quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Enrolado nos Carretéis




Eu poderia ficar para sempre falando de Iberê Camargo, artista de obra vasta. Há na internet sites sérios, artísticos, que louvam o artista que deu nome à fundação IC. Recordo-me de uma mostra sobre ele em Caxias do Sul, na Casa de Cultura Ordovás, há vários anos, e a moça da galeria disse-me que Iberê teve toda uma fase de carretéis, pintando-os em várias obras, sendo uma destas aqui analisadas. Tenho saudades de revisitar a Fundação, de tomar um café olhando a vista para o Lago Guaíba, preferencialmente no fim do dia, quando o Sol inunda as águas, e de passar pelas galerias alvas do local. Que lugar. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Carretéis. Alegria multicolorida, um alívio, um oásis em meio à dureza da vida, às inevitáveis vicissitudes, num mundo que exige que a pessoa tenha força, muita força para virar as páginas. Os carretéis estão cuidadosamente equilibrados, passando a noção de estabilidade e paz, num equilíbrio entre as nações, algo distante a anos luz das tensões entre EUA e Coreia do Norte. A paz é frágil e, ainda assim, fortíssima. A variedade cromática é uma bandeira gay do arco-íris, pedindo ao mundo que este seja menos sisudo e mais tolerante. Remete a uma lembrança de infância, lá no início dos anos 80, num anúncio de revista, anunciando um filme fotográfico, e o anúncio era nove ou dez homens, cada um vestido e maquiado de uma cor, anunciando a versatilidade cromática dos filmes anunciados. Os homens estavam sorridentes; eram simpáticos. Há aqui, com Iberê, algumas pitadas de mistério, de morte, de amargura, com dois carretéis negros e uma sombra igualmente negra sob o conjunto de objetos. E por que essa fixação de IC por carretéis? Tem algo de que gosto muito: mesas em forma de grandes carretéis. Gosto de mesas de carretéis. Acho-as informais e convidativas, simples, descoladas e modernas, jovens, irreverentes. Isso dá uma sobrevida ao carretel: antes servia como suporte para fios; depois, como mesa. É uma alternativa, desafiando a caretice. Aqui, os carretéis têm uma nova vida pelas mãos do pintor, servindo de modelo artístico. Eu gostaria de ter uma mesa de carretel com um tampo de vidro em cima. Aqui, os carretéis são uma grande família, numa pose fotográfica, no sentido de que há semelhança genética: são todos carretéis, com a mesma forma; por outro lado, são diferentes, cada um com sua cor, com seu tempero, dando sentido à diversidade, a qual é essencial na Democracia, na qual as diferenças têm que ser respeitadas, no sentido de que o Espiritismo diz que cada pessoa é única e especial. No chão, há duas formas esféricas: a primeira, mais à esquerda, é escura, quase negra, como um vinho tinto, misteriosa, como uma bola em um estádio sem luz, no breu, num jogo de Copa do Mundo que massacra o orgulho nacional; a segunda, à direita, parece uma casa de joão-de-barro, com sua porta convidativa, uma vagina convidando e seduzindo, trazendo seu homem para o interior, no qual quem reina é a mulher, como numa casa na qual a mulher arruma tudo do seu próprio jeito, dificilmente deixando seu homem interferir na decoração, numa dona de casa que é a dona da casa. O joão-de-barro é uma casa, um atelier do artista, o qual, no conforto de seu próprio canto, produz de força calma e confortável. A casinha de barro é sempre de frente para o Norte, trazendo referência, orientação, numa casa na qual tudo gira em torno do convívio, o qual precisa ser pacífico, amainando as diferenças. Há um lindo carretel de vermelho vibrante, nos laços de sangue da família, ou na sensualidade dos lábios femininos, na feminilidade do interior de um lar. Há um carretel rosa pink, como se fosse da boneca Barbie, no perfeito mundo do faz-de-conta, na inocência infantil para a qual o Mal é algo remoto e desprezível. Há alguns carretéis de cor mais branca, trazendo um pouco de luz, num lar arejado e iluminado, inundado por um Sol brando, porém brilhante. Falando em Sol, há alguns carretéis de tom amarelado, como no tesouro áureo que é um lar-referência, numa estrutura que passa a sensação de solidez, como o espírito Patrícia, na Literatura Espírita, diz que, ao desencarnar, a pessoa vai para um lugar onde esta se sente extremamente segura e querida. Não há carretéis de tom de azul, mas, em compensação, o fundo é todo de um azulmarinho discreto, num vasto oceano de possibilidades, denso, cheio de vida, na coloração azul do planeta Terra. O fundo traz textura de nuvens, em um céu denso, provavelmente preparando-se para a chuva inevitável, a qual irriga o campo e enche a represa, na relação vital entre água e vida na Terra. E por que existe água doce e salgada? A vida é um mistério. Há vários carretéis em tons de