quarta-feira, 12 de abril de 2017

Elis Rainha




            Eu não pertenço à geração Elis Regina; pertenço à geração Marisa Monte. Mas qualquer pessoa que ouse falar de MPB tem que passar pela gaúcha que ganhou o Brasil, tendo a diva ganhando-o para sempre. Monstro lendário. Estão tatuadas nas minhas memórias de infância as canções dela, de sua voz absolutamente inigualável e marcante, tanto em momentos sutis e sussurrantes quanto em ápices viris de voz desinibida, forte e macha, algo contrastante com os sussurros constantes de nomes como Nara Leão ou, puxando o assunto para hoje em dia, as incursões da canadense Diana Krall em casamentos entre Jazz e Bossa Nova – aliás, uma união perfeita, como arroz com feijão, numa ironia, pois foram gêneros de raízes absolutamente diferentes um do outro, visto que, como o ser humano é universal, a Arte também o é.
            Nos saudosos tempos da fita cassete de música, quando tudo era mais simples, nas inúmeras viagens de carro com meus pais e irmã pela praia, Porto Alegre ou Gramado – somos de Caxias do Sul –, ouvi essa voz tão boa, tão envolvente, tão enigmática, nos labirintos dos meandros do talento. O que é talento? Uma dádiva divina. Ouço Elis desde que eu estava na barriga de minha mãe. Elis é um recheio de xis burguer, deliciosa, levando tudo e todos consigo, como uma Billie Holiday tropical, marcando o senso comum brasileiro, na poesia da respeitável classe letrada brasileira. É claro que Elis nunca foi povão. A voz daquela mulher tinha classe.
            Certa vez, quando eu estava numa aula de cursinho pré-vestibular, um professor disse que Elis “traiu” o Rio Grande do Sul, pois a diva, ao mudar-se para o Rio de Janeiro para tocar a carreira para frente, em poucos meses adquiriu trejeitos do sotaque carioca. Well, temos que perdoá-la. Traição por traição, a gaúcha Xuxa Meneguel também adquiriu o mais puro sotaque carioca, chiando tal qual uma chaleira. Vamos deixar ash duash em pash. Na contramão, lembro da opinião do ultracélebre mestre Tatata Pimentel, que, ao defender a escolha de sotaque de Elis, disse que há pessoas que acham que Elis deveria ficar o resto da vida cantando em CTGs vestida de prenda – nada contra à tchê music, por favor. Vamos lembrar que o RS faz parte de uma federação, ora bolas.
            Brasileiríssima, Elis não poderia imaginar uma carreira que não incluísse o Brasil, na época da máxima Brasil – Ame-o ou Deixe-o, ou seja, se você não está contente com a situação brasileira, exile-se, como o fez Caetano Veloso, e o exílio era impensável para Elis e, por isso, ela teve que engolir um sapo fenomenal, num causo que vou contar no parágrafo a seguir, já pedindo eu desculpas se os fatos não ocorreram exatamente como vou narrar, o que não tira o lustro divertido da historieta, visto que Elis e sua geração foram marcadas pela Ditadura Militar. Na casa de minha irmã em Salvador, há anos atrás, li uma biografia não muito volumosa de Elis, e vou narrar o causo ficando um pouco refém de lapsos de memória em relação ao texto biográfico. O causo foi mais ou menos este:
Eram, digamos assim, os anos 1970. Elis já estava consagrada do Oiapoque ao Chuí, e estava fazendo uma pequena turnê pela Europa, apresentada como uma cantora exótica do “selvagem e misterioso” Brasil. Suponhamos então que Elis estivesse em Paris, e foi à suíte do hotel entrevistá-la um repórter de um jornal, digamos do Le Monde. Então Elis, por estar em um continente civilizado, do outro lado do Atlântico, sentiu-se à vontade para fazer uma coisa que não era possível de se fazer em território brasileiro, que era meter o p... no Governo. E Elis meteu muito bem metido; desceu a lenha, dizendo: São uns grossos, estúpidos, ignorantes, torturadores, quiçá assassinos. São uns animais no meio do mato. São uns brutos incivilizados. São uns gorilas. Ok. Findada a entrevista, o repórter despediu-se da diva, foi para a redação do jornal e transcreveu a entrevista, a qual saiu publicada um ou dois dias depois. Daí, aconteceu algo que Elis não previra: a Embaixada Brasileira em Paris adquire o exemplar do jornal, traduz a entrevista e envia o material para Brasília, indo parar na mesa do gabinete do Presidente Militar da República. Elis, ao botar os pés de volta em território brasileiro, ou seja, os pés de volta no chão, começa a se incomodar com essa história, e só não foi imediatamente presa e considerada subversiva porque já era uma artista célebre. Mas tudo ficou muito claro nas entrelinhas – da próxima vez, os militares agiriam, e o brilho estelar encontrar-se-ia com o negror dos porões da Ditadura. Os milicos fingiram que nada ocorrera e, meses depois, estavam acontecendo os Jogos Militares, que nada mais é do que uma Olimpíada exclusiva para atletas do Exército. Então os milicos “convidam” Elis para cantar o Hino Nacional na abertura dos Jogos. Elis, que para burra não servia, entendeu que os militares estavam botando o “termômetro” e tirando a “temperatura”, e a diva decidiu aceitar o “convite”, devendo ter cantado o Hino maravilhosamente bem para esfregar seu talento na cara dos gorilas. E, depois disso, Elis nunca mais mexeu com os caras e os caras nunca mais mexeram com ela. Naquela época, só adquiria problemas com os militares quem cutucava o tigre com a vara curta, como o fez uma certa figura da política brasileira. Não tenho pena, pois, já disse neste blog, quem tem pena é pato, que não entrou para a seleção.
