quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Seguindo Segall



Nascido na Lituânia e radicado no Brasil, o judeu Lasar Segall sentiu na pele a perseguição e o preconceito. Segall é uma estrela do Modernismo Brasileiro. Por coincidência, nos dias em que eu redigia este artigo, passava um documentário sobre Segall no canal por assinatura Arte 1. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Aldeia Russa. Este quadro, de tão longa data, hoje estaria esteticamente na moda, pois traz uma tendência contemporânea – linhas retas e oblíquas, num namoro com o Cubismo. Um homem e uma mulher descansam languidamente em uma tarde preguiçosa, apenas observando o Mundo, sem interferir neste. As cores são vibrantes e saborosas, sem espaço para dúvidas cinzentas de um dia encoberto. Essas linhas são como um diamante lapidado, no modo como um artista vai lapidando a si mesmo, em constante processo, nunca achando que atingiu a perfeição, nunca achando que não mais deve lutar pela Vida, pois tudo é processo, numa Vida ininterrupta. Aqui há tensão, sem espaço para linhas orgânicas e curvilíneas, num ar truncado, tenso, apesar de ser uma cena de descanso e preguiça. É como uma Vênus e um Marte de Botticelli – o Feminino está desperto, num momento de descontração e descanso, e Marte repousa profundamente neste cenário tão lânguido, sendo Marte o princípio que leva o indivíduo lutar pela Vida, batalhando por um espaço no Mundo. Mas, neste momento, o guerreiro está em casa e a vontade, no domínio do Feminino, num lar tão aconchegante e acolhedor, deixando do lado de fora o labor, a luta pela Vida, num momento de se desligar do Mundo lá fora, entregando seus sentimentos e tristezas nas mãos de Vênus, a sempre bela, pois, apesar de “beleza não pôr à mesa”, num mundo em que agressividade e atitude são tão capitais, temos uma Vênus calma e plácida, conquistando o conquistador Marte, numa naninha gostosa, em que Marte se entrega incondicionalmente, num ato de rendição. Ao fundo vemos colinas piramidais, abrasivas, na atitude marciana de pegar a lança e o escudo e ir à luta. São espinhos que têm um aviso muito claro – não chegue perto demais; respeite. Essas linhas fazem metáfora com a Internet, o ambiente abstrato em que todos estamos interligados por linhas tensas, unificando a Humanidade, na metáfora espiritual de que todos somos interligados psiquicamente, na ordem da Divina Providência, a grande Internet Cósmica, interligando os espíritos, no fato de que absolutamente ninguém está de fora, desplugado. São as tentativas humanas de entender o Metafísico, a Grande Mãe Limpa que rege a Vida na Terra, num poder tão intenso que mal pode ser detectado, tendo no Sábio um representante no Mundo, pois este Sábio é quem sabe que Tao é o único caminho. Tudo neste quadro está interligado digitalmente, numa época em que a Internet sequer era Ficção Científica. São as mentes modernas, avançadas, um tanto mal interpretadas em sua própria época. E os visionários, com o passar do Tempo, acabam vencendo, sendo finalmente compreendidos, como meu querido bisavô visionário foi o Pai da Festa da Uva de Caxias. Logo acima da cabeça do homem, dois círculos que parecem dois mamilos, no modo como a Grande Mãe alimenta seus filhos, suas criações, suas concepções, na mais deliciosa caixinha de leite condensado, irresistível, sempre nutrindo, sempre regendo, na poderosíssima metáfora da Virgem Maria católica. Neste quadro, podemos ouvir o som de pássaros à tarde, embalando o sono, seduzindo a tensão, abrandando esta.


