O filme “Labirinto – A Magia do
Tempo”, de 1986, foi cuidadosamente concebido por Jim Henson, em uma época em
que os recursos digitais ainda eram impossíveis, muito diferente do monstrinho
Gollum da trilogia “O Senhor dos Anéis” ou do visual na franquia “Harry
Potter”, filmes que esbanjam tecnologia a serviço da imaginação. Os sets de
“Labirinto” são reais; as personagens fantásticas, também. Recém quando foi
lançado, o filme de Henson foi uma decepção nas bilheterias, mas hoje, ao lado
do clássico “História Sem Fim”, tornou-se um dos principais filmes de fantasia
dos anos 80, marcando minha pré adolescência e fazendo de mim um fã de David
Bowie, que faz Jareth, o Rei dos Duendes feiosos e dono do labirinto; tornei-me
fã também da então adolescente Jennifer Connelly, que faz a garota Sarah, que
vive reclusa em um mundo a parte, só seu. Jennifer, anos depois, conquistaria
um Oscar.
Eu estava, há poucos anos atrás, em uma Livraria Cultura
em Salvador, BA, e vi, a um preço promocional de 10 reais, um DVD do filme. Não
hesitei e comprei. Hoje guardo-o cuidadosamente. Entre os anos 80 e 90, aluguei
a fita “mil” vezes em uma locadora caxiense. Na época comprei a trilha sonora
em vinil e, lá pelo ano de 2003, adquiri a trilha em CD também em uma Cultura, só que em Porto Alegre. Eu
tinha uma grande amiga no colégio que gravou para mim as músicas em uma fita
cassete, antes de eu adquirir o LP. No início dos anos 90, quando havia uma (hoje
extinta) revista sobre música pop e rock, comecei a me corresponder, pela
tradicional carta selada pelos Correios, com uma fã de Bowie a qual, como eu, passara
a adorar o astro por causa de “Labirinto”. Essa fã paulista anunciou na revista
que gostaria de se corresponder com fãs de David. Infelizmente, anos depois, perdi
o contato com a menina. Só lembro que ela era também grande fã de Guns N’
Roses. Axl Rose também é fã de Bowie.
A trilha sonora de “Labirinto” é uma
pequena pérola, tendo canções concebidas e cantadas por Bowie, com o
contagiante baixo sintetizado e o coral gospel de “Underground” (Submundo); a finesse
da balada romântica “As the World Falls Down” (Enquanto o Mundo Cai) em uma
deslumbrante cena de um mágico baile de máscaras; e a vibração de “Magic Dance”
(Dança da Magia), com os duendes cantando e dançando.
O que é o labirinto em questão? É um submundo de ilusões,
de sinais auspiciosos, de pistas falsas, de enganos que deixam a mente tonta. É
a falta de referência, de norte. A película gira em torno, basicamente, da
transformação da menina Sarah em uma mulher adulta, que se torna, ao fim do
processo, responsável e desiludida. O baile de máscaras é uma charada, um
mistério insondável. E Sarah precisa desvendá-lo, nem que, para isso, precise
ter a agressividade para estilhaçar os espelhos de projeções psíquicas, na
destruição do Mito da Caverna, como Neo em “Matrix”, que se liberta de tudo que
não é realidade.
Tudo começa com Sarah às voltas com
seu livro “The Labyrinth”, no qual uma criança tem que ser resgatada das mãos
de um Rei dos Duendes raptor. Nessa metalingüística, a ficção se transforma em realidade. O pai e a
madrasta de Sarah vão sair para um jantar, e pedem que Sarah cuide de Toby, seu
meio irmão bebezinho. Sarah odiava ter responsabilidades e fica furiosa quando
vê que um de seus bichinhos de pelúcia estava com o inocente Toby. Sarah tende
a projetar na madrasta uma bruxa má de contos de fada, tal a imersão da
personagem de Jennifer em um mundo irreal de ficção. Só que a maturidade vem
chegando de fininho.
O quarto de Sarah é seu mundinho de
reclusão, cheio de brinquedos e referências a elementos do místico labirinto. A
falecida mãe de Sarah era um estrela da Broadway, um detalhe no quarto da
menina, com o caderno Playbill com a foto da genitora. Jim Henson faz menções
muito sutis e ricas, sendo que o Labirinto torna-se um amálgama de elementos
projetivos da mente de Sarah – a própria mente dela é o labirinto de Jareth.
Conhecer a si próprio significa ter nas mãos a chave da libertação, e Jareth
quer fazer parecer com que é ele quem tem essa chave.
Então Sarah fala as palavras certas
e acaba chamando o Rei dos Duendes para que ele leve embora Toby, chorão como
qualquer bebê em
demanda. Bowie aparece majestoso diante de uma Sarah
assustada e confusa, oferecendo-a a opção de nunca mais ver Toby. Neste
momento, Sarah sente o peso da responsa e decide aceitar o desafio de cruzar um
traiçoeiro labirinto para libertar o bebê das mãos do rei.
- Volte para o seu quarto e brinque com
os seus brinquedos – diz Jareth a ela, que diz:
- Não posso. Você não entende que
não posso?
Sarah vê que ela própria não é mais
o nenê da casa, e imerge nos meandros do sedutor Jareth, que quer hipnotizar e
enganar a menina em uma teia, como na toca de Laracna de Tolkien.
