiro plano estão de costas para o espectador. É um quadro delicado, com muita identidade feminina, e as bailarinas são belas e elegantes em suas saias de véu, como noivas virginais, entrando na Igreja. O salão é aristocrático, rico, numa escola na qual muitas aspirantes a bailarina querem ingressar. No centro do salão, um senhor bem idoso, aparado por uma bengala, que é o aspecto masculino no quadro – o cajado do patriarca. Mas o homem aqui é minoria, e não consegue ofuscar as aristocráticas bailarinas. Aos pés da menina em pé, um pequeno cão, o mascote da escola. O cãozinho é a afetuosidade, a necessidade de carinho, de afeição. Outra menina senta-se em cima do piano, e podemos ouvir a música do piano enchendo o salão, numa cena laboriosa, de ensaio, de trabalho, mas de beleza também. Apenas uma bailarina está no momento, de fato, dançando – a que está em frente ao homem. O grande pórtico no salão é a ambição de entrar em um círculo seleto, onde poucas têm chance de sucesso. No balé, a disciplina é imprescindível, e isso sei porque conheci um professor de balé, e o mestre era quase obsessivo com disciplina, e até levei dele um “puxão de orelha”! Um mestre um tanto agressivo e sem muito senso de humor. Esta cena de Degas nos remete ao clássico Flashdance, dos anos 80, no qual uma moça, que trabalha como soldadora, sonha em ser dançarina profissional, num filme rico em coreografia, mostrando essa moça, a qual não se identificava com o Balé Clássico, contrastando com as demais na escola, as quais eram absolutamente fiéis à tradição de bailarina clássica. Ao final da película, a moça triunfa enfim, mostrando seu talento, mesmo não sendo um talento tradicional. Mas, neste quadro, temos a junção de Tradição e Transgressão, pois, apesar de retratar uma cena tão acadêmica e tradicional, Degas dá suas pinceladas antiacadêmicas, na transgressão dos movimentos artísticos que deixam para trás velhos moldes estéticos. Esta cena é a tentativa de Degas em juntar opostos, resultando num quadro irônico. O salão está inundado por uma luz natural, vinda de grandes janelas, na beleza de um lugar bem iluminado. O chão é simples, de madeira, e é a base, a referência, a lição de balé que cada uma dessas moças deve seguir, com o risco de nunca se concretizar profissionais respeitadas – é o desafio do Mundo, como numa Gisele Bündchen, que tratou de aprender rápido para se destacar e vencer no jogo duro da Vida. Aliás, “Vida” era o nome da cachorrinha da modelo, voltando ao cãozinho aqui na cena, um bichinho discreto, quase imperceptível. O cãozinho é a afetuosidade em meio a uma realidade tão intrincada e dura. É um ursinho de dormir, num coração que precisa ser forte para sobreviver. Ao pé do piano, um objeto que parece ser um regador. E por que um regador? Ele é o ser cheio de talento, de água abundante, irrigando terrenos e trazendo prosperidade, no sonho de uma bailarina de “inundar” o Mundo com sua arte, num mundo difícil, onde sonhos crescem e desaparecem todos os dias. Ao fundo, meninas sentadas observando a aula, esperando por uma oportunidade, por uma brecha para poder realizar o sonho de ser uma “princesa”. As meninas de costas são um artista que deu as costas às rígidas tradições, na coragem do transgressor, pois, já ouvi dizer, uma sociedade só evolui por meio da transgressão de alguns de seus membros. Os laços em volta das cinturas são a disciplina, o controle emocional, tão necessário para que a pessoa não tenha pena de si mesma, podendo, assim, enfrentar o Mundo. As saias brancas são a candura, a pureza feminina em meio a uma esfera tão masculina e rija como o cajado patriarcal aqui.


