quarta-feira, 25 de abril de 2018

Gol de Vasco



Quando foi feito um concurso para eleger qual obra daria corpo ao famoso monumento de O Laçador, em Porto Alegre, Vasco Prado inscreveu-se com um modelo de claros traços indígenas, mas o eleito foi outro trabalho. Vasco permanece como um dos grandes artistas gaúchos da História, amando a sua Pátria Gaúcha. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Cavalo. O animal aqui está castrado, limitado, num mundo em que os sonhos são destruídos e abreviados. O pescoço está retorcido, como se o cavalo estivesse tenso, esperando ser atacado pela retaguarda. O cavalo está erguido por um mastro, do modo como as cidades espirituais estão acima da Terra. É como um futurista prédio do desenho animado Os Jetsons, em que enormes estruturas prediais são sustentadas por um frágil pilar, num minimalismo, em que a pessoa toca no chão o mínimo possível, ou seja, numa pessoa que recorre ao Mundano de forma moderada, limitada. É como as mulheres amam sapatos, principalmente de salto: o salto as ergue, as elege, as protege, fazendo-as se sentir verdadeiras princesas privilegiadas e mimadas. É como na canção Express Yourself: “Você precisa é de uma mão grande e forte que te erga a um patamar mais elevado, fazendo você se sentir uma rainha num trono”. É a magia do ritual de casamento, em que Yang envolve Yin, protegendo este. E é muito comum, principalmente nas campanhas publicitárias, ver o Homem acima da Mulher, sendo mais alto. Uma mulher já disse para mim: “Quero um namorado que seja mais alto do que eu”, do modo como Nicole Kidman teve que usar sapatos de salto baixo ao aparecer ao lado do marido tampinha Tom Cruise. O cavalo está aqui protegido, em um metafísico Monte Olimpo, e o contato com o Mundo Material é realmente evitado. O rabo do cavalo também está tolhido, castrado, impedindo-o de espraiar a magia elegante dos cavalos que correm olimpicamente. O sustentáculo é fino, querendo ser invisível, do modo como a Dimensão Metafísica é invisível aos olhos carnais, materiais. O sustentáculo é um falo, retilíneo e racional, observando o Mundo de forma clara e objetiva, sem lugar para emoções que desvirtuam os caminhos de um marinheiro seduzido por uma sereia, como Botticelli coloca Vênus seduzindo e entorpecendo Marte, num quadro pacifista, que sabe que o Ódio não é uma invenção de Tao, mas um capricho humano: a Paz é maior do que a Raiva. A base desta escultura faz parte do conjunto, e representa a referência, a base sábia que sustenta ideias, conceitos. A base é todo o trabalho árduo e minucioso de um artista dedicado ao labor. A base é o dia a dia do atelier, dando ocupação e propósito, pois já ouvi de uma poetisa: “Sem a poesia, o que faria eu desta tarde brumosa?”. O cavalo está espetado como churrasco, como uma borboleta espetada por um alfinete em uma coleção de borboletas mortas. É a mortificação espiritual, necessária porque liberta a Mente dos caminhos instáveis da Emoção, de um coração traiçoeiro, que sempre engana em seus meandros labirínticos que levam a nada. O cavalo parece estar fazendo “não” com a cabeça, na renúncia, no rejeito aos luxos frívolos mundanos, no sentido de que a pessoa, para ter o controle de sua própria vida, tem que saber dizer “não”. É como uma armadura, que repele flechas inimigas. E não tem o controle que sabe renunciar? Este cavalo é bem corpulento, meio obeso, numa fartura de cornucópia, numa mesa de banquete tão generosa, sempre nutrindo seus filhos, sempre acolhendo. É a generosidade, a qual é necessária, pois quem nutre Mundo é acolhido por este. Mais abaixo, vemos testículos, que representam a Coragem, a hombridade de vir ao Mundo e mostrar ao que veio. Também vemos o ânus desprotegido, e talvez esse seja o motivo pelo qual o cavalo esteja tão tenso, tão desconfiado, buscando proteger a si mesmo. É como se fosse um mítico cavalo alado, na liberdade mental que nutre a Imaginação e a Criatividade, liberdade esta capital para os artistas. Há nada mais triste do que um artista esmagado por um sistema totalitário, sendo este artista obrigado a ser limitado por ideologias, que limitam a visão. Pois este cavalo de Vasco Prado está de olhos livres, sempre atento, no mito novaioquino da “cidade que nunca dorme”, ou seja, do espírito desvinculado das fadigas materiais.