Logo de início, Sarah depara-se com
Huggle, um duende que acaba se tornando um amigo. E a menina começa a ver que
não deve subestimar o volúvel e sempre mutante labirinto, nunca achando este
fácil demais. Pois a situação se complica exatamente nos momentos em que Sarah acha que tudo
é uma moleza. O labirinto é perigoso, e de nada valem as marcas de batom que
Sarah deixa pelo caminho para se guiar, na tentativa de ser como Teseu e seu
fio de referência no labirinto do Minotauro. Pelo caminho ela encontra o
monstro do bem Ludo, que mais tarde ajudar-lhe-á a sair de uma fria no Pântano
do Fedor Eterno, e ainda encontra Sir Didimous, um paladino cachorro cavaleiro.
Sarah faz amigos que ajudar-lhe-ão a chegar ao centro do labirinto e libertar
Toby. Jareth não quer que Sarah cresça, e ela decide mandar tudo se danar,
saindo em busca da simplicidade. Sarah quer clareza.
Um elemento constante são as esferas
de cristal equilibradas nas mãos de Jareth, que tenta confundir Sarah em um
jogo de adivinhação. As esferas são mundinhos alienados da realidade; são refúgios
da infância.
No fim de tudo, Sarah, cansada de
joguinhos, diz a Jareth:
- Você não tem poder sobre mim.
A bolha da ilusão se dissipa e
Jareth recolhe-se e diminui-se, até se transformar em seu alterego - uma inocente
coruja branca, elemento no primeiro momento do filme, sendo que a própria
maquiagem de Jareth imita os olhos do pássaro.
E, ao ver Toby a salvo em sua própria caminha, Sarah volta
a seu quarto e começa a guardar os brinquedos. O fim do filme é muito tocante,
quando as personagens fantásticas pedem para que ela não as esqueça, e tudo se
transforma em uma festa no quarto de Sarah. Ou seja, ser adulto não quer dizer
esquecer-se da infância nem da memória afetiva. Sarah então compreende que o
tempo passa e que o crescimento é inevitável, entendendo que Toby também
cresceria um dia.
A direção de arte é outra pérola,
como a cena das escadarias ultraconfusas inspiradas na obra de MC Escher; como
um visco dourado que perdura por vários pontos do labirinto; como um túnel vertical
de mãos que personificam rostos; como a Cidade dos Duendes e seus detalhes de
um vilarejo medieval; como um gigantesco depósito de velharias; como um
detestável pântano fedorento; como a vista aérea do próprio labirinto.
Sem mencionar que a peruca de Bowie
no filme é o cúmulo do paradigma capilar dos anos 80: desbastado em cima e
compridinho embaixo, visual amplamente adotado na época, por exemplo, pela
dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó. Bowie é um fenômeno estilístico, fazendo
de Jareth mais uma na sua galeria de personagens camaleônicas, um astro que,
desde os anos 70, renova-se sempre, como uma certa popstar, cujo nome não
mencionarei.
Jim Henson dedicou-se de corpo e
alma ao projeto. Uma pista disso é o documentário que vem junto no DVD. Uma
trabalheira paciente de um verdadeiro artesão. Todos os seres fantasiosos eram costurados
a mão e animados manualmente ou por controle remoto.
Fica difícil imaginar uma
refilmagem. Claro que, no ano de 2015, os recursos digitais seriam usados na
maior parte da película, quiçá em toda ela, só restando atores de carne e osso,
como nos episódios 1, 2 e 3 de “Star Wars”. Também é duro imaginar alguém que
possa, ao menos, se equiparar ao genial e fenomenal Bowie. Quase impossível ver
uma nova trilha sonora à altura da original. Há filmes que são únicos. Fazer um
remake deixaria qualquer diretor tonto num enigma cheio de passagens irreais,
na ilusão de que “Labirinto – A Magia do Tempo” não é um filme especial.
Como diz a canção “Underground”, lá, perdido
no fundo da ilusão e da solidão, você vai encontrar a verdade, e esta lhe
libertará. O encanto se dissipa, e Jareth é desconstruído e reduzido a nada. O
mistério chega ao fim. O labirinto é derrotado e Sarah coloca os pés no chão.
O subtítulo “A Magia do Tempo” é
meio nonsense. Talvez tenha sido concebido porque Jareth dá a Sarah 13 horas -
número auspicioso - para ela cruzar o labirinto e, no meio do processo, o Rei
dos Duendes adianta o relógio em algumas horas. Outra razão seria porque Sarah
fica várias horas no labirinto mas, no mundo real, poucas horas haviam passado,
algo como as disparidades de tempo na franquia “As Crônicas de Nárnia”, filmes
de grande apelo à fantasia.
Henson é ainda o inventor e
manipulador dos célebres Muppets, com os inesquecíveis Caco, o Sapo, e Miss
Piggy, a porquinha repleta de estrelismos apaixonada pelo despretensioso sapinho.
Dá para compreender a intimidade de Henson com bonecos. Esse foi o motivo para
o estúdio ter investido tanto em “Labirinto”. Segundo o site imdb.com, o filme
custou cerca de 25 milhões de dólares e arrecadou só a metade disso no box
office nos EUA. Algo como “Blade Runner”, que estreou com desempenho
decepcionante e, a cada década que passa, é mais e mais cultuado como clássico.
Seria essa a magia do tempo?
Na ilustração desta postagem, Sarah com Toby antes dele ser levado embora por Jareth.
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