Nascido na Lituânia e
radicado no Brasil, o judeu Lasar Segall sentiu na pele a perseguição e o
preconceito. Segall é uma estrela do Modernismo Brasileiro. Por coincidência,
nos dias em que eu redigia este artigo, passava um documentário sobre Segall no
canal por assinatura Arte 1. Os textos e análises semióticas a seguir são
inteiramente meus. Boa leitura!
Acima, Aldeia Russa. Este quadro, de tão longa data, hoje estaria
esteticamente na moda, pois traz uma tendência contemporânea – linhas retas e
oblíquas, num namoro com o Cubismo. Um homem e uma mulher descansam
languidamente em uma tarde preguiçosa, apenas observando o Mundo, sem
interferir neste. As cores são vibrantes e saborosas, sem espaço para dúvidas
cinzentas de um dia encoberto. Essas linhas são como um diamante lapidado, no
modo como um artista vai lapidando a si mesmo, em constante processo, nunca
achando que atingiu a perfeição, nunca achando que não mais deve lutar pela
Vida, pois tudo é processo, numa Vida ininterrupta. Aqui há tensão, sem espaço
para linhas orgânicas e curvilíneas, num ar truncado, tenso, apesar de ser uma
cena de descanso e preguiça. É como uma Vênus e um Marte de Botticelli – o
Feminino está desperto, num momento de descontração e descanso, e Marte repousa
profundamente neste cenário tão lânguido, sendo Marte o princípio que leva o
indivíduo lutar pela Vida, batalhando por um espaço no Mundo. Mas, neste
momento, o guerreiro está em casa e a vontade, no domínio do Feminino, num lar
tão aconchegante e acolhedor, deixando do lado de fora o labor, a luta pela
Vida, num momento de se desligar do Mundo lá fora, entregando seus sentimentos
e tristezas nas mãos de Vênus, a sempre bela, pois, apesar de “beleza não pôr à
mesa”, num mundo em que agressividade e atitude são tão capitais, temos uma
Vênus calma e plácida, conquistando o conquistador Marte, numa naninha gostosa,
em que Marte
se entrega incondicionalmente, num ato de rendição. Ao fundo vemos colinas
piramidais, abrasivas, na atitude marciana de pegar a lança e o escudo e ir à
luta. São espinhos que têm um aviso muito claro – não chegue perto demais;
respeite. Essas linhas fazem metáfora com a Internet, o ambiente abstrato em
que todos estamos interligados por linhas tensas, unificando a Humanidade, na
metáfora espiritual de que todos somos interligados psiquicamente, na ordem da
Divina Providência, a grande Internet Cósmica, interligando os espíritos, no
fato de que absolutamente ninguém está de fora, desplugado. São as tentativas
humanas de entender o Metafísico, a Grande Mãe Limpa que rege a Vida na Terra,
num poder tão intenso que mal pode ser detectado, tendo no Sábio um
representante no Mundo, pois este Sábio é quem sabe que Tao é o único caminho.
Tudo neste quadro está interligado digitalmente, numa época em que a Internet
sequer era Ficção Científica. São as mentes modernas, avançadas, um tanto mal
interpretadas em sua própria época. E os visionários, com o passar do Tempo,
acabam vencendo, sendo finalmente compreendidos, como meu querido bisavô
visionário foi o Pai da Festa da Uva de Caxias. Logo acima da cabeça do homem,
dois círculos que parecem dois mamilos, no modo como a Grande Mãe alimenta seus
filhos, suas criações, suas concepções, na mais deliciosa caixinha de leite
condensado, irresistível, sempre nutrindo, sempre regendo, na poderosíssima
metáfora da Virgem Maria católica. Neste quadro, podemos ouvir o som de
pássaros à tarde, embalando o sono, seduzindo a tensão, abrandando esta.