Acima, Bananal. Toda a brasilidade de um bananal, no modo como Hollywood “vendeu” Carmen Miranda, numa perfeita cafonice americana. É como no filme Bananas de Woody Allen, em que este vai para uma republiqueta latinoamericana, regida por um ditador militar, sendo este cercado de privilégios em meio a um povo tão pobre, no modo como as ditaduras buscam forçar uma ordem artificial, aterrorizando o cidadão comum, escravizando este. O homem no quadro tem traços mestiços, brasileiros, numa boca de descendente de africanos, e é como se este homem fosse parte do bananal, numa pessoa nascida e crescida no Brasil, encantando o Mundo com uma cultura exótica e única, no modo como muitos franceses, até hoje, creem que o Brasil é uma terra selvagem e florestal, sem espaço para qualquer vida urbana. Este homem é quase um gorila, pois somos todos símios racionais, e os laços evolutivos vão moldando o Homo sapiens, na eterna dúvida humana: O Ser Humano é fruto de quê? Este bananal é denso, fechado e misterioso, abrigando muita Vida, seja vegetal ou animal, e podemos ouvir o som de grilos no fim de tarde, ou o som de araras coloridas, no modo como as pessoas projetam seu próprio inconsciente na Vida Tropical, e o caótico Id é projetado em criaturas exóticas. Pura Psicologia. O bananal se estende até onde a vista pode alcançar, num labirinto florestal que tem suas próprias regras. São como lanças apontadas em um grande campo de batalha, numa cena de enfrentamento, de alguém enfrentando a si mesmo, encarando fatos e levando a Vida para frente. É como um grande oceano verde esmeralda, cheio de joias e dádivas. Por quase todo este bananal, só vemos folhas, e vemos apenas um pé de bananas de fato, e estão ainda verdes, impróprias para o consumo, no modo como a humildade faz com que a pessoa, tendo os pés no chão, sinta-se sempre despreparada, sempre verde, sempre aprendendo mais e mais. As folhas de bananeiras são generosas, e este bananal oferece uma sombra ininterrupta, numa bela riqueza de tons de verde, como um James Bond estiloso, que seleciona cuidadosamente as cores das peças de roupa que vai vestir, trazendo a sofisticação do Homem Britânico, na combinação de dois fatores norteadores – agressividade e charme, ou seja, Masculino e Feminino, e cada ser humano precisa ter ambos, seja homem, seja mulher. Ao fundo no quadro, vemos um céu cinzento, destoando do clima tropical alegre, mas também trazendo um céu de nuvens carregadas, prontas para soltar uma grande tempestade tropical, irrigando o bananal e fazendo a Vida fluir, na sensualidade das grandes tormentas tropicais, com seus poderosos raios e trovões, mostrando todo o poder da Natureza, inspirando um artista a imitar tal poder, no termo que usa para dizer que tal artista “fez o chão tremer”; no modo se diz que um artista é, em seu próprio talento, uma força da Natureza, uma supernova, nas eternas tentativas do Ser Humano em entender o Mundo por meio de metáforas, como tantas tribos e civilizações idolatravam deuses que representavam tais poderes naturais. E tudo que um artista quer é isso – estourar como uma supernova. E as catarses se formam, fazendo um artista causar assombro e comoção. Podemos ver as folhas de bananeira balançando suavemente ao vento, e o farfalhar das folhas traz um som sensual e acolhedor, no sexy fato de que a Meteorologia é sempre processo, nunca se findando, no modo como o Ser Humano tenta, sem sucesso, entender a Eternidade, pois o Ser Humano é finito, nascendo e morrendo. Este bananal é um grande tesouro, numa exuberância generosa, no modo como os patriarcas unem suas próprias famílias, e, quando este patriarcas morrem, as famílias se desintegram – é a força da união, e só tem talento unificador aquele que atua sob Tao, no perfume dos grandes líderes, e não de ditadores. Por exemplo, Eva Sopher, a guardiã do Theatro São Pedro de Porto Alegre: Eva era conhecida, amada e respeitada, sendo certamente uma das maiores portoalegrenses de todos os tempos. Aqui, o homem está bem sério, muito sério, na seriedade das almas íntegras e dignas. Seu pescoço é um pilar forte, inquebrável, sustentado tudo e todos, unindo planetas em torno do mesmo astro.


