Eu poderia ficar para sempre falando de Iberê Camargo,
artista de obra vasta. Há na internet sites sérios, artísticos, que louvam o
artista que deu nome à fundação IC. Recordo-me de uma mostra sobre ele em
Caxias do Sul, na Casa de Cultura Ordovás, há vários anos, e a moça da galeria
disse-me que Iberê teve toda uma fase de carretéis, pintando-os em várias obras,
sendo uma destas aqui analisadas. Tenho saudades de revisitar a Fundação, de
tomar um café olhando a vista para o Lago Guaíba, preferencialmente no fim do
dia, quando o Sol inunda as águas, e de passar pelas galerias alvas do local.
Que lugar. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Carretéis.
Alegria multicolorida, um alívio, um oásis em meio à dureza da vida, às
inevitáveis vicissitudes, num mundo que exige que a pessoa tenha força, muita
força para virar as páginas. Os carretéis estão cuidadosamente equilibrados,
passando a noção de estabilidade e paz, num equilíbrio entre as nações, algo
distante a anos luz das tensões entre EUA e Coreia do Norte. A paz é frágil e,
ainda assim, fortíssima. A variedade cromática é uma bandeira gay do arco-íris,
pedindo ao mundo que este seja menos sisudo e mais tolerante. Remete a uma
lembrança de infância, lá no início dos anos 80, num anúncio de revista,
anunciando um filme fotográfico, e o anúncio era nove ou dez homens, cada um
vestido e maquiado de uma cor, anunciando a versatilidade cromática dos filmes
anunciados. Os homens estavam sorridentes; eram simpáticos. Há aqui, com Iberê,
algumas pitadas de mistério, de morte, de amargura, com dois carretéis negros e
uma sombra igualmente negra sob o conjunto de objetos. E por que essa fixação
de IC por carretéis? Tem algo de que gosto muito: mesas em forma de grandes
carretéis. Gosto de mesas
de carretéis. Acho-as informais e convidativas, simples, descoladas e modernas,
jovens, irreverentes. Isso dá uma sobrevida ao carretel: antes servia como
suporte para fios; depois, como mesa. É uma alternativa, desafiando a caretice.
Aqui, os carretéis têm uma nova vida pelas mãos do pintor, servindo de modelo
artístico. Eu gostaria de ter uma mesa de carretel com um tampo de vidro em cima. Aqui, os
carretéis são uma grande família, numa pose fotográfica, no sentido de que há
semelhança genética: são todos carretéis, com a mesma forma; por outro lado,
são diferentes, cada um com sua cor, com seu tempero, dando sentido à
diversidade, a qual é essencial na Democracia, na qual as diferenças têm que
ser respeitadas, no sentido de que o Espiritismo diz que cada pessoa é única e
especial. No chão, há duas formas esféricas: a primeira, mais à esquerda, é
escura, quase negra, como um vinho tinto, misteriosa, como uma bola em um
estádio sem luz, no breu, num jogo de Copa do Mundo que massacra o orgulho
nacional; a segunda, à direita, parece uma casa de joão-de-barro, com sua porta
convidativa, uma vagina convidando e seduzindo, trazendo seu homem para o
interior, no qual quem reina é a mulher, como numa casa na qual a mulher arruma
tudo do seu próprio jeito, dificilmente deixando seu homem interferir na
decoração, numa dona de casa que é a dona da casa. O joão-de-barro é uma casa,
um atelier do artista, o qual, no conforto de seu próprio canto, produz de
força calma e confortável. A casinha de barro é sempre de frente para o Norte,
trazendo referência, orientação, numa casa na qual tudo gira em torno do
convívio, o qual precisa ser pacífico, amainando as diferenças. Há um lindo
carretel de vermelho vibrante, nos laços de sangue da família, ou na
sensualidade dos lábios femininos, na feminilidade do interior de um lar. Há um
carretel rosa pink, como se fosse da boneca Barbie, no perfeito mundo do
faz-de-conta, na inocência infantil para a qual o Mal é algo remoto e
desprezível. Há alguns carretéis de cor mais branca, trazendo um pouco de luz,
num lar arejado e iluminado, inundado por um Sol brando, porém brilhante. Falando
em Sol, há alguns carretéis de tom amarelado, como no tesouro áureo que é um
lar-referência, numa estrutura que passa a sensação de solidez, como o espírito
Patrícia, na Literatura Espírita, diz que, ao desencarnar, a pessoa vai para um
lugar onde esta se sente extremamente segura e querida. Não há carretéis de tom
de azul, mas, em compensação, o fundo é todo de um azulmarinho discreto, num
vasto oceano de possibilidades, denso, cheio de vida, na coloração azul do
planeta Terra. O fundo traz textura de nuvens, em um céu denso, provavelmente
preparando-se para a chuva inevitável, a qual irriga o campo e enche a represa,
na relação vital entre água e vida na Terra. E por que existe água doce e
salgada? A vida é um mistério. Há vários carretéis em tons de marrom, numa cor
discreta, como na pele do descendente de africanos, na estupidez do Regime