Acima, Cavalos de Corrida numa Paisagem. A beleza e a saúde da vida ao ar livre. É também uma cena de identidade masculina, viril, sem espaço para delicadezas femininas. É a competitividade da vida em sociedade, e competir acontece desde cedo, quando a criança ingressa na Escola: os estudantes concorrem uns com os outros para ver quem tira as notas mais altas. Podemos sentir o cheiro ao ar livre, cheiro de mato, de verde, de vegetação. Cheiro também do suor dos cavalos e de eventuais bostas que eles façam no chão. Podemos ouvir o som dos passos dos cavalos, e eventuais relinches. É um esporte aristocrático e elegante, ou seja, exclusivo e excludente, no sentido de não ser um esporte como o futebol, cuja prática é acessível a todas as classes sociais. As colinas voluptuosas ao fundo se expandem como curvas de um belo corpo feminino, no desafio da Mãe Terra em ser desbravada e colonizada – é o prazer da conquista, algo muito masculino. É um quadro bem colorido, alegre, num Degas dedicado e paciente ao ponto de desenhar com o pincel cada graminha do pasto, cada folha, exigindo muita dedicação do artista. As patas magras dos cavalos são elegantes, minimalistas, e o cavalo se revela como um dos animais mais belos já feitos por Deus. O cavalo é símbolo de elegância, força e disciplina, sinônimo de vitória sobre percalços, de vitória olímpica, garbosa. Não temos aqui um terreno plano e fácil de ser habitado, mas curvas infinitas, exigindo força dos cavalos e dos cavaleiros. O cavalo é uma extensão do corpo do montador, fazendo uma metáfora: é a Mente – o cavaleiro – controlando o Corpo – o cavalo. A elegância reside exatamente neste controle, neste triunfo da Humanidade sobre a Animalidade, dos brios sobre os impulsos do Id. É uma figura de disciplina e controle. O cavaleiro mais à direita está um tanto alienado do grupo, como se quisesse tomar uma direção oposta à do grupo. É a rebeldia, numa pessoa em busca de identidade e diferenciação. Talvez seja um cavaleiro dissidente, que não de identifica muito bem com o grupo. É o sentimento de não pertencimento, de estar perdido na existência e na Vida em Sociedade. Talvez seja um Degas catarseando todo um sentimento de exclusão, de ser um artista mal compreendido, como o foi van Gogh. O cavaleiro dissidente está em um processo de identidade e identificação, e não está muito crente de que irá se encaixar naquele grupo – é só uma questão de tempo até o desligamento ser consumado. Mais ao centro no quadro, dois cavaleiros estão bem próximos um do outro, numa relação de igualdade, de sociedade, tendo um respaldo no outro, ou seja, vivendo em harmonia como o grupo. E, mais ao fundo, vemos cinco cavaleiros bem próximos uns dos outros, numa completa comunhão, numa completa dinamicidade grupal. As roupas dos cavaleiros são coloridas e alegres, na alegria de praticar um esporte que traz prazer e realização ao praticante. É uma cena que traz a sensualidade do Ecossistema, pois os excrementos dos animais fertilizam o chão verde, no intermitente Ciclo Vital. É a tentativa de um artista em entender o universo à volta, tentando retratar cenas que tragam algum sentido à Vida.


Acima, O Absinto. A moça está bem abatida e deprimida, triste. Está afogando suas mágoas em um copo de absinto, num ciclo vicioso de dependência química. A garrafa transparente ao lado está vazia, ou seja, a moça já bebeu tudo. A moça é a prostração existencial, num ser humano que não atingiu qualquer meta de vida. Em frente à moça há outra garrafa, num lugar vicioso, que só serve para escravizar os usuários de certas substâncias. Ao lado, um senhor de mais idade, e ele olha para a direção oposta da moça, não se sensibilizando pela tristeza desta. Se são um casal, não é um casamento feliz, pois não se comunicam e não querem saber da tristeza um do outro. O absinto é o aspecto tóxico; é uma prisão, do modo como um corpo de carne e osso é uma prisão para o espírito. Atrás de ambos vemos um espelho, que é a reflexão existencial: o que quero da Vida? Refletida no espelho vemos a janela, num dia cinzento, sem muito Sol, num quadro melancólico, duro, sem grandes consolações. É uma cena de abandono, do modo como um abandona o outro e, também, do modo como um abandona a si mesmo, jogando-se ao vício, ao agrilhoamento que as drogas significam. São vidas devastadas, infelizes, num Degas catarseando o sentimento de abandono e desorientação psíquica. É um quadro cinzento, sem espaço para cores alegres e festivas. É a Vida girando em torno de um copo, numa encarnação tomada sofrimento, de desdirecionamento. Ambos usam chapéus, que significam a última consolação ao dependente químico, num submundo em que sinais auspiciosos tratam de guiar quando, na verdade, confundem. É o Submundo da Droga. Conheço uma pessoa cuja vida foi absolutamente devastada pela Cocaína, e essa pessoa está sentenciada a nunca mais sair da clínica psiquiátrica em que está internada. Neste quadro, do lado de fora, na Rua, o Mundo segue seu curso costumeiro, com pessoas e veículos indo e vindo, parecendo pouco se importar com o drama dessas duas almas miseráveis retratadas aqui. Neste quadro, não há propósito, e a moça olha para o vazio, por uma janela que dá para o nada. A moça está dependurada por um frágil fio, o qual pode se romper a qualquer instante. Apesar de jovem e bela, não parece estar feliz com a própria beleza e juventude. Enquanto isso, o homem insensível ao