quarta-feira, 4 de abril de 2018

As Cenas de Pedro



Há anos vi uma retrospectiva de Pedro Weingärtner no Museu de Arte do RS, instituição que tem no próprio acervo obras de Pedro, um artista acadêmico de indiscutível talento. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Kerb, 1892. Vemos um baile rural, num PW apaixonado pelo Campo. Podemos ouvir a música tomando corpo, e o meio da sala pronto para receber dança. O lustre está decorado com abundantes flores, assim como as guirlandas mais à direita na cena. Do lado de fora da janela, pobres e negros observam, impedidos de fazer parte da elegante celebração – são os abismos sociais, numa sociedade excludente, estratificada, privilegiando uns e excluindo outros. É o sentimento de exclusão, de marginalização. Um cachorrinho viralata escapou para dentro do baile, e parece estar se divertindo com o evento. Vemos duas menininhas brincando com flores, entretidas com o acontecimento glamoroso, especial. O espaço vago no meio da sala é Tao, o vazio, a lacuna, a sensualidade de um recipiente vazio, como na vazia beiramar, sempre atraindo com a simples força gravitacional. É a sedução. A luz entra na sala, e é um belo dia de Sol. Ao lado das menininhas sentadas brincando ao chão, uma elegante senhora, talvez a mais elegante da festa, com um elegante chapéu de adorno – é a elegância, o bom gosto, o critério, a pertinência de uma mulher que sabe que uma boa apresentação ajuda muito na vida social. Na extrema direita inferior, uma pequena mesa com xícaras, copos e uma garrafa, talvez de vinho, no modo como o vinho celebra a passagem do tempo, conservando-se por muito tempo dentro de uma garrafa. Sobre a mesinha, um majestoso raio de luz solar, quente, acolhedora, num PW mestre em luz, em nuances de iluminação. O reconfortante raio de Sol é o consolo, é uma bênção, no simples prazer de sentir o Sol tocando a face do espectador, o qual é chamado a participar da festa, tornando-se personagem da cena de ação. O vazio no meio da sala puxa o espectador como o faz o buraco negro, avassalador, no poder de sedução dos bons artistas: atrair e fascinar quem ama Arte. Pelas janelas vemos um céu azul, limpo, cheio de certeza e clareza, trazendo só alegria para o baile, deixando a tristeza do lado de fora. Atrás da senhora elegante, um homem curvado com um chapéu na mão, talvez se curvando perante a bela dama, respaldando-a, sustentando-a, tornando-se o lado masculino dela – é a beleza do Yin protegida pela credibilidade do Yang. Podemos ouvir o incessante burburinho das pessoas no salão, num momento de interação social, de relacionamento. A casa está iluminada, aberta e arejada, num anfitrião receptivo, que acolhe os convidados, como uma socialite que adora dar pomposas festas. Quase abaixo do lustre enfeitado com flores, um gaúcho com poncho, com chapéu e bigode, parecendo ser o ex-governador Olívio Dutra, um homem que sintetiza muito bem o que é ser gaúcho. Vemos várias mulheres na cena, mas nenhuma tão elegante quanto a mulher sentada já mencionada. É também um momento de competição, para ver qual delas é a mais arrumada e bonita. Ao lado do gaúcho de poncho, vários homens de chapéu, não intencionando tirar o chapéu ao entrar em um lugar fechado, ao contrário do homem atrás da dama catita, que tirou o próprio chapéu. Como me disse uma intelectual, as festas são acontecimentos de saúde mental coletiva, como a Festa da Uva de Caxias, num momento em que a comunidade se une e celebra o lado bom da Vida. E, bem ao fundo da janela, uma paisagem vasta de campos, do modo como diz Tao: as pessoas admiram os palácios mas ignoram os campos, os quais vestem roupas maravilhosas, assim como as roupas da mulher chic.


