Acredito muito que exista uma Divina
Providência, que tece as vidas das pessoas e as faz passar umas pelas vidas das
outras, com lições sendo ensinadas e aprendidas. É claro que estou usando nomes
fictícios, pois minha intenção não é expor pessoa alguma. São histórias de
pessoas que enfrentaram episódios difíceis em suas vidas, seja por drogas, seja
por doenças não relacionadas a drogas, sendo que estas estão entranhadas na
questão da segurança pública.
Ângela era alcoólatra, e era também uma pessoa sensível –
escrevia poesia, tendo até sido vencedora em um concurso literário de poesia na
cidade. Ela acordava cedo e ia sozinha para a cozinha tomar café e escrever –
claro que junto com o café ela colocava alguma bebida alcoólica, provavelmente
graspa, pois o alcoólatra precisa beber logo que acorda para se sentir estável,
para “firmar o pulso”. Seu marido não era muito gentil, pois, ao interná-la,
perguntou na recepção da clínica:
- Tem vaga para uma bêbada?
A família de Ângela foi marcada por uma tragédia. Sua neta,
de apenas três anos de idade, morreu em um acidente. A menina foi brincar de se
esconder e foi para trás da roda traseira do caminhão do genro de Ângela, o
qual, sem saber, ligou o motor, deu a ré e matou a menina. Lembro-me de Ângela
falando com muito carinho da neta, de como a menininha gostava de se arrumar. A
família de Ângela até tolerou alguns meses de luto, e deixou Ângela beber à
vontade. Mas tudo tem limite.
Ângela sempre carregava consigo seu caderno de poesias, e
até fez um poema para mim, no qual me chamou de “anjo crescido”. Pessoa de bom
coração, prestava solidariedade para pessoas que também passavam por momentos
duros.
Anos depois vi Ângela em uma reportagem no jornal, que
mostrava todos os cadernos de poesia dela. Em outra ocasião, vi-a na TV. Nunca
vou me esquecer que ela me beijou o rosto. Meu anjo amigo! Sempre terei dela.
Ângela sofre um pouco com o estigma do alcoólatra.
Antigamente, o alcoolismo era tido como um desvio de conduta:
- O fulano é um safado, que fica bebendo.
Hoje em dia, o alcoolismo começa a ser visto como uma doença,
inclusive genética. E, como doença, precisa de tratamento. Tem uma pessoa, que
já faleceu, que foi da minha família. Ele era alcoólatra, mas na época em que
isso era visto como defeito moral.
Sempre há desculpa para um alcoólatra beber:
- Hoje estou feliz. Então, vou beber!
- Hoje estou triste. Então, vou beber.
Há o samba enredo que diz:
- Hoje eu vou tomar um porre. Não me socorre que eu estou
feliz.
Uma psiquiatra me disse que tomar um ou dois copos, para
confraternizar e brindar, não tem problema. O problema vem com as doses a
seguir. Uma pessoa embriagada é patética. Como a moderação é um dos pilares do
taoismo, diz o slogan de propaganda de cerveja:
- Beba com moderação.
Mas o “pegar leve” aplica-se a tudo. Em política, por
exemplo, não compreendo as alas “xiitas” dos partidos. Acredito em diálogo, em
elegância, em harmonia. E
é esse equilíbrio que falta na vida do alcoólatra, pois a bebida apodera-se da
pessoa. Escravidão.
Breno era um rapaz alto e bonito, com um sorriso luminoso.
Nunca vou esquecer do “bom dia” que ele me deu sorrindo. Ele disse que seu problema
era com crack, mas, como eu era ignorante, eu não sabia na época o que era
crack nem tinha consciência dos poderes devastadores dessa droga, que é um
subproduto da cocaína. Meses depois de conhecer Breno deparo-me com a manchete
no jornal: “Jovem viciado morre ao fugir de casa”. Aconteceu que Breno era
mantido como prisioneiro dentro da própria casa, a única alternativa que a
família encontrou para evitar que o rapaz recaísse no crack. Inclusive, no seu
quarto, que ficava no segundo ou terceiro andar da residência, não havia
lençóis, só um edredom, para evitar que Breno fizesse uma corda com os lençóis
e fugisse. Inclusive a família até estava pensando em se mudar de bairro, para
que Breno pudesse começar uma vida nova.
Mas o desejo por mais uma dose de crack, ânsia que pode ser
despertada com uma simples fumaça de ônibus, é tão implacável que, numa noite,
absolutamente obcecado em “fumar pedra” - termo informal para o uso do crack -,
Breno desparafusou uma das portas de seu armário e, com a porta, teve a
intenção fazer uma ponte entre a janela de seu quarto e o muro ao lado. Mas,
quando já estava em cima da ponte improvisada, a peça se desequilibrou e Breno
veio ao chão, fraturando a cabeça e morrendo com o impacto. A família estava
sofrendo tanto com a dependência química que o pai de Breno chegou a declarar
ao repórter do jornal que tinha sido um alívio o filho ter morrido. Segundo o
Espiritismo, os dependentes químicos, quando morrem, vão a uma dimensão de
sofrimento, pois não querem se desapegar do vício. Tudo o que espero é que Breno
esteja encaminhado, aprendendo que as drogas são um mal nefasto. A verdade é
que o crack é um pé na cova. Tenho pavor de drogas. Malditas sejam. Breno, tenha
força, pois os fortes sofrem menos. Tenha paz!