Acima, Encontro. Um Segall romântico, no deus Eros, unindo opostos, na função fortemente representativa do casal heterossexual, o qual, em público, inevitavelmente, representa Yin e Yang, desde o momento do enlace, alimentando colunas sociais, no fato de que o Mundo precisa da união heterossexual para manter a Vida Humana sobre a Terra. A mulher aqui está de perfil, como numa moeda, no valor inestimável do casal que se une com fidelidade e integridade, sem chances para vidas duplas, ou seja, outra esposa ou esposo, nos moldes ocidentais de Monogamia, um verdadeiro tabu: só é digno quem é uno, fazendo metáfora com a integridade universal de Tao, o único Deus, sem espaço para deuses, pois somos todos irmãos, filhos do mesmo ventre metafísico. Vemos folhagens e um gramado muito verde, intenso, exuberante, no modo como o Modernismo abraçou a tropicalidade, buscando uma identidade brasileira, com artistas como Tarsila do Amaral, sendo reconhecida Mundo afora; como na Bossa Nova, que conquistou o Mundo também, casando-se perfeitamente com o Jazz, no sentido de que o Brasil, em termos de Cinema, por exemplo, luta para obter uma identidade inconfundível, sendo quase impossível se livrar da influência hollywoodiana. A mulher veste um azul nobre, num majestoso céu limpo, secando roupas no varal pelos quatro cantos do Brasil, no modo como o grande líder é aquele que trabalha junto ao seu próprio povo, e todos trabalham, acreditando na unidade nacional e no dia a dia de labor recompensador. O decota da mulher tem linhas elizabethanas, num ícone feminista que reinou em um mundo de homens. A mulher tem um corte de cabelo moderno, atual, rechaçando ranços acadêmicos, buscando inovar e se plugar com o Mundo lá fora. O homem está vestido de modo mais austero e discreto, na seriedade do dia a dia de um escritório, de um ambiente de trabalho. Seu chapéu o protege do Sol, no modo como a Arte protege a sanidade mental humana. A mulher é pálida, contrastando com um homem mulato, na junção entre dia e noite, fazendo parte da mesma esfera. O homem está elegante, trajado para ir trabalhar, despedindo-se da esposa ou amante, dizendo: Está chegando a hora. O dia já vem raiando, meu bem. E eu tenho que ir embora. A cidade ao fundo é plácida e limpa, e traz tons de magenta, vibrante, feminino, na cor do interior do útero, na cor da feminilidade, como no filme Legalmente Loira, em que a protagonista é ultrafeminina, espalhando charme e perfume por onde passa, nos encantos da feminilidade, de mulheres arrumadas, elegantes e sedutoras. É a autoestima, fundamental. A cidade está limpa e deserta, plácida, no encanto da Paz que reina no Mundo Metafísico, sendo a Paz muito frágil no Mundo Físico, o qual tende, o tempo todo, à Guerra, infelizmente. E a Filosofia não muda o Mundo, mas muda o modo do indivíduo ver este Mundo; muda o relacionamento entre indivíduo e Mundo. E isso é um pensamento encorajador. Os olhos do casal estão tristes no momento da despedida, e suas mãos então enlaçadas, no encanto do namoro de pegar na mão no escurinho do Cinema, nos recatados namoros de outrora. Os ladrilhos da rua são como escamas de cobra, na serpente sedutora do romance, sempre seduzindo o Mundo na beleza liquidiscente de um casal apaixonado, pois a Amor é lindo, seja um casal heterossexual ou homossexual. Aqui, o casal está quase se beijando, como se tivessem vergonha de fazer atos públicos de afeto, temendo represálias. As rugas na testa do homem conotam experiência de Vida; conotam um trajeto percorrido, na carreira de um artista que constrói um histórico.