Acima, Bananal. Toda a brasilidade de um bananal, no modo como Hollywood
“vendeu” Carmen Miranda, numa perfeita cafonice americana. É como no filme Bananas de Woody Allen, em que este vai
para uma republiqueta latinoamericana, regida por um ditador militar, sendo
este cercado de privilégios em meio a um povo tão pobre, no modo como as
ditaduras buscam forçar uma ordem artificial, aterrorizando o cidadão comum,
escravizando este. O homem no quadro tem traços mestiços, brasileiros, numa
boca de descendente de africanos, e é como se este homem fosse parte do
bananal, numa pessoa nascida e crescida no Brasil, encantando o Mundo com uma
cultura exótica e única, no modo como muitos franceses, até hoje, creem que o
Brasil é uma terra selvagem e florestal, sem espaço para qualquer vida urbana.
Este homem é quase um gorila, pois somos todos símios racionais, e os laços
evolutivos vão moldando o Homo sapiens, na eterna dúvida humana: O Ser Humano é
fruto de quê? Este bananal é denso, fechado e misterioso, abrigando muita Vida,
seja vegetal ou animal, e podemos ouvir o som de grilos no fim de tarde, ou o
som de araras coloridas, no modo como as pessoas projetam seu próprio
inconsciente na Vida Tropical, e o caótico Id é projetado em criaturas
exóticas. Pura Psicologia. O bananal se estende até onde a vista pode alcançar,
num labirinto florestal que tem suas próprias regras. São como lanças apontadas
em um grande campo de batalha, numa cena de enfrentamento, de alguém
enfrentando a si mesmo, encarando fatos e levando a Vida para frente. É como um
grande oceano verde esmeralda, cheio de joias e dádivas. Por quase todo este
bananal, só vemos folhas, e vemos apenas um pé de bananas de fato, e estão
ainda verdes, impróprias para o consumo, no modo como a humildade faz com que a
pessoa, tendo os pés no chão, sinta-se sempre despreparada, sempre verde,
sempre aprendendo mais e mais. As folhas de bananeiras são generosas, e este
bananal oferece uma sombra ininterrupta, numa bela riqueza de tons de verde,
como um James Bond estiloso, que seleciona cuidadosamente as cores das peças de
roupa que vai vestir, trazendo a sofisticação do Homem Britânico, na combinação
de dois fatores norteadores – agressividade e charme, ou seja, Masculino e
Feminino, e cada ser humano precisa ter ambos, seja homem, seja mulher. Ao
fundo no quadro, vemos um céu cinzento, destoando do clima tropical alegre, mas
também trazendo um céu de nuvens carregadas, prontas para soltar uma grande
tempestade tropical, irrigando o bananal e fazendo a Vida fluir, na
sensualidade das grandes tormentas tropicais, com seus poderosos raios e
trovões, mostrando todo o poder da Natureza, inspirando um artista a imitar tal
poder, no termo que usa para dizer que tal artista “fez o chão tremer”; no modo
se diz que um artista é, em seu próprio talento, uma força da Natureza, uma
supernova, nas eternas tentativas do Ser Humano em entender o Mundo por meio de
metáforas, como tantas tribos e civilizações idolatravam deuses que
representavam tais poderes naturais. E tudo que um artista quer é isso –
estourar como uma supernova. E as catarses se formam, fazendo um artista causar
assombro e comoção. Podemos ver as folhas de bananeira balançando suavemente ao
vento, e o farfalhar das folhas traz um som sensual e acolhedor, no sexy fato
de que a Meteorologia é sempre processo, nunca se findando, no modo como o Ser
Humano tenta, sem sucesso, entender a Eternidade, pois o Ser Humano é finito,
nascendo e morrendo. Este bananal é um grande tesouro, numa exuberância
generosa, no modo como os patriarcas unem suas próprias famílias, e, quando
este patriarcas morrem, as famílias se desintegram – é a força da união, e só
tem talento unificador aquele que atua sob Tao, no perfume dos grandes líderes,
e não de ditadores. Por exemplo, Eva Sopher, a guardiã do Theatro São Pedro de
Porto Alegre: Eva era conhecida, amada e respeitada, sendo certamente uma das
maiores portoalegrenses de todos os tempos. Aqui, o homem está bem sério, muito
sério, na seriedade das almas íntegras e dignas. Seu pescoço é um pilar forte,
inquebrável, sustentado tudo e todos, unindo planetas em torno do mesmo astro.
