Eu não pertenço à geração Elis
Regina; pertenço à geração Marisa Monte. Mas qualquer pessoa que ouse falar de
MPB tem que passar pela gaúcha que ganhou o Brasil, tendo a diva ganhando-o para
sempre. Monstro lendário. Estão tatuadas nas minhas memórias de infância as
canções dela, de sua voz absolutamente inigualável e marcante, tanto em
momentos sutis e sussurrantes quanto em ápices viris de voz desinibida, forte e
macha, algo contrastante com os sussurros constantes de nomes como Nara Leão ou,
puxando o assunto para hoje em dia, as incursões da canadense Diana Krall em
casamentos entre Jazz e Bossa Nova – aliás, uma união perfeita, como arroz com
feijão, numa ironia, pois foram gêneros de raízes absolutamente diferentes um
do outro, visto que, como o ser humano é universal, a Arte também o é.
Nos saudosos tempos da fita cassete
de música, quando tudo era mais simples, nas inúmeras viagens de carro com meus
pais e irmã pela praia, Porto Alegre ou Gramado – somos de Caxias do Sul –,
ouvi essa voz tão boa, tão envolvente, tão enigmática, nos labirintos dos
meandros do talento. O que é talento? Uma dádiva divina. Ouço Elis desde que eu
estava na barriga de minha mãe. Elis é um recheio de xis burguer, deliciosa,
levando tudo e todos consigo, como uma Billie Holiday tropical, marcando o
senso comum brasileiro, na poesia da respeitável classe letrada brasileira. É
claro que Elis nunca foi povão. A voz daquela mulher tinha classe.
Certa vez, quando eu estava numa
aula de cursinho pré-vestibular, um professor disse que Elis “traiu” o Rio
Grande do Sul, pois a diva, ao mudar-se para o Rio de Janeiro para tocar a
carreira para frente, em poucos meses adquiriu trejeitos do sotaque carioca.
Well, temos que perdoá-la. Traição por traição, a gaúcha Xuxa Meneguel também
adquiriu o mais puro sotaque carioca, chiando tal qual uma chaleira. Vamos
deixar ash duash em pash. Na
contramão, lembro da opinião do ultracélebre mestre Tatata Pimentel, que, ao
defender a escolha de sotaque de Elis, disse que há pessoas que acham que Elis
deveria ficar o resto da vida cantando em CTGs vestida de prenda – nada contra
à tchê music, por favor. Vamos lembrar que o RS faz parte de uma federação, ora
bolas.
Brasileiríssima, Elis não poderia
imaginar uma carreira que não incluísse o Brasil, na época da máxima Brasil – Ame-o ou Deixe-o, ou seja, se
você não está contente com a situação brasileira, exile-se, como o fez Caetano
Veloso, e o exílio era impensável para Elis e, por isso, ela teve que engolir
um sapo fenomenal, num causo que vou contar no parágrafo a seguir, já pedindo
eu desculpas se os fatos não ocorreram exatamente como vou narrar, o que não
tira o lustro divertido da historieta, visto que Elis e sua geração foram
marcadas pela Ditadura Militar. Na casa de minha irmã em Salvador, há anos
atrás, li uma biografia não muito volumosa de Elis, e vou narrar o causo
ficando um pouco refém de lapsos de memória em relação ao texto biográfico. O
causo foi mais ou menos este:
Eram, digamos assim, os anos 1970. Elis já estava consagrada
do Oiapoque ao Chuí, e estava fazendo uma pequena turnê pela Europa,
apresentada como uma cantora exótica do “selvagem e misterioso” Brasil. Suponhamos
então que Elis estivesse em Paris, e foi à suíte do hotel entrevistá-la um
repórter de um jornal, digamos do Le
Monde. Então Elis, por estar em um continente civilizado, do outro lado do
Atlântico, sentiu-se à vontade para fazer uma coisa que não era possível de se
fazer em território brasileiro, que era meter o p... no Governo. E Elis meteu
muito bem metido; desceu a lenha, dizendo: São
uns grossos, estúpidos, ignorantes, torturadores, quiçá assassinos. São uns
animais no meio do mato. São uns brutos incivilizados. São uns gorilas. Ok.
Findada a entrevista, o repórter despediu-se da diva, foi para a redação do
jornal e transcreveu a entrevista, a qual saiu publicada um ou dois dias
depois. Daí, aconteceu algo que Elis não previra: a Embaixada Brasileira em
Paris adquire o exemplar do jornal, traduz a entrevista e envia o material para
Brasília, indo parar na mesa do gabinete do Presidente Militar da República. Elis,
ao botar os pés de volta em território brasileiro, ou seja, os pés de volta no
chão, começa a se incomodar com essa história, e só não foi imediatamente presa
e considerada subversiva porque já era uma artista célebre. Mas tudo ficou
muito claro nas entrelinhas – da próxima vez, os militares agiriam, e o brilho
estelar encontrar-se-ia com o negror dos porões da Ditadura. Os milicos
fingiram que nada ocorrera e, meses depois, estavam acontecendo os Jogos
Militares, que nada mais é do que uma Olimpíada exclusiva para atletas do
Exército. Então os milicos “convidam” Elis para cantar o Hino Nacional na
abertura dos Jogos. Elis, que para burra não servia, entendeu que os militares
estavam botando o “termômetro” e tirando a “temperatura”, e a diva decidiu
aceitar o “convite”, devendo ter cantado o Hino maravilhosamente bem para esfregar
seu talento na cara dos gorilas. E,
depois disso, Elis nunca mais mexeu com os caras e os caras nunca mais mexeram
com ela. Naquela época, só adquiria problemas com os militares quem cutucava o
tigre com a vara curta, como o fez uma certa figura da política brasileira. Não
tenho pena, pois, já disse neste blog, quem tem pena é pato, que não entrou
para a seleção.