Acima, Ninfas Surpreendidas, 1918. Esta é uma cena erótica de violação, nas figuras masculinas adentrando um recinto povoado por mulheres assustadas. Elas cobrem seus corpos nus escondem-se, com medo dos homens, que entram ruidosamente em cena, no jogo entre passividade e atividade, no qual as mulheres são passivas, desprovidas de agressividade, tendo que ser protegidas pela figura humana que tenta bloquear a porta e impedir que os profanadores entrem e “sujem” a sala. Vemos um PW apaixonado pela Antiguidade Clássica, nos detalhes arquitetônicos clássicos, remetendo o espectador a uma viagem no Tempo. Acima da porta, um furo, que é a vagina, como uma goleira tendo que ser protegida e resguardada pelo goleiro, impedindo que as bolas agressivas profanem a intocabilidade virginal das mulheres neste quadro. Antes dos estupradores entrarem, não havia malícia na sala, e as mulheres ficavam naturalmente nuas, de forma pura e inocente. Mas então vem a serpente da malícia do Éden, e Adão e Eva, antes inocentemente nus, tomam vergonha e se cobrem. Do mesmo modo, as mulheres sentem vergonha e se cobrem aqui – é o surgimento da Malícia, da sexualização. Uma das mulheres está de costas para o espectador, olhando corajosamente para os invasores, estes como inúmeros espermatozoides cobiçando o mesmo óvulo, num mundo competitivo, no qual é (muito) necessário o desenvolvimento de agressividade, no sentido da pessoa ser dona e senhora de sua própria vida. Podemos ouvir os gritos dos homens estupradores e os gritos das mulheres acuadas. As ninfas são arquétipos de feminilidade e fragilidade, sempre “fracas”, sempre precisando ser representadas por uma figura masculina: o pai, o marido, o patrão, o Papa etc. Este é o jogo de sedução entre Yin e Yang, na sensualidade da integração universal – estamos todos conectados, numa espécie de “internet” espiritual. A luz que vem da porta arrombada é agressiva, como uma ponta de lança, e é o desbravamento, do modo como, por exemplo, Freud desbravou a Psicanálise. É uma espécie de pioneirismo, na fome que move as cadeias alimentares, num leão faminto devorando um veado, no jogo de sedução entre vítima e agressor. Estas ninfas aqui são discretíssimas, vivendo num mundo de passividade, onde tudo gira em torno de beleza, no arquétipo de Vênus, a bela da Noite e da Manhã. Aqui, Marte vai à Guerra, odiando seu opositor, tentando saquear tudo o que puder em terras inimigas – é a feiúra da Guerra. Um dos homens aqui segura uma ameaçadora lança, e como dia Tao, nenhum homem sábio terá qualquer coisa a ver com armas, as quais são coisas terríveis. Os violadores aqui são soldados marchando por terras inimigas, onde não são bem-vindos. A luminosidade dentro da câmara é suave e branda, sem incidência agressiva de luz solar direta. Já, a luz estupradora que vem da fresta na porta é mais forte, mais impiedosa, sem a graciosidade das ninfas virgens – a sociedade machista impede que uma mulher adquira agressividade, como diz a sexy e agressiva Mulhergato a uma mulher que quase é violentada: “Você está sempre esperando por um Batman para salvá-la”. Temos em PW um talento cênico, como cenas de Teatro ou Cinema. As ninfas aqui estão apavoradas, com os olhos arregalados, incertas sobre o que acontecerá se os homens entrarem neste útero intocado. É um colono italiano que desbrava terras virgens, sulcando a terra, germinando-a e fazendo-a fértil. Este quadro não tem propriamente um centro, mas podemos dizer que a mulher tapando os próprios seios é algo perto de um centro. É o pudor que sucedeu a pureza. Outro homem que entrou toca um instrumento musical de sopro, e podemos ouvir sua melodia sedutora e dionisíaca, querendo hipnotizar as ninfas com um jogo de sedução. É exatamente a passividade feminina o que excita os violadores, e as ninfas precisam de alguém para defendê-las, numa espécie de “terceirização”, numa mulher que eternamente projeta em outrem o seu próprio Yang. É o poder da discrição: quanto menos, melhor. Afinal, ninguém pode se vender a um e noventa e nove.


