Há anos vi uma retrospectiva
de Pedro Weingärtner no Museu de Arte do RS, instituição que tem no próprio
acervo obras de Pedro, um artista acadêmico de indiscutível talento. Os textos
e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.
Acima, Kerb, 1892. Vemos um baile rural, num PW apaixonado pelo Campo.
Podemos ouvir a música tomando corpo, e o meio da sala pronto para receber
dança. O lustre está decorado com abundantes flores, assim como as guirlandas
mais à direita na cena. Do lado de fora da janela, pobres e negros observam,
impedidos de fazer parte da elegante celebração – são os abismos sociais, numa
sociedade excludente, estratificada, privilegiando uns e excluindo outros. É o
sentimento de exclusão, de marginalização. Um cachorrinho viralata escapou para
dentro do baile, e parece estar se divertindo com o evento. Vemos duas
menininhas brincando com flores, entretidas com o acontecimento glamoroso,
especial. O espaço vago no meio da sala é Tao, o vazio, a lacuna, a sensualidade
de um recipiente vazio, como na vazia beiramar, sempre atraindo com a simples
força gravitacional. É a sedução. A luz entra na sala, e é um belo dia de Sol.
Ao lado das menininhas sentadas brincando ao chão, uma elegante senhora, talvez
a mais elegante da festa, com um elegante chapéu de adorno – é a elegância, o
bom gosto, o critério, a pertinência de uma mulher que sabe que uma boa
apresentação ajuda muito na vida social. Na extrema direita inferior, uma
pequena mesa com xícaras, copos e uma garrafa, talvez de vinho, no modo como o
vinho celebra a passagem do tempo, conservando-se por muito tempo dentro de uma
garrafa. Sobre a mesinha, um majestoso raio de luz solar, quente, acolhedora,
num PW mestre em luz, em nuances de iluminação. O reconfortante raio de Sol é o
consolo, é uma bênção, no simples prazer de sentir o Sol tocando a face do
espectador, o qual é chamado a participar da festa, tornando-se personagem da
cena de ação. O vazio no meio da sala puxa o espectador como o faz o buraco
negro, avassalador, no poder de sedução dos bons artistas: atrair e fascinar
quem ama Arte. Pelas janelas vemos um céu azul, limpo, cheio de certeza e
clareza, trazendo só alegria para o baile, deixando a tristeza do lado de fora.
Atrás da senhora elegante, um homem curvado com um chapéu na mão, talvez se
curvando perante a bela dama, respaldando-a, sustentando-a, tornando-se o lado
masculino dela – é a beleza do Yin protegida pela credibilidade do Yang.
Podemos ouvir o incessante burburinho das pessoas no salão, num momento de
interação social, de relacionamento. A casa está iluminada, aberta e arejada,
num anfitrião receptivo, que acolhe os convidados, como uma socialite que adora
dar pomposas festas. Quase abaixo do lustre enfeitado com flores, um gaúcho com
poncho, com chapéu e bigode, parecendo ser o ex-governador Olívio Dutra, um
homem que sintetiza muito bem o que é ser gaúcho. Vemos várias mulheres na
cena, mas nenhuma tão elegante quanto a mulher sentada já mencionada. É também
um momento de competição, para ver qual delas é a mais arrumada e bonita. Ao
lado do gaúcho de poncho, vários homens de chapéu, não intencionando tirar o
chapéu ao entrar em um lugar fechado, ao contrário do homem atrás da dama
catita, que tirou o próprio chapéu. Como me disse uma intelectual, as festas
são acontecimentos de saúde mental coletiva, como a Festa da Uva de Caxias, num
momento em que a comunidade se une e celebra o lado bom da Vida. E, bem ao
fundo da janela, uma paisagem vasta de campos, do modo como diz Tao: as pessoas
admiram os palácios mas ignoram os campos, os quais vestem roupas maravilhosas,
assim como as roupas da mulher chic.
Acima, Ninfas Surpreendidas, 1918. Esta é uma cena erótica de violação,
nas figuras masculinas adentrando um recinto povoado por mulheres assustadas.