Acima, Encontro. Um Segall romântico, no deus Eros, unindo opostos, na
função fortemente representativa do casal heterossexual, o qual, em público,
inevitavelmente, representa Yin e Yang, desde o momento do enlace, alimentando
colunas sociais, no fato de que o Mundo precisa da união heterossexual para
manter a Vida Humana sobre a Terra. A mulher aqui está de perfil, como numa
moeda, no valor inestimável do casal que se une com fidelidade e integridade,
sem chances para vidas duplas, ou seja, outra esposa ou esposo, nos moldes
ocidentais de Monogamia, um verdadeiro tabu: só é digno quem é uno, fazendo
metáfora com a integridade universal de Tao, o único Deus, sem espaço para
deuses, pois somos todos irmãos, filhos do mesmo ventre metafísico. Vemos
folhagens e um gramado muito verde, intenso, exuberante, no modo como o
Modernismo abraçou a tropicalidade, buscando uma identidade brasileira, com
artistas como Tarsila do Amaral, sendo reconhecida Mundo afora; como na Bossa
Nova, que conquistou o Mundo também, casando-se perfeitamente com o Jazz, no
sentido de que o Brasil, em termos de Cinema, por exemplo, luta para obter uma
identidade inconfundível, sendo quase impossível se livrar da influência
hollywoodiana. A mulher veste um azul nobre, num majestoso céu limpo, secando
roupas no varal pelos quatro cantos do Brasil, no modo como o grande líder é
aquele que trabalha junto ao seu próprio povo, e todos trabalham, acreditando
na unidade nacional e no dia a dia de labor recompensador. O decota da mulher
tem linhas elizabethanas, num ícone feminista que reinou em um mundo de homens.
A mulher tem um corte de cabelo moderno, atual, rechaçando ranços acadêmicos,
buscando inovar e se plugar com o Mundo lá fora. O homem está vestido de modo
mais austero e discreto, na seriedade do dia a dia de um escritório, de um
ambiente de trabalho. Seu chapéu o protege do Sol, no modo como a Arte protege
a sanidade mental humana. A mulher é pálida, contrastando com um homem mulato,
na junção entre dia e noite, fazendo parte da mesma esfera. O homem está
elegante, trajado para ir trabalhar, despedindo-se da esposa ou amante,
dizendo: Está chegando a hora. O dia já
vem raiando, meu bem. E eu tenho que ir embora. A cidade ao fundo é plácida
e limpa, e traz tons de magenta, vibrante, feminino, na cor do interior do
útero, na cor da feminilidade, como no filme Legalmente Loira, em que a protagonista é ultrafeminina, espalhando
charme e perfume por onde passa, nos encantos da feminilidade, de mulheres
arrumadas, elegantes e sedutoras. É a autoestima, fundamental. A cidade está
limpa e deserta, plácida, no encanto da Paz que reina no Mundo Metafísico,
sendo a Paz muito frágil no Mundo Físico, o qual tende, o tempo todo, à Guerra,
infelizmente. E a Filosofia não muda o Mundo, mas muda o modo do indivíduo ver
este Mundo; muda o relacionamento entre indivíduo e Mundo. E isso é um pensamento
encorajador. Os olhos do casal estão tristes no momento da despedida, e suas
mãos então enlaçadas, no encanto do namoro de pegar na mão no escurinho do Cinema,
nos recatados namoros de outrora. Os ladrilhos da rua são como escamas de
cobra, na serpente sedutora do romance, sempre seduzindo o Mundo na beleza liquidiscente
de um casal apaixonado, pois a Amor é lindo, seja um casal heterossexual ou
homossexual. Aqui, o casal está quase se beijando, como se tivessem vergonha de
fazer atos públicos de afeto, temendo represálias. As rugas na testa do homem
conotam experiência de Vida; conotam um trajeto percorrido, na carreira de um
artista que constrói um histórico.