Acima, Morro Vermelho. Uma Madona pós moderna, brasileira, na cor de Nossa Senhora Aparecida, num aviso: os negros são nossos irmãos, no mesmo sangue estelar que corre em nossas veias psíquicas. É o poderoso binômio mãe/criança, na metáfora de que a dimensão acima é nossa genitora. É uma paisagem bem tropical, carioca ou baiana, nas delícias tropicais de uma fruta suculenta, ou de um peixe bem temperado. As palmeiras são frondosas, como as de Los Angeles, EUA, e trazem toda a sedução do farfalhar de folhas ao vento quente, tropical, no hálito arrebatador do Oceano, renovando os ares sobre a Terra, uma esfera tão dinâmica a nível biológico. Os troncos são elegantes, esguios, tocando o Céu, numa elegância minimalista, resultando em uma copa exuberante, farta, como nas cores de uma paleta de um pintor. As palmeiras são a força da Vida, enraizando-se profundamente, num caso de amor com as entranhas da Terra, colhendo água de lençóis freáticos, como veias e artérias drenando um organismo. É a vitória da Vida. Um dos seios da mulher é claramente delineado, fornecendo o leite essencial ao bebê. O filho está protegido, acolhido e confortável, no acolhimento de um lar onde reina o carinho, a atenção e o afeto, no que significa um Lar, como na colônia espiritual Nosso Lar, uma espécie de condomínio fechado metafísico, onde os habitantes são iguais em apuro moral, com corações cheios de Amor, a essência de tudo. Qual seria o sentido da Vida com o Ódio? Sentido nenhum. O mar azul ao fundo é acolhedor, e nos convida a um banho, num ritual social de purificação. O céu, poente ou nascente, tem uma cor intensa, tuttifrutti, e traz um perfume delicioso, fino, na essência do que importa. Podemos ouvir o barulho das ondas deste mar, sempre banhando a orla, beijando a areia e deixando frutos do Mar para nutrir este litoral tão tropical. As palmeiras estão dispostas de forma ordeira, e não da forma “caótica” como o faz a Natureza. Aqui, são palmeiras plantadas premeditadamente, revelando uma ordem, uma lógica, no modo como as cidades espirituais são frutos de Arquitetura e Urbanismo de espíritos elevados, de bom gosto. No quadro, ao fundo, vemos edificações de linhas extremamente simples, como em favelas, mas não vemos pobreza, e sim simplicidade, pois são as linhas simples o que constrói grandes obras, como a Brasília de Niemeyer, com traços que trazem aos ouvidos som melódico de Bossa Nova, na “languidez” brasileira, deitada eternamente em berço esplêndido. É uma vila pacífica, mas não vemos outras pessoas além da Madona e da criança. Um silêncio toma conta da cena, como no silêncio produtivo de um atelier. O chão é terroso, simples, sem frescuras ou pretensões, na acolhedora simplicidade, a qual nos faz sentir-se em casa, na simplicidade de um chinelo, como na orla, lugar onde as afetações urbanas perdem toda a força. De um dos lados da mulher vemos um cacto de duas partes, como dois testículos, no modo como a mortificação psíquica é uma sensação de castração figurada, e não literal, no sentido de que o Espiritismo nos aconselha a mortificar o espírito, e não o corpo. Do outro lado da mulher, uma folhagem farta, que guarda os segredos da fertilidade, escondendo vida debaixo de suas folhas. É a imprevisibilidade existencial, no modo como nada acontece exatamente do modo como prevíamos, pois qual seria o sentido de uma Vida totalmente prevista? A mulher calça sapatos simples, sem salto alto, na pertinência de alguém que sabe que salto alto não foi feito para se bater perna. A Madona e a criança tomam lugar central na cena, um papel protagonista. Há aqui um equilíbrio, uma serenidade, num artista que encontrou equilíbrio psíquico na hora de produzir. É o prazer das mentes produtivas, visto que o Trabalho é o caminho para a Felicidade. E não é desafortunado aquele que não produz? O rosto desta Madona é simétrico, equilibrado. Sua seriedade é realista, ponderada. Ela sente que uma grande responsabilidade foi jogada em suas mãos. Na extrema direita do quadro, do ladinho do Mar, vemos uma caixa branca fechada. É a Caixa de Pandora, a qual jamais pode ser aberta, como me disse um psiquiatra: Não desperte a fera que existe em você. O Id tem que ser mantido sobre o controle do Superego: Mente sobre o Corpo.