Elas cobrem seus corpos nus escondem-se, com medo dos homens, que entram
ruidosamente em cena, no jogo entre passividade e atividade, no qual as
mulheres são passivas, desprovidas de agressividade, tendo que ser protegidas
pela figura humana que tenta bloquear a porta e impedir que os profanadores
entrem e “sujem” a sala. Vemos um PW apaixonado pela Antiguidade Clássica, nos
detalhes arquitetônicos clássicos, remetendo o espectador a uma viagem no
Tempo. Acima da porta, um furo, que é a vagina, como uma goleira tendo que ser
protegida e resguardada pelo goleiro, impedindo que as bolas agressivas
profanem a intocabilidade virginal das mulheres neste quadro. Antes dos
estupradores entrarem, não havia malícia na sala, e as mulheres ficavam
naturalmente nuas, de forma pura e inocente. Mas então vem a serpente da
malícia do Éden, e Adão e Eva, antes inocentemente nus, tomam vergonha e se
cobrem. Do mesmo modo, as mulheres sentem vergonha e se cobrem aqui – é o
surgimento da Malícia, da sexualização. Uma das mulheres está de costas para o
espectador, olhando corajosamente para os invasores, estes como inúmeros
espermatozoides cobiçando o mesmo óvulo, num mundo competitivo, no qual é
(muito) necessário o desenvolvimento de agressividade, no sentido da pessoa ser
dona e senhora de sua própria vida. Podemos ouvir os gritos dos homens
estupradores e os gritos das mulheres acuadas. As ninfas são arquétipos de
feminilidade e fragilidade, sempre “fracas”, sempre precisando ser
representadas por uma figura masculina: o pai, o marido, o patrão, o Papa etc.
Este é o jogo de sedução entre Yin e Yang, na sensualidade da integração
universal – estamos todos conectados, numa espécie de “internet” espiritual. A
luz que vem da porta arrombada é agressiva, como uma ponta de lança, e é o
desbravamento, do modo como, por exemplo, Freud desbravou a Psicanálise. É uma
espécie de pioneirismo, na fome que move as cadeias alimentares, num leão
faminto devorando um veado, no jogo de sedução entre vítima e agressor. Estas
ninfas aqui são discretíssimas, vivendo num mundo de passividade, onde tudo
gira em torno de beleza, no arquétipo de Vênus, a bela da Noite e da Manhã.
Aqui, Marte vai à Guerra, odiando seu opositor, tentando saquear tudo o que
puder em terras inimigas – é a feiúra da Guerra. Um dos homens aqui segura uma
ameaçadora lança, e como dia Tao, nenhum homem sábio terá qualquer coisa a ver
com armas, as quais são coisas terríveis. Os violadores aqui são soldados
marchando por terras inimigas, onde não são bem-vindos. A luminosidade dentro
da câmara é suave e branda, sem incidência agressiva de luz solar direta. Já, a
luz estupradora que vem da fresta na porta é mais forte, mais impiedosa, sem a graciosidade
das ninfas virgens – a sociedade machista impede que uma mulher adquira agressividade,
como diz a sexy e agressiva Mulhergato a uma mulher que quase é violentada: “Você
está sempre esperando por um Batman para salvá-la”. Temos em PW um talento
cênico, como cenas de Teatro ou Cinema. As ninfas aqui estão apavoradas, com os
olhos arregalados, incertas sobre o que acontecerá se os homens entrarem neste
útero intocado. É um colono italiano que desbrava terras virgens, sulcando a
terra, germinando-a e fazendo-a fértil. Este quadro não tem propriamente um
centro, mas podemos dizer que a mulher tapando os próprios seios é algo perto
de um centro. É o pudor que sucedeu a pureza. Outro homem que entrou toca um
instrumento musical de sopro, e podemos ouvir sua melodia sedutora e
dionisíaca, querendo hipnotizar as ninfas com um jogo de sedução. É exatamente
a passividade feminina o que excita os violadores, e as ninfas precisam de alguém
para defendê-las, numa espécie de “terceirização”, numa mulher que eternamente
projeta em outrem o seu próprio Yang. É o poder da discrição: quanto menos,
melhor. Afinal, ninguém pode se vender a um e noventa e nove.