lado olha para uma direção muito diferente, mas ambos estão presos nessa cela de barras invisíveis, como um cidadão escravo de um sistema totalitário. O interior deste estabelecimento é negro e cinzento, como a toca de Laracna, e é uma armadilha, um enigma que escraviza seres que um dia foram livres. É um quadro sem perspectivas, e as pinceladas de Degas transmitem toda a prostração da moça, a qual se sente irremediavelmente só, mesmo com alguém ao seu lado, um alguém que pouco se importa com ela. É o sentimento de solidão, no qual as drogas trazem a promessa falsa de redenção. As tábuas das mesas são cinzentas, como uma lareira que um dia foi quente mas que, agora, perdeu o calor e o atrativo. É o modo como a Depressão tira o sentido da Vida. É o fundo do poço. E, como me disse uma médium espírita, quando a pessoa beija o fundo do poço, esta mesma pessoa tem que fazer um esforço ENORME para se reerguer e reestabilizar a própria vida. Este quadro é um beco sem saída, sem volta, sem nada. E o espelho atrás é a reflexão, numa pessoa que tem que olhar para si mesma e decidir o que fazer para vencer o sentimento de desânimo e desorientação. É um labirinto, cheio de alamedas traiçoeiras que dão em nada. A cor negra do insucesso entra na moça, e a ideia de Suicídio parece tomar conta da moça, na ilusão de que o Suicídio pode resolver algo – quem esta mal, está mal encarnado ou desencarnado. A seriedade da Vida está se impondo no quadro, e a moça está começando a ser confrontada, no fato de que não existe fugir da Vida. A moça está perdida e desnorteada, idealizando épocas e lugares que não são ideais. A moça está começando a ver que, na Vida, é necessário ter força.


Acima, Exportadores de Algodão. É um quadro de exclusiva identidade masculina, sisuda, séria. Muitos dos cavalheiros usam cartola ou chapéu coco, e estão todos sérios, centrados, sem esboçar qualquer sorriso. Um está concentrado em ler o jornal, no dia a dia de uma cidade ou país, na necessidade de um homem de negócios se manter a par do que acontece e do que pode influenciar no seu negócio. Como diz o título, são homens relacionados ao ramo de produção e exportação de algodão, e sobre uma longa mesa um grande volume de algodão se estende, parecendo nuvens em um generoso dia de Sol. As nuvens são os sonhos dos businessmen, sonho de obter sucesso, êxito e dinheiro, nas ambições capitalistas, as quais são centradas em capital, é claro. Neste quadro não há espaços para beleza, gracinhas, cores ou glamour, mas apenas sobriedade, racionalidade. Tudo aqui é útil e funcional, atento ao necessário, à demanda do labor diário. É um escritório. No canto inferior direito, uma lata cheia de lixo, na incessante produção de lixo da Vida Moderna, na demanda frenética das indústrias de todo o tipo. Ouvimos os barulhos mínimos deste ambiente laboroso, e há predomínio de silêncio, num ambiente onde há concentração e centralização, foco. Fora dali, o Mundo Feminino desdobra-se em suas cores e glamour, mas, aqui no quadro de Degas, o glamour fica do lado de fora, nunca entrando, podendo o glamour atrapalhar a concentração dos cavalheiros da cena. O pé direito da sala é alto, farto, do tamanho das ambições desses homens, na competição fálica: quem deles tem o maior falo do Mundo? Ao fundo, uma porta translúcida iluminada pela luz exterior, sendo uma rota de fuga, para que, por alguns momentos, o ser humano possa se desligar do Mundo, fugindo um pouco de uma esfera tão competitiva e tensa. As pinceladas impressionistas se revelam, no minimalismo genial de mentes como Degas: pouco para retratar muito, na magia das pinceladas afoitas que rejeitam a sisudez acadêmica. Pois é essa sisudez que Degas quer evitar. Degas, como todos os artistas do movimento, fica entediado com a Academia, desejando fazer algo novo, algo inusitado, algo atual e moderno. Este é um local e um momento em que a concentração tem que estar em seu ápice, nunca podendo ser quebrada por distrações. É a total ausência de glamour, como numa quadra de basquete, futebol ou qualquer outro esporte de quadra. É a racionalidade imperando completamente, levando o homem de negócios a fazer um happy hour ao fim do dia, para descontrair, para descansar a cabeça, pois ninguém consegue ser produtivo por vinte e quatro horas ao dia. Há um homem na extrema esquerda que não parece estar trabalhando, mas apenas observando os outros homens. É o ócio saudável, num Degas que tem que, antes de mais nada, observar o Mundo para retratar este mesmo. O homem ocioso contempla o labor dos outros, e parece estar focado e deliciado em seu próprio ato observatório. Daqui a pouco, a sirene toca e o expediente acaba, libertando os trabalhadores, deixando estes curtir um pouco o Mundo lá fora. É um quadro workaholic, no risco de uma pessoa se tornar obsessiva por trabalho, tornando-se uma pessoa que simplesmente não tem propósito, apenas labor, sem Vida, sem Humanidade. O escritório está limpo e organizado, impecável, num Degas dedicado e impecável, excelente em sua Arte, um artista que, como todos os grandes, não deixa rastro, nunca desejando aparecer mais do que o próprio trabalho. Os homens aqui são discretos e centrados, donos de suas próprias vidas, trabalhando arduamente, só não trabalhando no Domingo porque a religião não permite. As cores aqui são neutras e discretas, sem euforias carnavalescas. É o lado macho da vida, e “ai” daquele que fugir à luta.