Como eram as coisas naquele tempo! Se Elis estivesse em
Tóquio, a Embaixada Brasileira em Tóquio enviaria a entrevista para Brasília.
Para compreender este causo narrado acima, temos que entender o contexto global
de Guerra Fria de então. Naqueles tempos, o Comunismo assustava, e o Bloco
Capitalista, liderando pelos EUA, temia que o Brasil pudesse se tornar uma URSS
ensolarada, anexando-se ao Bloco Comunista e deixando este poderosíssimo. Na
verdade, os militares brasileiros já estavam pleiteando o poder desde 1961, no
episódio da Legalidade. Portanto, o golpe de 1964, que varreu Jango,
simpatizante de Che Guevara, para fora do mapa político brasileiro, não foi uma
total surpresa. Washington D.C. foi conivente com o golpe, e tranquilizou-se
com este. Os militares garantiram que o Brasil não seria anexado aos povos
comunistas. Só muitos anos depois o Comunismo caiu de podre, numa China que,
hoje, na teoria é comunista mas na prática é capitalista. Cuba dá hoje sinais
de abertura e o Comunismo vive restritíssimo no mundo, mas as ditaduras ainda
correm soltas, tendo nos EUA o papel de “xerife do mundo”.
Nesta mesma biografia, houve um
episódio em que a diva estava em uma amizade colorida com um amigo, de cujo
nome não recordo. Então, na evolução do relacionamento, houve um momento em que
a direta Elis virou-se para o amigo e disse: Vem cá, tu és gay ou me achas um bagulho?
Certa vez, em um recente programa de TV, Carlos Miele,
contemporâneo de Elis e amigo dela, foi questionado sobre quem ele considerava um
talento excepcional, e ele disse: Elis.
Uma grande professora que tive na faculdade, uma mulher que
pertence à geração Elis, falou sobre o clássico Águas de Março, e disse que os militares eram tão burros que não
notavam o manifesto político por trás da canção, que fala sobre um março
sombrio que foi selado pelo golpe em primeiro de abril. É pau, é pedra, é o fim do caminho diz a letra, fazendo
discretíssima alusão à brutalidade do regime. A promessa de vida na letra é a esperança de reabertura democrática.
Eu era bem pequeno quando vi a diva cantando na TV, e, na
minha ignorância infantil, achei Elis feia, e minha mãe me disse que era por
causa do tóxico. Elis complicou-se nas drogas, algo que abreviou drasticamente
sua vida, matando uma mulher ainda cheia de sonhos e projetos de carreira. Mas,
como o talento é uma dádiva inexorável e indelével, Elis deve estar em outros
planos continuando a cantar e encantar corações. Há quem diga que se Elis
estivesse viva até hoje ela já teria obtido renome mundial.
Como foi privilegiado o Brasil de ter aqui encarnado tal
espírito tão espontâneo e simples como Elis, assim como no legado genial de
Chico Anysio. Como é rico o Brasil. E único.
Sua filha, Maria Rita, seguiu a carreira da mãe. É claro
que ser filha de uma grande estrela ajuda e atrapalha: ajuda porque é uma
grande credencial; atrapalha porque as comparações são inevitáveis. Maria Rita é boa, mas não é Elis,
diz-se. Entrevistada no extinto programa de Jô Soares, Maria Rota emocionou-se
ao ouvir o nome da própria mãe. Maria Rita fofa.
Em
Porto Alegre há uma controversa estátua em homenagem a Elis,
pois muitos acham a homenagem estranha, beirando o feio e o impertinente, não
fazendo jus a quem foi Elis.
Muito criteriosa (e corajosa), Elis era soda na hora de
selecionar repertório, e ouvia muitas e muitas fitas para selecionar canções
que considerava interessantes de se gravar, sendo dura na seleção – as músicas
que a agradavam eram exceção. Sua capa na revista Veja, mostrando a língua, como
um genial Albert Einstein cantante, ilustra sutilmente a rebeldia frente à
sisudez militar do Brasil de então. Elis conduzia as pessoas com altivez
monárquica, com espírito de líder. Sua morte só veio a fortalecer o ídolo, que
permanece sendo a portoalegrense baixinha e estrábica apelidada de Pimentinha da MPB.
A mãe da infante Elis, ao ver o potencial melódico da
filha, levou a pequena a um concurso musical em uma rádio de Porto Alegre, mas
a tímida Elis ficou encabulada e travou, só destravando em uma segunda ocasião
na mesma rádio. Hoje, veríamos uma Elis criança no programa televisivo The Voice Kids Brasil. Travando por
travar, em uma ocasião, quando já fazia sucesso adulta no Rio, Elis travou e
teve que fazer um grande esforço para liberar a voz, mostrando a força psicológica
de seu dom inegável: o canto está na alma do cantor. Sem dom, não tem como. O
diamante bruto é o potencial a ser lapidado – não se lapida ouro de tolo.
Quando há potencial, tudo o que é necessário é persistência.
Tenho algo em comum com a diva, pois ela adorava fazer
palavras cruzadas no jornal!
Afinal, o que tinha Elis? Tao, pois Tao é um mistério,
insondável, infinito – tudo é sensual processo. E os mistérios de Elis
continuam a fascinar. Recentemente, viajou pelo Brasil o musical Elis, a Musical, procurando matar um
pouco da saudade da diva. Também recentemente, foi lançada uma cinebiografia,
que também traz o episódio em que a estrela chamou os militares de gorilas. Respeitada, Elis podia dar-se
ao luxo de só trabalhar com cobrões da MPB, pois estava à altura destes. Insubstituível.
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