Acima, Paisagem Brasileira. Como eu já disse, o Modernismo Brasileiro partiu em busca de uma identidade nacional. Em um livro que li sobre a História da Cidade de São Paulo, uma respeitada socialite tinha dois salões em casa para receber convidados: um salão era de decoração clássica e tradicional, para recepcionar pessoas mais conservadoras; o outro salão tinha uma decoração moderna e despojada, para receber pessoas mais modernas e vanguardistas. Isso faz metáfora com a necessidade de cada pessoa ter dois olhos – um tradicional e outro moderno, visto que a transgressão tem que respeitar o tradicional. Aqui, temos linhas quadriculadas e simples, numa simples vila ou favela, mas aqui não vemos pobreza ou privação, mas cores alegres, brasileiras, numa vizinhança feliz, onde há harmonia e amizade entre os moradores. Há vários espaços em verde, com gramados verdejantes, sem espaço para um gramado debilitado ou queimado pela seca. Uma Lua plácida e cheia ao alto nasce de trás do morro, na sedução de noites tropicais enluaradas. Estas casas de linhas simples entram em harmonia com os conceitos modernistas de Arquitetura, em projetos que, mesmo tendo sido desenvolvidos há um século, permanecem atuais até hoje, no modo como a simplicidade é arrebatadora, impecável. As janelas deixam o ar passar e a casa respirar, em ambientes arejados e saudáveis, renovados, na missão que a Juventude tem de inovar e causar progresso. Elegantes ciprestes ficam eretos apontando para o Céu, como setas apontando para o alto, como pirâmides, dizendo-nos de onde viemos, falando-nos de nosso lar primordial – o único lar. Ao alto, os morros e as nuvens formam um só organismo liquidiscente, como vapor d’água se espraiando numa sauna, nos rumos curvilíneos da fluidez universal, sempre nutrindo, sempre fluindo. É uma vizinhança plácida, e não podemos ouvir barulhos desagradáveis ou perturbadores; podemos ouvir o som de uma orla que não aparece no quadro, e podemos também ouvir os grilos tropicais. Este quadro é um quebracabeça, com peças perfeitamente encaixadas, findando um mistério, um enigma. É como um artesão supremo, numa Divina Providência que rege a Vida dos Humanos na Terra, na perfeição de teias certeiras, em concepções que nunca dão espaço a falhas, numa forma de governo que o Taoismo diz ser a mais sutil e poderosa de todas. Esse diálogo entre quadrados e retângulos é meio mondriânico, num quadro sem simetrias clássicas, como na planta projetada para um apartamento, com diálogo entre peças assimétricas, buscando a funcionalidade. São ruas e quadras de uma cidade pulsante. Em uma certa parte do quadro, vemos quatro círculos discretos, como olhos observando a noite, formas orgânicas como frutas num pé de limoeiro, na abundância cornucópica de uma farta mesa, cheia de comida. São os olhos do artista observando o Mundo, tentando entender este a tentando ser entendido pelo mesmo. É uma tentativa de diálogo, de entendimento, do modo como é difícil a vida para um esquizofrênico, o qual tem dificuldade para se expressar perante o Mundo. Essas casinhas nos convidam para entrar, num modo de vida que o Taoismo diz para o líder não interferir: Não interfira na vida pacata do cidadão. Essas multicores trazem pluralidade, num Mundo em que as diferenças têm que ser respeitadas. Quando digo que sou eu mesmo, é porque estou a vontade. Se estou confortável, é porque estou livre. Por isso, a Liberdade tem a ver com a individualidade, com a identidade, num ser humano que é único, com personalidade própria e inigualável. E é esta identidade que o artista tanto busca, qualquer artista, pois não é insuportável e medíocre um artista que copia outros artistas? Apesar das influências serem inevitáveis, a identidade própria tem que ser praticada.


