Tudo o que falo a seguir é baseado
em filmes, programas de TV e textos na internet que abordam a dinastia Tudor da
Inglaterra. Não sou historiador. Sou admirador desse período. Até fui um bom
aluno de História no colégio, ao contrário de Matemática.
Antes de falar de Bess, apelido da
rainha Elizabeth I, tipo Di para Diana, é preciso falar do pai daquela, o rei
Henrique VIII, um homem corajoso. Na era deste rei, a Igreja Católica
Apostólica Romana estava emergindo de um contexto medieval, no qual a Igreja e
o Vaticano eram absolutamente tudo na Europa, a qual começara a ficar dividida
por essa questão religiosa de católicos versus
protestantes. Nem a então toda poderosa Espanha ousava contradizer o Papa, e a
Era das Navegações começava competitivamente – a Europa ambicionava a América.
Os protestantes eram perseguidos e executados, acusados da mais alta heresia.
Era inaceitável para o catolicismo a crença protestante de não ter a Virgem
Maria, numa “faxina” religiosa parecida com a de Aquenáton no Antigo Egito, amaldiçoado
rei também acusado de heresia. Henrique, ou Henry, estava descontente com seu
primeiro casamento com uma mulher católica, união da qual nasceu Mary Tudor. Querendo
casar de novo, sempre com a obsessão de colocar no mundo um herdeiro do sexo
masculino, Henry deparou-se com a negativa do Vaticano em matéria de divórcio.
Sem se deixar intimidar, Fernando Henrique, digo, Henrique VIII “mostra para o
Papa o dedo do meio” e funda a Igreja Anglicana, autoproclamando-se líder da
nova fé inglesa – o rei, que foi o primeiro anglicano, rompe com o trono de São
Pedro. Foi um escândalo na Europa. O rei fez valer a independência da própria
coroa: era tudo ou nada – quem não gostasse da autonomia do rei, que se
ferrasse.
O rei, então, casa-se de novo, com
Ana Bolena, e da união nasce Elizabeth, numa época em que a mortalidade
infantil era alta e a expectativa de vida era baixa, explicação para Henry ter
tido só três filhos que chegaram à idade adulta. “The king” foi frio quando viu
que não era um menino que nascera de Ana, e sua relação com esta desgastou-se
ao máximo: Bolena acaba sendo julgada e condenada por adultério e traição, e é
executada oficialmente, sendo que até hoje os historiadores não sabem se foi
uma condenação justa. Ao todo, Henry teve seis esposas, uma de cada vez, sempre
fazendo uso da prerrogativa de anulação de casamento, impensável na Igreja
Católica, a qual diz que o que Deus une, o homem não separa. Com uma de suas
esposas, o rei tem o tão desejado herdeiro homem, Eduardo, o qual assume o
trono com a morte do pai mas morre pouco tempo depois, deixando o trono vago
para Mary Tudor, que se revelou uma católica cruel e estabeleceu:
- Só há uma fé verdadeira. O resto é heresia.
Foi uma “contra faxina”. Mary faltou com o respeito à
liberdade de pensamento e à tolerância pela diversidade. Uma medíocre.Uma
ditadora.
Desculpe-me pelo termo que vou usar aqui, mas Mary, a
sanguinolenta, foi uma sacana: buscou restaurar o catolicismo na Inglaterra,
quase botando a perder todo o legado do pai, o qual lutou a vida inteira pela
soberania inglesa. Mary estabeleceu que todos os ingleses que não eram
católicos teriam que ser exemplarmente executados, muitas vezes queimados vivos
em uma fogueira, numa crueldade que até começou a corroer a popularidade de
Mary. Nessa febre em prol do Vaticano, Mary chegou a mandar prender a irmã
Elizabeth, a qual era suspeita de, dentro de si mesma, não seguir a religião católica
e desprezar a coroa. Bess, apesar de frequentar missas católicas, ficou três
meses presa na terrível Torre, desconfortabilíssimo presídio de Londres.
