sexta-feira, 21 de abril de 2017

Bette Devil




            A estrelíssima estrelésima Bette Midler disse que adotou este nome artístico querendo homenagear uma diva que a influenciou muito, ou seja, Bette Davis, e esta não suportava papéis superficiais. Em A Malvada, por exemplo, Bette interpreta uma personagem que percebe capciosamente as ações e movimentos de uma sociopata ardilosa e manipuladora, a dissimulada Eve, no pecado original. Bette era mestre em expor a sociopatia, e não se contentava em ser apenas uma darling fútil. Bette debochava brilhantemente da superficialidade burguesa. Enquanto todos aplaudem Eve, Bette fica em silêncio, debochando não só da falta de caráter de Eve como também da burrice de quem a aplaude. Coitadinha da Eve, dizia Bette com sarcasmo. É claro que jamais veremos outra atriz como Davis. Os espíritos são únicos. Nada mais natural do que Davis interpretando Elizabeth I da Inglaterra – rainha falando de rainha, na Era de Ouro de Hollywood, termo irônico, pois o Cinema naquela época era chamado de Silver Screen, ou seja, Tela de Prata.

            Um grande hit da música pop chama-se Bette Davis Eyes, ou seja, Olhos de Bette Davis. A canção fala de uma mulher sedutora, com olhos frios como a neve de Nova York, apetite sexual intenso, disposta a girar como dados a vida de seu amante, expondo-o. Na canção, Bette sabe o que é o suficiente para causar um tsunami, sendo uma mulher provocante, que conhece o próprio amante muito bem. Quem ela é? É uma espiã? Ela tem olhos de Bette Davis. Who’s that girl? Quem é esta garota? Madonna, a eterna diva de sutiã, homenageou BD na canção hit Vogue, dizendo Bette Davis, nós amávamos você. Duas damas com atitude, com brilho, capazes de encarnar as mais majestosas cadelas da História. Sou tão boa interpretando cadelas porque eu não sou uma cadela. É por isso que Joan Crawford é tão boa em interpretar damas. Quando sou boa, sou boa; quando sou má, sou melhor ainda. Essas palavras imortais, ditas por Bette Davis, delineiam uma divertida, mortífera e lendária rivalidade entre Bette e Joan. As atrizes encontraram-se no set de O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, trabalhando juntas. Reza a lenda que, quando ambas foram indicadas ao Oscar no mesmo ano, Joan, em detrimento de Bette, fez uma campanha de porta em porta em Hollywood para pedir que a Academia votasse em Anne Bancroft, outra indicada. Joan não suportaria ver Bette dando-se bem. Eram nêmesis uma da outra, uma interessada na infelicidade da outra. Hollywood é uma glamorosa selva. Estaria Bette vendo em Joan uma Eve? Arte e vida real entrelaçam-se.

Recentemente, O Que Terá... foi refeito com Susan Sarandon no papel interpretado por Bette e Jessica Lange no papel interpretado por Joan. O clássico em preto & branco recheado por Bette e Joan inspirou o filme nacional Irma Vap, o Retorno, no qual o célebre Marco Nanini faz referências claras e apaixonadas ao filme. Quando vi uma peça teatral de comédia besteirol em Porto Alegre, a película também teve referências, com uma Bette que debochava até do som da campainha.

A cena final de O Que Terá... é monumental, com uma Bette encarnando a mais patética e completa loucura e demência. E isso Davis fazia bem. Em outro filme, encarna uma psicopata absolutamente fria, ardilosa e dissimulada, como muitas que vi na minha vida (e ainda verei), pois, disse-me uma grande amiga psicóloga, psicopatas existem em qualquer lugar. Na referida cena, um personagem doente precisa de um remédio urgente, e a personagem de Bette, querendo o dinheiro dele, fica imóvel vendo-o passar mal, e ele se depara com a total ausência de caráter e moralidade da vilã. Nessa cena, Bette infla-se como um pico Everest, como um iceberg intransponível, como um tufão levando tudo e todos consigo. A terra treme. O psicopata é brilhantemente interpretado por um ator que seja uma pessoa de bom coração. Nessa lógica, Bette era uma pessoa fina, elegante e bondosa, apesar de até hoje as pessoas acharem que ela era na vida real aquilo que era na tela, do mesmo modo como as pessoas acham até hoje que Marilyn Monroe era na vida real a personagem sexy e burra que era na tela. A genialidade de um ator gira em torno dos monstros que ele mesmo constrói na vida pública, tornado-se uma força da natureza. A Arte torna-se oxigênio, e a força da estrela torna-se um raio de tempestade avassalador.