Acima, Oferenda ao deus Pã, 1894. A paixão de PW pela Cultura Clássica. O
deus pagão sustenta-se num pedestal, e seu sorriso é malicioso, lascivo, remetendo
a prazeres que o Catolicismo, mais tarde, chamou de Sete Pecados Captais. A paisagem é paradisíaca, num bosque
acolhedor e belo, numa dimensão metafísica, onde a Natureza e a rebeldia desta
não prosperam. O chão é salpicado de flores silvestres, num “carpete” que
convida ao descanso. Podemos ouvir os barulhos do bosque, como pássaros
cantando, em uma melodia de Paz. Há seis figuras femininas no quadro, coroadas
com flores e vestindo vestes clássicas, e podemos imaginar como PW obteve
modelos vivas para construir esta obra – será que foi a mesma modelo para todas
estas figuras pintadas? Uma mulher oferece um jarro, provavelmente de vinho, ao
deus, no prazer dionisíaco da embriaguez, do modo como a invenção do vinho é
tão antiga, tão ancestral na Humanidade. Outra mulher deita-se de modo a
esconder seu próprio rosto na grama, talvez envergonhada, talvez chorando, ou
talvez simplesmente dormindo, embriagada pelo conforto deste bosque tão
edeníaco. Há apenas uma mulher de pé, e ela rechaça o deus, fazendo um gesto de
renúncia, talvez representando a Igreja, negando as raízes clássicas do
Ocidente. Esta mulher não quer oferecer algo a Pã, e destaca-se no quadro por
sua pose em pé, não se deixando embriagar pelos prazeres capitais, num PW
disciplinado, que encarava com seriedade e profissionalismo o próprio ofício.
Uma das mulheres tapa os próprios olhos, como se não quisesse ver o deus, como
um Édipo, que perdeu os próprios olhos por amar a própria mãe. Esta mulher
“cega” não quer ver nem o deus, nem o bosque, e parece estar esperando por este
momento passar, desinteressando-se pelo Paganismo. Outra mulher está de costas
para o deus, e isto é uma renúncia, uma oposição, de alguém alheio a esta cena
de oferenda. A mulher restante está com um olhar distraído, como se sua mente
estivesse em outra dimensão, e esta mulher parece estar completamente
entediada, alheia, morrendo de tédio e não fazendo parte ativa na cena. Em
frente à imagem do deus, uma oferenda queimando, espalhando uma fumaça
pestilenta pela pureza deste bosque. Alguns degraus conduzem ao ponto da oferenda,
e os degraus são o caminho de depuração, de evolução moral e espiritual, e o Pã
aqui não representa este apuro, bem pelo contrário; representa o Id, o
princípio do prazer, como tirar uma boa soneca ou comer um bom doce. Como diz
Tao, não há nada de errado em ser preguiçoso, pois a Preguiça leva ao
Minimalismo, à Limpeza, ao Essencial. Apesar de fazer parte do título deste
quadro, o deus Pã tem um papel secundário na cena. As mulheres e o bosque em si
são os protagonistas, e este jardim não parece ter fim, num mundo tão repleto
de Paz. Tudo aqui parece respirar em um só ritmo, e a beleza das mulheres
funde-se com a beleza do bosque, numa cena tão rica em beleza. As flores brancas
juntam-se às vestes claras das mulheres, numa identidade feminina. Mas, se
tivéssemos que delinear o maior destaque desta obra, seria a mulher de pé, a
qual parece lutar contra o deus endiabrado, mostrando a vitória da Virtude
sobre a Malícia, como uma Nossa Senhora esmagando espontaneamente com os pés
uma serpente. É um quadro de clara renúncia a algo. A mulher que renuncia está
farta, saciada, na sabedoria de alguém que sabe quando tem o suficiente.