O casamento de Mary com o rei da Espanha foi arranjado,
numa política que fazia da Inglaterra um mero quintal subordinado à tão rica e
militarmente temida nação espanhola. O casal nunca se deitou junto, e Mary
surtou: teve uma gravidez psicológica e, como era católica fervorosa, achou que
se tratava de uma imaculada conceição. Na verdade, era um tumor no abdome. Mary
também sofria de homéricas crises de enxaqueca, numa época em que não existia uma aspirinazinha. Apesar da pressão em
nome da execução de Elizabeth, Mary resistiu à ideia até o fim, nunca tendo
coragem de assinar a pena de morte da própria meia-irmã. À sofrida morte de
Mary pelo câncer, o rei da Espanha até propôs anular o casamento não consumado
e quis casar-se com Bess, mas esta negou, pois isso daria continuidade à
política estatal da meia irmã católica. Inclusive, Elizabeth, durante toda sua
vida, foi uma feminista, não aceitando a possibilidade de ficar na sombra de
qualquer homem, tendo no máximo amantes – a altivez da soberana entrou em harmonia
com a soberania inglesa. A rainha torna-se símbolo de algo grande, fundindo-se
com Nossa Senhora e Ísis no imaginário popular arquetípico. É uma personagem
sobrenatural, centro da História da Inglaterra. A vogue da época era o
Renascimento italiano, a moda suprema na Europa. O mundo despedia-se na Idade
Média. Elizabeth percebeu os arautos renascentistas de renovação – era moderno,
inédito e atual. E Itália, Espanha, Portugal e França estavam no auge – era conotação
chique ser latino, visto que Bess falava francês fluentemente.
Elizabeth Tudor não nasceu favorita, e por algum tempo foi
considerada filha bastarda do rei – parecia que jamais tornar-se-ia alguma
coisa importante. A predileção do rei era, claro, o filho homem, sendo que
Mary, então, era o resto. Seguindo a lógica, Bess era o resto do resto, e
tornou-se tudo o que se tornou – esta foi subestimada. E só aquele que é
subestimado pode surpreender – isso é o que o taoísmo fala, numa doutrina que
ensina como governar, sempre primando pela harmonia e só recorrendo à guerra
quando os caminhos diplomáticos estão completamente sem efeitos. Disse Henrique
VIII:
- O mundo precisa saber que somos uma nação pacífica mas
que iremos à guerra se formos provocados.
A era elizabetana foi, em geral, uma época de paz, com um
povo que passara a confiar profundamente em sua regente mulher. A prosperidade
tomou conta do reino. O inglês creu em si mesmo. Uma nação unida na luz de uma
sábia.
Bess incentivou a dramaturgia e estimulou a produção
teatral, sendo contemporânea do seu súdito William Shakespeare – o teatro
inglês respira até hoje os ares dessa época, com um dos autores mais conhecidos
e encenados do mundo – quiçá o maior de todos. A rainha também encorajou a
produção de pensamento, fundando universidades, os colleges, os quais visitava periodicamente
com empolgação – é claro que, naquele tempo, as instituições de ensino eram
exclusivas aos homens, assim como nos palcos teatrais, sendo que atores faziam
os papéis femininos, algo muito bem mostrado no filme “Shakespeare Apaixonado”,
no qual a personagem de Gwyneth Paltrow tem que disfarçar os próprios seios
para pisar no palco. Só séculos depois, com Margaret Thatcher, a Inglaterra viu
uma mulher quebrar a hegemonia masculina, em um ambiente só de homens no poder do
país, diferente da rainha Vitória, que não era infiltrada no “Clube do Bolinha”.
E, inclusive, a tradição dos colleges ingleses serviu de inspiração na criação
do universo do personagem bruxinho Harry Potter.
- Os americanos não sabem o valor da tradição – diz a conservadora
personagem inglesa de Maggie Smith na série de TV “Downton Abbey”.
- Oh, sim, sabemos o valor. Mas não somos escravos da
tradição – respondeu a personagem americana de Shirley MacLaine.
Quando ascendeu ao trono, Bess encontrou uma Inglaterra financeiramente
falida, sem exército nem poder de mando na Europa – os ingleses eram uma
espécie de Terceiro Mundo. Quando morreu, a Inglaterra era a nação mais rica e
poderosa do continente: o mundo passa a respeitar profundamente a terra do rio
Tâmisa. Um marco de seu reinado foi a vitória sobre a assim chamada “Invencível
Armada Espanhola”, símbolo do poder e da arrogância da supernação que era a
Espanha, seguida de Portugal, as duas grandes potências navegadoras da época.
Ao encorajar o próprio exército antes do conflito, a rainha discursou:
- Eu posso ser uma mulher, mas tenho a coragem e o estômago
de um rei!