Acima, Oferenda ao deus Pã, 1894. A paixão de PW pela Cultura Clássica. O deus pagão sustenta-se num pedestal, e seu sorriso é malicioso, lascivo, remetendo a prazeres que o Catolicismo, mais tarde, chamou de Sete Pecados Captais. A paisagem é paradisíaca, num bosque acolhedor e belo, numa dimensão metafísica, onde a Natureza e a rebeldia desta não prosperam. O chão é salpicado de flores silvestres, num “carpete” que convida ao descanso. Podemos ouvir os barulhos do bosque, como pássaros cantando, em uma melodia de Paz. Há seis figuras femininas no quadro, coroadas com flores e vestindo vestes clássicas, e podemos imaginar como PW obteve modelos vivas para construir esta obra – será que foi a mesma modelo para todas estas figuras pintadas? Uma mulher oferece um jarro, provavelmente de vinho, ao deus, no prazer dionisíaco da embriaguez, do modo como a invenção do vinho é tão antiga, tão ancestral na Humanidade. Outra mulher deita-se de modo a esconder seu próprio rosto na grama, talvez envergonhada, talvez chorando, ou talvez simplesmente dormindo, embriagada pelo conforto deste bosque tão edeníaco. Há apenas uma mulher de pé, e ela rechaça o deus, fazendo um gesto de renúncia, talvez representando a Igreja, negando as raízes clássicas do Ocidente. Esta mulher não quer oferecer algo a Pã, e destaca-se no quadro por sua pose em pé, não se deixando embriagar pelos prazeres capitais, num PW disciplinado, que encarava com seriedade e profissionalismo o próprio ofício. Uma das mulheres tapa os próprios olhos, como se não quisesse ver o deus, como um Édipo, que perdeu os próprios olhos por amar a própria mãe. Esta mulher “cega” não quer ver nem o deus, nem o bosque, e parece estar esperando por este momento passar, desinteressando-se pelo Paganismo. Outra mulher está de costas para o deus, e isto é uma renúncia, uma oposição, de alguém alheio a esta cena de oferenda. A mulher restante está com um olhar distraído, como se sua mente estivesse em outra dimensão, e esta mulher parece estar completamente entediada, alheia, morrendo de tédio e não fazendo parte ativa na cena. Em frente à imagem do deus, uma oferenda queimando, espalhando uma fumaça pestilenta pela pureza deste bosque. Alguns degraus conduzem ao ponto da oferenda, e os degraus são o caminho de depuração, de evolução moral e espiritual, e o Pã aqui não representa este apuro, bem pelo contrário; representa o Id, o princípio do prazer, como tirar uma boa soneca ou comer um bom doce. Como diz Tao, não há nada de errado em ser preguiçoso, pois a Preguiça leva ao Minimalismo, à Limpeza, ao Essencial. Apesar de fazer parte do título deste quadro, o deus Pã tem um papel secundário na cena. As mulheres e o bosque em si são os protagonistas, e este jardim não parece ter fim, num mundo tão repleto de Paz. Tudo aqui parece respirar em um só ritmo, e a beleza das mulheres funde-se com a beleza do bosque, numa cena tão rica em beleza. As flores brancas juntam-se às vestes claras das mulheres, numa identidade feminina. Mas, se tivéssemos que delinear o maior destaque desta obra, seria a mulher de pé, a qual parece lutar contra o deus endiabrado, mostrando a vitória da Virtude sobre a Malícia, como uma Nossa Senhora esmagando espontaneamente com os pés uma serpente. É um quadro de clara renúncia a algo. A mulher que renuncia está farta, saciada, na sabedoria de alguém que sabe quando tem o suficiente.