Acima, Prima Ballerina. A paixão de Degas pela Dança. A bailarina primeira é a grande estrela do espetáculo, e podemos ouvir aplausos esfuziantes de uma plateia hipnotizada, encantada pela elegância apolínea e aristocrática da bailarina de perfeita técnica e graça. Do ângulo de vista aqui, algo que a plateia não vê: algumas bailarinas menores, totalmente superadas pela bailarina mor, e as bailarinas menos célebres têm, é claro, um tanto de inveja: “Por que não sou como esta estrela é?”. Ao lado das bailarinas menores, um homem de preto, um tanto encoberto pelo cenário, e o homem é o aspecto racional da Arte. É o empresário, a parte masculina do trabalho, a parte sem a graça feminina da bailarina impecável. Ele respalda a bailarina, a qual está sob os agressivos holofotes, e a prima ballerina tem que parecer que é extremamente fácil para ela fazer aquilo tudo, nunca mostrando os árduos ensaios e a disciplina espartana que este trabalho exige. Neste momento, tudo gira em torno do que a plateia vê, ocultando a parte “feia” disso tudo. Esta bailarina parece ser feita de finíssima porcelana, numa mulher no auge de sua forma e de sua feminilidade. É claro que ela é o centro do quadro, tendo a seus pés um chão livre para ela mostrar seu talento, tornando-se uma vogue, uma onda avassaladora que arrebata público e crítica. É o equivalente a uma topmodel dentre outras modelos de menos brilho e importância. É a competitividade do Mundo, no qual todos querem ser estrelas, pois não há livro ou faculdade que ensine alguém a brilhar – cada um tem que descobrir seu próprio caminho, e esta bailarina parece ter se encontrado esfuziantemente. A bailarina é uma delicada flor, sustentada por um caule frágil, que ameaça se quebrar a qualquer momento. É um quadro onde há inveja, nos bastidores de um mundinho mesquinho, onde intrigas e fofocas imperam, no lado podre e vulgar do Ser Humano. Esta dançarina é uma Vênus de Botticelli, emergindo de profundezas misteriosas e sendo revelada, como uma estrela despontando no Céu, deslumbrando muitos e muitos espectadores. É uma Gisele sendo revelada, nos segredos ocultos dos mares femininos da concha venusiana, numa verdade que sempre existiu e que, no momento, é revelada falicamente. É uma mãe d’água bela, revelando beleza em sua estrutura de talento. De onde vem o talento? Não se sabe. De onde vêm os dons? Por que alguns sabem cantar e outros não? Esta bailarina está em momento de êxtase e prazer, vendo anos de persistência e dedicação rendendo (doces) frutos. Sua fita negra em volta do pescoço é a Morte rondando a bela, a qual sabe que tem que dar o melhor de si antes que o (inevitável) óbito chegue – é uma corrida contra o Tempo. A moça abre os braços para o Mundo, como um Cristo Redentor, e pelo Mundo é acolhida e abraçada, em píncaros de glória, sendo difícil para o Ser Humano não deixar que o Ego tome o controle – é o teste da Humildade, um duro teste, pois quem é humilde vai longe. Degas é tão bom que podemos ver a modelo, de fato, dançando, abrindo-se aos nossos olhos uma verdadeira cena de Cinema, nas Artes beijando umas às outras. Este quadro mostra que, junto ao palco, vem o bastidor, do mesmo modo como uma árvore tem raízes: é o quadro geral, abrangente, que mostra todo o trabalho, pois diz Tao: “A dificuldade e a facilidade são partes do mesmo trabalho”. Ou seja, tudo tem o lado visível e o lado invisível, e nenhum dos lados se sustenta por si só.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Causando (Boa) Impressão