Acima, O Laçador. Símbolo de virilidade, O Laçador representa a Humanidade domando a Natureza, seja com cordas para atar os cavalos e o gado, seja com uma faca para carnear. Este laçador de Vasco é um tanto minimalista, pois não traz riqueza em detalhes. Podemos ver um laço, algo essencial aqui – leia-se o nome da obra –, e vemos vestimentas típicas da cintura para baixo. O modelo parece estar nu da cintura para cima, apresentando uma musculatura avantajada, como um Davi gaúcho. O rosto não tem feições, e este gaúcho parece estar olhando para cima, para as estrelas em uma noite clara de luar, no Cruzeiro do Sul abençoando as terras meridionais, e podemos ouvir o rico canto prateado dos quero-queros. É a identidade campeira do gaúcho, na quietude da vida rural, numa água de chimarrão sendo aquecida em um fogo de chão, junto com pinhões no inverno. Este laçador está com os pés ocultos, e seus pés estão fincados na base da escultura. Isso é o realismo, os pés no chão, na identidade gaúcha, que teve na Revolução Farroupilha sua tragédia fundadora. É sabido que o gaúcho tem um certo “bairrismo”, ficando atento aos gaúchos que fazem sucesso fora do RS. E a base de pedra desta obra é a terra gaúcha, o lar, a proveniência, na lei do eterno retorno – todos retornamos à base, à origem. De fato, o RS é um reino por si só, com terras vastas e peculiares. Quaisquer laçadores representam todo esse orgulho, e até hoje o gaúcho tem uma pontinha de sentimento separatista. É claro que RS jamais via se separar do resto do Brasil, mas o bairrismo é muito claro, havendo em Brasília um local em frente ao qual existe uma placa dizendo: “Embaixada do Rio Grande em Brasília”. O hábito do chimarrão, por exemplo. A base em granito é o sustentáculo, o pai, gerando seus filhos sobre o solo de uma terra que ousou desafiar o Imperador, como diz o Hino do RS: “Sirvam nossas façanhas de exemplo a toda a Terra”. Os laçadores são o ímpeto, o grito por identidade e liberdade, e o laço é o cordão umbilical, sempre ligando o bebê ao útero, à terra maternal, à dimensão onde todos somos livres, desencarnados. O laço é o fio de ligação entre todos os gaúchos, conectando todos sob o mesmo sentimento de semisseparatismo, um sentimento que é inofensivo se não for levado ao pé da letra. O laço é a linha de um novelo, tecendo as roupas típicas gaúchas, no trabalho cuidadoso de uma mãe zelosa, costurando pacientemente a roupa para seu filho. No RS há toda uma identidade rural, nas raízes do gaúcho, numa terra que um dia foi alvo de disputa entre Portugal e Espanha. O laço é o controle sobre a própria vida, num homem viril que se recusa a não ter o controle sobre sua própria vida. O laço é o grito de independência, de autonomia, de soberania, de masculinidade, nunca deixando que as terras gaúchas deixem de pertencer aos gaúchos. A tradição tosca gaúcha tem todo um reconforto, do modo como o selvagem Queequeg, do romance Moby Dick, o qual acabei de ler, é aparentemente tosco mas, no fundo, provou ter sangue azul e nobre, como no rei Aragorn de O Senhor dos Anéis: uma aparência tosca que traz um sentimento de bem estar. O estilo dos CTGs é assim, tosco, e belo, na beleza graciosa das prendas. Tenho orgulho de dizer que meu bisavô Joaquim Pedro Lisboa fundou o CTG Rincão da Lealdade, em Caxias do Sul. Nessa atitude tosca e “buenacha”, O Laçador é a vitória da autenticidade sobre a dissimulação traiçoeira. E o laço são os laços de sangue que ligam os seres humanos, como irmãos de uma mesma casa real, todos iguais e, ainda assim, peculiares a nível individual. O laço é a cobra peçonhenta sendo vencida pelo Homem, como Nossa Senhora esmagando a serpente maliciosa. A identidade dos Pampas é muito clara, pois vi, há alguns anos em Buenos Aires, um show de dança que provou ter traços inegavelmente gaúchos, tradicionais.