Outro doce de pessoa que conheci foi Josie. Ela tinha
problema com drogas, mas tinha uma personalidade meio infantil, zombando dos
psiquiatras que queriam ajudá-la. Josie gostava de uma conversa descontraída e,
certa vez, via-a tomando um suco de mamão. E disse a ela:
- Deve ser bem gostoso esse suco, não? – e ela disse que
sim. Então, afastou-se e ficou fora da sala por alguns minutos. Depois ela
voltou com um copo cheio de suco de mamão e me deu a bebida! Isso só pode ser
feito por uma pessoa de bom coração. Mas só coração não adianta, Josie: tens
que te tratar da dependência química. Tens que sair dessa, amiga! Use a cabeça!
Peter era um gurizão de 19 anos de idade que estava com
Parkinson por causa do abuso de cocaína. Quando a crise estourou, Peter sequer
conseguia conversar normalmente. A sequela também o deixou com a audição
consideravelmente debilitada. Ele estava com incontinência urinária. Estava
péssimo. Mas, depois de alguns dias tomando a medicação apropriada, Peter mudou
da água para o vinho – a incontinência parou e ele conseguia conversar e
raciocinar. Quando começou a voltar à lucidez, decidiu que, findada a
internação psiquiátrica, queria ir trabalhar com o próprio pai, que era dono de
um negócio. Sempre amigo e receptivo, Peter conseguiu dar a volta por cima e
superar o descaminho. Gente fina o cara.
João é um senhor absolutamente sequelado pela cocaína. Ele
simplesmente tem que morar numa clínica psiquiátrica, ficando impedido de sair
e de viver sua vida no mundo lá fora. Por muitas vezes, ele recebeu alta do
hospital e, no mesmo dia, partia em busca da droga. Fazia coisas inacreditáveis
para sustentar o vício, como, por exemplo, pedir dinheiro para pessoas as
quais, com pena, davam-lhe recursos sem saber que o valor era para consumir
droga. Nunca vou me esquecer de João, um exemplo de como a droga pode ser
imperativamente destrutiva. Se bem que ele está tão sequelado que creio não tem
plena consciência de que é um prisioneiro de si mesmo. Maldito pó.
A história de Beatriz nada tem a ver com drogas. Beatriz
era uma menina linda, uma Barbie. Tinha olhos azuis e cabelo cacheado, uma
boneca. Só que era anoréxica bulímica. Ela chegara a um ponto em que os pais
dela não tiveram outra alternativa se não interná-la imediatamente – Beatriz
não estava comendo coisa alguma havia dias e chegou ao ponto nem de tomar água,
porque achava que a água a engordava com retenção de líquidos. Ou Beatriz seria
internada ou morreria. Beatriz sequer tomava um chazinho sem açúcar, e tudo
para ela era ruim. Ela ia ao telefone e dizia incessantemente:
- Mãe, vem me buscar. Vem me buscar.
É claro que a mãe dela devia dizer algo como:
- Eu quero que tu te trates, te recuperes, fiques bem e aí
tu vais voltar para casa.
Beatriz provavelmente teve que receber soro na veia para
não morrer. O problema são os cruéis padrões de beleza da sociedade machista de
consumo, no qual uma mulher, para se sentir atraente, tem que submeter ao
doloroso processo de enxertos de silicone no tórax. E a indústria da moda prega
o padrão de beleza esquálido como sinônimo de sensualidade. As meninas são afetadas
por tudo isso, e a autoestima da mulher fica metralhada. É só observar as
vitrines do varejo – manequins com proporções fetais, com meninas que, para
trabalhar como modelo, precisam ser subnutridas. É um horror. As mulheres
precisam reagir a tudo isso, e Beatriz precisa saber que é uma menina linda,
que não precisa demonizar os alimentos essenciais à vida. A ditadura da magreza
quase fez de Beatriz uma vítima.
Rubem estava viciado em loló. A droga já estava começando a comprometer o
seu controle neurológico. Infelizmente Rubem era rebelde, e não tomava o
remédio prescrito pelo médico. Quando tomava o remédio direitinho, era outra
pessoa: calmo e reservado. Só que com a ausência do remédio, o desejo pela
droga ficou grande e incontrolável. Não sei como Rubem está hoje, ou se ainda
está vivo. Só sei que a crise de abstinência pode ser excruciante, seja por
álcool ou drogas.