O francês Oscar-Claude Monet foi uma das maiores estrelas do Impressionismo, um movimento que quebrou com os moldes acadêmicos e que, quando surgiu, causou monstruoso impacto, ao ponto das pessoas, no início, acharem que as pinturas impressionistas eram piadas, anedotas, e não Arte de verdade. No Met de Nova York pude ver várias obras célebres, numa coleção de dar inveja. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Camille. Trata-se de um quadro sombrio, duvidoso, cheio de mistérios, nos mistérios do Feminino, hipnotizando o Masculino. A nobre senhora arrasta seu vestido, farfalhando, como no farfalhar da primeira cena de Kim Basinger em L.A. Confidential. Não é um quadro ao ar livre, mas bem intimista, e Camille está tímida, como se não quisesse ser vista, nunca posando de frente para o artista. Seu olhar é plácido e um pouco triste, como se tivesse se decepcionado com a Vida. Vemos apenas um perfil, com um nariz belo e proporcional. Sua mão direita segura o laço do chapéu, que é um acessório discreto. Aqui, o preto predomina, pois vemos preto no vestido, no casaco e no chapéu, além do breu do fundo da cena, numa harmonia cromática formidável e sedutora. Esta Camille seduz sem parecer que o faz, e aí está o seu fascínio. O seu olho parece estar fechado, como se ela estivesse no meio de uma gostosa soneca à tarde, desligando-se do mundo lá fora, repousando em inabalável paz, sentindo-se segura do próprio sono, sentindo-se a salvo das vicissitudes mundanas. E por que o preto aqui é tão predominante? O preto é a cor da incerteza e do mistério, como diz a famosa canção brega: “A música na sombra, o ritmo no ar. Um animal que ronda no véu do luar”. São os mistérios femininos, tomando conta do artista, como um Leonardo da Vinci apaixonado pela própria Monalisa. Há aqui um equilíbrio, e Camille toma conta do quadro, sendo a estrela central, mesmo que seja um equilíbrio implícito, nunca óbvio. Nada aqui é óbvio em Camille, bem pelo contrário. Ela cruza o quadro e toma conta deste, entrando na mente de Monet. A técnica perfeita mostra a textura do tecido do vestido, no talento digno de um mestre renascentista – seria Monet uma reencarnação de algum outro grande artista? Espiritismo à parte, Monet mostra que, com poucas pinceladas, pode-se constituir uma cena, no estilo impressionista de, se visto ao longe, mostra-se claro; se visto de perto, perde o sentido, numa magia entre claro e obscuro, numa contradição deliciosa. A pele de Camille é alva, intocada, e é o único elemento claro no quadro, numa beleza discreta, privada, para poucos. Camille é discreta, e parece relutar em posar para algum pintor. Ela não parece usar maquiagem, e sua beleza é natural, de nascença, sem excessos plásticos. Camille está passando pela sala e deixa seu inebriante perfume no ar, e parece que foi fotografada, e não pintada. Aliás, é sempre válido dizer que a Fotografia libertou a Arte da função retratista, e o Impressionismo é uma prova disto, assim como o Modernismo Brasileiro o foi. O casaco negro de Camille parece ser de um animal morto, numa época em que o Ecologismo não atuava ainda. Seu corpo está completamente tapado, como uma santa, apenas revelando uma mão e metade do rosto, num mundo que não quer vê-la necessariamente nua, apesar da Nudez e da Arte sempre terem andado juntas, ainda mais na Europa, ou em Paris, berço do Ocidente Contemporâneo. O chapéu de Camille tem formas que parecem ser flores, numa coloração que acompanha o quadro de discrição desta obra, num Monet misterioso, que nunca se revela por completo, sempre deixando um gostinho de “quero mais”. Camille aqui está alheia, entediada com um mundo tão óbvio e burguês, e suas roupas parecem ser pesadas, assoberbantes, como é pesada a vida de uma pessoa rica, como diz o Espiritismo: “Você não faz ideia a que nível fica reduzida espiritualmente uma pessoa que é considerada feliz na Terra”. Mas a magia de Camille permanece, com seu vestido fino, em sua sala escura onde a luminosidade não fere os olhos, trazendo relaxamento, intimismo e ponderação.