Acima, Modelo em Repouso. A modelo é voluptuosa, farta, saudável, nunca sendo uma modelo anoréxica que se curva aos ditatoriais padrões de beleza contemporâneos. Ela está confortável em sua própria nudez, na simplicidade de estar como veio ao Mundo. Seus seios parecem se movimentar suavemente pelos sutis movimentos dormentes, e a pose é de alguém em momento de contemplação, num momento em que tudo do que a pessoa precisa é de ar nos próprios pulmões. A genitália está escondida, reclusa, do modo como nudez e vulgaridade não precisam andar juntas. É o modo francês de lidar com simplicidade em relação à nudez. É um corpo farto, o qual significa satisfação, saciez, num artista satisfeito com a própria produtividade, no sentimento pacífico de realização – quem tem Paz é feliz, estando pacífico em relação a si mesmo e a outrem. A modelo está confortável, com autoestima, sem se preocupar com padrões estéticos. A modelo parece ser recém parida, numa pele sem máculas, como pele de bebê. Ela está em casa, relaxando, sem se preocupar com as vicissitudes do Mundo lá fora. É uma escultura que transmite tranquilidade, sedimentação, ponderação. Estar calmo é um prazer, uma dádiva. Nesta peça não há culpa ou preconceito, mas autoaceitação, autorrespeito, e podemos ouvir o sutil farfalhar da pele da modelo quando esta se move suavemente. Podemos ouvir a sutil respiração da modelo, com seu tórax inflando e desinflando. Aqui há Vida. É uma obra que convida à horizontalização, ao gostoso Pecado Capital da Preguiça. O semblante é plácido e relaxado, sem estar exposto aos estresses da Vida. É um rosto imaculado, sem traços de idade ou cansaço. Sobre a cabeça, uma forma que pode ser o cabelo ou pode ser uma toca ou chapéu, envolvendo e protegendo a cabeça. Esse invólucro é a Racionalidade, a vida intelectual, o sentar-se para ler um livro ou ver um filme, um cérebro que rejeita a mentalidade de que um ser humano só tem que trabalhar como workaholic, estando este mesmo ser privado dos prazeres intelectuais. É claro que Vasco Prado era produtivo e trabalhador, mas nunca ao ponto de não ter vida intelectual. Aqui, os seios fartos parecem estar cheios de leite, o que me faz lembrar de quando vi recentemente uma mulher no shopping amamentando seu nenê. É o milagre da Vida, da fartura, desta “caixinha de leite condensado” que nos nutre e nos fortalece. As pernas sutilmente cruzadas são a ponderação e o contentamento, numa modelo que senta e pensa, senta e conversa, senta e troca impressões. É uma conversa interessante numa aconchegante sala de estar. É a inteligência, a erudição, uma conversa divertida e enriquecedora, numa Elis Regina preocupada em gravar canções que fossem realmente interessantes, respeitando a inteligência do Público. É o eterno namoro da Arte com a nudez, como vi, certa vez em um atelier, exemplares de uma revista de nu feminino. Este “capacete” da modelo é o telhado, a casa, a proteção, a proveniência, num lar onde crianças são criadas em observância à virtude, à nobreza dos atos, ao discernimento entre certo e errado. O “capacete” é um abajur ligado, esclarecido, fruto de uma cabeça pensante. A modelo parece estar muito à vontade no atelier, pouco se importando com o olhar do artista sobre ela mesma. O ventre da modelo é farto como o de uma dançarina da Dança do Vente, numa refeição farta e suculenta, deliciosa. A modelo não fica perturbada com os olhares do espectador, o qual fica convidado e entrar e ficar à vontade, como o lar que é o Útero Materno.


Acima, Negrinho do Pastoreio. Uma das maiores lendas do Folclore Gaúcho, o Negrinho do Pastoreio conta a história de um menininho que, depois de ser executado de forma cruel – ficou amarrado junto ao um formigueiro até ser morto lenta e agoniantemente pelas formigas –, este Negrinho vai para o Céu em encontro com Nossa Senhora, ressuscitando depois de uma espécie de crucificação, só que sem cruz. Certa vez ganhei de presente uma faca de churrasco a qual trazia, na lâmina e na bainha, trechos ilustrados da lenda – nada mais gaúcho. Essa lenda não só assinala a influência negra no RS como também fala de relações sociais e de como os africanos e seus descendentes sofreram. Aqui, o Negrinho já está semimorto, parecendo estar adormecido, já no estágio final de óbito, depois de muitas horas de dor, tendo sido devorado vivo. É o eterno retorno: o Negrinho volta ao ventre imaculado da Dimensão Metafísica, libertando-se do Mundo, sendo recebido no plano acima, sequer se lembrando do que passou no momento da excruciante execução. Esquálido e abatido, o Negrinho mostra toda a inocência da criança, e está nu, exatamente do modo como estava no útero materno, retornando à Fonte. O formigueiro, a base desta escultura, é a estrutura social, num sistema onde cada indivíduo tem seu papel, restando aos negros pobres uma posição inferior, na base, na posição mais humilde e desprivilegiada. O formigueiro é o Mundo em seu ritmo frenético de labor, numa sociedade escravocrata, na qual ser negro era uma inevitável condenação. É uma escultura que fala de Racismo, a doença que ainda permeia a Vida em Sociedade. Aqui, o Negrinho está retorcido e inconsciente, como se sua alma já estivesse muito longe dali. O seu umbigo, a inevitável cicatriz causada pelo cordão umbilical, é a porta de entrada e de saída de uma dimensão melhor, e essa cicatriz é um lembrete: todos viemos de e vamos para o mesmo lugar. É claro que a pessoa desumana que condenou o Negrinho não tem compaixão, e essa lenda fala sobre piedade e covardia. O Negrinho e o formigueiro são um só corpo, um só momento dramático. O seu braço é ossudo, magro, abatido, numa realidade social em que a subnutrição é ainda realidade no Brasil, com crianças que não se desenvolvem adequadamente. É uma lenda brasileira, africana. Vemos aqui um corpo sem vida, um cadáver recém falecido, num vestígio de um processo de desencarne altamente complicado, insuportável. A lenda fala sobre tolerância e piedade, num mundo tão cruel, o mesmo mundo que crucificou o Messias. O gauchíssimo Vasco Prado entende que o Negrinho do Pastoreio abençoa as Terras Gaúchas, e o menino cavalga pelas noites dos Pampas, trazendo liberdade a todos os gaúchos, a todos os cidadãos da Querência. Ao morrer, o Negrinho se liberta.