Acima, Morro Vermelho. Uma Madona pós moderna, brasileira, na cor de Nossa
Senhora Aparecida, num aviso: os negros são nossos irmãos, no mesmo sangue estelar
que corre em nossas veias psíquicas. É o poderoso binômio mãe/criança, na
metáfora de que a dimensão acima é nossa genitora. É uma paisagem bem tropical,
carioca ou baiana, nas delícias tropicais de uma fruta suculenta, ou de um
peixe bem temperado. As palmeiras são frondosas, como as de Los Angeles, EUA, e
trazem toda a sedução do farfalhar de folhas ao vento quente, tropical, no
hálito arrebatador do Oceano, renovando os ares sobre a Terra, uma esfera tão
dinâmica a nível biológico. Os troncos são elegantes, esguios, tocando o Céu,
numa elegância minimalista, resultando em uma copa exuberante, farta, como nas
cores de uma paleta de um pintor. As palmeiras são a força da Vida,
enraizando-se profundamente, num caso de amor com as entranhas da Terra,
colhendo água de lençóis freáticos, como veias e artérias drenando um
organismo. É a vitória da Vida. Um dos seios da mulher é claramente delineado,
fornecendo o leite essencial ao bebê. O filho está protegido, acolhido e
confortável, no acolhimento de um lar onde reina o carinho, a atenção e o
afeto, no que significa um Lar, como na colônia espiritual Nosso Lar, uma
espécie de condomínio fechado metafísico, onde os habitantes são iguais em
apuro moral, com corações cheios de Amor, a essência de tudo. Qual seria o
sentido da Vida com o Ódio? Sentido nenhum. O mar azul ao fundo é acolhedor, e
nos convida a um banho, num ritual social de purificação. O céu, poente ou
nascente, tem uma cor intensa, tuttifrutti, e traz um perfume delicioso, fino,
na essência do que importa. Podemos ouvir o barulho das ondas deste mar, sempre
banhando a orla, beijando a areia e deixando frutos do Mar para nutrir este
litoral tão tropical. As palmeiras estão dispostas de forma ordeira, e não da
forma “caótica” como o faz a Natureza. Aqui, são palmeiras plantadas premeditadamente,
revelando uma ordem, uma lógica, no modo como as cidades espirituais são frutos
de Arquitetura e Urbanismo de espíritos elevados, de bom gosto. No quadro, ao
fundo, vemos edificações de linhas extremamente simples, como em favelas, mas
não vemos pobreza, e sim simplicidade, pois são as linhas simples o que
constrói grandes obras, como a Brasília de Niemeyer, com traços que trazem aos
ouvidos som melódico de Bossa Nova, na “languidez” brasileira, deitada
eternamente em berço esplêndido. É uma vila pacífica, mas não vemos outras
pessoas além da Madona e da criança. Um silêncio toma conta da cena, como no
silêncio produtivo de um atelier. O chão é terroso, simples, sem frescuras ou
pretensões, na acolhedora simplicidade, a qual nos faz sentir-se em casa, na
simplicidade de um chinelo, como na orla, lugar onde as afetações urbanas
perdem toda a força. De um dos lados da mulher vemos um cacto de duas partes,
como dois testículos, no modo como a mortificação psíquica é uma sensação de castração
figurada, e não literal, no sentido de que o Espiritismo nos aconselha a
mortificar o espírito, e não o corpo. Do outro lado da mulher, uma folhagem
farta, que guarda os segredos da fertilidade, escondendo vida debaixo de suas
folhas. É a imprevisibilidade existencial, no modo como nada acontece
exatamente do modo como prevíamos, pois qual seria o sentido de uma Vida
totalmente prevista? A mulher calça sapatos simples, sem salto alto, na
pertinência de alguém que sabe que salto alto não foi feito para se bater
perna. A Madona e a criança tomam lugar central na cena, um papel protagonista.
Há aqui um equilíbrio, uma serenidade, num artista que encontrou equilíbrio
psíquico na hora de produzir. É o prazer das mentes produtivas, visto que o
Trabalho é o caminho para a Felicidade. E não é desafortunado aquele que não produz?