Acima, Tempora Mutantur, 1898. O casal de colonos trabalhando duro na
roça. A mulher olha para os irremediáveis calos nas mãos, lamentando por não
ter mãos de dama. Há aqui uma breve pausa no trabalho árduo, num brevíssimo
intervalo. O homem calvo, datado pela passagem do tempo, olha para o nada,
cansado, numa vida muito dura, que exige o máximo do trabalhador. Esta pintura
foi há vários anos capa do guia telefônico do Nordeste do RS, ou seja, da Serra
Gaúcha, num uso muito pertinente da obra, a qual ilustra o trabalho duríssimo
que os colonos tiveram que empreender ao chegar nas terras devolutas serranas.
A paisagem é cinzenta, incerta, pesada, e não temos aqui a alegria de um dia
ensolarado, num Céu de Brigadeiro. Temos a dúvida existencial, numa vida toda
dedicada ao labor, algo que acabou por marcar para sempre a cultura do
descendente de colono, criando um culto ao trabalho, ao trabalho arduosíssimo,
ardido, dolorido, na máxima: “Vá carpir um lote”. Como diz Maria Callas na peça
Master Class, com Marília Pêra:
duvido que você vá obter sucesso se não se dedicar ao má-xi-mo. As costas do
homem estão curvadas, cansadas, na humildade de quem se curva perante a
necessidade de labor contínuo, e o colono só não trabalhava no domingo porque a
religião não permitia. As árvores estão cortadas para que deem lugar à lavoura,
numa época em que o apelo da Ecologia ainda não existia. A roça está
impecavelmente arada, preparada para a semente, na fertilidade da mente de PW,
sempre imaginando cenas dignas de Arte. É um dia cinzento e frio, e o casal
está aquecido pelo labor braçal. Ao fundo, vemos duas casas, talvez expelindo
fumaça de suas chaminés, e podemos sentir no ar o agradável cheiro de madeira
queimada, no aconchego de um lar com um fogão a lenha, com a família reunida ao
redor do fogo, comendo e contanto histórias – a vida rural tem lá seus
encantos. O longo cabo da enxada do homem é retilíneo, e representa o simples
objetivo do trabalho: laborar para obter frutos. O colono, ao chegar na terra
virgem, tinha todo um sonho, um objetivo, e o trabalho é o instrumento para se
atingir tal meta – o colono não trabalhava a toa, sem metas. A roda, no canto
direito inferior, rodando, é a passagem do Tempo, numa vida dedicada ao solo, à
roça, e é um instrumento que é testemunha do esforço, num PW trabalhador em
cada uma de suas pinceladas. PW mostra maestria ao delinear a vegetação, seja
em plantas mais em primeiro plano, seja em último plano. As árvores cortadas
trazem algo tolhido, castrado, num colono que não conseguiu concretizar todos
os seus sonhos, tendo que se contentar com algum conforto, acordando muito cedo
de manhã, num PW disciplinado, produtivo. Este é um quadro triste, mas não
melancólico. O lenço vermelho da mulher é a Feminilidade, e é difícil ser
feminina em um contexto laborioso tão duro, tão exigente. O colono tinha que se
fazer forte se quisesse sobreviver, e um artista tem que saber se reinventar se
quiser sobreviver, pois o importante na Vida é sobreviver a inúmeras hecatombes
nucleares – o Mundo é dos fortes, e o colono se fez forte. Atrás da mulher
vemos um pedaço de um córrego, na passagem da água, que tudo lava, que tudo de ruim
leva embora. É uma vida de poucos prazeres, e molhar os pés no rio é um desses
deleites. A mulher já não mais sustenta sonhos de morar na cidade, de ter uma
vida urbana e sofisticada – ela está contentada com sua vida rural. Eles voltam
para casa famintos após o dia de trabalho, e comer é um dos poucos prazeres
dessa vida, marcando para sempre a Gastronomia Colonial. A terra devidamente
arada tem um papel de destaque na cena, virando um personagem, tornando-se o
motivo de orgulho do casal de camponeses. Provavelmente os filhos deles
cresceram e saíram de casa, deixando o casal a sós, exatamente como os dois o
foram quando recém-casados. A terra sulcada faz metáfora com os calos da
mulher, e a terra é de um marrom cinzento que traz toda a seriedade e discrição
de uma vida de esmero. E podemos ouvir o som dos quero-queros ao fundo, numa
cena tão rural.
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