Paulo tinha problema com cocaína. Antes de baixar no
hospital, foi a um centro espírita, e lá disseram-lhe que ele deveria se
internar. Sua família estava em dificuldades financeiras, e Paulo só podia ser
atendido pelo SUS. A família de Paulo era respeitada na cidade, mas a ruína
financeira ficou inevitável. Inclusive o pai dele faleceu enquanto Paulo estava
internado, e este recebeu permissão para ir ao funeral. Paulo explicou-me que a
abstinência de cocaína é bem complicada - a pessoa fica com a sensação de que
não dorme há dias.
Alexandre ficava o tempo todo em seu quarto, e fazia as
refeições ali mesmo, isolado, sem interagir com as outras pessoas que o
cercavam. Suas unhas estavam enormes, pois sua autoestima estava em baixa,
desanimando-o a se cuidar e se gostar. Mas começou a evoluir passou a fazer as
refeições com as outras pessoas. Cortou as unhas. Alexandre recuperou-se e
voltou para casa.
Tem uma pessoa que vive pelas ruas como um mendigo, o
Jefferson, mas ele não é indigente qualquer: tem nome, sobrenome, casa e
família. Teve educação em colégio, mas ainda jovem conheceu a maconha, e hoje
não sei se consome outras drogas. Jefferson simplesmente quer, com todas as
suas forças, viver na rua. Ele já foi internado inúmeras vezes, mas sempre
volta às ruas como um mendigo. Não sei qual é o problema dele. É certo dizer
que ele virou mendigo por não gostar de seguir regras, pois, em casas de
acolhimento, há regras e horários para tudo: hora para o banho (obrigatório),
hora para dormir, hora para acordar, hora para as refeições, e tem que cortar
unhas e cabelos e fazer a barba. Jefferson se tornou refratário. A família não
sabe mais o que fazer.
Oscar, outra pessoa que conheci, é
alcoólatra e narcodependente de maconha e cocaína. Ia à boca na qual adquiria o
pó, e me descreveu que, ao lado da mesa na qual a traficante colocava os
papelotes prontos para a venda, havia uma criança pequena que via tudo. Um
tempo depois, Oscar voltou à boca e a traficante tinha sido presa, e a criança
provavelmente fora levada ao Conselho Tutelar. Não sei como Oscar está hoje, se
está limpo, se está bem. Nem sei se tem consciência de que as drogas são
miragens e de que elas anuviam o pensamento.
As vicissitudes fazem com que a pessoa cresça. Nenhuma dor
é em vão. A
vida nos oferece diariamente lições a serem aprendidas. Nós somos pessoas muito
melhores do que éramos há anos atrás. É para frente que se anda. Tive uma
terapeuta que me disse que as crises são positivas. Sim, a crise assinala um
ponto de renovação na vida da pessoa. Só que a crise não é superada se a pessoa
acha que a culpa é dos outros, que a culpa é do mundo. A pessoa tem que SER,
independente de onde ESTÁ. Sendo assim, o indivíduo passa a fazer as pazes com
o mundo. O problema é que os sinais auspiciosos iludem e ludibriam, e há
pessoas que caem nessa teia. Essa inclinação às drogas é do espírito em particular. A pessoa
nasce assim, com todo um cronograma espiritual de obstáculos a serem superados
com elegância olímpica. Antes de encarnar, a pessoa sabe o que vai enfrentar. Pois,
sem dificuldades, não há crescimento. A dor é necessária. Mas o sofrimento por
essa dor é desnecessário. No sentido de que a pessoa não precisa ter pena de si
mesma. Avante, amigo! Coloque os pés no chão e faça como o Espiritismo diz:
- Mortifique-se contra ilusões. Desvencilhe-se de bobagens.
Faça uso da razão.
As drogas e o álcool são tentadoras rotas de fuga. Fugir do
quê? Da inevitável dureza da vida. Esse “canto da sereia” seduz e agrilhoa
almas. O espírito tem que aprender a se desiludir, desprezando as drogas. Uma
pessoa me disse:
- Depois da noite mais escura, vem o dia mais lindo.
Vai passar! Não se esqueça de que você tem um anjo da
guarda, alguém totalmente debruçado sobre você. Tenha garra, pois, como dizia
minha amada avó, a vida é luta renhida. A própria Dercy Gonçalo, digo,
Gonçalves em uma entrevista:
- Dercy, o que é a vida? – perguntou o repórter.
- A vida é luta – disse a estrela.
Não existe momento algum na vida em
que você poderá achar que alcançou a perfeição e que não mais precisa tocar a
vida para a frente, como se houvesse um “piloto automático”. “You keep moving
on”, como diz o clássico da Broadway “Move On”: mantenha-se caminhando*. Não
pare. A vida é luta igual para todos, e não é diferente com você. Como diz o
slogan do uísque:
- *Keep walking.
E repito: beba com moderação.
A pessoa em dificuldade tem que ter humildade para admitir
ser ajudada. Ninguém consegue tudo sozinho. A arrogância leva ao isolamento.
Muita lucidez, mum estilo bom de se ler. Continue nos brindando, Gonçalo.
ResponderExcluirBelo texto Gonçalo! Parabéns!
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