O rosto desta Madona é simétrico, equilibrado. Sua seriedade é realista,
ponderada. Ela sente que uma grande responsabilidade foi jogada em suas mãos.
Na extrema direita do quadro, do ladinho do Mar, vemos uma caixa branca
fechada. É a Caixa de Pandora, a qual jamais pode ser aberta, como me disse um
psiquiatra: Não desperte a fera que
existe em você. O Id tem que ser mantido sobre o controle do Superego: Mente sobre o Corpo.
Acima, Paisagem Brasileira. Como eu já disse, o Modernismo Brasileiro
partiu em busca de uma identidade nacional. Em um livro que li sobre a História
da Cidade de São Paulo, uma respeitada socialite tinha dois salões em casa para
receber convidados: um salão era de decoração clássica e tradicional, para
recepcionar pessoas mais conservadoras; o outro salão tinha uma decoração
moderna e despojada, para receber pessoas mais modernas e vanguardistas. Isso
faz metáfora com a necessidade de cada pessoa ter dois olhos – um tradicional e
outro moderno, visto que a transgressão tem que respeitar o tradicional. Aqui,
temos linhas quadriculadas e simples, numa simples vila ou favela, mas aqui não
vemos pobreza ou privação, mas cores alegres, brasileiras, numa vizinhança
feliz, onde há harmonia e amizade entre os moradores. Há vários espaços em
verde, com gramados verdejantes, sem espaço para um gramado debilitado ou queimado
pela seca. Uma Lua plácida e cheia ao alto nasce de trás do morro, na sedução
de noites tropicais enluaradas. Estas casas de linhas simples entram em
harmonia com os conceitos modernistas de Arquitetura, em projetos que, mesmo
tendo sido desenvolvidos há um século, permanecem atuais até hoje, no modo como
a simplicidade é arrebatadora, impecável. As janelas deixam o ar passar e a
casa respirar, em ambientes arejados e saudáveis, renovados, na missão que a Juventude
tem de inovar e causar progresso. Elegantes ciprestes ficam eretos apontando
para o Céu, como setas apontando para o alto, como pirâmides, dizendo-nos de
onde viemos, falando-nos de nosso lar primordial – o único lar. Ao alto, os
morros e as nuvens formam um só organismo liquidiscente, como vapor d’água se
espraiando numa sauna, nos rumos curvilíneos da fluidez universal, sempre
nutrindo, sempre fluindo. É uma vizinhança plácida, e não podemos ouvir
barulhos desagradáveis ou perturbadores; podemos ouvir o som de uma orla que
não aparece no quadro, e podemos também ouvir os grilos tropicais. Este quadro
é um quebracabeça, com peças perfeitamente encaixadas, findando um mistério, um
enigma. É como um artesão supremo, numa Divina Providência que rege a Vida dos
Humanos na Terra, na perfeição de teias certeiras, em concepções que nunca dão
espaço a falhas, numa forma de governo que o Taoismo diz ser a mais sutil e
poderosa de todas. Esse diálogo entre quadrados e retângulos é meio mondriânico,
num quadro sem simetrias clássicas, como na planta projetada para um
apartamento, com diálogo entre peças assimétricas, buscando a funcionalidade.
São ruas e quadras de uma cidade pulsante. Em uma certa parte do quadro, vemos
quatro círculos discretos, como olhos observando a noite, formas orgânicas como
frutas num pé de limoeiro, na abundância cornucópica de uma farta mesa, cheia
de comida. São os olhos do artista observando o Mundo, tentando entender este a
tentando ser entendido pelo mesmo. É uma tentativa de diálogo, de entendimento,
do modo como é difícil a vida para um esquizofrênico, o qual tem dificuldade
para se expressar perante o Mundo. Essas casinhas nos convidam para entrar, num
modo de vida que o Taoismo diz para o líder não interferir: Não interfira na
vida pacata do cidadão. Essas multicores trazem pluralidade, num Mundo em que
as diferenças têm que ser respeitadas. Quando digo que sou eu mesmo, é porque
estou a vontade. Se estou confortável, é porque estou livre. Por isso, a
Liberdade tem a ver com a individualidade, com a identidade, num ser humano que
é único, com personalidade própria e inigualável. E é esta identidade que o
artista tanto busca, qualquer artista, pois não é insuportável e medíocre um
artista que copia outros artistas? Apesar das influências serem inevitáveis, a
identidade própria tem que ser praticada.