Escravocrata, no qual ser negro não é ser gente. Abaixo dos carretéis, uma
extensa sombra negra, no mistério da criação: o que faz um artista produzir? A
impressão que se tem é a de fragilidade, sendo que qualquer sopro pode trazer
tudo ao chão, como numa implacável implosão, no sentido de que tudo está
destinado à ruína, e só o que é espiritual prevalece, sobrevive: matéria é
nada; pensamento é tudo. Os espíritos mais toscos identificam-se com o mundo
material; já, os mais elevados identificam-se com o espiritual, o mental,
rechaçando a obsessão humana em adquirir bens, em acumular como o personagem
Tio Patinhas, de Disney, em sua caixaforte. Patrícia, um espírito elevado,
rejeita o materialismo. Quem não quer se desapegar da matéria é quem sofre. Vemos
aqui um Iberê menino, brincando de construir castelos com os carretéis, dando
formas à imaginação, sendo esta o nervo de cada artista. É como uma linda
cidade colorida, com arranhacéus alegres que celebram a diversidade e o
respeito. Vemos um IC preocupado em trazer diversidade, mostrando que, no
mundo, há todos os tipos de cabeças, de carretéis. Parece que, após pintar este
quadro, Iberê vai desmontar a estrutura e refazer o trabalho, posicionando os
carretéis de outra forma, sempre com criatividade, como uma criança fazendo
castelos de areia, sempre criando, pois o Espiritismo diz: Deus está sempre criando. São como barras de uma prisão,
catarseando a dor do agrilhoamento, no sentido de que a encarnação é uma
espécie de prisão: pergunte ao prisioneiro se este gosta da prisão. Mas é uma
prisão alegre e colorida, trazendo contentamento. Desencarnando, Iberê deixa um
rastro de obras respeitáveis, como pegadas na areia. Cada carretel é uma
encarnação, numa lista, num currículo espiritual, acumulando experiências. E o
arco-íris renasce após a tormenta.
Acima, Manequins.
Temos aqui um Iberê vibrante a provocante. Os manequins exibem-se em uma
vistosa vitrine, provocando e atiçando o desejo de compra, num comércio tão
obcecado em vender. O
manequim da direita é mais discreto e retirado, nas formas voluptuosas de uma
linda mulher, numa nudez que clama por roupas, senso inútil em uma vitrine um
manequim sem roupas. É a beleza do vazio, do vago, do espaço que deixa a vida
entrar e acontecer, no vazio de um copo, que é útil exatamente porque é vazio.
A nudez busca arrastar para si as percepções do consumidor, numa cintura
extremamente fina, inumana, impossível de acontecer com um ser humano real, na
busca por padrões de beleza extremos, irreais, como num impiedoso espartilho,
oprimindo a mulher, exigindo desta um padrão de perfeição, numa sociedade
patriarcal, machista, na qual a própria mulher é machista, como no espartilho
de Rose em Titanic, numa mulher louca
para se libertar, gritando dentro de si, no poder libertador das catarses. O
manequim nu não tem cabeça nem membros, como uma carcaça, pronta para ser
preenchida pela imaginação de cada pessoa, numa boneca Barbie nua, a qual,
estando nua, é desinteressante: uma boneca interessante é uma boneca que pode
ser vestida de diversas formas, dando asas à imaginação, atiçando a
criatividade infantil, desenvolvendo o pensamento emocional, criativo. E por
que uma cintura tão fina? Aonde os padrões querem ir? Por que uma mulher tem
que estar em segundo plano, em eterno papel coadjuvante? O manequim da
esquerda, masculino, é bem mais nítido e protagonista, com furiosas pinceladas
brancas, dando forma e causando contraste frente ao fundo avermelhado, da cor
do útero, da cor de um bordel, cheirando a sexo. O homem está tranquilamente de
pernas cruzadas, apreciando a vista, como se estivesse olhando o próprio consumidor
que o olha na vitrine – um vendo o outro, numa reciprocidade, numa
correspondência. Sua cabeça é desproporcional, enorme, talvez guardando um
cérebro o qual quer sempre criar e inventar. Seu tórax é acinzentado, como em
cinzas remanescente da fogueira rubra, que incendeia o quadro. A cinza é o
resultado de um grande incêndio, como o que vi nos jornais no dia de hoje, em
um grande sinistro que destruiu parte da empresa Marcopolo, em Caxias do Sul. O
vermelho é um pôr-do-sol ardente, anunciando um dia seguinte seco e ensolarado,
convidando à vida ao ar livre. O manequim da esquerda está com uma das mãos
dentro do bolso, numa pose elegante, que busca vender as roupas dentro da loja:
se você comprar aqui, você terá elegância, na falácia do consumo, pois
elegância vem de dentro, vem do espírito, e nunca vem de fora, nunca vem em uma
peça de roupa. O manequim masculino está de perfil, olhando ao lado,
distraindo-se com algo, e seus traços formam um labirinto muito confuso e
traiçoeiro. Os traços alvos e escuros definem sua forma, fazendo-o