marrom, numa cor discreta, como na pele do descendente de africanos, na estupidez do Regime Escravocrata, no qual ser negro não é ser gente. Abaixo dos carretéis, uma extensa sombra negra, no mistério da criação: o que faz um artista produzir? A impressão que se tem é a de fragilidade, sendo que qualquer sopro pode trazer tudo ao chão, como numa implacável implosão, no sentido de que tudo está destinado à ruína, e só o que é espiritual prevalece, sobrevive: matéria é nada; pensamento é tudo. Os espíritos mais toscos identificam-se com o mundo material; já, os mais elevados identificam-se com o espiritual, o mental, rechaçando a obsessão humana em adquirir bens, em acumular como o personagem Tio Patinhas, de Disney, em sua caixaforte. Patrícia, um espírito elevado, rejeita o materialismo. Quem não quer se desapegar da matéria é quem sofre. Vemos aqui um Iberê menino, brincando de construir castelos com os carretéis, dando formas à imaginação, sendo esta o nervo de cada artista. É como uma linda cidade colorida, com arranhacéus alegres que celebram a diversidade e o respeito. Vemos um IC preocupado em trazer diversidade, mostrando que, no mundo, há todos os tipos de cabeças, de carretéis. Parece que, após pintar este quadro, Iberê vai desmontar a estrutura e refazer o trabalho, posicionando os carretéis de outra forma, sempre com criatividade, como uma criança fazendo castelos de areia, sempre criando, pois o Espiritismo diz: Deus está sempre criando. São como barras de uma prisão, catarseando a dor do agrilhoamento, no sentido de que a encarnação é uma espécie de prisão: pergunte ao prisioneiro se este gosta da prisão. Mas é uma prisão alegre e colorida, trazendo contentamento. Desencarnando, Iberê deixa um rastro de obras respeitáveis, como pegadas na areia. Cada carretel é uma encarnação, numa lista, num currículo espiritual, acumulando experiências. E o arco-íris renasce após a tormenta.

Acima, Manequins. Temos aqui um Iberê vibrante a provocante. Os manequins exibem-se em uma vistosa vitrine, provocando e atiçando o desejo de compra, num comércio tão obcecado em vender. O manequim da direita é mais discreto e retirado, nas formas voluptuosas de uma linda mulher, numa nudez que clama por roupas, senso inútil em uma vitrine um manequim sem roupas. É a beleza do vazio, do vago, do espaço que deixa a vida entrar e acontecer, no vazio de um copo, que é útil exatamente porque é vazio. A nudez busca arrastar para si as percepções do consumidor, numa cintura extremamente fina, inumana, impossível de acontecer com um ser humano real, na busca por padrões de beleza extremos, irreais, como num impiedoso espartilho, oprimindo a mulher, exigindo desta um padrão de perfeição, numa sociedade patriarcal, machista, na qual a própria mulher é machista, como no espartilho de Rose em Titanic, numa mulher louca para se libertar, gritando dentro de si, no poder libertador das catarses. O manequim nu não tem cabeça nem membros, como uma carcaça, pronta para ser preenchida pela imaginação de cada pessoa, numa boneca Barbie nua, a qual, estando nua, é desinteressante: uma boneca interessante é uma boneca que pode ser vestida de diversas formas, dando asas à imaginação, atiçando a criatividade infantil, desenvolvendo o pensamento emocional, criativo. E por que uma cintura tão fina? Aonde os padrões querem ir? Por que uma mulher tem que estar em segundo plano, em eterno papel coadjuvante? O manequim da esquerda, masculino, é bem mais nítido e protagonista, com furiosas pinceladas brancas, dando forma e causando contraste frente ao fundo avermelhado, da cor do útero, da cor de um bordel, cheirando a sexo. O homem está tranquilamente de pernas cruzadas, apreciando a vista, como se estivesse olhando o próprio consumidor que o olha na vitrine – um vendo o outro, numa reciprocidade, numa correspondência. Sua cabeça é desproporcional, enorme, talvez guardando um cérebro o qual quer sempre criar e inventar. Seu tórax é acinzentado, como em cinzas remanescente da fogueira rubra, que incendeia o quadro. A cinza é o resultado de um grande incêndio, como o que vi nos jornais no dia de hoje, em um grande sinistro que destruiu parte da empresa Marcopolo, em Caxias do Sul. O vermelho é um pôr-do-sol ardente, anunciando um dia seguinte seco e ensolarado, convidando à vida ao ar livre. O manequim da esquerda está com uma das mãos dentro do bolso, numa pose elegante, que busca vender as roupas dentro da loja: se você comprar aqui, você terá elegância, na falácia do consumo, pois elegância vem de dentro, vem do espírito, e nunca vem de fora, nunca vem em uma peça de roupa. O manequim masculino está de perfil, olhando ao lado, distraindo-se com algo, e seus traços formam um labirinto muito confuso e traiçoeiro. Os traços alvos e escuros definem