quarta-feira, 20 de abril de 2016

Desvirginando Elizabeth I




            Tudo o que falo a seguir é baseado em filmes, programas de TV e textos na internet que abordam a dinastia Tudor da Inglaterra. Não sou historiador. Sou admirador desse período. Até fui um bom aluno de História no colégio, ao contrário de Matemática.

            Antes de falar de Bess, apelido da rainha Elizabeth I, tipo Di para Diana, é preciso falar do pai daquela, o rei Henrique VIII, um homem corajoso. Na era deste rei, a Igreja Católica Apostólica Romana estava emergindo de um contexto medieval, no qual a Igreja e o Vaticano eram absolutamente tudo na Europa, a qual começara a ficar dividida por essa questão religiosa de católicos versus protestantes. Nem a então toda poderosa Espanha ousava contradizer o Papa, e a Era das Navegações começava competitivamente – a Europa ambicionava a América. Os protestantes eram perseguidos e executados, acusados da mais alta heresia. Era inaceitável para o catolicismo a crença protestante de não ter a Virgem Maria, numa “faxina” religiosa parecida com a de Aquenáton no Antigo Egito, amaldiçoado rei também acusado de heresia. Henrique, ou Henry, estava descontente com seu primeiro casamento com uma mulher católica, união da qual nasceu Mary Tudor. Querendo casar de novo, sempre com a obsessão de colocar no mundo um herdeiro do sexo masculino, Henry deparou-se com a negativa do Vaticano em matéria de divórcio. Sem se deixar intimidar, Fernando Henrique, digo, Henrique VIII “mostra para o Papa o dedo do meio” e funda a Igreja Anglicana, autoproclamando-se líder da nova fé inglesa – o rei, que foi o primeiro anglicano, rompe com o trono de São Pedro. Foi um escândalo na Europa. O rei fez valer a independência da própria coroa: era tudo ou nada – quem não gostasse da autonomia do rei, que se ferrasse.

            O rei, então, casa-se de novo, com Ana Bolena, e da união nasce Elizabeth, numa época em que a mortalidade infantil era alta e a expectativa de vida era baixa, explicação para Henry ter tido só três filhos que chegaram à idade adulta. “The king” foi frio quando viu que não era um menino que nascera de Ana, e sua relação com esta desgastou-se ao máximo: Bolena acaba sendo julgada e condenada por adultério e traição, e é executada oficialmente, sendo que até hoje os historiadores não sabem se foi uma condenação justa. Ao todo, Henry teve seis esposas, uma de cada vez, sempre fazendo uso da prerrogativa de anulação de casamento, impensável na Igreja Católica, a qual diz que o que Deus une, o homem não separa. Com uma de suas esposas, o rei tem o tão desejado herdeiro homem, Eduardo, o qual assume o trono com a morte do pai mas morre pouco tempo depois, deixando o trono vago para Mary Tudor, que se revelou uma católica cruel e estabeleceu:
- Só há uma fé verdadeira. O resto é heresia.
Foi uma “contra faxina”. Mary faltou com o respeito à liberdade de pensamento e à tolerância pela diversidade. Uma medíocre.Uma ditadora.

Desculpe-me pelo termo que vou usar aqui, mas Mary, a sanguinolenta, foi uma sacana: buscou restaurar o catolicismo na Inglaterra, quase botando a perder todo o legado do pai, o qual lutou a vida inteira pela soberania inglesa. Mary estabeleceu que todos os ingleses que não eram católicos teriam que ser exemplarmente executados, muitas vezes queimados vivos em uma fogueira, numa crueldade que até começou a corroer a popularidade de Mary. Nessa febre em prol do Vaticano, Mary chegou a mandar prender a irmã Elizabeth, a qual era suspeita de, dentro de si mesma, não seguir a religião católica e desprezar a coroa. Bess, apesar de frequentar missas católicas, ficou três meses presa na terrível Torre, desconfortabilíssimo presídio de Londres.