Acima, Mulher com Sombrinha. Temos aqui uma releitura da Madona com o filho. Esta mulher é misteriosa, com o rosto encoberto por um fino véu, rebolando à sensual brisa. Ela se protege da agressividade dos raios solares, e o filho também está protegido, com um chapéu, no sentido de que uma mãe pode fazer tudo para proteger o próprio filho. O céu e o gramado são absolutamente impressionistas, constituídos por pinceladas afoitas, na capacidade de Monet, como mestre, em nos dar imagens claras, porém “borradas”. A “Madona” joga um olhar triste sobre o espectador, e o menininho também não sorri, num Monet sério, empenhado em produzir abundantemente em seu atelier. A cena traz todo um frescor primaveril, e podemos ouvir o gramado farfalhando ao som do vento. A mulher observa o espectador, nunca se revelando por completo, no mistério em que grandes artistas se transformam. A mulher projeta sua sombra sobre a vegetação, jogando uma sombra de dúvida e mistério: quem sou? É a indagação existencial de qualquer pessoa, no desafio do autoencontro. O vestido de cor clara é fino e elegante, num Monet elegante também, e o vestido traz o Feminino, a delicadeza, o perfume agradável. A sombrinha traz uma nuvem negra de tempestade, em meio a uma cena tão ensolarada, tão clara e limpa. A sombrinha traz uma sombra de dúvida, de desencontro, num ser humano que se frustra tanto até se encontrar, na dor do desencontro, da não adaptação, no sentimento de despertencimento, como na personagem melancólica de Michelle Pfeiffer em A Época da Inocência: a personagem quer fugir dos inevitáveis problemas da vida, até se dar conta de que não existe escapar. A sombrinha é a desilusão, é o não poder ver muito longe, é a sombra da depressão, doença que atinge aquele que, definitivamente, não sabe o próprio lugar no Mundo. Apesar desta cena de Monet trazer um quadro tão belo e ensolarado, traz também o estar perdido, num artista que, para se encontrar, tem que produzir e persistir. Ao chão, vemos graciosas flores silvestres douradas, na beleza da natureza silvestre, brotando espontaneamente, fertilizadas pela Natureza, num artista de imaginação fértil. O menininho é corado, saudável, e está paralisado, posando para esta “foto”. Ele ainda é muito jovem e precisa dos cuidados extremos da mãe, numa espécie de Nossa Senhora impressionista. O vestido dela é como um furacão, uma força da Natureza que atinge tudo e todos, mas a mulher está estável, no olho da tempestade, firme como uma rocha, e a “Madona” e o menino estão mergulhados no capim e nas flores, numa cena tão arejada e livre, a céu aberto. E temos o retilíneo cabo da sombrinha. O cabo, é claro, é o pensamento racional e fálico, conduzindo a simples ligação entre dois pontos – a mulher e o menino. É o artista com um pincel na mão, instrumento que se torna uma simples e poderosa extensão da mão artística. É claro que esta mulher é o epicentro da cena, e o menino é ator coadjuvante, discreto, recolhido, “castrado”. O céu e a vegetação são um só, girando em torno do princípio feminino aqui. O respirar da mulher e do menino juntam-se à brisa ao ar livre, numa integração biológica, onde tudo dança a mesma dança natural, orgânica. É o fascínio do Impressionismo: de perto, borrões; de longe, uma verdadeira fotografia colorida. A sombrinha é como uma água viva nadando nos oceanos primevos da Vida, no mistério do surgimento desta. O que é o Mundo? A mulher cumprimenta altivamente o espectador, de forma minimalista.