Acima, Tempora Mutantur, 1898. O casal de colonos trabalhando duro na roça. A mulher olha para os irremediáveis calos nas mãos, lamentando por não ter mãos de dama. Há aqui uma breve pausa no trabalho árduo, num brevíssimo intervalo. O homem calvo, datado pela passagem do tempo, olha para o nada, cansado, numa vida muito dura, que exige o máximo do trabalhador. Esta pintura foi há vários anos capa do guia telefônico do Nordeste do RS, ou seja, da Serra Gaúcha, num uso muito pertinente da obra, a qual ilustra o trabalho duríssimo que os colonos tiveram que empreender ao chegar nas terras devolutas serranas. A paisagem é cinzenta, incerta, pesada, e não temos aqui a alegria de um dia ensolarado, num Céu de Brigadeiro. Temos a dúvida existencial, numa vida toda dedicada ao labor, algo que acabou por marcar para sempre a cultura do descendente de colono, criando um culto ao trabalho, ao trabalho arduosíssimo, ardido, dolorido, na máxima: “Vá carpir um lote”. Como diz Maria Callas na peça Master Class, com Marília Pêra: duvido que você vá obter sucesso se não se dedicar ao má-xi-mo. As costas do homem estão curvadas, cansadas, na humildade de quem se curva perante a necessidade de labor contínuo, e o colono só não trabalhava no domingo porque a religião não permitia. As árvores estão cortadas para que deem lugar à lavoura, numa época em que o apelo da Ecologia ainda não existia. A roça está impecavelmente arada, preparada para a semente, na fertilidade da mente de PW, sempre imaginando cenas dignas de Arte. É um dia cinzento e frio, e o casal está aquecido pelo labor braçal. Ao fundo, vemos duas casas, talvez expelindo fumaça de suas chaminés, e podemos sentir no ar o agradável cheiro de madeira queimada, no aconchego de um lar com um fogão a lenha, com a família reunida ao redor do fogo, comendo e contanto histórias – a vida rural tem lá seus encantos. O longo cabo da enxada do homem é retilíneo, e representa o simples objetivo do trabalho: laborar para obter frutos. O colono, ao chegar na terra virgem, tinha todo um sonho, um objetivo, e o trabalho é o instrumento para se atingir tal meta – o colono não trabalhava a toa, sem metas. A roda, no canto direito inferior, rodando, é a passagem do Tempo, numa vida dedicada ao solo, à roça, e é um instrumento que é testemunha do esforço, num PW trabalhador em cada uma de suas pinceladas. PW mostra maestria ao delinear a vegetação, seja em plantas mais em primeiro plano, seja em último plano. As árvores cortadas trazem algo tolhido, castrado, num colono que não conseguiu concretizar todos os seus sonhos, tendo que se contentar com algum conforto, acordando muito cedo de manhã, num PW disciplinado, produtivo. Este é um quadro triste, mas não melancólico. O lenço vermelho da mulher é a Feminilidade, e é difícil ser feminina em um contexto laborioso tão duro, tão exigente. O colono tinha que se fazer forte se quisesse sobreviver, e um artista tem que saber se reinventar se quiser sobreviver, pois o importante na Vida é sobreviver a inúmeras hecatombes nucleares – o Mundo é dos fortes, e o colono se fez forte. Atrás da mulher vemos um pedaço de um córrego, na passagem da água, que tudo lava, que tudo de ruim leva embora. É uma vida de poucos prazeres, e molhar os pés no rio é um desses deleites. A mulher já não mais sustenta sonhos de morar na cidade, de ter uma vida urbana e sofisticada – ela está contentada com sua vida rural. Eles voltam para casa famintos após o dia de trabalho, e comer é um dos poucos prazeres dessa vida, marcando para sempre a Gastronomia Colonial. A terra devidamente arada tem um papel de destaque na cena, virando um personagem, tornando-se o motivo de orgulho do casal de camponeses. Provavelmente os filhos deles cresceram e saíram de casa, deixando o casal a sós, exatamente como os dois o foram quando recém-casados. A terra sulcada faz metáfora com os calos da mulher, e a terra é de um marrom cinzento que traz toda a seriedade e discrição de uma vida de esmero. E podemos ouvir o som dos quero-queros ao fundo, numa cena tão rural.

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