sua forma, fazendo-o sobressair-se ao fundo rubro. Temos também algumas pinceladas azuis, frias, num dia de Sol aberto. Suas pernas cruzadas são como uma roupa sendo torcida, eliminando a umidade, secando ao calor do fundo ruivo. Aqui, o protagonismo pertence ao homem, numa sociedade na qual uma mulher nunca pode ser livre para fazer escolhas – uma mulher tem que estar submetida a um homem, seja seu pai, irmão, marido ou patrão, do modo como dificilmente veremos, algum dia, uma mulher comandando o Vaticano, como no reinado de Hatshepsut, a egípcia que governou como faraó. Podemos, aqui na obra de IC, dobrar a tela ao meio, fazendo com que Yin e Yang juntem-se em harmonia e tragam o caminho uno, Tao, o único caminho. Sustentando o manequim feminino, uma torre negra, um suporte forte e estável, o princípio fálico de um rei erguendo sua rainha, como na canção Express Yourself de Madonna: Você precisa de uma mão grande e forte que leve você a um nível mais elevado. O suporte fálico ergue a vida em sociedade, como um grande navio, que abriga os cidadãos, ganhando a confiança destes. Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Algumas pinceladas delgadas rubras no rosto e no pescoço do manequim masculino são como vasos sanguíneos, vibrando na força da vida, alimentando o organismo social, nutrindo uma cidade com suas ruas apinhadas de veículos e pedestres, na demanda da vida. As pinceladas brancas são nuvens de um sonho, o sonho de um mundo melhor, sem tantas desigualdades entre irmãos. O manequim masculino parece estar caminhando para um lado e olhando para o outro, num desencontro entre sonho e realidade, trazendo indecisão e inércia. Para onde vou?

Acima, Retrato de Estácio Kramer da Luz. O peito do modelo é amarelado como o Sol, trazendo calor ao coração, ao corpo, à mente, do modo como a vida na Terra morreria sem o Sol, como no Sol poente do Guaíba. Só que, aqui, este Sol está retangular, como se diz no termo “ver o Sol nascer quadrado”, para quem está preso, na prisão que é a encarnação. Mas Estácio tem um olhar inocente, de quem não tem razão para ser preso. Ele está olhando para o lado, distraído, alheio ao Iberê que o pinta. Sua tez é morena, apimentada pela exposição solar, de modo que a pele fica curtida, “sequelada” pelo Sol e seus raios inclementes. Seu cabelo está disciplinado, arrumado, penteado para trás com um pente do próprio atelier do artista. A camisa branca que veste está usada de modo jovial, despojado, informal, com os botões abertos e mangas arregaçadas, num dia de calor, numa atitude de estilo, num modelo que sabe se colocar sem ranços nem preconceitos, revelando também a alma jovial de Iberê, um artista colorido, de pinceladas furiosas. A camisa branca está propositalmente amarrotada, sem ambições de perfeição. A informalidade traz reconforto aqui. Seus braços são vigorosos e fortes, revelando porte atlético, sem gorduras acumuladas pelo abdome. O pescoço é forte, sustentando uma cabeça com uma orelha descomunal e um rosto belo, com queixo harmônico. Acima de sua boca há um traço preto delgado que parece ser um minimalista bigode, como os que os cavalheiros usavam há décadas atrás. Seus dedos são delgados e ossudos, talvez fortalecidos por meio de algum trabalho braçal, como arar terra ou construir casas. A cadeira que o sustenta está discreta, em segundo plano, e só podemos ver parte dela, mais ou menos da mesma cor da tez do modelo, trazendo harmonia cromática. Os olhos do modelo são completamente negros, quase como em um desenho animado ou em um personagem de Maurício de Souza. Na parede atrás, muitas pinceladas, com tons de azul, cinza e marrom, e não podemos ver claramente o que há neste fundo, num artista inquisidor e enigmático. Sua calça negra está cheia de traços e ranhuras, amarrotada como a camisa, com veios que parecem sanguíneos, só que não em vermelho. Os braços emolduram a virilha negra, num formato quase triangular, mas sem ênfase erótica. O modelo parece não se importar com a presença do pintor, e o modelo até parece não se achar tão digno de ser retratado. O modelo não sabe direito qual posição ter, qual pose, e evita olhar para o pintor e para o espectador. Sua barba perfeitamente feita mostra que Estácio preparou-se para a pose. O modelo aqui é modesto, e não está com o Ego inflado. O elemento em amarelo é praticamente central, chamando até mais atenção do que o rosto. É como uma janela aberta para um belo quadro de aurora, num majestoso amanhecer dourado, mágico, reconfortante, num espetáculo para os olhos, como na personagem Galadriel, de Tolkien, uma mulher élfica que representava a Estrela Matutina em todo o seu esplendor. É como uma labareda pulsante, como pulsam as veias do modelo.

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