Acima, Nascer do Sol. Este Sol remete à bandeira nacional do Japão, num disco rubro envolto por névoas, que são as incertezas da Encarnação. O astro sobe e luta para se espalhar, numa paisagem nebulosa e duvidosa, sombria. O disco solar se reflete n’água, num ritmo caudaloso e ruidoso, e podemos ouvir o som do fluxo das águas. O barco em primeiro plano é negro, como um carro fúnebre, cheio de tristeza, de imprevisibilidade. A água e o céu fundem-se, formando um só organismo, e não há linha divisória clara entre eles. Ao fundo vemos estruturas que lembram píeres e barcos, e podemos ouvir o emitido pelas buzinas das embarcações. É um dia normal de trabalho, e a água está recebendo essa demanda laboriosa, num píer que nunca descansa ou para. O único elemento quente que temos aqui é o Sol e seu reflexo, com algumas nuvens de discreto dourado na porção superior da cena. É mais um dia que nasce, e as tarefas no atelier não podem parar. Há várias pinceladas azuladas no quadro, num azul que adquire função especial na tela – é impressionante observar como o Cinema transformou telas de pintura em cenas dinâmicas. Pela incidência solar, a embarcação negra fica dessa cor profunda, numa embarcação modesta em meio a outras embarcações mais suntuosas e maiores – é a modéstia, com um ser humano que não se sente um Titanic, mas um humilde e simples barco de pesca. As águas aqui absorvem todas as cores, revelando-se frenéticas e receptivas aos marinheiros, como uma Iemanjá, a Mãe dos Mares. Atrás do barco negro, outro barco, só que mais apagado e discreto, quase fundindo-se ao mar abaixo de si. É como um apóstolo seguindo seu senhor, como patinhos seguindo a mãe. O barco negro é o “Patinho Feio”, o qual, depois de um longo processo existencial melancólico, finalmente se encontra ao descobrir que nunca foi e nunca será pato, mas um belo e nobre cisne. O artista se encontra por meio da própria arte. O Sol rubro e o barco negro são os opostos entre luz e sombra, e, juntos, são o personagem central do quadro, vibrando entre si, brigando para ver quem é o grande astro desta história. As névoas dão um clima de incerteza, sempre cobrindo e escondendo algo, no sentido de que nada ocorre como o exatamente imaginado, nas maneiras da Divina Providência: se o Ser Humano soubesse como tudo iria acontecer, nada aconteceria, ou seja, a Vida não tem razão sem dificuldades. O véu de mistério é essencial na existência, cabendo ao Ser Humano só tomar conhecimento de diretrizes um tanto vagas e indefinidas, como na indefinição das pinceladas impressionistas. O Sol luta para trazer definição e clareza, mas o terreno aqui é muito fechado, relegando ao Sol um simples papel de coestrela, e nunca de estrela absoluta. Este sol “em brasas” traz calor à cena, numa aconchegante lareira em um dia frio e úmido, no contentamento em meio aos dias frios da existência, aos dias nublados e cinzentos, aos dias de tanta dúvida existencial, no talento do Ser Humano em estar perdido, no inevitável labirinto da Vida – cada um tem que se encontrar por si mesmo: príncipes, mendigos e plebeus. O reflexo do Sol n’água é como o rabo de um cometa, numa estrela tão deslumbrante e absoluta, o epicentro de uma família, de um sistema solar. Este Sol luta para prosperar, na luta pela Vida, como plantas competindo por um lugar ao Sol, na luta que é a Vida. O Sol de Monet traz uma lição de persistência, de espírito de guerreiro. Pequeno e distante, este Sol é uma luzinha no fim do túnel, uma luz tão fraquinha, porém brava e resistente, sinalizando o nascer de uma nova realidade na vida de um ser humano. Ainda mais atrás do barco mais apagado, uma forma que parece ser um terceiro barco, só que extremamente apagado, nunca sendo de fato percebido. Este barquinho quase invisível é Tao, o Uno, aquele que é sempre subestimado, tornando-se invisível e, assim, podendo agir. É o que nos diz o personagem de Al Pacino em O Advogado do Diabo: seja sempre subestimado, pois, assim, pegarás o Mundo de surpresa, e as surpresas são divertidas e interessantes. As estruturas ao fundo no quadro são pontiagudas, rijas, como em uma coroa de espinhos. São os avanços da vida em Sociedade, do modo como o Impressionismo foi a aurora de um novo dia na Arte, num momento de avanços e de questionamento de velhos moldes acadêmicos. É a pós-moderna pirâmide vidro do Museu do Louvre, no diálogo (equilibrado) entre tradição e transgressão. Os velhos moldes aqui citados foram sendo vencidos, do modo como, em plenos anos 2000, o DVD, por exemplo, estar morrendo por razão do avassalador avanço da Internet. Como diz uma canção de Jaz: “Apenas um tolo pode pensar que pode aplacar a Aurora”.