Uma espécie de Joana D’Arc. Será que Elizabeth Arden, digo,
Tudor tornar-se-ia santa se fosse católica?
Bess sobreviveu a várias conspirações contra sua vida,
tecidas por pessoas ávidas por seu trono, como na Espanha ou no Vaticano, que
chamavam-na de “a prostituta bastarda herege que ocupa desmerecidamente o
trono” – Bess enfrentou impopularidade entre seus rivais, é claro. Uma dessas conspirações
foi de sua própria prima, Mary Stuart, a rainha católica da Escócia. A
conspiração foi comprovada e Mary Stuart presa. Esse foi o momento mais duro da
vida de Elizabeth: Stuart não foi poupada da complicada execução. A prima
escocesa mostrou-se orgulhosa e irredutível, e decidiu que queria ser executada
para virar mártir da Igreja Católica. Elizabeth viu-se obrigada a assinar o
documento de execução, mas só foi notificada da decapitação após a machadada
capital. Liz ficou possessa pela execução não ter-lhe sido informada antes, a ela,
a rainha da Inglaterra, e chegou a prender o responsável pela insubordinação. Imagine
você ter que matar o seu próprio primo: não acontece em qualquer família. Como
são infelizes esses jogos de tronos, na obsessão humana por poder. A
simplicidade de Jesus Cristo flutua acima do mundanismo. Aquele que não quer
trono, reina.
A figura de Elizabeth Windsor, digo, Tudor rendeu vários
filmes, interpretada por grandes atrizes como Bette Davis, Judi Dench, Cate
Blanchett e Helen Mirren, entre outras. Bess realmente foi excepcional, e
navegou acima de mediocridades. Não deve ser fácil ser herdeiro do trono da
Inglaterra. O povo inglês e o mundo ficam com a expectativa de vir uma nova Era
de Ouro elizabetana. Sentar no mesmo trono de Bess pode ser “overwealming”,
termo em inglês que quer dizer “assoberbante”. Não é a todo momento que grandes
talentos estadistas são revelados. Mas, como a verdade é filha do tempo, só
anos depois da morte da rainha é que o mundo deu-se conta da total importância
da regente, do mesmo modo como demorou ser reconhecida a divindade de Jesus. O
reinado de Elizabeth segue emblematicamente entranhado na tradição inglesa. Até
hoje este país alimenta-se da dignidade elizabetana, fascinando o mundo de
forma incessante durante os séculos – todas as nações do mundo querem ter em
suas respectivas histórias uma semelhança com o brilho dessa era.
Os colonizadores ingleses, ao pisarem na América, batizaram
um estado de “Virginia”, em homenagem à rainha. É claro que este título de
intocabilidade sexual partiu do povo – Elizabeth não impôs decreto algum
obrigando os cidadãos a chamarem-na de “rainha virgem”. Mas, o que tinha de
carismática, tinha de autoritária, um ícone do absolutismo, tendo que se
colocar em mundo tão sexista, no qual uma mulher, para ser considerada uma
dama, tem que ser absolutamente passiva, algo impossível para o feminismo.
Elizabeth venceu percalços e fez a Inglaterra superar dificuldades também. Foi
uma vida de dedicação, com décadas de reinado, uma aula de bom uso do poder.
Uma construção tijolo a tijolo. Uma digna estadista.
A altivez de Thatcher na Guerra das Malvinas assemelhou-se
com a de Elizabeth na guerra contra a Invencível Armada. Em um momento do filme
“A Dama de Ferro”, Margaret, interpretada por Meryl Streep, usa uma blusa com
uma gola de claro estilo de Isabel, equivalente latino para o nome “Elizabeth”,
a qual respeitou o próprio pai e consolidou a igreja inglesa. Disse Moisés:
- Honrarás pai e mãe.
É claro que é um baita cartão de visitas ser herdeiro do
fulano, mas o herdeiro tem que provar ter “autonomia de voo” e conquistar, por
si, o respeito de outrem. A cantora Maria Rita, por exemplo: não é fácil ser
comparada com Elis Rainha, digo, Regina. Maria Tudor, digo, Stuart, digo, Rita
teve que se mostrar competente no que faz. Certamente, ser filha do rei Arthur,
digo, Henrique VIII ajudou e atrapalhou Liz, numa natural contradição. E o peso
de uma coroa sobre a cabeça pode ser espinhoso. Feliz e lúcido o rei que não se
importa com o luxo à sua volta.
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