Acima, Perfil de Zulmira. Temos um perfil de rainha egípcia, altivo, em
toda a beleza de uma descendente de africanos. Sua orelha é pequena e graciosa.
Sua sobrancelha está delineada impecavelmente, arrumada. Seu olhar é sereno. O
perfil é o perfil do próprio artista, austero, íntegro. Seu cabelo está aparado
ao máximo, num corte moderno, despojado, como no cabelo joãozinho de uma Elis
Regina, mínimo, num indício de feminismo, numa mulher que, apesar de não ter
melenas longas, é ainda assim feminina, na praticidade do corte de cabelo
curtinho, no modo como o Modernismo, de certa forma, buscou uma praticidade,
uma lavagem, uma revolução. Seu pescoço é perfeito e forte como um pilar, e seu
tom de pele parece argila úmida, como se a Zulmira aqui tivesse sido feita de
barro e animada por um deus grego, no modo como Zeus criou a Mulher Maravilha.
Este é o barro nas mãos de Segall. Esta Zulmira é jovem, sem qualquer fio de
cabelo branco, e sua pele é intocada, impecável. Seu queixo é proeminente,
altivo. Ao fundo no quadro, vemos estampas floridas, trazendo perfume e
delicadeza, e o pescoço de Zulmira é um caule que, apesar de gracioso, é forte
como concreto, numa espécie de flor forte, fálica. Esta Zulmira está resoluta,
e as flores voam pelo quadro como numa brisa primaveril, como na estação em que
as azaleias brotam, enchendo os olhos de cor, na festa da Vida, da procriação.
A flor é símbolo da força vital que rege a Terra: apesar de tanta força, há
delicadeza, como num vigilante de raio x de aeroporto – firme, porém gentil.
Mais ao fundo, vemos formas que parecem cortinas ao vento, respirando pela sala
e ventilando as ideias do Brasil perante o Modernismo, convidando o brasileiro
a abrir a mente para novas formas de Arte, mas sem ser em detrimento da Arte
Acadêmica, pois é possível o convívio entre diferenças. As cortinas aqui são
coloridas, no modo como o próprio Modernismo se mostrou um movimento colorido e
vibrante, brasileiro. As cortinas esvoaçantes deixam a luz inundar o atelier de
Segall, e Zulmira ocupa todo o quadro com seu orgulho africano, num Brasil que saíra
da Escravatura, a qual gerou sequelas sociais até hoje, sendo pobre grande
parte da população negra brasileira. Isso traz à mente os rumores de que o
próximo James Bond será interpretado por um ator negro. Como diz em uma canção
de Tina Turner, não há muita diferença quando você vê além da cor da pele. A
cultura afro é muito brasileira, muito baiana, e a Escravatura gerou moldes culturais
inapagáveis no Brasil, e o Modernismo abraçou este fato, buscando o orgulho
nacional. Zulmira ocupa o quadro aqui, e dá para imaginar como bela ela ficaria
com uma coroa de rainha egípcia, principalmente da XVIII dinastia, a da
lendária Nefertiti. E o Mundo é assim: impérios surgem e morrem, e o Modernismo
trouxe toda uma ventilação, assinalando um momento de repensar. Como eu já
citei aqui no blog o verso da famosa canção de Elis, é você que é mal passado e
que não vê que o novo sempre vem. Cada geração com seus ídolos, e cabe à Juventude
buscar uma identidade própria, como na sinergia estilística dos anos 80, numa
revolução de atitude, jovem. Zulmira posa pacientemente, como se soubesse que
ter calma é tudo, no modo calmo e pacato como Tao traz o novo.
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