Certa vez eu estava folheando uma revista americana, mas nem lembro de que título era, mas lembro-me muito bem dos causos narrados por um senhor que disse ter convivido com Bette Davis. Sinceramente, acho que ele mentiu na narração dos causos, pois não crio que BD fosse uma vagabunda vulgar e insegura na vida real. Então, peço ao leitor que, na leitura dos próximos parágrafos, tenha em mente que os causos são falsos, porém divertidos. A matéria era intitulada The Lonely Lady, ou seja A Dama Solitária, ilustrada por uma foto que mostrava Davis no set de filmagem, fazendo uma pausa para tomar um café e fumar um cigarro, visto a convicta tabagista que era a estrela, numa época em que a conotação de fumar era associada a glamour e fascínio.

Digamos que o nome do narrador dessas histórias fosse Jack Smith, um homem que ficou muito impressionado por ter conhecido tal monstro do cinema que era Bette. Ele conta que no set de O Que Terá..., Joan, com a melhor das intenções, deixava no camarim de Bette uma rosa por dia, sem revelar que era ela quem o fazia. Então Bette teria dito: Que saco! Porque essa pessoa tem que me mandar uma rosa por dia? Que me mande logo um buquê inteiro, ora bolas. Jack achou então que, na verdade, Bette passou a desprezar Joan, achando a co-estrela vulgar, burra e cafona, como reza a lenda da suposta rivalidade entre as brasileiras Fernanda Montenegro e Tônia Carrero, quando Tônia, ao ver uma peça de Fernanda, escreveu a esta um bilhete dizendo Boa atuação, mas cuidado com a aparência, e Fernanda revidou, tendo após ver uma peça encenada por Tônia, deixando a esta um recado dizendo Boa aparência, mas cuidado com a atuação. Competições são divertidas, como no caso das socialites brasileiras Vera Loyola e Carmen Mayrinck Veiga, tendo Vera dizendo Os gays mais assumidos gostam de mim, e os mais enrustidos gostam da Carmen. Cada uma tem os gays que merece. Reza a lenda que Carmen desprezava Vera, achando esta uma nova rica cafona, tendo Carmen representando as elites mais tradicionais e Vera representando a burguesia em ascensão social. Como na célebre foto antiga de Sofia Loren olhando escandalizada para o decote indiscreto de Jane Mansfield. As competições são inerentes ao ser humano, como espermatozóides concorrendo pelo mesmo óvulo.

Outra passagem de Bette Davis teria tomado cena em um restaurante. Estavam Jack, Bette e outras pessoas em torno de uma mesa jantando. Até então, tudo bem. Então, um dos senhores que estavam na mesa, inocentemente, estava falando algo do tipo: Depois iremos em tal lugar, ele, ela..., e apontou suavemente o dedo para Bette. A estrela, ao ver o dedo apontado para si, disse bem alto: Não se atreva a apontar o dedo para mim. O restaurante ficou em pétreo silêncio. Todas as pessoas na mesa de Bette ficaram caladas, e todas as outras pessoas no restaurante também calaram-se e olharam para a mesa. Até o rapaz que estava tocando um piano parou de tocar e olhou para a mesa. Então, quando aquele senhor tomou ar para se desculpar e dizer algo do tipo: Desculpe-me, não foi minha intenção. Eu não tive a intenção de desrespeitá-la, Bette disse, ainda em alto e bom som: Eu sequer quero vê-lo novamente. Cá entre nós, é claro que Bette não era essa vaca louca na vida real, mas não deixa de ser um causo engraçado.

Após a cerimônia em que Bette perdeu o Oscar, houve um baile pós-cerimônia. Então Bette, indignada e aborrecida, de péssimo humor, viu Joan no baile e disse a Jack: Não quero ficar neste salão com ela aqui dentro, não me importa o quão enorme o salão possa ser. Então Bette chegou em casa acompanhada por Jack. A diva, “morta” de fome, pegou uma faca para cortar um pão e fazer um sanduíche. Jack comentou que Joan estava muito bonita e elegante na cerimônia, e disse que Joan estava parecendo uma princesa atemporal de tão estonteante. Bette pegou a faca, apontou-a para o peito de Jack e disse-lhe: Repita o que você disse. E Jack repetiu. Então Bette apontou a faca para o nariz dele e disse-lhe: Você me deixa com náuseas. Para Davis, todo o buraco era mais embaixo.

Muitos anos depois, Jack encontrou-se ao acaso com a diva, e disse-lhe: Oi, Bette. E Davis o olhou como se nunca o tivesse visto na vida. Então ele disse: Sou eu, Jack Smith. E Davis disse: Eu sei quem você é, Jack Smith. E ele nunca mais a viu na vida. As histórias de Jack mostram uma louca digna de ser atada num manicômio. Bette Davis era uma loucura no bom sentido, já homenageada no célebre programa de comédia americano Saturday Night Live.

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