O casamento de Mary com o rei da Espanha foi arranjado, numa política que fazia da Inglaterra um mero quintal subordinado à tão rica e militarmente temida nação espanhola. O casal nunca se deitou junto, e Mary surtou: teve uma gravidez psicológica e, como era católica fervorosa, achou que se tratava de uma imaculada conceição. Na verdade, era um tumor no abdome. Mary também sofria de homéricas crises de enxaqueca, numa época em que não existia uma aspirinazinha. Apesar da pressão em nome da execução de Elizabeth, Mary resistiu à ideia até o fim, nunca tendo coragem de assinar a pena de morte da própria meia-irmã. À sofrida morte de Mary pelo câncer, o rei da Espanha até propôs anular o casamento não consumado e quis casar-se com Bess, mas esta negou, pois isso daria continuidade à política estatal da meia irmã católica. Inclusive, Elizabeth, durante toda sua vida, foi uma feminista, não aceitando a possibilidade de ficar na sombra de qualquer homem, tendo no máximo amantes – a altivez da soberana entrou em harmonia com a soberania inglesa. A rainha torna-se símbolo de algo grande, fundindo-se com Nossa Senhora e Ísis no imaginário popular arquetípico. É uma personagem sobrenatural, centro da História da Inglaterra. A vogue da época era o Renascimento italiano, a moda suprema na Europa. O mundo despedia-se na Idade Média. Elizabeth percebeu os arautos renascentistas de renovação – era moderno, inédito e atual. E Itália, Espanha, Portugal e França estavam no auge – era conotação chique ser latino, visto que Bess falava francês fluentemente.

Elizabeth Tudor não nasceu favorita, e por algum tempo foi considerada filha bastarda do rei – parecia que jamais tornar-se-ia alguma coisa importante. A predileção do rei era, claro, o filho homem, sendo que Mary, então, era o resto. Seguindo a lógica, Bess era o resto do resto, e tornou-se tudo o que se tornou – esta foi subestimada. E só aquele que é subestimado pode surpreender – isso é o que o taoísmo fala, numa doutrina que ensina como governar, sempre primando pela harmonia e só recorrendo à guerra quando os caminhos diplomáticos estão completamente sem efeitos. Disse Henrique VIII:
- O mundo precisa saber que somos uma nação pacífica mas que iremos à guerra se formos provocados.
A era elizabetana foi, em geral, uma época de paz, com um povo que passara a confiar profundamente em sua regente mulher. A prosperidade tomou conta do reino. O inglês creu em si mesmo. Uma nação unida na luz de uma sábia.

Bess incentivou a dramaturgia e estimulou a produção teatral, sendo contemporânea do seu súdito William Shakespeare – o teatro inglês respira até hoje os ares dessa época, com um dos autores mais conhecidos e encenados do mundo – quiçá o maior de todos. A rainha também encorajou a produção de pensamento, fundando universidades, os colleges, os quais visitava periodicamente com empolgação – é claro que, naquele tempo, as instituições de ensino eram exclusivas aos homens, assim como nos palcos teatrais, sendo que atores faziam os papéis femininos, algo muito bem mostrado no filme “Shakespeare Apaixonado”, no qual a personagem de Gwyneth Paltrow tem que disfarçar os próprios seios para pisar no palco. Só séculos depois, com Margaret Thatcher, a Inglaterra viu uma mulher quebrar a hegemonia masculina, em um ambiente só de homens no poder do país, diferente da rainha Vitória, que não era infiltrada no “Clube do Bolinha”. E, inclusive, a tradição dos colleges ingleses serviu de inspiração na criação do universo do personagem bruxinho Harry Potter.
- Os americanos não sabem o valor da tradição – diz a conservadora personagem inglesa de Maggie Smith na série de TV “Downton Abbey”.
- Oh, sim, sabemos o valor. Mas não somos escravos da tradição – respondeu a personagem americana de Shirley MacLaine.

Quando ascendeu ao trono, Bess encontrou uma Inglaterra financeiramente falida, sem exército nem poder de mando na Europa – os ingleses eram uma espécie de Terceiro Mundo. Quando morreu, a Inglaterra era a nação mais rica e poderosa do continente: o mundo passa a respeitar profundamente a terra do rio Tâmisa. Um marco de seu reinado foi a vitória sobre a assim chamada “Invencível Armada Espanhola”, símbolo do poder e da arrogância da supernação que era a Espanha, seguida de Portugal, as duas grandes potências navegadoras da época. Ao encorajar o próprio exército antes do conflito, a rainha discursou:
- Eu posso ser uma mulher, mas tenho a coragem e o estômago de um rei!
Uma espécie de Joana D’Arc. Será que Elizabeth Arden, digo, Tudor tornar-se-ia santa se fosse católica?