Como eram as coisas naquele tempo! Se Elis estivesse em Tóquio, a Embaixada Brasileira em Tóquio enviaria a entrevista para Brasília. Para compreender este causo narrado acima, temos que entender o contexto global de Guerra Fria de então. Naqueles tempos, o Comunismo assustava, e o Bloco Capitalista, liderando pelos EUA, temia que o Brasil pudesse se tornar uma URSS ensolarada, anexando-se ao Bloco Comunista e deixando este poderosíssimo. Na verdade, os militares brasileiros já estavam pleiteando o poder desde 1961, no episódio da Legalidade. Portanto, o golpe de 1964, que varreu Jango, simpatizante de Che Guevara, para fora do mapa político brasileiro, não foi uma total surpresa. Washington D.C. foi conivente com o golpe, e tranquilizou-se com este. Os militares garantiram que o Brasil não seria anexado aos povos comunistas. Só muitos anos depois o Comunismo caiu de podre, numa China que, hoje, na teoria é comunista mas na prática é capitalista. Cuba dá hoje sinais de abertura e o Comunismo vive restritíssimo no mundo, mas as ditaduras ainda correm soltas, tendo nos EUA o papel de “xerife do mundo”.
            Nesta mesma biografia, houve um episódio em que a diva estava em uma amizade colorida com um amigo, de cujo nome não recordo. Então, na evolução do relacionamento, houve um momento em que a direta Elis virou-se para o amigo e disse: Vem cá, tu és gay ou me achas um bagulho?
Certa vez, em um recente programa de TV, Carlos Miele, contemporâneo de Elis e amigo dela, foi questionado sobre quem ele considerava um talento excepcional, e ele disse: Elis.
Uma grande professora que tive na faculdade, uma mulher que pertence à geração Elis, falou sobre o clássico Águas de Março, e disse que os militares eram tão burros que não notavam o manifesto político por trás da canção, que fala sobre um março sombrio que foi selado pelo golpe em primeiro de abril. É pau, é pedra, é o fim do caminho diz a letra, fazendo discretíssima alusão à brutalidade do regime. A promessa de vida na letra é a esperança de reabertura democrática.
Eu era bem pequeno quando vi a diva cantando na TV, e, na minha ignorância infantil, achei Elis feia, e minha mãe me disse que era por causa do tóxico. Elis complicou-se nas drogas, algo que abreviou drasticamente sua vida, matando uma mulher ainda cheia de sonhos e projetos de carreira. Mas, como o talento é uma dádiva inexorável e indelével, Elis deve estar em outros planos continuando a cantar e encantar corações. Há quem diga que se Elis estivesse viva até hoje ela já teria obtido renome mundial.
Como foi privilegiado o Brasil de ter aqui encarnado tal espírito tão espontâneo e simples como Elis, assim como no legado genial de Chico Anysio. Como é rico o Brasil. E único.
Sua filha, Maria Rita, seguiu a carreira da mãe. É claro que ser filha de uma grande estrela ajuda e atrapalha: ajuda porque é uma grande credencial; atrapalha porque as comparações são inevitáveis. Maria Rita é boa, mas não é Elis, diz-se. Entrevistada no extinto programa de Jô Soares, Maria Rota emocionou-se ao ouvir o nome da própria mãe. Maria Rita fofa.
Em Porto Alegre há uma controversa estátua em homenagem a Elis, pois muitos acham a homenagem estranha, beirando o feio e o impertinente, não fazendo jus a quem foi Elis.
Muito criteriosa (e corajosa), Elis era soda na hora de selecionar repertório, e ouvia muitas e muitas fitas para selecionar canções que considerava interessantes de se gravar, sendo dura na seleção – as músicas que a agradavam eram exceção. Sua capa na revista Veja, mostrando a língua, como um genial Albert Einstein cantante, ilustra sutilmente a rebeldia frente à sisudez militar do Brasil de então. Elis conduzia as pessoas com altivez monárquica, com espírito de líder. Sua morte só veio a fortalecer o ídolo, que permanece sendo a portoalegrense baixinha e estrábica apelidada de Pimentinha da MPB.
A mãe da infante Elis, ao ver o potencial melódico da filha, levou a pequena a um concurso musical em uma rádio de Porto Alegre, mas a tímida Elis ficou encabulada e travou, só destravando em uma segunda ocasião na mesma rádio. Hoje, veríamos uma Elis criança no programa televisivo The Voice Kids Brasil. Travando por travar, em uma ocasião, quando já fazia sucesso adulta no Rio, Elis travou e teve que fazer um grande esforço para liberar a voz, mostrando a força psicológica de seu dom inegável: o canto está na alma do cantor. Sem dom, não tem como. O diamante bruto é o potencial a ser lapidado – não se lapida ouro de tolo. Quando há potencial, tudo o que é necessário é persistência.
Tenho algo em comum com a diva, pois ela adorava fazer palavras cruzadas no jornal!
Afinal, o que tinha Elis? Tao, pois Tao é um mistério, insondável, infinito – tudo é sensual processo. E os mistérios de Elis continuam a fascinar. Recentemente, viajou pelo Brasil o musical Elis, a Musical, procurando matar um pouco da saudade da diva. Também recentemente, foi lançada uma cinebiografia, que também traz o episódio em que a estrela chamou os militares de gorilas. Respeitada, Elis podia dar-se ao luxo de só trabalhar com cobrões da MPB, pois estava à altura destes. Insubstituível.

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