sobressair-se ao fundo rubro. Temos também algumas pinceladas azuis, frias, num
dia de Sol aberto. Suas pernas cruzadas são como uma roupa sendo torcida,
eliminando a umidade, secando ao calor do fundo ruivo. Aqui, o protagonismo
pertence ao homem, numa sociedade na qual uma mulher nunca pode ser livre para
fazer escolhas – uma mulher tem que estar submetida a um homem, seja seu pai,
irmão, marido ou patrão, do modo como dificilmente veremos, algum dia, uma
mulher comandando o Vaticano, como no reinado de Hatshepsut, a egípcia que
governou como faraó. Podemos, aqui na obra de IC, dobrar a tela ao meio,
fazendo com que Yin e Yang juntem-se em harmonia e tragam o caminho uno, Tao, o
único caminho. Sustentando o manequim feminino, uma torre negra, um suporte
forte e estável, o princípio fálico de um rei erguendo sua rainha, como na
canção Express Yourself de Madonna: Você precisa de uma mão grande e forte que leve
você a um nível mais elevado. O suporte fálico ergue a vida em sociedade,
como um grande navio, que abriga os cidadãos, ganhando a confiança destes. Por
trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Algumas pinceladas delgadas
rubras no rosto e no pescoço do manequim masculino são como vasos sanguíneos,
vibrando na força da vida, alimentando o organismo social, nutrindo uma cidade
com suas ruas apinhadas de veículos e pedestres, na demanda da vida. As
pinceladas brancas são nuvens de um sonho, o sonho de um mundo melhor, sem
tantas desigualdades entre irmãos. O manequim masculino parece estar caminhando
para um lado e olhando para o outro, num desencontro entre sonho e realidade,
trazendo indecisão e inércia. Para onde vou?
Acima, Retrato de
Estácio Kramer da Luz. O peito do modelo é amarelado como o Sol, trazendo
calor ao coração, ao corpo, à mente, do modo como a vida na Terra morreria sem
o Sol, como no Sol poente do Guaíba. Só que, aqui, este Sol está retangular,
como se diz no termo “ver o Sol nascer quadrado”, para quem está preso, na
prisão que é a encarnação. Mas Estácio tem um olhar inocente, de quem não tem
razão para ser preso. Ele está olhando para o lado, distraído, alheio ao Iberê
que o pinta. Sua tez é morena, apimentada pela exposição solar, de modo que a
pele fica curtida, “sequelada” pelo Sol e seus raios inclementes. Seu cabelo
está disciplinado, arrumado, penteado para trás com um pente do próprio atelier
do artista. A camisa branca que veste está usada de modo jovial, despojado,
informal, com os botões abertos e mangas arregaçadas, num dia de calor, numa
atitude de estilo, num modelo que sabe se colocar sem ranços nem preconceitos,
revelando também a alma jovial de Iberê, um artista colorido, de pinceladas
furiosas. A camisa branca está propositalmente amarrotada, sem ambições de
perfeição. A informalidade traz reconforto aqui. Seus braços são vigorosos e
fortes, revelando porte atlético, sem gorduras acumuladas pelo abdome. O
pescoço é forte, sustentando uma cabeça com uma orelha descomunal e um rosto
belo, com queixo harmônico. Acima de sua boca há um traço preto delgado que
parece ser um minimalista bigode, como os que os cavalheiros usavam há décadas
atrás. Seus dedos são delgados e ossudos, talvez fortalecidos por meio de algum
trabalho braçal, como arar terra ou construir casas. A cadeira que o sustenta
está discreta, em segundo plano, e só podemos ver parte dela, mais ou menos da
mesma cor da tez do modelo, trazendo harmonia cromática. Os olhos do modelo são
completamente negros, quase como em um desenho animado ou em um personagem de
Maurício de Souza. Na parede atrás, muitas pinceladas, com tons de azul, cinza
e marrom, e não podemos ver claramente o que há neste fundo, num artista
inquisidor e enigmático. Sua calça negra está cheia de traços e ranhuras,
amarrotada como a camisa, com veios que parecem sanguíneos, só que não em vermelho. Os braços
emolduram a virilha negra, num formato quase triangular, mas sem ênfase
erótica. O modelo parece não se importar com a presença do pintor, e o modelo
até parece não se achar tão digno de ser retratado. O modelo não sabe direito
qual posição ter, qual pose, e evita olhar para o pintor e para o espectador.
Sua barba perfeitamente feita mostra que Estácio preparou-se para a pose. O
modelo aqui é modesto, e não está com o Ego inflado. O elemento em amarelo é
praticamente central, chamando até mais atenção do que o rosto. É como uma
janela aberta para um belo quadro de aurora, num majestoso amanhecer dourado,
mágico, reconfortante, num espetáculo para os olhos, como na personagem
Galadriel, de Tolkien, uma mulher élfica que representava a Estrela Matutina em
todo o seu esplendor. É como uma labareda pulsante, como pulsam as veias do
modelo.
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