Acima, Tiradentes. Com um semblante triste, Tiradentes olha para o Céu, mostrando-se um sonhador, um indivíduo que sonhou com um Brasil diferente, foi executado e virou mártir do Brasil. À sua frente, uma grande flor embasada por um longo caule e muitas folhas. A flor é um sonho germinando, é um ideal, uma meta. E essa flor foi ceifada pelo Império, num ato de repressão que teve como objetivo assustar o cidadão comum: se você não quer terminar como Tiradentes, não seja como Tiradentes. Do mesmo modo como as execuções de protestantes eram para servir de exemplo ao cidadão comum: se você não quer terminar como este infeliz na fogueira, seja católico, vá à Missa e fique quieto vivendo sua vida. Tenho uma vaga lembrança de infância, quando eu lia um livro sobre Tiradentes e, no volume, vi uma ilustração de partes esquartejadas de Tiradentes, expostas ao público, servindo de puro e simples exemplo. Depois de morrer de forma tão brutal, Tiradentes “ressuscita”, e o Império rui, dando espaço à República, do modo como há a representação dessa transição política da Praça da Matriz, em Porto Alegre: a República brilha vitoriosa e o Império é representado por uma besta horrenda, inferior e animalesca. Aqui, este Tiradentes veste uma grande túnica quase em forma de cone, e uma de suas pernas é revelada, numa perna ossuda e maltratada, praticamente apenas pele e osso. Essa magreza são os maus tratos que o mártir sofreu na execução. Aqui, a flor é um ideal, uma meta, a qual pareceu ser frustrada mas que, depois, ressurgiu vitoriosa. O semblante triste a abatido do mártir traz o tom dramático, de uma pessoa que, como Jesus na cruz, morreu absolutamente frustrada, desamparada e desnorteada. Na mesma coragem que Tiradentes teve para desafiar o Império, o artista tem que ter a coragem de produzir o melhor de si, do contrário, não se torna um grande artista. O aspecto metálico dessa obra é a dureza com a qual o mártir se deparou, numa dureza fria e cruel, na vicissitude que ceifou a vida de um homem. A base desta escultura é o argumento que Tiradentes fazia, contundente o bastante para irritar os poderosos, do mesmo modo como Jesus fazia críticas contundentes aos poderosos de sua época. Tiradentes não foi covardemente assassinado em uma emboscada, mas oficialmente processado e executado. Tempos depois, o Povo Brasileiro se deu conta da importância do mártir, pois, como já ouvi dizer, a Verdade é a filha do Tempo, ou seja, o Tempo coloca tudo em seu devido lugar. O pé de flor é o modo como a palavra de Tiradentes germinou após sua morte, anunciando, de forma muito prematura, os ventos de renovação que a República traria ao país. Visionário, Tiradentes é obra de outro visionário – Vasco Prado. E a Arte tem que ser assim: visionária. Do contrário, torna-se previsível e entediante. Esta flor metálica é a Vida em sua fragilidade, assim como a grande flor metálica em Buenos Aires, que relembra a Guerra das Malvinas – sangue sendo derramado. Esta é uma obra que tem que ser observada à distância, pois tem pontas cortantes, como em mãos e pés pregados numa cruz.

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