Bess sobreviveu a várias conspirações contra sua vida, tecidas por pessoas ávidas por seu trono, como na Espanha ou no Vaticano, que chamavam-na de “a prostituta bastarda herege que ocupa desmerecidamente o trono” – Bess enfrentou impopularidade entre seus rivais, é claro. Uma dessas conspirações foi de sua própria prima, Mary Stuart, a rainha católica da Escócia. A conspiração foi comprovada e Mary Stuart presa. Esse foi o momento mais duro da vida de Elizabeth: Stuart não foi poupada da complicada execução. A prima escocesa mostrou-se orgulhosa e irredutível, e decidiu que queria ser executada para virar mártir da Igreja Católica. Elizabeth viu-se obrigada a assinar o documento de execução, mas só foi notificada da decapitação após a machadada capital. Liz ficou possessa pela execução não ter-lhe sido informada antes, a ela, a rainha da Inglaterra, e chegou a prender o responsável pela insubordinação. Imagine você ter que matar o seu próprio primo: não acontece em qualquer família. Como são infelizes esses jogos de tronos, na obsessão humana por poder. A simplicidade de Jesus Cristo flutua acima do mundanismo. Aquele que não quer trono, reina.

A figura de Elizabeth Windsor, digo, Tudor rendeu vários filmes, interpretada por grandes atrizes como Bette Davis, Judi Dench, Cate Blanchett e Helen Mirren, entre outras. Bess realmente foi excepcional, e navegou acima de mediocridades. Não deve ser fácil ser herdeiro do trono da Inglaterra. O povo inglês e o mundo ficam com a expectativa de vir uma nova Era de Ouro elizabetana. Sentar no mesmo trono de Bess pode ser “overwealming”, termo em inglês que quer dizer “assoberbante”. Não é a todo momento que grandes talentos estadistas são revelados. Mas, como a verdade é filha do tempo, só anos depois da morte da rainha é que o mundo deu-se conta da total importância da regente, do mesmo modo como demorou ser reconhecida a divindade de Jesus. O reinado de Elizabeth segue emblematicamente entranhado na tradição inglesa. Até hoje este país alimenta-se da dignidade elizabetana, fascinando o mundo de forma incessante durante os séculos – todas as nações do mundo querem ter em suas respectivas histórias uma semelhança com o brilho dessa era.

Os colonizadores ingleses, ao pisarem na América, batizaram um estado de “Virginia”, em homenagem à rainha. É claro que este título de intocabilidade sexual partiu do povo – Elizabeth não impôs decreto algum obrigando os cidadãos a chamarem-na de “rainha virgem”. Mas, o que tinha de carismática, tinha de autoritária, um ícone do absolutismo, tendo que se colocar em mundo tão sexista, no qual uma mulher, para ser considerada uma dama, tem que ser absolutamente passiva, algo impossível para o feminismo. Elizabeth venceu percalços e fez a Inglaterra superar dificuldades também. Foi uma vida de dedicação, com décadas de reinado, uma aula de bom uso do poder. Uma construção tijolo a tijolo. Uma digna estadista.

A altivez de Thatcher na Guerra das Malvinas assemelhou-se com a de Elizabeth na guerra contra a Invencível Armada. Em um momento do filme “A Dama de Ferro”, Margaret, interpretada por Meryl Streep, usa uma blusa com uma gola de claro estilo de Isabel, equivalente latino para o nome “Elizabeth”, a qual respeitou o próprio pai e consolidou a igreja inglesa. Disse Moisés:
- Honrarás pai e mãe.

É claro que é um baita cartão de visitas ser herdeiro do fulano, mas o herdeiro tem que provar ter “autonomia de voo” e conquistar, por si, o respeito de outrem. A cantora Maria Rita, por exemplo: não é fácil ser comparada com Elis Rainha, digo, Regina. Maria Tudor, digo, Stuart, digo, Rita teve que se mostrar competente no que faz. Certamente, ser filha do rei Arthur, digo, Henrique VIII ajudou e atrapalhou Liz, numa natural contradição. E o peso de uma coroa sobre a cabeça pode ser espinhoso. Feliz e lúcido o rei que não se importa com o luxo à sua volta.

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