Acima, Nenúfares. A poesia floral e o perfume tomam conta deste quadro. Monet mostra o seu lado feminino e delicado, numa cena onde há total e absoluta harmonia. A água está estável, plácida, sem qualquer sinal de revolta ou conflito. É uma cena que convida à Meditação, à Paz. Isto lembra as majestosas vitórias régias do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Aqui, não temos em Monet um desejo belicoso de fazer críticas contundentes à Vida em Sociedade, bem pelo contrário, temos uma deliciosa alienação, um retiro, uma tarde preguiçosa que convida a relaxar e curtir a Vida em seus aspectos mais simples: às vezes, tudo do que o Se Humano precisa é ar nos seus próprios pulmões. É a canção Lazy Afternoon, ou seja, Tarde Preguiçosa, cantada por Barbra Streisand, quando a mesma já disse no show The Concert: Barbra, na maior parte do tempo, quer fugir do Mundo e desligar-se deste, apenas deitando sob uma árvore e nada fazendo. Os nenúfares boiam em relaxamento, na sensação deliciosa que é a Experiência Extracorporal espírita: uma sensação indescritível de paz, de prazer, como mergulhar em uma piscina térmica. Esta é a busca do artista por paz e harmonia, num artista cansado das vaidades mundanas, das guerras, das grosserias. É um quadro colorido, como um arcoíris, e as flores se revelam, triunfantes. É como uma comunidade zen, onde todos vivem em harmonia, onde não há guerras ou litígios, num artista sedento por paz e reclusão, como a atriz Meryl Streep, que vive uma vida discreta e recolhida, sem se deixar levar pelos sinais auspiciosos hollywoodianos, ao contrário de tantas outras almas, que perecem nas medíocres batalhas humanas por dinheiro, fama e poder. Temos um Monet tranquilo e relaxado, feliz em sua própria produção. A água plácida reflete cores, o podemos ouvir o relaxante cato de pássaros neste bosque paradisíaco. A água nos convida a mergulhar e se misturar à Natureza, fazendo parte de um bioma idealizado, onde não há herbívoros sendo caçados por carnívoros. Na verdade, este quadro não existe na Dimensão Material, a qual é repleta de rosas e espinhos, de sabor agridoce. Monet sabe que um dia vai desencarnar e que deixará para traz o corpo físico, (re)ingressando na Dimensão Metafísica, a qual Jesus chamou de Reino dos Céus. A flora aqui é luxuriante, exuberante, e quase podemos ver peixes nadando tranquilos, mal podendo ser vistos, pois estão recolhidos, imperceptíveis, assim como Tao é imperceptível, invisível, agindo silenciosamente. Neste quadro há silêncio, retiro, como num monastério, um lugar para prece, trabalho e paz. Aqui, as cores douradas são o tesouro de Monet, e, em sua própria arte, encontrou um tesouro. Não há figura central no quadro, e cada elemento tem papel fundamental. É o fluxo intermitente, como diz a Dialética: tudo é processo. Aqui, nada está em definitivo, nada está exposto às vaidades arrogantes das verdades absolutas. Tudo flui em concordância, na sensualidade da Internet, a rede que conecta tudo e todos. Tao, o Uno.


Acima, Ponte Japonesa. A ponte são os relacionamentos, as relações, a Vida em Sociedade. É um link, um elo que liga dois seres humanos: criador e espectador, num diálogo, numa cena alegre e colorida, festiva e, assim mesmo, meio triste, num fim de tarde, num Sol que morre aos poucos. Aqui, a vegetação são roupas maravilhosas, como grandes fantasias de Carnaval, num Monet atraído pelas cenas ao ar livre. É o auge da Primavera, e as flores exibem-se no afã da reprodução, visto que as flores nada mais são do que as genitálias das plantas. A ponte aqui está quase engolida pela Natureza, quase numa guerra entre Civilização e Natureza para ver quem se sobressai mais. O céu ao fundo é róseo, paradisíaco e doce, como um algodão doce, e tons de magenta marcam presença pela maior parte do quadro. A Natureza é um deleite para Monet, e o artista, em cada pincelada incerta impressionista, traz um cenário tão claro, tão rico de árvores, folhas e flores. A ponte aqui é engolida pela Natureza, e a forma curvilínea da ponta curva-se perante o natural, o Ecossistema. Aqui, Monet se esmera na riqueza cromática, e é tudo um Carnaval, uma festa, como um cristal que transforma a luz branca em um leque de cores finas, intensas, como um aristocrático salão de baile, com lustres multicoloridos e alegres. O quadro aqui sorri para o espectador, e convida este para entrar na festa. É o parque mais bonito do Mundo, e dá para sentir o cheiro de mato, de folha, de árvore, como no odor sedutor das folhas de plátano no Verão. Podemos ouvir o discreto som de água correndo sob a ponte, e a água trata de adquirir (e de se contagiar com) as cores vegetais. A ponte é o contato entre artista e espectador, e o quadro serve de meio para que esse contato aconteça, numa ironia: a ponte é uma ponte. Difícil imaginar bosque mais colorido e receptivo, num artista que nos convida a entrar em sua mente. A ponte não chega a ser o protagonista da história, pois divide esse papel com as plantas e a água. É um quadro doce, delicioso, com tantas cores em uma época em que o Cinema recém surgia, e ainda faltava muito para este ser colorido. Com a intenção de aparecer na cena, a ponte não é multicolorida, e se reserva um tom mais discreto. Podemos ouvir o som de grilos no bosque, num entardecer tão envolvente. A rósea estradinha que leva à extremidade escondida da ponte é o Caminho da Vida, o itinerário existencial, as coisas pelas quais a pessoa tem que passar durante a Vida. É o caminho da encarnação de Monet, que encontrou na Arte seu “fioterra” com o Mundo.