Acima, Perfil de Zulmira. Temos um perfil de rainha egípcia, altivo, em toda a beleza de uma descendente de africanos. Sua orelha é pequena e graciosa. Sua sobrancelha está delineada impecavelmente, arrumada. Seu olhar é sereno. O perfil é o perfil do próprio artista, austero, íntegro. Seu cabelo está aparado ao máximo, num corte moderno, despojado, como no cabelo joãozinho de uma Elis Regina, mínimo, num indício de feminismo, numa mulher que, apesar de não ter melenas longas, é ainda assim feminina, na praticidade do corte de cabelo curtinho, no modo como o Modernismo, de certa forma, buscou uma praticidade, uma lavagem, uma revolução. Seu pescoço é perfeito e forte como um pilar, e seu tom de pele parece argila úmida, como se a Zulmira aqui tivesse sido feita de barro e animada por um deus grego, no modo como Zeus criou a Mulher Maravilha. Este é o barro nas mãos de Segall. Esta Zulmira é jovem, sem qualquer fio de cabelo branco, e sua pele é intocada, impecável. Seu queixo é proeminente, altivo. Ao fundo no quadro, vemos estampas floridas, trazendo perfume e delicadeza, e o pescoço de Zulmira é um caule que, apesar de gracioso, é forte como concreto, numa espécie de flor forte, fálica. Esta Zulmira está resoluta, e as flores voam pelo quadro como numa brisa primaveril, como na estação em que as azaleias brotam, enchendo os olhos de cor, na festa da Vida, da procriação. A flor é símbolo da força vital que rege a Terra: apesar de tanta força, há delicadeza, como num vigilante de raio x de aeroporto – firme, porém gentil. Mais ao fundo, vemos formas que parecem cortinas ao vento, respirando pela sala e ventilando as ideias do Brasil perante o Modernismo, convidando o brasileiro a abrir a mente para novas formas de Arte, mas sem ser em detrimento da Arte Acadêmica, pois é possível o convívio entre diferenças. As cortinas aqui são coloridas, no modo como o próprio Modernismo se mostrou um movimento colorido e vibrante, brasileiro. As cortinas esvoaçantes deixam a luz inundar o atelier de Segall, e Zulmira ocupa todo o quadro com seu orgulho africano, num Brasil que saíra da Escravatura, a qual gerou sequelas sociais até hoje, sendo pobre grande parte da população negra brasileira. Isso traz à mente os rumores de que o próximo James Bond será interpretado por um ator negro. Como diz em uma canção de Tina Turner, não há muita diferença quando você vê além da cor da pele. A cultura afro é muito brasileira, muito baiana, e a Escravatura gerou moldes culturais inapagáveis no Brasil, e o Modernismo abraçou este fato, buscando o orgulho nacional. Zulmira ocupa o quadro aqui, e dá para imaginar como bela ela ficaria com uma coroa de rainha egípcia, principalmente da XVIII dinastia, a da lendária Nefertiti. E o Mundo é assim: impérios surgem e morrem, e o Modernismo trouxe toda uma ventilação, assinalando um momento de repensar. Como eu já citei aqui no blog o verso da famosa canção de Elis, é você que é mal passado e que não vê que o novo sempre vem. Cada geração com seus ídolos, e cabe à Juventude buscar uma identidade própria, como na sinergia estilística dos anos 80, numa revolução de atitude, jovem. Zulmira posa pacientemente, como se soubesse que ter calma é tudo, no modo calmo e pacato como Tao traz o novo.

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